Some days you just gotta Conga
#091 – São Paulo, 5 de março de 2024
Edição especial eczema
Tudo é bom
Você sabe o que é tartaruga?
www.hortifruti.org

“E assim, do pouco dormir e muito ler se lhes secaram os miolos, de modo que veio a perder o juízo.”
(Dom Quixote, Miguel de Cervantes)

“Dai-me, Senhor, coragem e alegria/ para escalar o cume deste dia.”
(Jorge Luis Borges)

:: EDITORIAL ::

Talvez os leitores não tenham entendido. A ideia desta Hortaliça tem eflúvios de Punk Rock Creative Commons Copyleft Partido Pirata e Lambada O Ritmo Proibido, tudo junto. Precisamos da colaboração financeira dos assinantes para garantir o suprimento de nossas viçosas verduras, do contrário não haverá mais colheita.

Não iremos fechar o conteúdo em paywall a menos que nos arrastem algemados à la Suplicy até o Deic do Carandiru, para onde iremos gritando: “Free Huey!”, enquanto espalhamos edições gratuitas pelos ares. Esta é a nossa tentativa de conquistar (em termos) os meios de produção, diminuir o peso dos intermediários e ganhar algum tipo de poder sobre nossas vidas; contudo, há leitores com empregos de verdade — tipo cirurgião bucomaxilofacial — que se recusam a respaldar a nossa trupe literária.

A vocês, que as pulgas de mil camelos infestem os seus sovacos (provérbio árabe). E aos demais, nossos efusivos agradecimentos. Lembrando que quem não puder colaborar em espécie pode mandar umas abobrinhas de sua colheita pessoal para tornar a nossa paisagem mais frondosa. O endereço: vmbarbara@yahoo.com.

Em nota não relacionada, o leitor Rodrigo Casarin informa que conhece um porco residente na rua Epaminondas Melo do Amaral, no Imirim, mas não sabe precisar se é o mesmo suíno que foi visto vagando na ladeira da rua Pestana, no Mandaqui, a quase 3 km do local. Continuaremos investigando. Trata-se de mais um de nossos imperativos éticos: apurar e checar os fatos, sem distinguir entre caprinos, ovinos, asininos e muares. (Afinal, passamos os últimos anos cobrindo política brasileira.)

Aproveitamos para esclarecer que, ao contrário do que foi divulgado pela imprensa, A Hortaliça não tem nenhum vínculo com laboratórios de pesquisa ou a indústria farmacêutica. Relatos de que se trataria de uma manobra de marketing para vender psicotrópicos são descabidos.


:: LISTA DE INSULTOS CULTOS ::
Contos Completos, de Liev Tolstói

Que Deus achate esse seu focinho!


:: EU JÁ PEDI DESCULPAS A UMA LIXEIRA ::

O olhar da mente, Oliver Sacks

O dr. P., em contraste, oferecera um aperto de mão a um relógio de pêndulo.


:: TODOS OS FIOS DA POLÍTICA EUROPEIA ::

No caminho de Swann, Marcel Proust

[..] a quem divertia com a narrativa de suas aventuras picantes, por exemplo, que encontrando no trem uma mulher e tendo-a levado para a sua casa, viera a descobrir que se tratava da irmã de um soberano que no momento tinha nas mãos todos os fios da política europeia, da qual assim se inteirava de um modo sumamente agradável; ou que, por um complexo jogo de circunstâncias, ia depender da eleição do Papa que ele se tornasse ou não amante de uma cozinheira.


:: APERFEIÇOAMENTO DA REDONDILHA ::
Tribuna da Trova – Órgão oficial da Academia Guanabarina de Trova nº 6, set. 1965

A Academia Brasileira de Trova, combatida por alguns, será considerada no futuro um dos marcos mais importantes do movimento trovadoresco brasileiro, sobretudo no que se refere ao aperfeiçoamento da redondilha.


:: EI! EI! O VISGO ::
Zelda Fitzgerald, fevereiro/março 1932
Clínica Phipps, Baltimore

Às quatro da madrugada – Bem, tem uma moça que berra “Homicídio qualificado!” quando não está gritando “Oi! Ei! Ei! O visgo”. Imagino que não haja nada para se fazer a respeito — e prefiro isso aos odiosos pronunciamentos tranquilizadores de Mlle. B. e às visitações noturnas do eczema.

Estou lendo o Modern French Painters, de Ian Gordon. Ele fala da sensação de plantar coisas na obra de Van Gogh.


:: PANFLETO DE INSTRUÇÕES ::

Em caso de Homem Branco, gire calmamente a manivela em sentido anti-horário, destrave a porta da Saída de Emergência, golpeie o elemento com o cabo de uma pá e empurre-o para fora da aeronave. Respire normalmente.


