#107 – São Paulo, 9 de junho de 2025
A Abominável Mãe Oculta das Neves
www.hortifruti.org

“Dizem que quem entra na réstea vira cebola”
(Carolina Maria de Jesus)

“Por toda parte, até mesmo na China, trabalhar à noite é para homens”
(Franz Kafka)

:: EDITORIAL :

No século XIX, tirar um retrato infantil era uma tarefa complexa. O longo tempo de exposição exigido pelas câmeras fotográficas – de trinta segundos ou mais – significava que a criança precisava ficar imóvel por um período excruciante. O leitor que tente botar um nenê em cima de uma poltrona e esperar que ele fique parado – é virtualmente impossível.

Foi assim que surgiu o fenômeno da Mãe Oculta [Hidden Mother], um gênero fotográfico que consiste em usar a mãe como suporte físico para a criança, posteriormente fazendo de tudo para escondê-la do retrato final.

O resultado é bastante deprimente: cotovelos avulsos, mangas de vestido, mãos fantasmagóricas, véus com formato humano, mulheres disfarçadas de cadeiras. O fotógrafo Geoffrey Batchen comenta que essas imagens “dão como certa a nossa capacidade de ‘não ver’ certas coisas quando isso nos convém. […] Somos invariavelmente convidados a não perceber a incongruência de balaustradas falsas em cima de tapetes ou a artificialidade de fundos pintados e outros elementos cenográficos evidentes”.

A prática da Mãe Oculta perdurou até os anos 1920, quando as câmeras ficaram mais eficientes e a mobília humana foi dispensada.

Nesta edição, publicamos alguns desses singelos retratos.

The Hidden Mother, Linda Fregni Nagler (Mack, 2013)
Hidden Mother, Laura Larson (Saint Lucy Books, 2017)

Museum of Fine Arts, Boston, doação de Lee Marks e John C. DePrez Jr. (2019.1843), (2019.1879), (2019.1855)

:: SORTEIO ::

A vencedora do sorteio realizado em 1o. de junho foi Fernanda Silva, de Niterói, que vai receber em casa um livro de contos da Gertrude Stein, um adesivo aleatório de guarda-chuva e uma carta de tarô indicando qual é o seu legume padroeiro.


:: PULA-PULA ::
Honor Jones, “The Only Two Choices…

Elas [as crianças pequenas] testam com o dedão do pé a superfície da linguagem, mas logo a estão tratando como um castelo inflável — dando cambalhotas, se atirando contra as paredes.

[They test with a toe the surface of language, and soon they’re treating it like a bouncy castle, somersaulting, throwing themselves against the walls.]


:: COM UM MATA-MOSCAS ::

Lauren Collins, “How a Hazelnut Spread Became…

Sua formulação capta a dinâmica íntima, intensa e volátil que existe entre os dois países desde, pelo menos, o incidente do coup d’éventail em 1827, quando o governador da regência de Argel golpeou o cônsul francês com um mata-moscas durante uma disputa sobre um empréstimo pendente, dando eventualmente aos franceses um pretexto para invadir o país.

[His formulation captures the intimate, intense, and volatile dynamic that has existed between the countries since at least the coup d’éventail affair of 1827, when the dey of Algiers struck the French consul with a flyswatter over a dispute about an outstanding loan, eventually giving the French a pretext to invade.]


:: FRIO ::
Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo

Eu sinto muito frio. Costumo vestir três palitó. E tem pessoas que me vê nas ruas e diz: — Como você engordou! Já se foi o tempo que a gente engordava.


:: CACHO DE UVAS ::
Mark Haddon, The Curious Incident Of The Dog In The Night-Time

E não existem linhas no espaço, então você poderia ligar partes de Órion a partes de Lepus, Touro ou Gêmeos e dizer que formavam uma constelação chamada O Cacho de Uvas, ou Jesus, ou A Bicicleta (exceto pelo fato de que não existiam bicicletas nos tempos romanos e gregos, que foi quando chamaram Órion de Órion).

[And there aren’t any lines in space, so you could join bits of Orion to bits of Lepus or Taurus or Gemini and say that they were a constellation called The Bunch of Grapes or Jesus or The Bicycle (except that they didn’t have bicycles in Roman and Greek times which was when they called Orion Orion).]


:: NOVO DESAFIO ::
Amy Wilson, Happy to Help

Voltei para casa e fiz o que sempre faço diante de um novo desafio: reunir pesquisas suficientes para dar um curso introdutório de nível universitário.

[I went home and did what I always do in the face of a new challenge: compile enough research to teach an intro-level college course.]

Museum of Fine Arts, Boston, Doação de Lee Marks e John C. DePrez Jr. (2019.1893)

:: CONVINCENTE ::
Honor Jones, Sleep

Se você quisesse que a história de uma pessoa fosse convincente, crível, era assim que você fazia: você exagerava um pouco as partes ruins, mas a pior parte, a pior de todas, você a fazia parecer um pouco melhor.

[If you wanted a person’s story to be persuasive, believable, here was how you did it: you made the bad parts sound a little worse, but the worst part, the very worst part, you made that sound a little better.]


:: MELHOR E PIOR ::
Patricia Marx, “My NYC Tour of Tours

Uma enquete anual com leitores, publicada em uma edição de 1973 da revista Creem, elegeu o New York Dolls, ao mesmo tempo, como a melhor e a pior banda nova do ano.

[An annual readers’ poll in a 1973 issue of Creem named the New York Dolls both the best new group of the year and the worst new group of the year.]


:: REUNIÕES SECRETAS ::
Cida Bento, O pacto da branquitude

É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse: as formas de exclusão e de manutenção de privilégios nos mais diferentes tipos de instituições são similares e sistematicamente negadas ou silenciadas.


:: FATIAR UM PEPPERONI ::
James Somers, “A Revolution in How Robots Learn

A Figure, uma startup americana, angariou mais de 600 milhões de dólares para construir um elaborado robô “humanoide” com cabeça, tronco, braços, pernas e mãos com cinco dedos. Até agora, seu feito mais impressionante de destreza é “fatiar um pepperoni”, segundo Brett Adcock, fundador da Figure: o robô consegue destacar uma fatia do resto do salame.

[Figure, an American startup, has raised more than six hundred million dollars to build an elaborate “humanoid” robot with a head, a torso, arms, legs, and five-fingered hands. Its most impressive feat of dexterity so far is “singulating a pepperoni,” according to Brett Adcock, Figure’s founder: it can peel one slice from the rest of the sausage.]


:: BOLHINHAS ::
Mo Yan, Mudança

Tinha o lábio superior mais curto. Quando sorria, mostrava a gengiva roxa e os dentes amarelos separados na frente. Sua especialidade era fazer saírem bolhinhas dessa fresta entre os dentes. Uma atrás da outra. As bolhinhas flutuavam na frente dele, era uma visão fascinante.


:: URGÊNCIA ::
Amy Wilson, Happy to Help

Quando minha filha mais nova tinha cerca de quatro anos, ela uma vez escancarou a porta do chuveiro enquanto eu ainda estava com o xampu no cabelo para me perguntar, com certa urgência, o que ficava mais longe da cidade de Nova York: a Califórnia ou “o mundo inteirinho.”

[When my youngest child was about four years old, she once flung the shower door wide while I was mid-shampoo to ask me, with some urgency, which was farther from New York City: California or “the whole wide world.”]


:: VOTO DE SILÊNCIO ::
Nora Ephron, “Forget the Hamsters

É uma das coisas mais fascinantes para mim sobre todo o episódio: ele me traiu e depois agiu como se ele fosse a vítima, só porque eu escrevi sobre isso! Quer dizer, não é como se eu não fosse uma escritora. Não é como se eu nunca tivesse escrito sobre mim mesma. Eu até já havia escrito sobre ele. O que ele achava que ia acontecer? Que eu faria um voto de silêncio pela primeira vez na vida?

[It is one of the most fascinating things to me about the whole episode: he cheated on me, and then got to behave as if he was the one who had been wronged because I wrote about it! I mean, it’s not as if I wasn’t a writer. It’s not as if I hadn’t often written about myself. I’d even written about him. What did he think was going to happen? That I would take a vow of silence for the first time in my life?]

Babá negra. c1880s. Doação de Lee Marks e John C. DePrez Jr. Cortesia do Museum of Fine Arts, Boston

:: IDENTIDADE REFERÊNCIA ::
Cida Bento, O pacto da branquitude

Apesar disso, recentemente num respeitável jornal do campo progressista, uma intelectual branca se queixou do divisionismo que marcava os “movimentos identitários”, alegando que enfraquecia a luta por uma sociedade mais justa. Era possível perceber, nessa argumentação contra “movimentos identitários”, o conceito de que eram segmentos fora do território da “identidade referência”, cuja condição de branca é de universalidade e de neutralidade.


:: ARANHAS ::
Kathryn Shulz, “An Arachnophobe Pays Homage to the Spider

Essa espécie é formalmente conhecida como Megaphobema mesomelas, e, se você imaginou que a primeira parte se traduz mais ou menos como “gigante e aterrorizante”, acertou. Esse exemplar em particular tinha rastejado para dentro de minha pia vindo, presumo, das profundezas do nosso inconsciente coletivo, e parecia o resultado de uma colaboração entre Stephen King, Louise Bourgeois e Hieronymus Bosch. Emiti um som que deve ter sido audível na Guatemala, saltei para trás uns bons dois metros e me achatei contra a parede.

[That species is formally known as Megaphobema mesomelas, and if you guessed that the first part translates roughly as “gigantic and terrifying,” you’re right. This particular one had crawled into my sink from, I presume, the depths of our collective psyche, and looked like the result of a collaboration between Stephen King, Louise Bourgeois, and Hieronymus Bosch. I made a noise that must have been audible in Guatemala, leapt backward through the air a good six feet, and flattened myself against a wall.]


:: PROPORÇÃO ::
Oliver Burkeman, Help

Barbara Fredrickson diz que a proporção mais saudável entre sentimentos felizes e tristes é de 2,9 para 1.

[Barbara Fredrickson is that the healthiest ratio of happy to sad feelings is 2.9:1.]


:: DESGAVETAS ::
Caitlin Moran, How To Be a Woman

“Prevertido” é a nossa nova palavra. Todas nós lemos bastante — mas também, possivelmente, rápido demais. Há pouco, começamos a usar a palavra “paradigma”, pronunciada exatamente como se escreve. O autodidatismo tem suas desvantagens. Ou desgavetas, como provavelmente teríamos lido correndo e jamais sido corrigidas.

[‘Prevert’ is our new word. We all read a great deal — but also, possibly, too quickly. We have also recently taken to using the word ‘paradigm’, pronounced as spelt. Autodidactism has its drawbacks. Or backdrawers, as we would probably have speed-read, and never been corrected.]


:: THE REALLY ::

Honor Jones, Sleep

Ezra era editor-chefe da The Really, que ele descrevia como uma pequena revista digital de tecnologia, embora, na verdade, fosse publicada por um braço do departamento de relações públicas da empresa de mídia social mais poderosa do mundo. Em seus sete anos de atuação, a revista passou por vários nomes: IkonAriaInterrobang. Ele parecia passar a maior parte do tempo em reuniões para criar novos nomes, ou em reuniões sobre as melhores práticas para futuras reuniões de brainstorming de novos nomes, ou ainda em reuniões para discutir a demografia dessas futuras reuniões e como garantir que todos participassem igualmente no importante trabalho de criar novos nomes. De vez em quando, ele trabalhava em um infográfico sobre desinformação.

[Ezra was a managing editor at The Really, which he described as a small, tech-focused digital magazine, though in fact it was published by a branch of the PR department of the world’s most powerful social media company. In his seven-year tenure , the magazine had cycled through many names: Ikon, Aria, Interrobang. He seemed to spend most of his time in meetings brainstorming new names, or in meetings about best practices for future meetings for brainstorming new names, or in meetings to discuss the demographics of those future meetings and how to ensure that everyone participated equally in the important work of brainstorming new names. Occasionally he worked on an infographic about disinformation.]


:: DIÁRIO DE CAMPO ::
Cenas extras de Três Camadas de Noite

Quando descemos do táxi, Heitor ficou encarando um homem na rua por um longo tempo e, depois que ele estava bem longe, perguntou: “Por que ele tem um cabeção?”.


:: PEIXE MORTO ::
S. Morris Engel, Fallacies and Pitfalls of Language

Conta-se que, certa vez, o rei Charles II da Inglaterra pediu aos membros da Royal Society que descobrissem por que, ao botar um peixe morto em uma tigela cheia de água, a água transborda, enquanto isso não acontece com um peixe vivo. Alguns dos membros refletiram longamente sobre a questão e apresentaram explicações engenhosas, mas pouco convincentes. Finalmente, um deles decidiu testar a hipótese. Descobriu, é claro, que não fazia a menor diferença colocar um peixe morto ou vivo na tigela de água.

[It is told of King Charles II of England that he once asked members of the Royal Society to determine why, if you place a dead fish in a bowl full of water, it makes the water overflow, while a live one does not. Some of the members thought about this a very long time and offered ingenious but unconvincing explanations. Finally, one of them decided to test the question. He discovered, of course, that it did not make a bit of difference whether one placed a dead fish or a live one in a bowl of water.]


:: GATOS ::
Encyclopaedia Britannica, 1st edition, “Cats

Eles bebem com frequência; seu sono é leve; e muitas vezes aparentam estar dormindo, quando na verdade estão maquinando alguma maldade.

[They drink frequently; their sleep is light; and they often assume the appearance of sleeping, when in reality they are meditating mischief.]

Abominável Mãe Oculta das Neves, Original Fowler Studio, sem data.

>>>>
Agradecimentos: À pessoa que me mandou o trecho do Mo Yan e eu esqueci quem foi.
Esta edição foi possível graças a 22 aguerridos assinantes!

Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

#106 – São Paulo, 8 de maio de 2025
Uma abordagem filosófica do lixo
Continuamos mexendo a sopa
www.hortifruti.org

“Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado.”
(Silvia Federici)

“Não sei de tudo que está por vir, mas seja o que for, vou fazer dando risada.”
(Herman Melville)

:: EDITORIAL :

Com vistas a aumentar o número de subscrições pagas, informamos que, a partir da próxima edição, passaremos a vestir roupas de legumes gigantes e anunciar nossa publicação diante do Hortifruti Mandaqui e de outros sacolões de respeito (vide fotos).

