Ian Cheibub/picture alliance, via Getty Images

The New York Times
16 de janeiro de 2019

por Vanessa Barbara
Tradução: Uol Notícias

Quão profundas são exatamente as ligações entre as milícias e o governo no Brasil?

Pouco mais de um ano atrás, uma representante da Câmara municipal do Rio de Janeiro foi assassinada com quatro tiros na cabeça e na nuca. Marielle Franco estava indo para casa após um evento quando um carro emparelhou com o seu e alguém abriu fogo, matando a vereadora e seu motorista. Ficou óbvio desde o início que havia sido um crime profissional e premeditado. Franco era uma ativista negra, feminista e LGBT, defensora ferrenha dos direitos humanos, que não tinha medo de abordar questões sensíveis como o uso da violência do Estado nas favelas ou o envolvimento da polícia e de políticos nas milícias do Rio.

No mês passado finalmente houve um avanço no caso, quando a polícia do Rio prendeu dois suspeitos. Como já era de se esperar, tratava-se de ex-policiais militares. O suposto atirador, Ronnie Lessa, se aposentara por invalidez após um atentado; de acordo com investigadores, ele então passou a trabalhar como matador de aluguel e traficante de armas para uma das milícias mais poderosas do Rio de Janeiro, chamada Escritório do Crime. O outro suspeito, Élcio Vieira de Queiroz, que pode ter atuado como motorista na fuga, fora expulso da corporação sob suspeita de fornecer segurança para uma casa de jogos de azar. (Ambos negam envolvimento nos assassinatos.)

Mas quem foi o mandante do crime? É aí que a história se complica. Complica tanto que, no ano passado, a Polícia Federal abriu um inquérito sobre a investigação local do assassinato, após alegações de que ela vinha sendo sistematicamente obstruída por membros da milícia, políticos e agentes do Estado. Em novembro passado, o ministro da Segurança Pública da época disse que era “mais que uma certeza” o envolvimento de poderosos no assassinato. Alguns acrescentam, meio a sério, meio de brincadeira, que pode ser mais fácil apontar quem não está envolvido.

Até o momento a força-tarefa federal já realizou buscas nas casas de um ex-deputado estadual, um ex-policial civil, um ex-agente federal e um delegado federal na ativa. Até mesmo o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, passou a ser questionado publicamente por suas ligações com ambos os suspeitos do assassinato. Ele e Lessa eram vizinhos em um condomínio de luxo no Rio de Janeiro, e seu filho mais novo chegou a namorar a filha de Lessa. Também há uma foto de Bolsonaro ao lado de Queiroz. (O presidente nega conhecer os homens.)

Mas essas podem ser só coincidências. Desconcertante mesmo é a simpatia declarada do presidente e sua família pelos milicianos.

As infames “milícias”, em seu formato atual, foram criadas nas favelas do Rio de Janeiro no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, sob o pretexto de proteger os moradores dos traficantes. Elas são formadas principalmente por policiais aposentados e na ativa que assumem controle das comunidades e extorquem dinheiro de cidadãos comuns e comerciantes. Um estudo acadêmico de 2013 concluiu que, das cerca de mil favelas da cidade, 45% são controladas por milícias e 37% por traficantes de drogas.

Durante seus 27 anos como deputado, Bolsonaro apoiou reiteradamente os esquadrões da morte e as milícias. Em 2003, ele disse: “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bem-vindos”. Em uma entrevista de 2008, o futuro presidente do Brasil declarou que o governo deveria apoiar as milícias e possivelmente legalizá-las, já que elas “oferecem segurança e dessa forma podem manter a ordem e a disciplina em suas comunidades”.

Vem de família, aparentemente. Há pouco foi revelado que o filho mais velho de Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro, teria conexões com um ex-capitão da polícia militar, Adriano Magalhães da Nóbrega, suposto chefe do Escritório do Crime. (O ex-policial agora é foragido da Justiça.) Tanto a mãe quanto a mulher de Nóbrega foram empregadas durante anos no gabinete de Flávio Bolsonaro quando ele era deputado estadual do Rio de Janeiro. Em uma nota à imprensa, Flávio alegou que as mulheres foram contratadas por outra pessoa e que ele estava sendo vítima de uma campanha de difamação. Mas ele também elogiou Nóbrega duas vezes na Assembleia Legislativa do Rio por seu trabalho como policial, premiando-o com a mais alta honraria concedida pela assembleia, a Medalha Tiradentes, enquanto ele ainda estava na prisão acusado de homicídio. (A vítima do assassinato era um guardador de carros que, na véspera, havia denunciado crimes de tortura e extorsão supostamente cometidos pela tropa de Adriano na comunidade.) Aliás, quando Nóbrega foi condenado a 19 anos de prisão, Jair Bolsonaro também veio em sua defesa no Congresso, dizendo que ele era um “brilhante oficial” e exigindo uma revisão da condenação. (Nóbrega acabou sendo absolvido após recurso.)

Em 2015, Flávio Bolsonaro foi o único deputado a votar contra a criação de uma CPI para investigar fraudes nos chamados “autos de resistência”, que são mortes cometidas por policiais e registradas como legítima defesa. Ele argumentou que a investigação colocaria uma “faca no pescoço” dos policiais, que já não têm segurança jurídica para realizar seu trabalho. Em 2008, ele falou da “felicidade” das pessoas que “residem nessas comunidades, supostamente dominadas por milicianos”. Por fim, no ano passado, ele foi o único parlamentar a votar contra a concessão da Medalha Tiradentes — a mesma honraria que ele ofereceu a um suposto chefe de milícia — para Marielle Franco.

O que nos traz de volta ao seu assassinato. Registros bancários mostraram um depósito de R$ 100 mil em dinheiro na conta do suposto atirador. Quem encomendou o crime? E por quê? Qual a extensão da influência das quadrilhas paramilitares na polícia e na política do Brasil?

Essas perguntas são recebidas com silêncio enquanto o país continua sendo um dos lugares que mais matam defensores de direitos humanos no mundo. Muitos casos nunca são solucionados. A maioria deles parece ser rapidamente esquecida. A situação só tende a piorar, já que nosso presidente abomina o conceito de direitos humanos (em uma postagem de 2016 no Twitter, ele os comparou a “esterco”) e aprova as ações dos grupos de extermínio (“Se depender de mim, terão todo o apoio”, disse ao Congresso em 2003).

Parece que não há necessidade de legalizar as milícias no Brasil, no fim das contas. Hoje, temos a impressão de que os grupos paramilitares não estão meramente agindo como um Estado paralelo. Eles são o Estado.


Vanessa Barbara, colunista de opinião, é editora do site literário A Hortaliça e autora de dois romances e dois livros de não-ficção em português.