:: PARECE-ME QUE SERIA RIDÍCULO ::

Charles Fort

Mais adiante exporemos coisas que apareceram no céu, onde permaneceram — alhures — durante semanas ou meses… Mas não certamente pelo poder de sustentação da atmosfera terrestre. Por exemplo, a tartaruga de Vicksburg. Parece-me que seria ridículo pensar numa tartaruga de respeitáveis dimensões que permaneça por 3 ou 4 meses suspensa apenas pelo ar, sobre a cidade de Vicksburg.


:: A MULHER SEM CABEÇA ::
O flâneur: Um passeio pelos paradoxos de Paris, Edmund White

A amante [de Baudelaire], uma atriz chamada Jeanne Duval, morava na rue de la Femme-sans-Tête [rua da mulher sem cabeça], hoje rue La Regrattier. A rua tinha esse nome por causa de uma placa diante de uma estalagem exibindo a figura de uma mulher sem cabeça e o slogan “Tudo é bom”, significando que tudo estava bem quando se lidava com uma mulher sem cabeça.


:: FOFOCAS ESPARSAS ::

Cobrador do 208-M comentando com motorista sobre outro cobrador da linha: “Agora o Almir traz copo descartável para dar café pros passageiros”.


:: IMPRECAÇÃO ::

Ninguém quis ver, Bruna Mitrano

que a chuva poupe as telhas pobres
e mais nada


:: OMAR NA MPB ::

Colaboração de Nayra Dmitruk, em 2012

[…] Aprecio seu esforço para divulgação das cantigas de avô, avó e alergia. Entretanto, uma dúvida vem tirando meu sono: podemos considerar o Omar como um personagem folclórico-popular musical brasileiro?

A substituição do Omar por “o mar” durante a ditadura colabora com o seu quase anonimato. Mas podemos mencionar também a inconstância de sua natureza, que dificulta o trabalho dos pesquisadores que tentam traçar um perfil do Omar.

Ocasionalmente, por exemplo, é um gigante devorador de homens:

“Não deixe Omar te engolir
Não deixe Omar te engolir
Não deixe Omar te engolir
Não deixe Omar te engolir ohhh yeah ohhh”
(BROWN JR., Charlie)

Que possui cabelos coloridos:

“É doce morrer no Omar
Nas ondas verdes do Omar”
(CAYMMI, Dorival)

Mas também pode ser apresentado como um escravo:

“Te dei o sol, te dei Omar
Pra ganhar teu coração”
(SANTANA, Luan)

Ou como um grandessíssimo mulherengo:

“Madalena foi pr’Omar
E eu fiquei a ver navios
Quem com ela se encontrar
Diga lá, no alto Omar
Que é preciso voltar já
Pra cuidar dos nossos filhos”
(BUARQUE, Chico)

“Omar serenou quando ela pisou na areia
Quem samba na beira do Omar é sereia”
(NUNES, Clara)

“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça
É ela a menina que vem e que passa
Num doce balanço a caminho do Omar”
(JOBIM, Tom)

Omar também pode integrar relações sadomasoquistas:

“Omar
Quando quebra na praia
É bonito, é bonito”
(CAYMMI, Dorival, Omar”

Ou possuir fetiches atípicos:

“Omar passa saborosamente a língua na areia
Que bem debochada, cínica que é
Permite deleitada esses abusos d’Omar”
(MATOGROSSO, Ney)

[…]

:: BELÍSSIMO NARIZ DE CERA ::
Kevin Delaney, em matéria de 31 de outubro de 2011
Encarte The New York Times/Folha de S.Paulo

Os cães sabem apreciar os prazeres simples da vida, quer estes sejam fuçar no lixo, rolar em algas marinhas em decomposição ou farejar os traseiros uns dos outros.


:: COMO VOCÊ SE SENTE? ::
Colaboração de Ricardo Alpendre, uns cinco anos atrás

Descobriram um sítio arqueológico lá na Paraíba, com pegada de dinossauro e tudo. Aí perguntaram a um agricultor: “Como você se sente sabendo que o lugar onde mora foi povoado por dinossauros?”

“Ah, não sei. Não é do meu tempo.”


:: ENQUANTO ISSO, NO MANDAQUI… ::

:: MAIS ZELDA ::
Querido Scott, Querida Zelda
Outubro de 34, Hospital Sheppard e Enoch Pratt, Towson, Maryland

Meu querido Do-Do —

Obrigada pela carta. Como você está aos poucos se dissolvendo numa figura mítica devido ao longo período de anos que se passaram desde duas semanas atrás, vou lhe contar a respeito de mim:

1) Estou me sentindo só.
2) Não tenho parentes nem amigos e gostaria de conhecer um guerreiro malaio
3) Eu não cozinho, não costuro e não causo aborrecimentos pela casa.

O Hospital Sheppard Pratt está situado em algum lugar do sertão da consciência humana e pode ser localizado a qualquer hora entre a aurora da consciência e o início da velhice.