Paralelamente a isso, faremos um sorteio entre os assinantes pagos desta publicação. O vencedor poderá escolher um entre os seguintes títulos:

– O Livro Amarelo do Terminal (Sesi-SP)
– O Verão do Chibo (Alfaguara)
– A Máquina de Goldberg (Quadrinhos na Cia.)
– Noites de Alface (Alfaguara)
– Operação Impensável (Intrínseca)
– O Louco de Palestra (Companhia das Letras)
– Três Camadas de Noite (Fósforo)
– Três Vidas, de Gertrude Stein (Penguin)

Quem assinar até o dia 31 de maio poderá entrar no certame. O vencedor será notificado por email e receberá o livro no conforto de seu lar, acompanhado de um bilhete personalizado com as devidas congratulações pela boa fortuna. Um trecho de seu e-mail será divulgado na próxima edição (mediante permissão), a fim de conferir legitimidade ao processo, que será auditado pelo auditor residente.

Se nada disso der certo, divulgaremos uma rifa.

:: CHIHUAHUA DE APOIO ::
W. David Marx, Status and Culture

Henri Matisse pintou seu caminho até chegar nos museus; sua tataraneta Gaïa Jacquet-Matisse ganhou destaque por uma conta glamourosa no Instagram e por vestir seu chihuahua de apoio emocional, Bambi, com roupas personalizadas da Ralph Lauren.

[Henri Matisse painted his way into museums; his great-great-granddaughter Gaïa Jacquet- Matisse gets ink for her glossy Instagram account and dresses her emotional support Chihuahua, Bambi, in custom Ralph Lauren.]


:: TERAPIA ::
Sanjena Sathian, Goddess Complex

Atrás dela, no aquário, um peixe marrom e gordo flutuava na horizontal. Fiquei me perguntando se ele havia morrido no meio da nossa sessão.

[Behind her, in the aquarium, a fat brown fish floated horizontally. I wondered if it had expired in the middle of our session.]


:: MEDO ::

Audre Lorde, Sister Outsider

Ao me tornar forçada e profundamente consciente da minha mortalidade, e do que eu desejava e almejava para a minha vida, por mais curta que pudesse ser, prioridades e omissões se gravaram nitidamente sob uma luz implacável — e aquilo de que eu mais me arrependia era de meus silêncios. De que tanto eu tinha medo, afinal?

[In becoming forcibly and essentially aware of my mortality, and of what I wished and wanted for my life, however short it might be, priorities and omissions became strongly etched in a merciless light, and what I most regretted were my silences. Of what had I ever been afraid?]


:: DESTRUIÇÃO ::
Amia Srinivasan, The Right to Sex

Uma amiga minha, uma acadêmica excepcionalmente brilhante, certa vez explicou a um colega homem que, se qualquer um de seus mentores, na faculdade ou na pós-graduação, tivesse sequer colocado a mão em seu joelho, isso a teria destruído. O colega ficou surpreso. Ele reconhecia que tal atitude seria incômoda, errada, um caso de assédio sexual — mas como um gesto tão pequeno poderia destruir alguém? O que ele não sabia, ela lhe explicou, era como é ter seu senso de valor intelectual dependendo de forma tão precária da aprovação dos homens.

[A friend of mine, an exceptionally brilliant woman academic, once explained to a male colleague that, had any of her male mentors, in college or grad school, ever so much as put a hand on her knee, it would have ‘destroyed’her. The colleague was taken aback. He recognised that such an action would have been creepy, wrong, an instance of sexual harassment –but how could such a small gesture destroy anyone? What he didn’t know, she explained to him, was what it is like to have one’s sense of intellectual worth rest so precariously on the approbation of men.]


:: RAIVA ::
Sarah Manguso, Liars

Não era que tivéssemos nascido com raiva; nós nos tornamos mulheres e acabamos com raiva.

[It wasn’t that we’d been born angry; we’d become women and ended up angry.]


:: ABORDAGEM FILOSÓFICA DO LIXO ::
Diego Lasarte, “Meet the City’s New Compost Cops

Goodman adota uma abordagem filosófica em relação ao lixo. “O fato de que o saneamento é esse serviço gratuito e ilimitado, meio intocado pelo neoliberalismo, me atrai muito,” ele disse. “Somos nós e a biblioteca pública.”

[Goodman takes a philosophical approach to trash. “The fact that sanitation is this free, unlimited service, sort of untouched by neoliberalism, is very appealing to me,” he said. “It’s us and the public library.”]


:: CRÍTICA CÁUSTICA ::

Brian Hayes, “O Grande Explicador”
Na Scientific American Brasil, nov. 2013

Martin Gardner quis escrever um livro para apresentar seus princípios filosóficos e teológicos fundamentais. A obra, The Whys of a Philosophical Scrivener (William Morrow, 1983), foi lançada três anos depois. O The New York Review of Books publicou uma crítica cáustica e desdenhosa do livro — escrita pelo próprio Gardner.


:: DICAS PRÁTICAS ::
Elizabeth McCafferty, “Piece of the Action

A estratégia deles é simples: dividir o quebra-cabeça em duas partes, com cada um focando em áreas diferentes. Peter monta o quebra-cabeça de cabeça para baixo e Nikki fica responsável pelos rostos. Agora, eles estão formando uma equipe para competir novamente no campeonato mundial, que acontecerá na Espanha ainda este ano, com a esperança de ficarem pelo menos entre os 30 primeiros.

[Their strategy is simple: split the puzzle into two lines, each person tackling different areas. Peter constructs the puzzle upside down and Nikki is in charge of faces. They are now forming a team to go to the world championship again in Spain later this year, hoping to rank at least 30th.]


:: HOMENS MENORES ::
Valeska Zanello, Saúde mental, gênero e dispositivos

Desde Aristóteles até o século XVIII houve a predominância da teoria do sexo único. Segundo essa teoria, entre homens e mulheres haveria apenas uma diferença de grau, sendo as mulheres consideradas como homens menores. A explicação etiológica estaria no não desenvolvimento completo das mulheres por falta de calor durante a gestação de uma menina. No entanto existiam relatos de estórias de meninas que, em certas situações de esforço físico e transpiração, transformavam-se em meninos.

:: RÁDIO-RELÓGIO ::
Anne Lammott, Operating Instructions

Mas Orville, que criou um filho há quinze anos, diz que se lembra claramente de como as coisas ficam insanas com um bebê por perto. Ele disse que, mesmo com um parceiro, é como ter um rádio-relógio no quarto que dispara de forma imprevisível a cada poucas horas, sempre sintonizado em heavy metal. Sam agora dorme por quatro horas seguidas, o que é um dos principais motivos pelos quais decidi ficar com ele.

[But Orville, who raised a baby son fifteen years ago, says he remembers clearly how insane things get with an infant around. He said that even with a mate, it’s like having a clock radio in your room that goes off erratically every few hours, always tuned to heavy metal. Sam sleeps for four hours at a stretch now, which is one of the main reasons I’ve decided to keep him.]


:: VALOR ::

Valeska Zanello, Saúde mental, gênero e dispositivos

A “prateleira do amor” erige um lugar para as mulheres cuja vivência de ter que ser escolhida é profundamente desempoderadora; ao mesmo tempo que erige para os homens um lugar extremamente privilegiado e protegido de serem aqueles que avaliam e julgam/ escolhem as mulheres, dando a elas seu “valor”.


:: PAVÊNTIA ::
Mary Beard, “The Divine Comedy of Roman Emperor’s Last Words

Os estudiosos da Roma Antiga gostavam de desenterrar divindades curiosas e fora de moda, como Paventia, a deusa que afastava o medo das crianças, ou Cinxia, uma entre muitas que presidiam o ato sexual.

[Scholars in ancient Rome enjoyed digging up weird time-expired deities, such as Paventia, the goddess who stopped children from being afraid, or Cinxia, one of many who presided over sexual intercourse.]


:: INIMIGO CAPITAL ::
Ordem interna da Secretaria Municipal da Fazenda e da Subsecretaria da Receita Municipal da Prefeitura de São Paulo

Anexo Único a que se refere o artigo 1º da Ordem de Serviço SF/SUREM nº 01, de 23 de fevereiro de 2022

Art. 10. Os Diretores das Divisões de Fiscalização deverão necessariamente solicitar ao Diretor de Departamento a redistribuição das operações fiscais nas seguintes hipóteses: […]

II – alegação de suspeição pelo responsável, desde que devidamente justificada; […]

Parágrafo único. Para fins do disposto no inciso II do “caput”, considera-se devidamente justificada a alegação de suspeição quando, em relação ao Auditor- Fiscal, o fiscalizado for:

I – cônjuge ou qualquer parente, consanguíneo ou afim;

II – amigo íntimo ou inimigo capital;

[…]


:: ESTUPIDAMENTE CORAJOSO ::
Rufi Thorpe, Margo’s Got Money Troubles

Quando você vai fazer algo estupidamente corajoso, ajuda não ter muito tempo para pensar sobre isso.

[When you’re going to do something stupidly brave, it helps to have less time to think about it.]


:: REMEXER A SOPA ::
Bruce Handy, “The Saxophonist Charles Lloyd […]

Algumas décadas depois, em 1966, o primeiro quarteto de Lloyd se apresentava no festival de jazz em Antibes, na França, dividindo hotel com Ellington e sua banda. “Duke me ouviu tocar,” lembrou Lloyd. “E disse algo como: ‘Se ele continuar mexendo a sopa, um dia vai acabar conseguindo alguma coisa.’”

[A couple of decades later, in 1966, Lloyd’s first quartet was playing the jazz festival in Antibes, France, sharing a hotel with Ellington and his band. “Duke heard me play,” Lloyd recalled. “And said something to the effect of ‘If he keeps stirring the soup, one day he’s going to have something.’]


:: RESPONSABILIDADE ::
Tressie McMillan Cottom, Thick

Assim como questionamos o que uma mulher estava vestindo quando foi estuprada, buscamos maneiras de atribuir responsabilidade individual por injustiças estruturais a corpos que, coletivamente, não valorizamos.

[Much like we interrogate what a woman was wearing when she was raped, we look for ways to assign personal responsibility for structural injustices to bodies we collectively do not value.]


:: ESPARTILHOS ::
Barbara Ehrenreich, For Her Own Good

Os espartilhos de uma mulher elegante exerciam, em média, cerca de 9,5 quilos de pressão sobre seus órgãos internos, e já foram registrados extremos de até 40 quilos.

[A fashionable woman’s corsets exerted, on the average, twenty-one pounds of pressure on her internal organs, and extremes of up to eighty-eight pounds had been measured.]


:: PENTEADO EXTRAVAGANTE ::
W. David Marx, Status and Culture

O penteado extravagante da imperatriz Elizabeth da Áustria, do século XIX, lhe causava dores de cabeça frequentes.

[The nineteenth-century Empress Elisabeth of Austria’s extravagant coiffure gave her frequent headaches.]


:: EXISTÊNCIA DAS MULHERES ::
Andrea Dworkin, Right-Wing Women

O problema, em termos simples, é que é preciso acreditar na existência da pessoa para reconhecer a autenticidade de seu sofrimento. Nem homens nem mulheres acreditam na existência das mulheres como seres significativos.

[The problem, simply stated, is that one must believe in the existence of the person in order to recognize the authenticity of her suffering. Neither men nor women believe in the existence of women as significant beings.]

>>>>
Agradecimentos: A Giovanni Nobile Dias, pelas fotos em Brasília. A Giovane Salimena, por todo o resto. Ao Renato, que todo mês me deposita 5 reais.

Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

Esta edição foi possível graças a 21 aguerridos apoiadores!

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

Dora e Moranguinho no salão de beleza discutindo quem exatamente pretendem enforcar nas tripas do último banqueiro

#105 – São Paulo, 12 de abril de 2025
Gente honesta comendo doce
Edição especial misândrica, com cotas para homens brancos
www.hortifruti.org

“Infligir abuso não é a parte difícil. Controlar a narrativa é o verdadeiro trabalho.”
(Sarah Manguso)

“Detesto acordar e já cair de volta naquelas mesmas abas abertas de ontem.”
(William Haefeli)

:: EDITORIAL :

Cuidar de um bebê é exaustivo. Uma das minhas pequenas rebeliões era arrumar os brinquedos da Batata durante a madrugada e montar cenários para o dia seguinte. Eu elegia alguns bichos de pelúcia, ordenava umas coisas jogadas pelo sofá e em menos de cinco minutos tínhamos um psicodrama completo.

A única regra era pegar o que estivesse à mão, sem pensar muito.

Naturalmente, a criança não dava muita bola para essas representações, que tentavam captar toda a gama de emoções da experiência humana na Terra. Foi o fim precoce de uma carreira promissora no campo da dramaturgia de pelúcias. Mas aqui vão as principais obras dessa fase, para apreciação crítica e estética dos leitores desta publicação.

Por exemplo, esta:

9 de julho de 2019. Dia em que a Dora e a Moranguinho pegaram em armas e se aliaram aos animais oprimidos para combater o Coelhinho da Páscoa.


:: É VERDADE. É VERDADE ::
Patrick Hamilton, Gas Light (1938)

Sra. Manningham: Ah, Jack querido. Você está tão gentil ultimamente. Será possível que esteja começando a ver o meu ponto de vista?
Sr. Manningham: Não sei se algum dia discordei dele, não é, Bella?
Sra. Manningham: Ah, Jack querido. É verdade. É verdade.

[Mrs. Manningham: Oh , Jack dear. You have been so much kinder lately. Is it possible you’re beginning to see my point of view?
Mr. Manningham: I don’t know that I ever differed from it, did I, Bella?
Mrs. Manningham: Oh, Jack dear. It’s true. It’s true.
]


:: SER CONTESTADO ::
Kate Manne, Entitled

Como argumenta a filósofa Kate Abramson em seu trabalho inovador sobre o gaslighting: “O que diferencia o sujeito que ignora ou descarta evidências […] daquele que pratica o gaslighting é a incapacidade de tolerar até mesmo a possibilidade de ser contestado.”

[As the philosopher Kate Abramson argues in her groundbreaking work on gaslighting, “What makes the difference between the fellow who ignores or dismisses evidence…and the one who gaslights is the inability to tolerate even the possibility of challenge.”]


:: HEMORRAGIAS HISTÉRICAS ::
Janet Malcolm, “Trouble in the Archives

Com o passar do tempo (e com a pobre Emma finalmente fora de perigo), Freud foi progressivamente minimizando a culpa de Fliess, até conseguir convencer a si mesmo de que foi a própria Emma, e não Fliess, quem teve culpa no ocorrido. Em uma carta de 16 de abril de 1896, Freud promete a Fliess que em breve lhe contará “uma explicação bastante surpreendente para as hemorragias de Emma, que lhe dará grande satisfação”, e no dia 26 de abril escreve: “Você tinha razão; as hemorragias dela eram histéricas, provocadas pela saudade.”

[As time went on (and poor Emma was finally out of danger), Freud progressively downgraded Fliess’s culpability, and finally was able to persuade himself that it was Emma herself, and not Fliess, who had been at fault. In a letter of April 16, 1896, Freud promises Fliess that he will soon tell him of “a quite surprising explanation of Emma’s hemorrhages, which will give you great satisfaction,” and on April 26th he writes, “You were right; her hemorrhages were hysterical, brought on by longing.”]


:: ESCAPE ::
Wells Tower, “What Charles Portis Taught Us

“Muita gente sai do Arkansas e a maioria acaba voltando, mais cedo ou mais tarde”, escreveu Portis certa vez. “Eles nunca chegam a alcançar a velocidade de escape.”

[“A lot of people leave Arkansas and most of them come back sooner or later,” Portis once wrote. “They can’t quite achieve escape velocity.”]


:: SOBRE BEBÊS ::
Anne Lammott, Operating Instructions

Agora é meia-noite. Não consigo acreditar que estou tão bem humorada, já que ele está gritando desde as 22h. Não estou falando com ele. Ele está no futon tendo um surto. De tempos em tempos, eu o pego no colo e tento amamentá-lo ou caminhar com ele por um tempo, até minha yoni começar a doer de novo, e então o coloco de volta no futon. Estou irritada com ele. Acho que ele não está lidando com as coisas de forma muito madura.

[Now it’s midnight. I can’t believe I’m in such a good mood, because he has been screaming since 10: 00 tonight. I am not speaking to him. He is on the futon having an episode. Every so often I pick him up and try to nurse him or walk him for a while until my yoni aches again, and then I put him back down on the futon. I’m annoyed with him. I don’t think he’s handling things very maturely.]


:: LENDO COISAS NA INTERNET ::
Sarah Manguso, Ongoingness

Percebo o quanto isso soa pretensioso, mas quando seu trabalho é pensar e escrever sobre si mesma, as apostas começam a parecer artificialmente — e até comicamente — altas. E precisam parecer assim, porque sem isso, eu não escreveria nada. Passaria o dia lendo coisas na internet. Já estaria mais ou menos na metade.

[I realize how grandiose that sounds, but when your job is to think and write about yourself, the stakes start to appear artificially, comically high. And they must, for without them, I wouldn’t write at all. I’d spend the day reading the internet. I’d be about half-done by now.]


:: TERROR ::

26 de julho 2019. Na hora de dormir, Dora lê histórias de terror para Moranguinho, Fofolete e Ursinho, à luz de um abajur.


:: PARABÉNS! ::
Sarah Manguso, Liars

Nada além de maternidade e afazeres domésticos. Eu me sentia como se tivesse deixado meu carro sair lentamente da estrada e atolar em um monte de neve. O airbag se abriu. Em letras grandes e cor-de-rosa, estava escrito: “Parabéns! Você tem quarenta anos e é completamente dependente financeiramente do seu marido!”

[Nothing but mothering and housewifery. I felt as if I’d let my car drift slowly off the road and into a snowbank. The airbag popped out. In big pink letters it said, Congratulations! You’re forty years old and completely financially dependent on your husband!]


:: CONSTATAÇÃO ALEATÓRIA ::
Yiyun Li, “The Deaths—And Lives—Of Two Sons

O telefone dele, eu descobri por acaso uma vez, estava configurado para o lituano.

[His phone, I once found out by accident, was set to Lithuanian.]


:: RECONHECE COMO GENTE ::
Tressie McMillan Cottom, Thick

Na verdade, a maneira mais infalível de conseguir que um acadêmico de verdade, com credenciais, converse com você, quando você ainda é apenas um estudante de pós-graduação, é se apresentar por meio de terceiros: “Oi, eu sou a Tressie, aluna do Richard Rubinson e da Sandy Darity, e conheço outras cinco pessoas que você reconhece como gente.”

[In fact, the most surefire way to get a real, minted academic to speak to you when you are just a graduate student is to introduce yourself by proxy : “Hi I am Tressie, student of Richard Rubinson and Sandy Darity, and I know five other people who you recognize as people.”]


:: SO FUCKED ::

Rufi Thorpe, Margo’s Got Money Problems

Não quero insultar as pessoas que realmente estiveram numa guerra; só quero dizer que esse nível de estresse e dificuldade física estava totalmente fora da experiência prévia de Margo. Enquanto cuidava do bebê, ela não conseguia parar de pensar: “Estou tão fodida, estou tão fodida, estou tão fodida”. Porque ao seu redor ela sentia o vazio ecoante de ninguém se importar com ela, ninguém se preocupar com ela, ninguém ajudá-la. Era como se estivesse cuidando daquele bebê em uma estação espacial abandonada.

[I do not mean to insult people who’ve actually been to war; I only mean that this level of stress and physical hardship was entirely outside Margo’s previous experience. She kept thinking, as she nursed him, I am so fucked, I am so fucked, I am so fucked. Because all around her she could feel the echoey space of no one caring about her or worrying about her or helping her. She might as well have been nursing this baby on an abandoned space station.]


:: COMPANHIA EXCELENTE ::
Gideon Lewis-Kraus, “The End of Children

Quando perguntei ao meu filho de oito anos por que alguém deveria ter filhos, ele parou de dar socos no irmãozinho por tempo suficiente para dizer: “Somos uma companhia excelente”.

[When I asked my eight-year-old why someone should have children, he stopped punching his little brother long enough to say, “We’re excellent company.”]

:: GO VEGAN ::

2 de julho de 2019. Tema: Libertação Animal.


:: CAPACHO OU NÃO-CAPACHO ::
Rebecca Solnit, Whose Story is This?

A implicação geral é que qualquer mulher que não seja um capacho é fatalmente uma dominatrix.

[The general implication is that any woman who’s not a doormat is a dominatrix.]


:: LUTO ::
Kate Abramson, “Turning Up the Lights in Gaslighting” (2014)

Uma mulher vítima de gaslighting perdeu a si mesma, ainda que de forma parcial e temporária. E, de várias maneiras, suas reações depressivas fazem sentido — ela está em luto; está em luto pela perda de sua perspectiva independente, de sua capacidade de formar e manter suas próprias reações e percepções, pela perda das amizades que se tornaram — ou sempre foram — relações de manipulação, e por sua própria cumplicidade, em grande parte inocente, em tudo isso. Pode levar tempo, e exigir esforço, para que ela passe a ver suas reações depressivas como manifestações disso; assim como em muitas formas significativas de luto, pode ser necessário um trabalho interior e uma autocompreensão — nem sempre acessíveis de imediato — para que se possa viver isso como um luto. Mas, por mais devastador que seja, é exatamente isso.

[A gaslighted woman has lost, albeit partially and temporarily, herself. And in various ways, her depressive responses are fitting—she is grieving; she’s grieving the loss of her independent perspective, her ability to form and maintain her own reactions and perceptions, the loss of the friendships that became or turned out to be mere gaslighting relations, and her own largely blameless complicity in all of this. It may take her time, and work, to come to see her symptomatically depressive reactions in these terms; like many forms of significant grief, it can take work and self-understanding that’s not easily or immediately accessible to experience its manifestations as grief. But, devastating though it is, it is precisely that.]


:: COMO UM FILHOTINHO ::
Anne Lammott, Operating Instructions

Ah, mas minha barriga agora é como um colchão d’água coberto de flanela. Quando me deito de lado na cama, minha barriga se acomoda educadamente ao meu lado, como um cachorrinho.

[Oh, but my stomach, she is like a waterbed covered with flannel now. When I lie on my side in bed, my stomach lies politely beside me, like a puppy.]


:: PERITO EM CELOFANE ::
Philippe Boxho, Os mortos também falam

O perito judicial não deve ser confundido com o técnico de cena de crime. Ao contrário do que mostram as séries, são dois trabalhos diferentes. Às vezes essas funções podem ser exercidas pela mesma pessoa, mas não é uma regra geral. Existem peritos para tudo: especialistas em fibras sintéticas, em fibras animais, em fibras vegetais, em lâmpadas de farol de carro, em pintura automotiva, em acidentes de trânsito, em incêndios, em informática, em balística, em pegadas, em vestígios de pólvora, em vestígios de terra, em toxicologia, em impressões digitais, em medicina legal etc. Na verdade, qualquer material, mesmo o mais inimaginável, pode ser objeto de uma perícia científica. Já conheci até um perito em guarda-chuvas.


:: GENTE HONESTA ::
Clarice Lispector, Todas as cartas

A casa de chá é muito bonitinha, com gente honesta comendo doce.


:: LINKS ENGRAÇADOS ::

Sarah Manguso, Liars

Quando li aqueles três meses de mensagens, vi que ele sempre encaminhava para a Victoria os links engraçados que eu mandava pra ele. Fiquei me perguntando se em algum momento ele pensou: “Vou continuar casado por mais um tempo, já que minha esposa me manda links de coisas engraçadas que a minha namorada gosta”.

[When I read those three months of his text messages, I saw that he’d always sent Victoria links to the funny online things I sent him. I wondered if there was a point at which he thought, I’ll stay married for a while longer, since my wife gives me links to funny online things that my girlfriend likes.]


:: DEPRESSÃO COMO RESISTÊNCIA ::
Kate Abramson, “Turning Up the Lights in Gaslighting” (2014)

Há outro ponto moral importante em reformular dessa forma o estágio final do gaslighting. Essa abordagem muda nossa perspectiva: deixamos de ver a mulher vítima de manipulação psicológica como mero objeto de tratamento — como alguém clinicamente deprimida — para reconhecê-la como membro ativo da comunidade moral, em processo de luto por perdas de valor incomensurável. E enquadra a própria depressão dela, ainda que de forma peculiar, como a última forma de resistência ao gaslighting — se ela é capaz de lamentar a perda de si mesma, então, na verdade, não está totalmente perdida. Sua depressão não é, portanto, apenas o resultado dos abusos que sofreu e suportou; é uma resposta avaliativa adequada ao que lhe foi imposto, e o primeiro marco no caminho de volta.

[There is another significant moral point to so reframing the final stage of gaslighting. Doing so shifts our perspective from one in which we see a gaslightedwoman as a mere object of treatment—qua clinically depressed—to one in which we see her as an ongoing member of the moral community, grieving losses of insuperable value. And it frames her depression itself, if in a peculiar way, as the last form of resistance to gaslighting—if she can grieve the loss of herself, then in fact, she is not entirely lost. Her depression is not then merely the outcome of the wrongs she has suffered and endured; it’s a fitting evaluative response to what she has been subjected and the first signpost on the road back.]


:: SOBRE COÇAR COCEIRAS ::
Louisa Thomas, “On John Updike’s […]

Updike nunca coçou uma coceira sem transformá-la em um livro, então não é surpresa que aquela ida a Fenway tenha virado um ensaio.

[Updike never scratched an itch without putting it into a book, so it’s not a surprise that that trip to Fenway turned into an essay.]


:: SEGUNDO TURNO ::
Darcy Lockman, All the Rage

Por recomendação de uma amiga, comecei a ler The Second Shift, o detalhado relato da socióloga Arlie Hochschild — de mais de trinta anos atrás — sobre as formas como casais heterossexuais das décadas de 1970 e 1980 organizavam suas vidas profissionais e domésticas. Me identifiquei tanto com as mães exaustas do estudo que esse se tornou o primeiro livro acadêmico a me fazer chorar.

[At a friend’s recommendation, I picked up The Second Shift, sociologist Arlie Hochschild’s thirty-year-old detailed account of the ways in which heterosexual couples of the 1970s and ’80s organized their work and home lives. I identified so strongly with the thin-stretched mothers in her study that it became the first academic book to ever make me cry.]


:: MATRIARCADO ::

5 de agosto de 2019. Vocês acham que eu exagerei na metáfora?
ps. A Moranguinho tá com uma granada.

>>>>
Agradecimentos: DeepSeek.
Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

Lembremos de nossa cenouridade comum

#104 – São Paulo, 7 de março de 2025
Contém: pânico moral e caça às borboletas
Não acenando, mas se afogando
www.hortifruti.org

“Meus prazeres são os mais intensos conhecidos pelo homem: escrever e caçar borboletas”
(Vladimir Nabokov)

“Quem, se eu gritasse, me ouviria?”
(Rainer Maria Rilke)

:: EDITORIAL :

Esta edição é o mais puro suco de aleatoriedade. Desta vez, nem tentamos procurar uma temática ou um fio condutor que nos sustentasse: apenas nos atiramos de cabeça neste oceano de desvario, engolindo as águas salobras do despropósito e nos afogando em um omnivorismo literário sem norte.

Gostaríamos de pedir as mais sinceras desculpas a todos vocês que assinaram esta publicação nos últimos meses, depositaram uns dinheiros no Pix, pagaram um creminho de cupuaçu na comedoria do Sesc & enviaram sorvetes e livros à redação. A todos vocês, muito obrigada. Vocês são cenouras. Somos todos cenouras. Enquanto nos lembrarmos de nossa cenouridade comum, estaremos bem.