Querido: A vida é difícil. São tantos os problemas. 1) O problema de como permanecer aqui e 2) O problema de como sair daqui. E eu quero tanto ir à Guatemala e andar de bicicleta até o fim de uma longa estrada branca. Uma estrada margeada por cedros-do-líbano e choupos, com esplendores antiquíssimos se desfazendo na encosta dos morros esturricados de sol e nativos dormindo à sombra, junto a um enorme muro cinzento.


:: O ESTILO ::

A queda, Albert Camus

O estilo, assim como a mais fina seda, muitas vezes serve para esconder o eczema.


:: DEPOIMENTO DE UM TRANSEUNTE ::

Durante a crise de água em São Paulo

Nós estamos fazendo de tudo. Eu nunca fui de tomar banho.


:: PUBLIPOST ::

Dica de compras para viajantes no tempo

Extinction Preparedness Time Badge
https://timetravelmart.com/


:: DOENÇAS DE UMBIGO ::
A assustadora história da medicina, Richard Gordon

Anton Chekov (1860-1904) foi considerado pela mídia “o único capaz de usar o material da medicina e elevá-lo aos níveis de grande arte. Fora isso, a medicina geralmente cria escritores medíocres”. Osborne Henry Mavor (1888-1951) escreveu sobre o pseudônimo de James Bridie peças prolixas como O anatomista e um artigo definitivamente científico sobre o centro anatômico, O Umbigo, que, segundo ele descobriu, pode ser atacado por oito doenças.


:: PINÇANDO NARIZES ::
O homem que fazia chover — e outras histórias inventadas pela mente, Edson Amâncio

Doutor, assisti com muito interesse à sua palestra e gostaria de saber se uma coisa que faço rotineiramente pode ser sinal de TOC. Já faz mais de 20 anos, quando encontro alguma pessoa conhecida que não vejo há certo tempo, esteja ela onde estiver — na rua, na casa de parentes, na casa de amigos —, tenho o hábito de pinçar-lhe o nariz com os dedos. Faço isso de maneira natural e espontânea, mas antes reluto muito. Tento desviar meu pensamento e às vezes até procuro evitar a pessoa, pois sei que aquele hábito não é correto. Mas ele é mais forte que eu. É como se fosse um cmprimento, um alerta ou até uma reprimenda. É como se eu quisesse dizer: “Puxa! Há quanto tempo não nos vemos!” Sinto que preciso tocar o nariz da pessoa. Às vezes, sou mal compreendida, mas, para mim, é muito difícil deixar de fazer isso. Sempre que evito — e todas as vezes tento evitar, mas não consigo —, sinto uma grande angústia. É um verdadeiro desespero que procuro dissimular. Nem sempre consigo.


:: CLASSIFICADOS ::
Colaboração de Bruno Brasil

Diário de Notícias, 1 de janeiro de 1890
CARTOMANTE e somnambula, única. Mme. Josephina, a primeira e mais antiga; na Rua de S. José n. 67. 

Diário de Notícias, 3 de janeiro de 1890:
DOUTOR CORSÁRIO – ispecialista nas doenças do bolso em camas i colxães i PINICOS. Assembléia 75 – 70 i sinco heim?!! Rua Sorocaba n. 1 (Botafogo).

:: NOME PRÓPRIO ::
Ninguém quis ver, Bruna Mitrano

o vassoureiro
o moço da pipoca
o feirante
o catador de latinhas
a voz do carro do pão
o rapaz morto ontem
o garçom
o motorista da van
o camelô
não têm nome próprio

os animais de rua também
não têm nome próprio
nem ocupam cargos públicos
a mulher nunca tem nome próprio
é a mulher do Fulano

a minha avó não teve nome próprio
os filhos a chamavam de mãe
eu a chamava de vó
e ela sempre atendia

a minha avó me ensinou
a atender prontamente
e a morrer sozinha

ela também me ensinou
a degolar franguinhos
e que as mulheres são sempre
propriedade de alguém

menos as que matam o marido
e fogem com a cabeça
numa sacola de mercado

essas ganham nome
nos jornais
e ameaçam o anonimato
das mulheres que em breve
vão aprender
a degolar franguinhos.


:: RECEITA PARA QUALQUER COISA ::
Levels of Live, Julian Barnes

Naqueles primeiros meses, quis assistir esportes com os quais não tinha o menor envolvimento emocional. Eu gostava – embora o verbo seja forte demais para descrever esse tipo de apreciação letárgica – de assistir partidas de futebol entre, digamos, Middlesbrough e Slovan Bratislava (de preferência a partida de volta de uma série cujo início eu havia perdido), na disputa de algum campeonato europeu de segundo escalão que empolgava principalmente aos nativos de Middlesbrough e Bratislava.