Aproveitamos para avisar que, além de sorvetes, também aceitamos contribuições em forma de citações retiradas de suas leituras mais recônditas. Basta enviar para o endereço: vmbarbara@yahoo.com.


:: SILÊNCIO ::
Alia Trabucco Zerán, Limpa

Meu silêncio começou depois da morte da minha mãe. Não foi deliberado. Também não foi uma punição. Se eu tivesse que defini-lo, diria que era mais como um labirinto: depois de um tempo dentro dele, eu não conseguia mais encontrar a saída.

[My silence began after my mama’s death. It wasn’t deliberate. It wasn’t a punishment either. If I had to define it, I’d say it was more like a maze: after a while spent inside it, I could no longer find the way out.]


:: DESVENTURADAS MULHERES ::
Cynthia Ozick, Metáfora y memória

No fundo, sou uma daquelas mulheres desventuradas pré-modernas que acreditam que a lâmpada é a cabeça de um demônio invocado pelo interruptor de luz e que Freud quer dizer “prazer” em alemão; por isso, não estou habilitada para falar sobre os princípios da eletricidade nem sobre psicanálise.

[En el fondo, soy una de esas desventuradas mujeres premodernas que creen que la lámpara es la cabeza de un demonio invocado por el interruptor de la luz y que Freud significa placer en alemán; por lo tanto, no estoy capacitada para hablar sobre los principios de la electricidad ni sobre el psicoanálisis.]


:: NÃO ACENANDO ::
Stevie Smith, “Not waving, but drowning

Eu estava muito mais longe do que você pensava
E não acenando, mas me afogando.

[I was much further out than you thought
And not waving but drowning.
]


:: DISCURSO DE ELITE ::
Adrian Daub, The Cancel Culture Panic

O pânico da cultura do cancelamento prospera na suposição de que aqueles que detêm o poder — de autoridades eleitas a editores, professores e escritores do mainstream — merecem esse poder de alguma forma. E oferece uma explicação abrangente para deslegitimar aqueles que questionam os privilégios e a influência dos poderosos. Afinal, eles são “turbas do Twitter” que praticam a cultura “wokeness” como uma “pseudoreligião”. São acusados de aderir ao “culto de gênero”, de serem responsáveis ​​por um “novo macartismo”, e carecem de humor, graça e, em última instância, de identidade própria. […] A queixa sobre a cultura do cancelamento é um discurso de elite.

[The cancel culture panic thrives on the assumption that those who hold power— from elected officials to editors to professors to mainstream writers—deserve that power to some extent. And it provides an all-encompassing explanation as to why those who question the privilege and power of those with privilege and power are not actually worth listening to. They are, after all, “Twitter mobs” who practice “wokeness” as an “ersatz religion.” They subscribe to the “cult of gender,” are responsible for a “new McCarthyism,” and are humorless, graceless, and ultimately faceless. […] The complaint about cancel culture is an elite discourse.]


:: GRANDES BIOGRAFIAS ::
Sam Knight, “Hive Mind

Em 2008, [o zoólogo alemão Lars Chittka] foi coautor de um artigo sugerindo que os zangões poderiam sofrer de ansiedade.

[In 2008, he co-authored a paper suggesting that bumblebees could suffer from anxiety.]


:: CUMPRIMENTE-OS DE MANHÃ ::
Barbara Ehrenreich, Fear of Falling

Para atingir esse ideal, os pais deveriam se proteger contra qualquer demonstração imprudente de emoção de sua parte. “Nunca abrace e beije [seus filhos]”, John B. Watson alertou. “Nunca os deixem sentar no seu colo. Se for necessário, dêem-lhes um beijo na testa quando disserem boa noite. Cumprimente-os de manhã.”

[To achieve this ideal, parents were to guard against any reckless display of emotion on their own part. “Never hug and kiss [your children],” Watson warned. “Never let them sit on your lap. If you must, kiss them once on the forehead when they say goodnight. Shake hands with them in the morning.”]


:: TWO TIRED ::

John McFee, “Tabula Rasa

Em Three Rivers, Mich., Thomas Kline, 11, colidiu sua bicicleta com um automóvel em movimento, e depois confessou à polícia: “Adormeci no guidão”.

[TWO TIRED. In Three Rivers, Mich., Thomas Kline, 11, smashed into a moving automobile with his bicycle, later confessed to police: “I fell asleep at the handlebars.”]


:: NÃO FOTOGRAFAR ::
Cory Doctorow, Content

De fato, parece que cada centímetro quadrado da Portrait Gallery está sob algum tipo de copyright. Não me foi permitido nem fotografar a placa de NÃO FOTOGRAFAR. Uma funcionária do museu explicou que lhe disseram que a tipografia e o layout da legenda NÃO FOTOGRAFAR eram, eles próprios, protegidos por direitos autorais.

[Indeed, it seems that every square centimeter of the Portrait Gallery is under some form of copyright. I wasn’t even allowed to photograph the NO PHOTOGRAPHS sign. A museum staffer explained that she’d been told that the typography and layout of the NO PHOTOGRAPHS legend was, itself, copyrighted.]


:: LIBERTAÇÃO ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas

Nós somos as nossas histórias, que podem ser a prisão e o pé de cabra que vai arrombar a porta; criamos histórias que nos salvam ou que nos prendem, a nós ou a outros, histórias que nos elevam ou nos esmagam contra o muro de pedra dos nossos medos e limitações. A libertação sempre é, em parte, um processo de contar uma história: romper histórias, romper silêncios, criar novas histórias. Uma pessoa livre conta a sua história própria.


:: LEITURA DE POESIA CAUSA DIVÓRCIO ::
The Daily News Leader, 18/12/1936

Cambridge, Mass., Dez 17 — Uma esposa socialmente proeminente, que depôs que o marido costumava acordá-la no meio da noite para ouvir poemas escritos por ele, conseguiu um divórcio incontestado sob o argumento de crueldade.


:: ABSENCE MINDED ::
John McFee, “Tabula Rasa

Em Miranda de Ebro, na Espanha, o diretor da escola ordenou que as portas da instituição fossem fechadas às 9h como uma lição disciplinar aos alunos atrasados, e desistiu do projeto quando 50% dos professores ficaram trancados do lado de fora.

[ABSENCE MINDED. In Miranda de Ebro, Spain, the school principal ordered the school doors closed at 9 a.m. as a disciplinary lesson to late students, gave up the project when 50% of the teachers were locked out.]


:: CABRA IDOSA ::
Hermione Lee, Virginia Woolf

Há a história de Virginia enviando um telegrama ao saber da notícia do noivado de George [Stephen] com Flora Russell. A mensagem deveria dizer ELA É UM ANJO” e foi assinada com o apelido de Virginia, mas chegou como “ELA É UMA CABRA IDOSA.” (Dizem que esse foi um dos motivos para o noivado ter sido desfeito.)

[There was the story of Virginia sending a telegram on hearing the news of George’s engagement to Flora Russell, which was meant to read ‘SHE IS AN ANGEL’ and was signed with Virginia’s nickname, and which came through as ‘SHE IS AN AGED GOAT.’ (This is supposed to have been one of the reasons the engagement was broken off.)]


:: IRRITADAMENTE ::
Richard Gordon, A assustadora história da medicina

Florence Nightingale tinha muitas outras peculiaridades, como bater irritadamente as tampas abertas das privadas.


:: DE CORES DIFERENTES ::
Eric Kandel, Em busca da memória

Chip Quinn, um dos primeiros cientistas a realizar estudos genéticos de aprendizagem nas moscas-das-frutas, afirmou que o animal experimental ideal para os estudos biológicos da aprendizagem deveria ter “não mais que três genes, ser capaz de tocar violoncelo ou pelo menos recitar em grego clássico e aprender a realizar essas tarefas com um sistema nervoso contendo somente dez neurônios, grandes, de cores diferentes e, portanto, facilmente reconhecíveis”.


:: CANIBALISMO NARRATIVO ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas

O silêncio foi o que permitiu que os predadores atacassem ao longo das décadas, sem impedimentos. É como se as vozes desses homens públicos importantes devorassem e aniquilassem as vozes dos outros, num canibalismo narrativo.


:: RETRATOS DE CACHORROS ::
Roger Grenier, Da dificuldade de ser cão

O pessimista Schopenhauer escreveu sobre a bondade dos cachorros: “Eu não teria nenhum prazer em viver em um mundo onde os cães não existissem”. Deprimido, vítima de fobias, ele mandou alternar, nas paredes da sala do seu pequeno apartamento de Frankfurt, retratos de cachorros e de grandes filósofos.


:: POLE APART ::

John McFee, “Tabula Rasa

Em Grand Junction, Colorado, uma viatura de polícia nova em folha entrou em um estacionamento municipal para fazer uma ronda rotineira, circulou lentamente pela área enquanto o motorista verificava o lado esquerdo e seu companheiro verificava o direito, e bateu de frente em um poste telefônico.

[POLE APART. In Grand Junction, Colo., a shiny new police car drove into a municipal parking lot on a routine assignment, slowly cruised around as the driver checked the left side and his companion checked the right, smacked head-on into a telephone pole.]


:: PÂNICO MORAL ::
Adrian Daub, The Cancel Culture Panic

Por trás do pânico fundamentalmente inútil em torno da cultura do cancelamento, existe, no fim das contas, um medo genuíno — sobre mudanças na sociedade e quem pode falar; sobre quem é ouvido e quem pode se tornar um especialista, incluindo um especialista em sua própria experiência.

[… behind the fundamentally nugatory freak-out about cancel culture there is, in the end, a genuine fear —about change in society and who gets to talk; about who gets listened to and who gets to be an expert, including an expert on their own experience.]


:: PARA O GIGIO ::
Will Ferguson, De carona com Buda

Como muitos ocidentais, confundo “humano” (ningen) com “cenoura” (ninjin), o que certa vez me causou muitos olhares atônitos durante uma palestra que fiz em Tóquio sobre os benefícios da internacionalização, quando apaixonadamente declarei: “Eu sou uma cenoura. Você é uma cenoura. Somos todos cenouras. Enquanto nos lembrarmos sempre de nossa cenouridade comum, estaremos bem.”


:: DESCULPA FORMAL ::
Um modelo para preencher

>>>>
Agradecimentos: Paulo Naves, Bruna Luisa dos Santos, Google Translate.

Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #103

Posted: 7th fevereiro 2025 by Vanessa Barbara in Hortaliças
Tags: , , , , , , , ,
Balcão de informações

A loucura chegou aqui e parou

#103 – São Paulo, 6 de fevereiro de 2025
Dissidência, rebelião e tumulto generalizado
Fulgura frango*
www.hortifruti.org

“Meus silêncios não me protegeram.
O silêncio de vocês não as protegerá.”
(Audre Lorde)


“A audácia, sempre a audácia”
(Georges-Jacques Danton)

:: EDITORIAL :

Enquanto ursos depredavam nossas escrivaninhas, a editora-chefe deste periódico resolveu falar publicamente sobre o piano que carregava nas costas por mais de uma década.

O episódio saiu no último dia 16 de janeiro no podcast Rádio Novelo Apresenta. Sobreveio um tumulto generalizado. As amigas apareceram com porretes, para o caso de haver necessidade. O fantasma do cancelamento foi invocado, mas não pôde ser encontrado até o fechamento desta edição. E apesar de tudo, a leveza chegou.**

Para quem ainda não ouviu, segue o link.

E a recomendação de que falem, sim — falem muito.

* “Eu despedaço os raios”, em latim. Inscrição em sinos de igrejas.
** O que não ainda chegou foram as desculpas, quase todas, que devem estar retidas na alfândega de Curitiba aguardando liberação.


:: INCÔMODO ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas

Seria incômodo, e muitos falam da comodidade como um direito, mesmo quando — principalmente quando — essa comodidade se funda sobre o sofrimento e o silenciamento de outros.


:: AINDA URSOS ::
Sam Knight, “Giant Pandas

Me faltam palavras para descrever esta peça literária.

https://www.theguardian.com/world/2015/aug/25/everything-about-panda-sex-edinburgh-zoo-long-read


:: O FUTURO ::
Alia Trabucco Zeran, Clean

Os pais dela tinham um restaurante, eu já mencionei isso? Chamava-se El Porvenir. Isso mesmo, um restaurante chamado O Futuro. Às vezes, minha mãe tinha de limpar o restaurante no fim de semana, e dizia, com tristeza: “No domingo, tenho que sair para limpar O Futuro”.

[Her parents owned a restaurant, did I mention that already? It was called El Porvenir. That’s right, a restaurant called The Future. Sometimes my mama would have to clean there on the weekend, and she’d say, glumly: On Sunday I have to go and clean The Future.]


:: TRÍVIA ::
Matthew Hutson, “Persuading the Body to Regenerate its Limbs

“Vocês podem ou não saber que crianças humanas com menos de 7 a 11 anos de idade são capazes de regenerar as pontas dos dedos”, ele disse à plateia.

[“You may or may not know that human children below the age of approximately seven to eleven are able to regenerate their fingertips,” he told the audience.]


:: AGÊNCIA ::
Kate Manne, Down Girl: The Logic of Misogyny

Pois a denúncia pode ser uma expressão de agência e um ato de subversão, na medida em que afasta a narrativa moral das versões dominante e padrão e torna a situação de alguém saliente para aqueles que, de outra forma, permaneceriam alheios. Terceiros podem simpatizar ou não; eles podem, de fato, se tornar mais, em vez de menos, hostis e ressentidos. Mas, pelo menos, eles terão conhecimento da realidade da lesão, ou do fato da dominação contínua. E isso pode ser importante, muito importante, para as pessoas que foram vitimadas.

[For coming forward can be an expression of agency and an act of subversion, insofar as it wrestles the moral narrative away from the dominant and default versions, and makes one’s situation salient to those who would otherwise remain oblivious. Third parties may sympathize or not; they may in fact become more, rather than less, hostile and resentful. But at least they will be privy to the reality of the injury, or the fact of the ongoing domination. And this can matter, quite properly, to people who have been victimized.]


:: A LOUCURA ::
Monteiro Lobato, O picapau amarelo

Emília: “Acho D. Quixote o suco dos sucos. A loucura chegou ali e parou.”


:: MATAR O ANJO DA CASA ::
Hermione Lee, Virginia Woolf

Quando ela [Virginia Woolf] escreveu uma retrospectiva desses primeiros anos de escrita, inventou a famosa imagem do “Anjo da Casa” (em homenagem ao poema de Coventry Patmore), a mãe/editora vitoriana que deslizava atrás dela em saias farfalhantes quando ela começava a resenhar um livro de um homem famoso, lembrando-a de ser charmosa, terna e educada — e a quem a jovem escritora teve de matar, arremessando-lhe o tinteiro, para que pudesse encontrar sua voz. “Ela demorou para morrer.” Essa editora fantasma era uma censora interna em conluio com as atitudes sociais paternalistas em relação às escritoras.

[When she came to write a retrospect of these first writing years she invented the famous figure of the Angel in the House (named after Coventry Patmore’s poem), the Victorian mother/editor who would slip behind her in rustling skirts as she began to review a book by a famous man, and remind her to be charming, tender and polite – and whom the young woman writer had to kill, by throwing the inkpot at her, before she could find her voice. ‘She died hard.’ This phantom editress […] was an inner censor in collusion with paternalistic social attitudes to women writers.]


:: MAIS ESCRITORES ::
Kathryn Schulz, “What Do We Hope to Find…?

Por desconhecer a arte da fotografia e ser fisicamente incapaz de carregar muito equipamento, [Sylvain] Tesson faz poucas contribuições práticas para a expedição: seu trabalho, ele escreve, era “não espirrar se o leopardo-das-neves aparecesse”.

[Being ignorant of the craft of photography and physically unable to carry much gear, Tesson makes few practical contributions to the expedition: his job, he writes, was “not to sneeze if the snow leopard appeared.”]


:: PROTEÇÃO UNILATERAL ::
Rebecca Solnit, A mãe de todas as perguntas

Um aspecto complicado do abuso e do assédio é a ideia de que a traição não está no crime, e sim na revelação do crime. Não se espera que você vá falar. Os abusadores muitas vezes se supõem donos do privilégio de exigir o silêncio dos abusados e de haver uma proteção unilateral.


:: NOVIDADES ::

Clarice Lispector, Todas as cartas

No mais, tudo igual. Pedrinho na escola, falando inglês; a última mania dele é não querer passar nem a dois metros de um lugar com lama, “para não sujar a sombra”.


:: BALÉ DO HOMICÍDIO ::

David Simon, Homicide

E assim, recomeça um balé noturno e sem graça, com as testemunhas deslizando umas após as outras sob o brilho desbotado da iluminação de tubo, cada uma ladeada por um detetive cansado e impassível segurando café preto e formulários em branco suficientes para registrar a próxima rodada de meias-verdades. As páginas são agrupadas, rubricadas e assinadas, os copos de isopor são enchidos novamente e os cigarros são trocados até que os detetives se reúnam novamente na sala do esquadrão para comparar as anotações e decidir quem está mentindo, quem está mentindo mais e quem está mentindo mais ainda.

[And so a graceless, nocturnal ballet resumes, with witnesses gliding past one another beneath the washed-out glare of tube lighting, each flanked by a tired, impassive detective cradling black coffee and enough blank statement forms to record the next round of half-truths. Pages are collated, initialed, and signed, Styrofoam coffee cups are refilled and cigarettes bartered until the detectives again assemble in the squadroom to compare notes and decide who’s lying, who’s lying more, and who’s lying the most.]


:: ALIÁS ::
Sarah Ruhl, 100 Essays I Don’t Have Time to Write

Quando alguém se depara com uma pergunta sem resposta, talvez seja melhor divagar. Eu já quis ser uma pintora de retratos.

[When one is faced with an unanswerable question, it is perhaps best to digress. I once wanted to be a portrait painter.]


:: BIOGRAFIA ::
Casey Cep, “The Oddballs and Odysseys of Charles Portis

Ele se mudou para Manhattan e publicou reportagens sobre um morador do Brooklyn que tinha um leão de estimação, sobre a convenção nacional de barbeiros e sobre seu fracasso com o “Plano de cinco dias para parar de fumar” no Bates Memorial Medical Center, em Yonkers.

[He moved to Manhattan and filed features about a Brooklynite with a pet lion, the National Barber Show convention, and his own failures with the “Five-Day Plan to Stop Smoking” at the Bates Memorial Medical Center in Yonkers.]


:: TUMULTO GENERALIZADO ::
Barbara Ehrenreich, Had I Known

Dissidência, rebelião e tumulto generalizado continuam sendo o verdadeiro dever dos patriotas.

[Dissent, rebellion, and all-around hell-raising remain the true duty of patriots.]


:: RESPONSABILIDADE PESSOAL ::
Kate Manne, Down Girl: The Logic of Misogyny

Tudo isso é para dizer que a misoginia torna as pessoas tão irracionais, tão inclinadas a se envolverem em racionalizações post hoc e tão carentes daquilo que muitos apregoam e pretendem considerar crucial, ou seja, a responsabilidade pessoal (um conceito filosófico complicado, mas o ponto aqui é a consistência), que isso me tornou bastante pessimista sobre argumentar com as pessoas e fazê-las levar a misoginia a sério.

[All of this is to say that misogyny makes people so irrational, so inclined to engage in post hoc rationalization, and so lacking in that thing that many tout and purport to think crucial, namely personal responsibility (a tricky philosophical concept, but the point here is one of consistency) that this has made me pretty pessimistic about reasoning with people to get them to take misogyny seriously.]


:: UMA DIFICULDADE ::
Reiner Stach, Kafka: The Years of Insight

Kafka cerrava os dentes, exercia o autocontrole, certificava-se de cobrir seus pontos sensíveis e até recorria ao oficialês quando ficava magoado: “Em sua última carta, você disse que havia uma imagem anexada. Não havia. Isso representa uma dificuldade para mim.”

[Kafka gritted his teeth, exercised self-control, made sure to cover his sensitive spots, and even resorted to officialese when he was hurt: “Your last letter said that a picture was enclosed. It was not enclosed. This represents a hardship for me.”]


:: DESCONFORTO PSICOLÓGICO ::

Consuelo Dieguez, O ovo da serpente

Olavo de Carvalho, em um discurso: “A promessa de proteger as minorias de desconforto cria desconforto psicológico para a maioria.”


:: MUDAS COMO GARRAFAS ::
Audre Lorde, Sister Outsider

Podemos ficar sentadas em nossos cantos, mudas para sempre, enquanto nossas irmãs e nós mesmas somos desperdiçadas, enquanto nossos filhos são distorcidos e destruídos, enquanto nossa Terra é envenenada; podemos ficar sentadas em nossos cantos seguros, mudas como garrafas, e ainda assim nosso medo não será menor.

[…] Pois fomos socializadas para respeitar mais o medo do que nossas próprias necessidades de linguagem e significado, e enquanto esperamos em silêncio por um luxo final de destemor, o peso desse silêncio nos sufocará. O fato de estarmos aqui e de eu falar essas palavras é uma tentativa de quebrar esse silêncio e unir algumas dessas diferenças entre nós, pois não é a diferença que nos imobiliza, mas o silêncio. E há tantos silêncios a serem quebrados.

[We can sit in our corners mute forever while our sisters and our selves are wasted, while our children are distorted and destroyed, while our earth is poisoned; we can sit in our safe corners mute as bottles, and we will still be no less afraid. […] For we have been socialized to respect fear more than our own needs for language and definition, and while we wait in silence for that final luxury of fearlessness, the weight of that silence will choke us. The fact that we are here and that I speak these words is an attempt to break that silence and bridge some of those differences between us, for it is not difference which immobilizes us, but silence. And there are so many silences to be broken.]

Salão de embark

>>>>
Agradecimentos: Google Translate.

Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #102

Posted: 13th janeiro 2025 by Vanessa Barbara in Hortaliças
Tags: , , , , ,

Pode escrever no meu caderninho, Maura

#102 – São Paulo, 13 de janeiro de 2025
Ursos se mudaram para cá
www.hortifruti.org

“Vocês terão mais propriedades de frente para o mar. […] Isso não é bom?”
(Donald Trump, sobre o aquecimento global)

“Se não há nada, então há tanto de mau quanto de bom”
(Friedrich Vischer, Auch Einer)

:: EDITORIAL :

Em 6 de janeiro de 2025, a redação de A Hortaliça foi invadida por ursos, que prontamente inundaram os banheiros, esmigalharam as cadeiras e comeram os nossos panetones. Um deles ateou fogo à sala de vassouras. Outros tentaram usar a cafeteira. Foram ursos que selecionaram os trechos, redigiram e diagramaram esta edição, o que explica muita coisa, pelo menos desta vez.

No mês que vem completaremos um ano de hortifrutigranjeiros nesta plataforma — quem diria. Agora dividimos a redação com cinco ou seis ursos, que espalham lixo pelo chão e sugerem passagens absurdas de obras em alemão. Ainda não fomos devorados porque vivemos de braços para cima, a fim de parecermos mais altos.

E aqui vai um Feliz Ano Novo a todos os seres plantígrados.


:: COM UM URSO DENTRO ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

Os ursos aprenderam a desatarraxar tampas. Eles sabem como abrir portas de vidro deslizantes. Eles vão vagar de carro em carro, testando maçanetas. Ryan Welch, o fundador da mais antiga empresa de dissuasão de ursos de Tahoe, a Bear Busters, me contou sobre uma mulher que relatou o desaparecimento de seu Prius; a polícia encontrou o carro no sopé da colina onde ela o havia estacionado, com um urso dentro.

[Bears have learned how to unscrew lids. They know how to open sliding glass doors. They’ll prowl from car to car, trying handles. Ryan Welch, the founder of Tahoe’s oldest bear-deterrent company, Bear Busters, told me about a woman who reported her Prius missing; the police found the car at the bottom of the hill that she’d parked it on, with a bear inside.]


:: MAIS BURRICE ::
Bill McKibben, “Could Talking About Climate Change…?”

A indústria de combustíveis fósseis aparentemente presume a mesma coisa: ela tem arrecadado dinheiro aos barris para Trump, que prometeu “perfurar, perfurar, perfurar” e observou: “Eu odeio o vento”.

[The fossil-fuel industry apparently assumes the same thing: it has been raising money at Spindletop rates for Trump, who has promised to “drill, drill, drill” and has noted, “I hate wind.”]


:: TODOS OS ANOS ::
Barbara Ehrenreich, Bright-Sided

A parcela da renda antes dos impostos que vai para o 1% mais rico das famílias americanas aumentou em 7 pontos percentuais de 1979 a 2007, para 16%, enquanto a parcela da renda que vai para os 80% mais pobres caiu em 7 pontos percentuais. Como David Leonhardt observou no New York Times: “É como se cada família naqueles 80% mais pobres estivesse preenchendo um cheque de US$ 7.000 todo ano e o enviando para o 1% mais rico.”

[The share of pretax income going to the top 1 percent of American house holds rose by 7 percentage points from 1979 to 2007, to 16 percent, while the share of income going to the bottom 80 percent fell by 7 percentage points. As David Leonhardt put it in the New York Times: “It’s as if every house hold in that bottom 80 percent is writing a check for $ 7,000 every year and sending it to the top 1 percent.”]


:: COISAS QUE RESTAM ::
Sylvia Plath, The Letters of Sylvia Plath Volume 1

Mas existe aquele princípio humano de que não importa o quanto seja tirado, sempre sobra algo com que construir novamente.

[But there is that human principle that no matter how much is taken away there is always something left with which to build again.]


:: HOMENS EXPLICAM ::

Cat Bohannon, Eve

No século XV, Bartholomäus Metlinger escreveu o primeiro manual europeu de pediatria. Apesar da falta de seios do alemão, ele não hesitou em explicar o leite das mulheres e o que fazer com ele: “Nos primeiros 14 dias, é melhor que outra mulher amamente a criança, pois o leite da mãe não é tão saudável, e durante esse tempo a mãe deve ter seu seio sugado por um jovem lobo”.

[In the fifteenth century, Bartholomäus Metlinger wrote the first European textbook for pediatrics. Despite the German’s own lack of breasts, he didn’t hesitate to mansplain women’s milk and what to do with it: “The first 14 days it is better that another woman suckle the child as the milk of the mother of the child is not as healthy, and during this time the mother should have her breast sucked by a young wolf.”]


:: REDES SOCIAIS ::
Max Fisher, The Chaos Machine

Era como entrar em uma fábrica de cigarros e ouvir os executivos dizendo que não conseguiam entender por que as pessoas continuavam reclamando dos impactos à saúde das pequenas caixas de papelão que vendiam.

[It was like walking into a cigarette factory and having executives tell you they couldn’t understand why people kept complaining about the health impacts of the little cardboard boxes that they sold.]


:: DIETA DE MORANGOS ::

Adam Gopnik, “Does the Enlightment’s Great Female Intelect…?”

Bernard de Fontenelle, o grande acadêmico e autor de um dos primeiros livros de ciência popular, Conversas sobre a Pluralidade dos Mundos, era um frequentador assíduo da mesa de seu pai, e dizia-se que se deliciava em conversar com Émilie. (Já velho quando a conheceu, Fontenelle viveu com boa saúde até o final dos seus noventa anos, e era famoso por ter dito, aos noventa e dois, ao conhecer uma bela mulher: “Ah, ter oitenta anos novamente.” Ele creditou sua longa vida a uma dieta de morangos.)

[Bernard de Fontenelle, the great Academician and the author of one of the first books of popular science, the “Conversations on the Plurality of Worlds,” was a regular at her father’s table, and was said to delight in conversing with Émilie. (Already old when he knew her, Fontenelle lived in good health into his late nineties, and was famous for having said, at ninety-two, on meeting a beautiful woman, “Ah, to be eighty again.” He credited his long life to a diet of strawberries.)]


:: UM BOM ESPIRRO ::
D. H. Lawrence, em carta a Cynthia Asquith, novembro de 1913
Scorn, de Matthew Parris

Gosto de escrever quando estou irritado: é como soltar um bom espirro.