:: DAR COMBATE AO MAL E VENCEL-O (?) ::
Revista da Semana, Jornal do Brasil, novembro de 1900

:: AUTOAJUDA ::
Da série Homicide: Life on the Street (1993, Paul Attanasio)

No bar, dois policiais conversam sobre um traficante que não conseguiram prender.

— Mas e agora?
— Agora o quê?
— Luther Mahoney.
— Bem, nós vamos continuar trabalhando nisso.
— É essa a resposta?
— Isso, é a resposta pra tudo. Trabalho policial, casamento, felicidade, amizade, vida.

(E aí entra o Tom Waits e canta: 

“There’s a ribbon in the willow and a tire swing rope
and a briar patch of berries takin’ over the slope
the cat’ll sleep in the mailbox and we’ll never go to town
til we bury every dream in the cold cold ground…”)

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Agradecimentos: Adriano Marcato, Bruno Brasil, Nayra Dmitruk, Ricardo Alpendre.


“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)  ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.

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É cinquenta o tijolão da bananada
#090 – São Paulo, 23 de fev. de 2024
Uma alcachofra de terno coração
Curam habe de facto tuo*
www.hortifruti.org

“Tenho a convicção de que seres humanos e peixes podem coexistir pacificamente”
(George W. Bush)


“Ó, meu Deus! Vou ficar completa e descaradamente louco!”
(pequeno King-Post, em Moby Dick)


:: EDITORIAL ::

Esta edição começou a ser escrita há mais de dez anos, em 7 de agosto de 2013. Acontece que, àqueles tempos, fomos acometidos de uma fadiga muito grande, a mãe de todas as preguiças, que nos levou a procrastinar alegremente por mais de uma década, enquanto balançávamos os pés em um banquinho realmente alto.

É algo que às vezes acontece. E sabem? O conselho editorial não deu bola. Os acionistas estavam jogando pingue-pongue. Os assinantes, esses sim, ficaram injuriados e prometeram empastelar nossas rotatórias – houve uma ameaça de greve de fome e uma anunciada intervenção com sangue de porco durante a entrega dos prêmios Jabuti –, mas consta que, no final, os nossos 703 leitores foram igualmente acometidos de uma leseira tropical e decidiram ir cortar as unhas dos pés.

Depois foram tomar banho, dormir, se casaram, tiveram filhos, concluíram o doutorado, foram morar no estrangeiro, compraram uma AirFryer, aprenderam a fazer cirurgia vascular ou andar com pernas de pau, alguns ainda não me devolveram os livros que emprestei, outros mudaram de ideia sobre a necessidade de emagrecer e alisar os cabelos (eu amo vocês), houve outros que ficaram ricos ou carecas, viraram influencers ou psicanalistas, porém, enquanto tudo isso acontecia, A Hortaliça jamais saiu de seus pensamentos.

Adicionando insulto à injúria, nossos servidores sofreram um ataque de piratas cibernéticos que resultou na perda de todo o nosso repositório de idiotices – ainda que, sejamos sinceros, aquilo tudo não valesse mais do que uma Sete Belo.

Os hackers nos pediram uma quantia exorbitante para devolver o material; o Instituto Serrapilheira ameaçou entrar na negociação; alguém chegou a citar os papiros perdidos do segundo livro da Poética de Aristóteles; mas, no fim, nada foi acordado. Meses se passaram. O preço final para o resgate do lote – uma unidade de Sete Belo, semimascada – foi rejeitado.

Sejamos sinceros mais uma vez: talvez caiba dizer que não aconteceu exatamente dessa forma. Fato é que houve um drama com backups perdidos que se estendeu por anos, transmutou-se em negação, revolta, barganha e aceitação, até que, numa tarde de domingo, nos deparamos com o conteúdo extraviado de A Hortaliça em um HD externo no fundo de uma gaveta em nossa sede de campo, no bairro do Mandaqui, onde não havíamos procurado antes porque deu preguiça.

De modo que: hoje, em 23 de fevereiro de 2024, os arquivos de A Hortaliça foram restituídos à Unesco como patrimônio da humanidade, graças aos esforços de nossos repórteres investigativos – que são ótimos, ainda que introvertidos. Disso se depreende que nossa numerosa newsroom tem agora condições adequadas para parar de se dedicar às palavras cruzadas e voltar ao trabalho. Sua primeira missão foi restaurar e complementar a mítica edição 90, que trazemos aos queridos leitores e leitoras a partir de agora.

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Jornal O Paiz, 24 de junho de 1893, n. 4065


:: TODOS RIRAM, MENOS A BALEIA ::
Moby Dick, Herman Melville

Disso decorria, por inferência, a crença de alguns baleeiros em que a passagem noroeste, há tanto tempo um problema para o homem, nunca tivesse sido um problema para a baleia.