:: MAIS URSOS VANDALIZANDO ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

As garras curtas e curvas de um urso preto funcionam como pés-de-cabra em miniatura, capazes de alavancar a menor fenda para abrir uma janela ou rasgar uma porta de garagem. Um espaço de acesso desprotegido é um convite. Um urso transformará um batente de porta em confete. Em casas vazias — que são abundantes nas comunidades de resort como Tahoe —, os ursos abrem torneiras e queimadores, geralmente tropeçando neles. No ano passado, um funcionário de uma empresa de serviços públicos notou um pico no uso de água em uma casa; ursos tinham se mudado para lá.

[A black bear’s short, curved claws function as miniature crowbars, capable of leveraging the slightest crevice to pry open a window or shred a garage door. An unsecured crawl space is an invitation. A bear will make confetti of a doorjamb. In vacant houses—which are plentiful in resort communities like Tahoe—bears turn on faucets and burners, usually by bumbling into them. Last year, a utility-company employee noticed a spike in water use at one home; bears had moved in.]


:: UMA BATATA INGLESA ::
Clarice Lispector, Todas as cartas

Quando eu disse a Pedrinho: você vai ter uma babá inglesa, ele respondeu todo interessado: uma batata inglesa?


:: MAIS METÁFORAS ALEATÓRIAS ::
Max Fisher, The Chaos Machine

Era como se a Coca-Cola abastecesse um bilhão de máquinas de refrigerantes com alguma bebida projetada por IA, sem que um único humano verificasse o conteúdo das garrafas — e se a IA que enche as bebidas fosse programada apenas para aumentar as vendas, sem levar em conta a saúde ou a segurança.

[It was as if Coca-Cola stocked a billion soda machines with some A.I.-designed beverage without a single human checking the bottles’ contents—and if the drink-filling A.I. was programmed only to boost sales, without regard for health or safety.]


:: DIÁRIO ::
Leo Tolstoy

25 de janeiro
1851
Me apaixonei ou imagino que me apaixonei; fui a uma festa e perdi a cabeça. Comprei um cavalo do qual eu não tenho a menor necessidade.


:: URSOS – PARTE III ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

Recentemente, uma seguradora recebeu a reclamação de que um urso havia vandalizado um Rolls-Royce; investigadores mostraram imagens de segurança do incidente a um biólogo de vida selvagem, que determinou que o autor do crime era um humano fantasiado de urso.

[Recently, an insurer received a claim that a bear had vandalized a Rolls-Royce; investigators showed security footage of the incident to a wildlife biologist, who determined that the perpetrator was a human in a bear costume.]


:: TIA FÁTIMA ::

Bruna Mitrano, Ninguém quis ver

ontem soube que a tia fátima morreu
imaginei suas últimas palavras
acho que ela não teria perguntado por mim
nem por minha mãe ou pelos patrões
acho que ela teria perguntado as horas.


:: SOBRE JIM MUNRO ::
Rachel Aviv, “Alice Munro’s Passive Voice

Jim era severo e pouco inclinado a demonstrações físicas de afeição; um de seus ditados favoritos era “Todo mundo tem direito à minha opinião”.

[Jim was stern and not inclined toward physical affection; one of his favorite sayings was “Everyone’s entitled to my opinion.”]


:: QUAL DOS DOIS TINHA MORRIDO ::

Rosa Montero, O perigo de estar lúcida

[…] Depois tem a história genial de Mark Twain, que um dia contou numa entrevista que havia tido um irmão gêmeo, Bill, cuja semelhança com ele era tão grande que ninguém podia distingui-los, por isso amarravam cordões coloridos nos seus punhos para saber quem era quem. Mas um dia deixaram os dois sozinhos na banheira e o irmão se afogou. E como os cordões haviam se soltado, “nunca se soube qual dos dois tinha morrido, se Bill ou eu”, explicou Twain placidamente ao repórter. A história foi publicada e reproduzida diversas vezes, mas obviamente era inventada: aquele gêmeo nunca existiu — embora seja uma maravilhosa metáfora da dissociação do escritor, e acho que dizia muito sobre o próprio Mark Twain, autor cujo nome, aliás, é um pseudônimo (o que já evidencia certa predisposição à dualidade).


:: A ÚLTIMA DOS URSOS ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

Em junho, um urso apareceu em um casamento e destruiu um carro, fugiu com a bagagem de alguém e retornou para a recepção.

[In June, a bear turned up at a wedding and destroyed a car, ran off with somebody’s luggage, and came back for the reception.]


:: AGRADECIMENTOS ::

Jenny Offill, Dept. of Speculation

E para a equipe editorial, publicitária e de produção da Knopf que guiou este livro com um formato enlouquecedor até a gráfica, devo a cada um de vocês um pônei.

[And to the crackerjack editorial, publicity, and production staff at Knopf who shepherded this maddeningly formatted book to press, I owe each and every one of you a pony.]

Correspondendo-se com a camareira

>>>>

Agradecimentos: Google Translator.
Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

Brazil’s presidential palace on Jan. 9, 2023, the day after it was attacked by supporters of Jair Bolsonaro. Credit: Victor Moriyama for The New York Times

The New York Times
Jan 8, 2025

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Ler em português

Two years ago, there was a coup attempt in Brazil.

Don’t take my word for it: See the 221-page and 884-page federal police reports released in November. The fruit of two years of investigation, these much-anticipated accounts describe in astonishing detail a plan to overthrow the incoming government.

The chaos of Jan. 8, 2023 — when supporters of Jair Bolsonaro, many clad in yellow soccer jerseys, assailed government buildings in the capital — grabbed international attention. But the riots marked the end, not the beginning, of a coup attempt. As the reports make clear, the turmoil came after a carefully coordinated plan to ensure that Mr. Bolsonaro, who was voted out in October 2022, stayed in power.

Most shockingly, the plot involved assassinations. According to the reports, an elite army unit was assigned to kill the incoming president, Luiz Inácio Lula da Silva, and his vice president, Geraldo Alckmin. There were also plans to kidnap and probably kill a Supreme Court justice, Alexandre de Moraes, who leads many of the investigations into the country’s far-right movement.

The five members of the unit have been arrested. But the conspiracy goes far beyond them. Thirty-seven men, including Mr. Bolsonaro and a host of his allies, have been charged with planning the coup. If the charges are confirmed by Brazil’s prosecutor general, a trial will take place this year.

For Brazilians, the really scary thing isn’t how close we came to having our democracy destroyed in 2023 but that it could happen again — and succeed. The reports make clear that sitting within Brazil’s democracy is a force capable of overthrowing it: the military. It is the dagger hanging over the country.

Perhaps the best place to start is with the planned killings. We don’t have to use our imagination because, helpfully, the plotters wrote it all down. The president’s executive secretary, a retired general, Mario Fernandes, printed a draft document — at the presidential palace, no less. In a reference to Brazil’s national colors and no doubt to stiffen the plotters’ patriotic resolve, it was called “Green and Yellow Dagger.”

The plan was extensive. It outlines the weaponry required to complete the mission — a machine gun, a grenade launcher, an anti-armor rocket launcher — and accepts the possibility of “100 percent fatalities” for those involved. It also considers an alternative approach of poisoning Mr. Lula, “taking into account his health issues and frequent hospital visits.” In the event of Mr. Alckmin’s assassination, it rather harshly declares that “a national commotion is not anticipated.”

Mr. de Moraes was apparently chosen as the first target. On Dec. 15, 2022, the assassins — who had negotiated a price of about $16,500 for the operation with Mr. Bolsonaro’s personal aide — moved to locations near the justice’s house. Once the unit members were in position, according to messages collected in the reports, they waited for the release of a presidential decree. When it failed to arrive, one of them commanded the others to abort the mission and start the process of exfiltration. The operation was over.

The decree, which the reports say Mr. Bolsonaro edited, was crucial to the coup. It would have suspended the powers of the Brazilian Electoral Court and detained Mr. Moraes, allowing Mr. Bolsonaro to remain in power. Twice in December, it was presented to the heads of the armed forces — which some of the officers confirmed. (Fun fact: A priest attended one of those meetings.)

The head of the navy was ready to go along with it, the reports say, but the army and air force commanders refused to participate. A lack of international support might have been one of their reasons: The U.S. government reportedly conducted a covert campaign over the year, urging Brazil’s political and military leaders to uphold the results of the election. It seems to have worked.

The police reports are clear about who was responsible for the plan. Among those indicted are a number of Mr. Bolsonaro’s top allies, including cabinet members, his vice-presidential candidate, his defense minister and a former head of the navy. According to the reports, Mr. Bolsonaro “planned, acted and was directly and effectively aware of the actions of the criminal organization aiming to launch a coup d’état and eliminate the democratic rule of law.” (Mr. Bolsonaro denies all charges.)

Compared with the kidnapping and killing plots, the rest of the plans were relatively humdrum, if still insidious. The group’s strategy covered a variety of key areas. Before the election, for instance, Mr. Bolsonaro and his allies repeatedly claimed that the country’s electronic voting system was susceptible to fraud, aiming to stir up conservatives and secure backing for a coup.

Yet the conspirators knew their assertions were false. “No evidence of fraud,” Mr. Bolsonaro’s personal aide, Lt. Col. Mauro Cid, told a colonel. One major moment in the reports is the remark made by an officer of the Brazilian intelligence agency to a colleague: “There’s a guy who posted a tweet about the ballot box invasions. We need to qualify him with a résumé.”

The government is also said to have overseen the encampments of Mr. Bolsonaro’s supporters in front of military headquarters and across the country, which lasted for more than two months through the end of 2022. “How long do you want us to stay here?” one protest leader asked General Fernandes. On Jan. 8, 2023, thousands of these protesters stormed government buildings in Brasília, including the presidential palace, Congress and the Supreme Court. But by then, the coup was effectively finished.

We can be grateful for the failure. Yet even if Mr. Bolsonaro and his allies end up behind bars, the fact remains that the military appears to struggle with the idea that the republic belongs to its citizens. Its involvement is conspicuous in these reports: Four of the five arrested assassination unit members are army officers. Gen. Walter Braga Netto, a four-star general and Mr. Bolsonaro’s defense minister, has also been arrested. Of the 37 men charged with planning the coup, 25 are members of the armed forces. Nearly all hold or have held high-ranking positions.

This is troubling. Although some commanders decided not to back a coup this time, the stability of our democracy still hinges largely on the mood of the military. In a way, that’s always been the case. Since the founding of the republic in 1889, the military has made nine attempts to take over, five of which were successful. After the end of the 20-year military dictatorship in 1985 — which saw widespread human rights abuses, censorship of the press and the persecution of political opponents — the forces remained heavily involved in politics. Under Mr. Bolsonaro, they became even more powerful.

I can’t shake the feeling that there are plenty of generals, admirals and marshals who would be quick to side with a coup if their interests, and those of their organizations, weren’t fully satisfied. As we look ahead to the 2026 election, there’s reason to be worried. With an incoming U.S. administration more likely to support the military and perpetual distemper among the military ranks at Mr. Lula’s rule, we can’t be sure a coup won’t happen again.

And who knows? Maybe next time it will work.


Vanessa Barbara is the editor of the literary website A Hortaliça and writes Portuguese fiction and nonfiction.

A version of this article appears in print on Jan. 10, 2025, Section A, Page 22 of the New York edition with the headline: Brazil Is in Grave Danger. These 1,105 Pages Prove It.

Palácio do Planalto no dia 9 de janeiro de 2023, um dia após ser atacado por apoiadores de Jair Bolsonaro. Créditos: Victor Moriyama for The New York Times

The New York Times
Jan 8, 2025

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in English

Dois anos atrás, houve uma tentativa de golpe no Brasil.

Não acredite só na minha palavra: veja os relatórios da Polícia Federal de 221 páginas e 884 páginas, divulgados em novembro. Fruto de dois anos de investigação, esses relatos tão esperados descrevem, em detalhes espantosos, um plano para derrubar o novo governo.

O caos de 8 de janeiro de 2023 — quando apoiadores de Jair Bolsonaro, muitos vestidos com camisas amarelas de futebol, atacaram prédios do governo na capital — atraíram a atenção internacional. Mas os tumultos marcaram o fim, não o começo, de uma tentativa de golpe. Como os relatórios deixam claro, a turbulência aconteceu após um plano cuidadosamente coordenado para garantir que Bolsonaro, que perdeu as eleições em outubro de 2022, permanecesse no poder.

O mais chocante é que o plano envolvia assassinatos. De acordo com os relatórios, um grupo de militares da elite do Exército foi designado para matar o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e o vice, Geraldo Alckmin. Também havia planos para sequestrar e provavelmente matar um ministro da Suprema Corte, Alexandre de Moraes, que lidera muitas das investigações sobre o movimento de extrema direita no país.

Os cinco membros do grupo foram presos. Mas a conspiração vai muito além deles. Trinta e sete homens, incluindo Bolsonaro e inúmeros de seus aliados, foram acusados de planejar o golpe. Se os indiciamentos forem confirmados pelo procurador-geral da República, um julgamento irá acontecer este ano.

Para os brasileiros, o mais assustador não é como chegamos tão perto de ter nossa democracia destruída em 2023, mas como poderia acontecer de novo — e dar certo. Os relatórios deixam claro que no interior da democracia brasileira existe uma força capaz de derrubá-la: os militares. Eles são o punhal pairando sobre o país.

Talvez o melhor lugar para começar seja com os assassinatos planejados. Não precisamos usar nossa imaginação porque, de forma prestativa, os conspiradores escreveram tudo. O secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, o general da reserva Mario Fernandes, imprimiu o rascunho de um documento sobre o golpe — no Palácio do Planalto, ainda por cima. Em uma referência às cores nacionais do Brasil e sem dúvida para fortalecer a determinação patriótica dos conspiradores, ele foi chamado de “Punhal Verde Amarelo.”

O plano era abrangente. Descreve o armamento necessário para completar a missão — uma metralhadora, um lança-granadas, um lança-rojão — e aceita a possibilidade de 100 por cento de baixas entre todos os envolvidos. Também considera uma abordagem alternativa de envenenar Lula, “considerando a vulnerabilidade de seu atual estado de saúde e sua frequência a hospitais.” No caso do assassinato de Alckmin, declara duramente que “não se espera grande comoção nacional.”