:: VINTE CENTAVOS POR CUSPARADA ::
Técnicas corporais, Marcel Mauss

Uma menina não sabia cuspir e cada catarro que tinha era agravado por isso. Fui informado do fato. Na aldeia de seu pai e na família de seu pai em particular, em Berry, não sabem cuspir. Ensinei-lhe a cuspir. Dava-lhe vinte centavos por cusparada. Como ela tinha vontade de ter uma bicicleta, aprendeu a cuspir. Foi a primeira da família a saber fazê-lo.


:: FLAGRANTES DA VIDA REAL ::
Novembro de 2018

Minha mãe estava voltando de táxi para o Mandaqui. Numa subida, o trânsito parou e ela viu um caminhão manobrando. Aí o taxista falou: “O que está fazendo esse porco na rua?”

Ela ficou calada porque achou ofensivo. Mas aí reparou que tinha mesmo um porco correndo na rua.


:: UMA LONGA LISTA DE AUTORIDADES ::
O Brasil dos correspondentes, de Jan Rocha, Thomaz Milz e Verónica Goyzueta

Tudo correu bem até a última etapa da sua visita [do papa João Paulo II, em 1980], no Rio. A secretaria de imprensa da CNBB distribuiu o release com a programação. Infelizmente, quem o traduziu para o inglês confundiu a palavra Mrs. (senhora) com a palavra Mistress (amante). Resultado: o release informava que, no Rio, o papa seria recebido por uma longa lista de autoridades, cada um acompanhado de sua amante.


:: SEJA RUDE COM OS RODODENDROS ::
Do filme Expresso de Chicago (1976, Arthur Hiller)

George: Bem, em jardinagem uma regra para recordar é – seja rude com os rododendros.
Hilly: Ótimo. O que mais eu devo saber?
George: Há um segredo para tratar azaleias.
Hilly: Me diz. Sou toda ouvidos.
George: Trate-as do mesmo jeito que às begônias.
Hilly: Sem brincadeira?
George: É místico.
Hilly: Então você está dizendo: “O que é bom para as azaleias é bom para as begônias”.
George: Eu não poderia ter expressado melhor.
[…] Hilly: Bom, então, o que aconteceria se você tratasse uma azaleia como um rododendro?


:: GANGUE DE TEXUGOS ::
Stirling Observer, maio de 1986

William Golpo, morador do condado de Raploch, sobreviveu a um ataque de texugos nesse domingo. Segundo o dr. Kenneth Frew, especialista local, tudo leva a crer que eram seis texugos, talvez sete.


:: INFORME ::
Revista Sino Azul, jan. 1928

:: A FLUNFA ::
Da Redação

A flunfa. Verdade seja dita, não é apenas um acúmulo de detritos na cavidade umbilical, mas o amálgama de nosso ser. Fiapos laníferos de uma blusa especialmente querida, nacos de sabonete Phebo, materiais orgânicos de toda sorte, restos de comida e todos os subprodutos de nossos hábitos quotidianos se reúnem no umbigo para celebrar a essência do que somos. Juntos, reagem e oxidam a fim de formar um único elemento primordial, a flunfa, descrita por Demócrito como “a substância-Mãe”.

[trecho omitido do original] pois algumas questões de cunho metafísico devem ser confrontadas pelo cientista que queira melhor compreender o mecanismo de funcionamento desta inhaca corpórea. Trata-se do caráter sazonal e pouco previsível do fenômeno. Ora, durante o inverno, a acumulação flunfeana é intensa devido ao uso de roupas vastamente felpudas e pouco banho; já no verão, o suor e a água do mar dissolvem grande parte do conteúdo flúnfeo, embora no outono ele já comece a se acumular novamente, e assim por diante. [trecho ilegível, que não faz a menor falta para a compreensão do todo]

Recusando-se a estudar temas menores como os mecanismos neurológicos do pensamento e a cura do câncer, o cientista australiano Karl Kruszelnicki resolveu concentrar seus esforços nos fiapos de tecido que se acumulam no umbigo. Sua pesquisa contou com um universo de 4,8 mil pessoas. Aqui vão os resultados:

– 2/3 das pessoas têm fiapos no umbigo (flunfa têxtil)
– pessoas mais velhas acumulam mais flunfa
– há maior incidência em homens do que em mulheres
– pessoas de pele clara têm fiapos mais claros
– a abundância de fiapos está inexplicavelmente ligada à quantidade de pelos na pessoa. Muitos ou poucos pelos diminuem a quantidade de flunfa
– não existe relação com os atributos físicos do portador
– o azul é a cor predominante dos fiapos


:: MAIS SOBRE A FLUNFA ::

662 tipos desconhecidos de bactérias vivem no umbigo humano, segundo um estudo da Universidade da Carolina do Norte. Essas espécies, que nunca tinham sido encontradas e não possuem nem nome científico, dividem o umbigo com mais de 700 outros micro-organismos. (Superinteressante, setembro de 2011)

Em julho de 2011, na Universidade do Estado da Carolina do Norte, o estudo Belly Button Biodiversity encontrou cerca de 1400 grupos diferentes de bactérias vivendo no umbigo de 95 participantes, Desses, 662 eram desconhecidos até então. (Popular Science Brasil, n. 3, 2011)


:: ABAFADO ::
Da série Homicide: Life on the Street (1993, Paul Attanasio)

O ar não circula… Você fala comigo e as tuas palavras ficam coladas na minha cara.