Moraes foi aparentemente escolhido como o primeiro alvo. No dia 15 de dezembro de 2022, os assassinos — que negociaram com o ajudante de ordens de Bolsonaro o preço de 100 mil reais para a operação — deslocaram-se para pontos próximos à casa do ministro. Assim que os membros do grupo estavam posicionados, de acordo com mensagens coletadas nos relatórios, eles aguardaram a promulgação de um decreto presidencial. Quando o decreto não chegou, um deles ordenou que os outros abortassem a missão e iniciassem o processo de exfiltração. A operação tinha terminado.

O decreto, que os relatórios dizem ter sido editado por Bolsonaro, era essencial para o golpe. Ele teria suspendido os poderes do Tribunal Superior Eleitoral e anunciado a detenção de Moraes, permitindo que Bolsonaro continuasse no poder. Duas vezes, em dezembro, foi apresentado aos comandantes das Forças Armadas — o que foi confirmado por alguns dos oficiais. (Pequena curiosidade: um padre esteve presente em uma dessas reuniões.)

Segundo os relatórios, o chefe da Marinha estava pronto para aderir ao golpe, mas os comandantes do Exército e da Aeronáutica se recusaram a participar. A falta de apoio internacional pode ter sido um dos motivos: o governo norte-americano teria supostamente conduzido uma campanha velada ao longo daquele ano, encorajando os líderes políticos e militares do Brasil a respeitar os resultados da eleição. Parece ter funcionado.

Os relatórios da polícia são claros sobre quem foi o responsável pelo plano. Entre os indiciados estão vários dos principais aliados de Bolsonaro, incluindo seus ministros, seu candidato a vice, seu ministro da Defesa e o então chefe da Marinha. De acordo com os relatórios, Bolsonaro “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um Golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito.” (Bolsonaro nega todas as acusações.)

Em comparação às tramas de sequestro e assassinato, o resto dos planos era relativamente monótono, ainda que insidioso. A estratégia do grupo cobria uma variedade de áreas-chave. Antes da eleição, por exemplo, Bolsonaro e seus aliados alegaram repetidamente que o sistema de votação eletrônica do país era suscetível a fraudes, na tentativa de incitar os conservadores e assegurar um apoio para o golpe.

E ainda assim, os conspiradores sabiam que suas afirmações eram falsas. “Nenhum indício de fraude,” disse o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, a um coronel. Um grande momento do relatório é o comentário feito por um servidor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a um colega: “Tem um cara que publicou um tweet sobre as invasões das urnas. Precisamos qualificá-lo com um currículo.”

O governo de Bolsonaro também é acusado de supervisionar os acampamentos de seus apoiadores diante dos quartéis-generais do Exército por todo o país, que duraram mais de dois meses no final de 2022. “Até quando vocês querem que a gente fique aqui?,” perguntou um dos líderes dos protestos ao general Fernandes. Em 8 de janeiro de 2023, milhares desses manifestantes invadiram prédios do governo em Brasília, incluindo o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Mas, a essa altura, o golpe já havia efetivamente acabado.

Podemos ficar gratos pelo fracasso. E ainda assim, mesmo que Bolsonaro e seus aliados terminem atrás das grades, o fato é que os militares ainda parecem lutar contra a ideia de que a República pertence a seus cidadãos. Seu envolvimento é ostensivo nesses relatórios: quatro dos cinco membros do grupo de assassinato que foram presos são militares do Exército. Walter Braga Netto, general de quatro estrelas e candidato a vice de Bolsonaro, também foi preso. Dos 37 homens acusados de planejar o golpe, 25 são membros das Forças Armadas. Quase todos possuem ou possuíram altas patentes.

Isso é preocupante. Embora alguns comandantes tenham decidido não apoiar um golpe desta vez, a estabilidade de nossa democracia ainda depende, em grande parte, dos humores dos militares. De certa forma, esse sempre foi o caso. Desde a proclamação da República, em 1889, os militares fizeram nove tentativas de tomar o poder, cinco das quais foram bem-sucedidas. Após o término de uma ditadura que durou vinte anos, em 1985 — ditadura que teve extensos abusos de direitos humanos, censura aos veículos de comunicação e perseguição a oponentes políticos — as Forças Armadas permaneceram fortemente envolvidas na política. Sob a administração de Bolsonaro, tornaram-se ainda mais poderosas.

Não consigo me livrar da sensação de que há uma porção de generais, brigadeiros e almirantes que seriam rápidos em apoiar um golpe se os seus interesses, e os da corporação a que pertencem, não forem plenamente satisfeitos. Ao vislumbrarmos a eleição de 2026, há motivos para preocupação. Com uma nova administração dos EUA mais propensa a apoiar as Forças Armadas e com o destempero perpétuo dos militares ao comando de Lula, não podemos ter certeza de que um golpe não irá acontecer de novo.

E quem sabe? Talvez funcione da próxima vez.


Vanessa Barbara é editora do site literário A Hortaliça e autora de três romances em português, incluindo “Três Camadas de Noite.”

Uma versão deste artigo apareceu no New York Times impresso em Jan. 10, 2025, Section A, Page 22, com o título: “Brazil Is in Grave Danger. These 1,105 Pages Prove It.”

A Hortaliça – #101

Posted: 9th janeiro 2025 by Vanessa Barbara in Hortaliças

Uma das coisas mais sérias e importantes que você poderá ter lido

#101 – São Paulo, 10 de dezembro de 2024
A alpaca natalina astronauta deseja a todos boas festas
Nas intermitências de nossa idiotice
www.hortifruti.org

“Ah! Onde vais, pequeno rastejante?
Tua imprudência te protege muito pouco”
(Robert Burns, “A um piolho”)


Hoje, um terço das mortes do mundo tem alguma relação com moscas.”
(Richard Gordon, A assustadora história da medicina)

:: EDITORIAL :

Temos a alegria de informar que nossa obsessão pela Barbara Ehrenreich está chegando ao fim (não restam mais livros na bibliografia), porém, para azar geral dos leitores, saíram em novembro dois relatórios da PF — de 218 e 884 páginas — que nos divertiram muito. De modo que os senhores e as senhoras terão de se conformar com uma exposição tóxica aos trechos mais aleatórios desses documentos.

No mais, a alpaca natalina astronauta gostaria de desejar boas festas a quem é de festas e boas férias a quem tem férias. Não se esqueçam de depositar polpudas contribuições natalinas para custear nosso décimo-terceiro, vale-alimentação, abono salarial, PIS/Cofins, convênio odontológico e auxílio-insalubridade. Lembrem-se pecuniariamente daqueles que lhes trouxeram entretenimento da mais alta qualidade durante todo o ano de 2024. (Sim, estou falando da polícia federal.)

Um aviso final: esta Hortaliça será um pouco longa, mas, além de ilustrativa, é uma das coisas mais sérias e importantes que você poderá ter lido.


:: UM CARA QUE PUBLICOU UM TWEET ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 33

Dois caras da Abin conversando:


:: AINDA ELES ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 33


:: FALTA DE CONTROLE ::

Barbara Ehrenreich, Natural Causes

Quando a noção de “estresse” foi criada em meados do século XX, a ênfase estava na saúde dos executivos, cujas ansiedades supostamente superavam as de um trabalhador braçal sem grandes decisões a tomar. Acontece, porém, que a quantidade de estresse que alguém experimenta — medida pelos níveis sanguíneos do hormônio do estresse cortisol — aumenta conforme você desce na escala socioeconômica, com o maior estresse sendo infligido àqueles que têm menos controle sobre seu trabalho.

[When the notion of “stress” was crafted in the mid-twentieth century, the emphasis was on the health of executives, whose anxieties presumably outweighed those of a manual laborer who had no major decisions to make. It turns out, however, that the amount of stress one experiences—measured by blood levels of the stress hormone cortisol—increases as you move down the socioeconomic scale, with the most stress being inflicted on those who have the least control over their work.]


:: FAIT-DIVERS ::
Ben Taub, “Murder in Malta

Um idoso na cidade de Gozo (Malta) bateu na esposa com um peixe; ela caiu da escada e morreu, e ele cozinhou e comeu a arma do crime.

[An old man in Gozo smacked his wife with a fish; she fell down the stairs and died, and he cooked and ate the murder weapon.]


:: MERITOCRACIA ::
Pedro Fernando Nery, Extremos

No Brasil, para o filho de uma família de baixa renda chegar à renda média do país são necessárias nove gerações.


:: GOLZINHO NO BANHO DE SOL ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 247

Dois militares conversam sobre quem assinou a Carta dos Oficiais da Ativa ao Comandante do Exército, um documento que pedia a intervenção militar.

O povo brasileiro clama pela concretização desse golzinho.


:: DOCUMENTO ::

Rosa Freire d’Aguiar, Sempre Paris

Na Alemanha, o jornalista Arthur José Poerner, privado de passaporte, usava como documento a velha carteirinha do Clube de Regatas Flamengo, cuja capa de couro preto parecia respeitável.


:: GRITO DE GUERRA ::
Jake Offenhartz, New York’s Clock Master to City Hall

Recentemente, um grupo de idosos se reuniu em frente ao hotel Trump, no oeste do Central Park, para pedir mais banheiros públicos. (Entre seus gritos: “Two, four, six, eight, we just want to urinate!”)

[Recently, a group of old men assembled outside the Trump hotel on Central Park West to agitate for more public toilets. (Among their chants: “Two, four, six, eight, we just want to urinate!”)]


:: AS MAIS INTOLERÁVEIS ::
William Styron, Darkness Visible

Pois em praticamente qualquer outra doença séria, um paciente que sentisse uma devastação semelhante estaria deitado na cama, possivelmente sedado e conectado a tubos e fios dos sistemas de suporte de vida, mas, no mínimo, em uma postura de repouso e em um ambiente isolado. Sua invalidez seria necessária, inquestionável e honrosamente obtida. No entanto, quem sofre de depressão não tem essa opção e, portanto, encontra-se como uma vítima ambulante de guerra, empurrado para as mais intoleráveis ​​situações sociais e familiares. Lá, apesar da angústia que devora seu cérebro, ele deve exibir uma expressão que se aproxime daquela que é associada a eventos comuns e amizade.

[For in virtually any other serious sickness, a patient who felt similar devastation would be lying flat in bed, possibly sedated and hooked up to the tubes and wires of life-support systems, but at the very least in a posture of repose and in an isolated setting. His invalidism would be necessary, unquestioned and honorably attained. However, the sufferer from depression has no such option and therefore finds himself, like a walking casualty of war, thrust into the most intolerable social and family situations. There he must, despite the anguish devouring his brain, present a face approximating the one that is associated with ordinary events and companionship.]


:: FILOSOFIA DE VIDA ::
Rivka Galchen, “A New Doctor Faces The Coronavirus in Queens

No caminho, digo a mim mesmo: vou aparecer. Se eu simplesmente continuar aparecendo, algo bom vai sair disso de forma acumulada, ao longo do tempo.

[On my way over, I say to myself, I’m going to show up. If I just keep showing up, something good will come of it compounded over time.”]


:: RATOS VELHOS ::

Joseph Mitchell, “Thirty-Two Rats From Casablanca

Exterminadores se referem a ratos velhos como Moby Dicks. “Ratos que sobrevivem até os quatro anos são os animais mais sábios e cínicos da Terra”, diz um exterminador. “Uma armadilha não significa nada para eles, não importa o quão habilmente preparada. Eles apenas a chutam até que ela arrebente; então eles comem a isca. E eles podem detectar iscas envenenadas a um metro de distância. Acredito que alguns deles sabem ler. Se você tiver alguns Moby Dicks em sua casa, há apenas duas coisas que você pode fazer: esperar que eles morram ou queimar sua casa e começar tudo de novo.”

[Exterminators refer to old rats as Moby Dicks. “Rats that survive to the age of four are the wisest and the most cynical beasts on earth,” one exterminator says. “A trap means nothing to them, no matter how skillfully set. They just kick it around until it snaps; then they eat the bait. And they can detect poisoned bait a yard off. I believe some of them can read. If you get a few Moby Dicks in your house, there are just two things you can do: you can wait for them to die, or you can burn your house down and start all over again.”]


:: COISAS SÉRIAS E IMPORTANTES ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 156


:: A MORTE ::
Barbara Ehrenreich, Natural Causes

Arrependimento, certamente, e um dos meus maiores arrependimentos é o de não estar presente para acompanhar o progresso científico nas áreas que me interessam, que são praticamente todas.

[Regret, certainly, and one of my most acute regrets is that I will not be around to monitor scientific progress in the areas that interest me, which is pretty much everything.]


:: NARIZES ::
George Saunders, A Swim in a Pond in the Rain

Gogol era obcecado por narizes, tinha medo de sanguessugas e vermes; ele conseguia, aparentemente, tocar o topo do seu (longo) nariz com a ponta da língua.

[Gogol was obsessed with noses, afraid of leeches and worms; he could, apparently, touch the top of his (lengthy) nose with the tip of his tongue.]


:: ALEGRIA DE GOGOL ::
George Saunders, A Swim in a Pond in the Rain

Mas seríamos negligentes se não reconhecêssemos que a arma principal de Gogol é a alegria. Minha parte favorita da história — uma parte que não me parece nem velha nem nova, mas atemporal — acontece no início da cena no escritório do jornal quando, de alguma forma, magicamente, um grupo de pessoas esperando para colocar anúncios se transforma naquilo para o qual estão anunciando, e de repente o pequeno escritório está cheio de “um cocheiro de conduta sóbria… uma serva de dezenove anos… um droshky sólido com uma mola faltando… um cavalo cinza malhado jovem e selvagem… uma residência de verão com todos os apetrechos”.

[But we’d be remiss if we didn’t acknowledge that Gogol’s main currency is joy. My favorite part of the story—a part that feels neither old or new but timeless—comes toward the beginning of the scene in the newspaper office when somehow, magically, a group of people waiting to place ads get transformed into that for which they are advertising, and suddenly that little office is full of “a coachman of sober conduct…a nineteen-year-old serf girl…a sound droshky with one spring missing…a young and fiery dappled-gray horse…a summer residence with all the appurtenances.”]