:: OLHARES ÁVIDOS ::
“Berthe”, Guy de Maupassant

Comecei a visitá-los com frequência e rapidamente percebi que a jovem reconhecia o marido e lançava para ele uns olhares ávidos que até aquele momento dirigia somente para os pratos açucarados.


:: BIOGRAFIA ::
Assustadora história da medicina, Richard Gordon

Rudolf Virchow (1821-1902). Esse pequeno professor, fanfarrão e vigoroso, tornou-se um proeminente médico europeu, o que primeiro descreveu a leucemia e era especialista em embolia pulmonar, lúpus da face, gota, tatuagem e arqueologia de Tróia.


:: ODE À ALCACHOFRA ::
Pablo Neruda

La alcachofa
de tierno corazón
se vistió de guerrero,
erecta, construyó
una pequeña cúpula,
se mantuvo
impermeable
bajo
sus escamas,
a su lado
los vegetales locos
se encresparon,
se hicieron
zarcillos, espadañas,
bulbos conmovedores,
en el subsuelo
durmió la zanahoria
de bigotes rojos,
la viña
resecó los sarmientos
por donde sube el vino,
la col
se dedicó
a probarse faldas,
el orégano
a perfumar el mundo,
y la dulce
alcachofra
allí en el huerto,
vestida de guerrero,
bruñida
como una granada,
orgullosa,
y un día
una con otra
en grandes cestos
de mimbre,
caminó
por el mercado
a realizar su sueño:
la milicia.


:: A EXEMPLO DOS PEPINOS DE ESTUFA ::
Sonata a Kreutzer, Liev Tolstói

Pois bem, fui apanhado por esses tecidos de malha, por esses cachos de cabelo e babados. Aliás, era fácil apanhar-me, porquanto eu fora educado naquelas condições em que, a exemplo dos pepinos de estufa, apressa-se a maturação dos jovens apaixonados.


:: CONFISSÃO ::

Outro dia sonhei que meu parceiro tinha se filiado ao PMDB só para me irritar. “O que precisamos neste país é fortalecer o Centrão”, ele teria declarado. Acordei com taquicardia. Significa?


:: O EUCALIPTO ::
Hora do recreio, Paulo Mendes Campos

Não tenho nada contra o eucalipto, Deus me livre! Ouvi a frase logo ao entrar no escritório dum editor. Este, ao apresentar-me ao velhinho que nada tinha contra o eucalipto, pediu-me com bom humor uma declaração de princípio:

–E você? Tem alguma coisa contra o eucalipto?

Mineiro não se compromete assim assim. Sentei-me, tirei um cigarro, sorri, olhei o velhinho, muito simpático. O sorriso dele me dizia o seguinte: eu, se quisesse, podia ser à vontade contra o eucalipto, ele, em absoluto, ficaria zangado, apenas lamentava que eu não estivesse presente à conversa desde o início, mas de certo modo isso era até bom, pois a minha opinião seria mais livre.


:: CARTAZ EM BARRACA DE PRAIA ::
Já não me lembro onde

Emprestamos
Cadeira
Esteira
Guarda-sol
Dentro do nosso limite


:: ANÚNCIO ::
Propaganda da loja Farol das Tintas

Temos todas as cores do mundo


:: A EXEMPLO DOS PEPINOS-DO-MAR ::
A ilha dos daltônicos, Oliver Sacks

Darwin, que parece amar e admirar todas as formas de vida, menciona em A Viagem do Beagle “as nojentas e viscosas holotúrias […] que os gourmands chineses tanto apreciam”. De fato, os pepinos-do-mar não são estimados. Safford menciona tê-los visto “rastejar como enormes lesmas pardacentas”. Jack London, em The cruise of the Snark, descreve-os como “monstruosas lesmas-do-mar”.


:: HEREDITARIEDADE ::
Do filme La Règle du jeu (1939, Jean Renoir)

– Por sorte, você é um homem muito rico
– Sim, puxei ao meu pai.


:: ÉSQUILO É INFALÍVEL ::
Zelda Fitzgerald, março de 1932, Clínica Phipps
Querido Scott, querida Zelda

Despachei o Zola – Descobri que ele estava me ajudando a alimentar minhas desordens psicológicas um pouco demais para meu próprio bem. Ésquilo é infalível e lê-lo é afundar num rol dourado e opulento de prosa que nos forçaria a escrever mesmo que não soubéssemos nada além do alfabeto sírio.


:: MAIS UMA BIOGRAFIA ::
Assustadora história da medicina, Richard Gordon

John Coakley Lettsom (1744-1815) foi para Edimburgo aprender medicina. Cheio de entusiasmo, fundou a atual Sociedade de Medicina de Londres em 1773 e uma dezena de instituições de caridade, incluindo a Sociedade para a Libertação e Ajuda a Pessoas Presas por Pequenas Dívidas, e – com grande visão – a Sociedade Real Humanitária para Ressuscitação dos Aparentemente Mortos.


:: LEGUMES NÃO BASTAM ::
“A magia negra”, Anne Sexton

A mulher que escreve sente demais
tais transes e presságios!
Como se bicicletas e crianças e ilhas
não bastassem; como se carpideiras e faladeiras
e legumes não bastassem nunca.
Ela julga que pode alertar estrelas.
Uma escritora é essencialmente uma espiã.


:: DESEMPANANDO O ESPÍRITO ::
Revista da Semana, Jornal do Brasil, novembro de 1900


:: COQUETÉIS DE GELO E ÁGUA ::
“Animals”, de Frank O’Hara

I wouldn’t want to be faster
or greener than now if you were with me O you
were the best of all my days

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Jornalista irresponsável: Vanessa Barbara (MTB 45.250/SP)
Agradecimentos: Bruno Brasil, Chico Mattoso, Luciana Araújo, Marcos Barbará.
*Cuida de tua vida, em latim.

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“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)  ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e o To Fu, que ganhou o direito de trazer um tufo de nenúfares e furar a fila. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.

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Ayumi Tanaka

The New York Times
Jan 1, 2024

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Ler em português

I was nursing a 4-month-old baby when Jair Bolsonaro won Brazil’s presidential election in 2018. It was a disaster, and I knew it right away. My daughter — let’s call her Potato — kept on sucking while I shed tears over her head. Then I changed her into a rainbow onesie to indicate my displeasure with our future president, who once said he was “proud to be homophobic.”

There was not much else I could do in my state of exhaustion and despair. But then, on one of those lonely nights of breastfeeding, I started to tell Potato random stories, just to feel less alone and to divert my sad thoughts. Little did I know that this, the simple act of telling tales, would see us through an unhinged far-right presidency and a devastating pandemic. In the toughest of times, it was a lifeline.

I remember the story that started everything: It was the tale of Damon and Pythias, which I had read somewhere and wanted to pass along. According to the myth, they were best friends who traveled to Syracuse, where Pythias did something unpleasant to King Dionysius and was sentenced to death. Pythias wanted to say goodbye to his family, so Damon offered himself as a hostage while Pythias settled his affairs. The king agreed. Nobody expected Pythias to return, but he did. Dionysius was so moved by the demonstration of friendship that he revoked the death sentence.

When I relayed the story’s ending, I swear that my baby stopped feeding for a second, her big brown eyes looking at me inquiringly. After that, I decided to tell her any anecdote that came to mind and sounded even remotely child appropriate. This helped me a lot during late-night diaper changes, especially when I also needed to change Potato’s soaked bed linens while distracting a cold, outraged baby.

She paid attention — first to my intonations and then to the narrative, as she began to understand our language. I told her stories of the day I slipped off a boat, the day my bus broke down, the day I mistook apples for tomatoes, the day two buckets flew away through our window, whatever. She loved the story of a friend who was stung by a bee and continued to play a recreational volleyball match with a swollen foot; it’s graphic, it’s heroic, it’s fun.

A little more than a year later, when Potato was a toddler learning to walk and talk, Covid-19 reached the country. By then, I was telling her stories about the environment, Indigenous tribes, the Amazon rainforest and the soaring deforestation rates under Mr. Bolsonaro’s watch. Then we began to chat about pathogens, masks, vaccines and science denialists — like the leader of our country, who aimed for herd immunity and worked against vaccines.

Sharing stories was our way of getting through the long days and nights of social isolation. She showed a special interest in the plot of a novel by Ivan Goncharov, the 19th-century Russian novelist, she picked up from my bedside table. The protagonist, Ilya Ilyich Oblomov, refused to leave his bedroom; for him to move from his bed to a chair takes dozens of pages. (He complied with quarantine before it was cool.)

As she developed her language skills, Potato started to ask difficult questions — about why the rich could continue to drain our natural resources and why Mr. Bolsonaro hadn’t been arrested yet. I tried to convey a hopeful message about the future, but sometimes my despondency was hard to hide. On the other hand, I learned that telling stories to her was a way of thinking out loud and calming my anxieties. This was good for both of us: I got a therapeutic break from my neurosis, and she got a story.

Since Potato didn’t have many true stories of her own to share and the outside world was a mess, we often resorted to fiction. All the time, she asked me to tell “wrong things” (fictional stories) that were “long and difficult to understand” (meaning many characters and plot twists). Sometimes she interrupted me to say: “No, another one! A story without people.”