:: SE CONTINUARMOS ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 734

Em 27 de dezembro de 2022, um assessor de Bolsonaro pergunta ao general Braga Netto para quem deveria encaminhar o currículo de uma amiga.


:: IMPOTÊNCIA ::

Giles Harvey, “What Alice Munro Knew

Como uma escritora capaz de tanto poder na página poderia se mostrar tão impotente na vida real? […] Enfatizando que não tinha nenhum desejo de fornecer desculpas para sua mãe, Sheila disse que acredita que Fremlin “aliciou” Munro junto com Andrea, citando a maneira como Munro passou a vê-la como uma rival sexual. “Isso vem direto do manual do abusador”, [Judith] Herman disse recentemente quando descrevi a teoria de Sheila para ela. “É instrutivo ver como até mesmo alguém tão talentoso quanto Munro era vulnerável a esse tipo de controle coercitivo.”

[How could a writer who was capable of such power on the page prove so feeble in real life? […] Stressing that she had no desire to make excuses for her mother, Sheila said she believes that Fremlin groomed Munro along with Andrea, citing the way Munro came to see her as a sexual rival. “That’s straight out of the abuser’s playbook,” [Judith] Herman said recently when I described Sheila’s theory to her. “Seeing how even someone as gifted as Munro was vulnerable to this kind of coercive control is instructive.”]


:: ÁLIBIS ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 237 e 326


:: NOTA DE RODAPÉ SINCERONA ::
John Earman, World Enough and Space-Time

Qualquer leitor que, após completar este livro, acreditar que qualquer uma das teses de Reichenbach se sustenta sem maiores qualificações é cordialmente convidado a jogar este livro na fogueira.

[Any reader who, after completing this book, believes that any of Reichenbach’s theses stands without major qualifications is cordially invited to commit this book to the flames.]


:: NAS INTERMITÊNCIAS DE NOSSA IDIOTICE ::

Gustave Flaubert, Cartas exemplares

A Louis Bouilhet
7 junho 1856

Agora estou lendo algo que não tem nada de humanoHistória do Maniqueísmo de Beausobre, dois volumes in-quarto de 500 páginas cada um — sempre para Santo Antônio! Nas intermitências de minha idiotice, acho que sou louco. Enfim, é preciso seguir sua inclinação. Por que se incomodar sempre?


:: MATERIAL DE SUAS VIDAS QUÂNTICAS ::
Ian Parker, “Eric Adam’s Administration of Bluster

O prefeito aparentemente se reserva o direito de misturar incidentes de sua vida com material de suas vidas quânticas: coisas que poderiam ter acontecido, ou quase acontecido, ou acontecido a alguém que ele conheceu. Todos os potenciais existem simultaneamente.

[The Mayor apparently reserves the right to mix incidents from his own life with material from his quantum lives: things that could have happened, or almost happened, or happened to someone he once met. All potentials exist simultaneously.]


:: RECADO DE PAUL FEYERABEND ::

Gonzalo Munevar, Beyond Reason

“O que eu realmente sou: um lavador de louças.”

>>>>

Agradecimentos: Google Translator, Gigio e todos os colaboradores e assinantes que nos acompanharam em 2024.
Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #100

Posted: 11th novembro 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças
Capa de disco: Simon & Garfunkão

Quando enfim revelamos nossos propósitos

#100 – São Paulo, 10 de novembro de 2024
É muita folha para pouco legume
Edição de luxo com encadernação em couve
www.hortifruti.org

Na falta de um outro mérito, haverá o da paciência.
(Gustave Flaubert)

“A plateia comendo amendoins
Se aglomera para ver”
(Sylvia Plath)

:: EDITORIAL :

E finalmente chegamos à edição número 100. Quando criamos este periódico, mal podíamos imaginar que vinte e dois anos depois estaríamos exatamente no mesmo lugar: balançando os pés num banquinho realmente alto, empurrando as cutículas com uma chave de fenda e esperando algo coerente cair do teto, com as patas bem abertas, para devolver o bom senso que se perdeu algum dia.

Escolhemos um clickbait como subtítulo só para atrair mais leitores, mas a verdade é que nossos propósitos continuam os mesmos. Não mudaram em nada nessas últimas duas décadas: de longe, dá para ver que continuam iguais. São muitos, e bastante variados. Contam-se às dezenas. Difícil lembrar quais são.

Agradecemos a todos os assinantes e doadores que colaboram financeiramente para manter o viço deste periódico, a despeito de nosso comportamento errático e citações cada vez mais fora de contexto. Agradecemos também a quem colabora enviando trechos absurdos das fontes mais questionáveis. Continuem com o ótimo trabalho. O reino dos céus será dos generosos (e daqueles que gostam de sapoti).

O e-mail de contato e a chave pix continua igual: vmbarbara@yahoo.com.

Esta edição é dedicada a Barbara Ehrenreich, por quem estamos absolutamente obcecados.


:: EXCESSO DE TEMPO LIVRE ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed: Undercover in Low-Wage USA

Os e-mails e mensagens telefônicas destinados ao meu eu antigo vêm de uma raça distante de pessoas com preocupações exóticas e um excesso de tempo livre.

[The e-mails and phone messages addressed to my former self come from a distant race of people with exotic concerns and far too much time on their hands.]


:: ESCÂNDALO ::
W. David Marx, Status and Culture

Em uma certa época, no Reino Unido, os homens que ousavam usar guarda-chuvas “eram tão malvistos que chegavam a ser perseguidos nas ruas”.

[at a certain time in the United Kingdom, men who dared use umbrellas “were so ill thought of that they were persecuted in the streets.”]


:: IMPORTUNAÇÃO INSUPORTÁVEL ::

Kim Brooks, A Portrait of the Artist As a Young Mom

Byron teria dormido com 200 mulheres no decorrer de um ano, declarando, depois que sua esposa deu à luz o primeiro filho, que ele estava no inferno, e então engravidou a meia-irmã dela. Baudelaire ansiava por escapar da “importunação insuportável das mulheres com quem vivo”. Verlaine tentou atear fogo em sua esposa. Hemingway se casou com quatro mulheres e, após uma das cerimônias, teria pedido a um barman um copo de cicuta. A filha de 12 anos de Faulkner certa vez pediu para ele não beber no aniversário dela, e ele se recusou, dizendo: “Ninguém se lembra dos filhos de Shakespeare”.

[Byron is reported to have slept with 200 women in the course of one year, declaring after his wife gave birth to his first child that he was in hell, then impregnating his half-sister. Baudelaire longed for escape from “the unendurable pestering of the women I live with.” Verlaine tried to light his wife on fire. Hemingway married four women and after one ceremony reportedly asked a bartender for a glass of hemlock. Faulkner’s 12-year-old daughter once asked him to not drink on her birthday, and he refused, telling her, “No one remembers Shakespeare’s children.”]


:: INDIGNIDADES ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed

Se [os chefes] o fizerem sentir indigno o suficiente, você poderá chegar a pensar que o que lhe pagam é o que você realmente vale.

[If you’re made to feel unworthy enough, you may come to think that what you’re paid is what you are actually worth.]


:: O PATRONO DA HORTALIÇA ::

Gustave Flaubert, Cartas exemplares

A Louise Colet
Novembro 1851

É bonito ser um grande escritor, ter os homens na frigideira de sua frase e fazê-los saltitar como castanhas. 


:: LADRÕES DE TEMPO ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed
Sobre seu emprego no Wal-Mart

Nada de piercings no nariz ou outras joias faciais, aprendemos; brincos devem ser pequenos e discretos, não pendurados; nada de jeans azul, exceto às sextas-feiras, e aí você precisa pagar um dólar pelo privilégio de usá-los. Nada de “pastar”, isto é, comer de embalagens de alimentos que de alguma forma se abriram; nada de “roubo de tempo”. Este último me faz divagar no rumo da ficção científica: “E enquanto os ladrões de tempo retornavam ao ano 3420, carregados de fins de semana e dias de folga saqueados do século XXI”…

[No nose or other facial jewelry, we learn; earrings must be small and discreet, not dangling; no blue jeans except on Friday, and then you have to pay $1 for the privilege of wearing them. No “grazing,” that is, eating from food packages that somehow become open; no “time theft.” This last sends me drifting off in a sci-fi direction: And as the time thieves headed back to the year 3420, loaded with weekends and days off looted from the twenty-first century…]


:: CIPRESTE PIRAMIDAL ::
Gustave Flaubert, Cartas exemplares

A Jules Duplan
10-11 maio 1857

Estou prestes a ler uma memória de 400 páginas sobre o cipreste piramidal, porque há ciprestes no pátio do templo de Astarté; isto basta para lhe dar uma ideia do resto.

:: A MÃE DE TODAS AS BIBLIOTECAS ::
Sci-Hub, LibGen e ZLib entraram num bar

Me disseram que cinco dos meus onze livros estão lá.
https://annas-archive.org/


:: ACOMPANHAMENTO ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed

Eu fico amiga de Timmy, o garoto branco de quatorze anos que ajuda os garçons à noite, dizendo que não gosto que as pessoas coloquem seus assentos de bebê em cima das mesas: isso faz com que o bebê pareça um acompanhamento do prato principal.

[I bond with Timmy, the fourteen-year-old white kid who buses at night, by telling him I don’t like people putting their baby seats right on the tables: it makes the baby look too much like a side dish.]


:: ÓBVIO ::
Sidarta Ribeiro, O oráculo da noite

“Que parte de p menor do que 0,05 corrigido para Bonferroni você não entendeu?” 


:: PENTEADOS ::

W. David Marx, Status and Culture

O filósofo Montesquieu observou, no século XVIII: “Os penteados das mulheres estão subindo cada vez mais, até que uma revolução os derrube novamente. Houve um tempo em que, devido à enorme altura de seu penteado, o rosto de uma mulher ficava no meio do corpo. Em outra época, seus pés ocupavam a mesma posição.”

[The philosopher Montesquieu observed in the eighteenth century, “Women’s hairstyles gradually go up and up, until a revolution brings them down again. There was a time when because of their enormous height a woman’s face was in the middle of her body. At another time her feet occupied the same position.”]


:: TÃO DISTRAÍDO ::
Ruth Franklin, Shirley Jackson: A Rather Haunted Life

Sobre o livreiro Louis Scher:

Tão distraído que dizem que, certa vez, ele teria embrulhado a própria mão em um pacote de livros.

[So absentminded that he was said to have once wrapped up his own hand in a package of books.]


:: TÃO CANSADA ::
Sarah Manguso, Ongoingness

Esperando o bebê mamar ou parar de mamar ou arrotar ou soltar gases ou cocô líquido amarelo, eu adiei banhos, telefonemas, evacuações. Ignorei correspondências porque não tinha energia nem para dizer que estava tão cansada, e ninguém se importava que eu estivesse cansada — quem não está cansado? Antes de ter o bebê, lembro-me de me sentir cansada o tempo todo. Mas depois que ele veio, eu podia passar quatro dias em dois quartos, de pijamas, tão cansada que ficava quase cega.

[Waiting for the baby to feed or stop feeding or burp or pass wind or yellow liquid shit I postponed showers, phone calls, bowel movements. I ignored correspondence because I had no energy even to say I am so tired, and no one cared that I was tired—who isn’t tired? Before I had the baby I remember feeling tired all the time. But after he joined me I could spend four days in two rooms, pajama-clad, so tired I was almost blind.]


:: SITUAÇÃO ::
Barbara Ehrenreich, Nickel and Dimed

Mas o lar, neste caso, não é um lugar tranquilo; é mais parecido com o que se chama no Exército de “situação”.

[But home in this instance is not a restful place; it’s more like what is known in the military as a “situation.”]


:: FUNCHO ::
Sarah Manguso, Ongoingness

Num dia pós-parto, levei uma eternidade para lembrar a palavra “obsoleto”. No outro dia, “sugestionável”. No outro, “funcho”. A mãe de um bebê precisa de um léxico menor? Ela precisa de um léxico especificamente limitado? Então eu não precisava pensar em funcho? Em abstrações?

[One postpartum day it took me forever to remember the word obsolete. Another day, suggestible. Another, fennel. Does the mother of an infant need a smaller lexicon? Does she need a specifically limited lexicon? Did I not need to think about fennel then? About abstractions?]


:: UMA FILEIRA DE FORMIGAS ::
W. David Marx, Status and Culture

A cultura pop aplaude o cantor de heavy metal Ozzy Osbourne por cheirar grandes quantidades de substâncias prejudiciais à saúde, incluindo uma fileira de formigas vivas — um comportamento hedonista que certamente destruiria a carreira de um gerente médio em uma seguradora.

[Pop culture celebrates the heavy metal singer Ozzy Osbourne for snorting copious amounts of unhealthy substances, including a line of live ants—hedonistic behavior that would surely stifle the career of a middle manager at an insurance company.]


:: PIKACHU LIBRE ::
Ben Taub, Russia’s Espionage War in the Arctic

“Dois anos atrás, recebemos muitas dicas sobre pessoas fotografando um aparelho secreto”, disse ele. “Descobrimos que havia um Pokémon raro lá”, explicou, referindo-se ao jogo de realidade aumentada Pokémon Go.

[“Two years ago, we got a lot of tips about people photographing a covert safe house,” he said. “We found out that a rare Pokémon was there,” in the augmented-reality game Pokémon Go.]


:: A INTERFACE MANTEIGA-MANTEIGA ::
Barbara Ehrenreich, Had I Known

Nós passávamos manteiga em tudo, de brócolis a brownies, e teríamos passado manteiga na própria manteiga se não fossem os problemas de tração apresentados pela interface manteiga-manteiga.]

[We buttered everything from broccoli to brownies and would have buttered butter itself if it were not for the problems of traction presented by the butter-butter interface.]


:: THE WIRE ::
Revista Sino Azul, Jan-Fev 1952

>>>>

Agradecimentos: Google Translator, Dolce Café e Gigio.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.