She intervened in everything — the plot, the genre, the dialogue, the characters. She demanded certain props and scenarios. “Now I want a sad story with Chico Bento,” she asked one day, referring to a character from a Brazilian comic strip. “And he sings!” Recurring cast members in her stories included Greta Thunberg, Oblomov, the sisters Bingo and Bluey (from the Australian animated series “Bluey”), Mario and Luigi (from the “Super Mario” franchise) and Luna (from the Brazilian animated series “Earth to Luna!”).

In late 2022, Mr. Bolsonaro was voted out of office, defeated by Luiz Inácio Lula da Silva. I told my daughter about Mr. Lula’s imprisonment, his release, the annulment of his convictions and his comeback as president. Now that’s a story. I told her about Mr. Lula’s dog, a female black mutt named Resistance who went from living on the streets outside Mr. Lula’s prison to the presidential palace. Potato loved that part.

Last year, with Mr. Bolsonaro and Covid-19 out of our lives — well, sort of — we could finally concentrate more on experiencing new stories rather than just telling them. Depression, my own faithful black mutt, still follows me around, but I have found more ways to keep it at a certain distance. A good night’s sleep is a nice way to start. Things seem lighter.

Potato is now a 5-year-old who knows how to read, write and craft a compelling narrative. A while ago, we were coming home from school when she decided to perform a story inside the crowded bus. (I told her to lower her voice, to little avail.) At one point we were all “in a very deep cave with a giant, a chicken and a huge ice cream.” The lady next to us couldn’t stop laughing, especially when the plot twist came. We got off at the penultimate stop, so most passengers didn’t hear the end, sadly.

Our storytelling has developed in tandem, each of us encouraged by the other. In the past year, I drafted a novel about depression, motherhood, Greek myths and creative writing. Potato wrote and illustrated five books before getting bored: “Things I Like,” “Things I Don’t Like,” “The Long Dress,” “The Crazy Birthday Book” and “The Pineapple Singer.” Life is fuller for both of us: She’s been learning to swim and I’ve been playing beach volleyball, risking the occasional bee sting.

She’s been teaching me how to finish a complex narrative when you are despairing and clueless about how to move on: She just appears, flying, as a plot resolution device. It’s called a Potato ex machina. It works every time.


Ayumi Tanaka

The New York Times
1 de janeiro de 2024

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in English

Eu estava amamentando uma bebê de 4 meses quando Jair Bolsonaro venceu a eleição presidencial no Brasil em 2018. Era um desastre, e eu já sabia. Minha filha — vamos chamá-la de Batata — continuou sugando enquanto eu derramava lágrimas sobre sua cabeça. Então eu a vesti com um macacão de arco-íris para indicar meu desgosto com nosso futuro presidente, que declarou uma vez que era “homofóbico, sim, com muito orgulho.”

Não havia muito mais que eu pudesse fazer em meu estado de exaustão e desespero. Mas então, em uma dessas noites solitárias de amamentação, comecei a contar para a Batata histórias aleatórias, apenas para me sentir menos sozinha e desviar meus pensamentos tristes. Mal sabia que esse simples ato de fabulação nos ajudaria a atravessar uma tresloucada presidência de extrema direita e uma pandemia devastadora. Nos períodos mais difíceis, era uma tábua de salvação.

Lembro da história que deu início a tudo: foi a lenda de Damão e Pítias, que eu havia lido em algum lugar e queria passar adiante. De acordo com o mito, eles eram grandes amigos que viajaram até Siracusa, onde Pítias fez algo desagradável para o rei Dionísio e foi condenado à morte. Pítias queria se despedir da família, então Damão se ofereceu como refém enquanto o amigo resolvia seus assuntos. O rei concordou. Ninguém esperava que Pítias voltasse, mas ele o fez. Dionísio ficou tão comovido pela demonstração de amizade que revogou a sentença.

Quando eu revelei o final da história, juro que minha bebê parou de mamar por um segundo, seus grandes olhos castanhos me encarando de forma interrogativa. Depois disso, decidi contar a ela qualquer anedota que me vinha à mente e parecia remotamente apropriada ao público infantil. Isso me ajudou muito durante as trocas noturnas de fralda, sobretudo quando eu também precisava trocar a roupa de cama encharcada da Batata enquanto distraía uma bebê indignada e com frio.

Ela prestava atenção — primeiro para a minha entonação e depois para a narrativa, assim que começou a entender nossa linguagem. Contei-lhe histórias do dia em que escorreguei de um barco, o dia em que meu ônibus pifou, o dia em que confundi maçãs com tomates, o dia em que dois baldes saíram voando pela nossa janela, qualquer coisa. Ela amava a história de um amigo que foi picado por uma abelha e continuou a jogar uma partida recreativa de vôlei com o pé inchado; era gráfica, era heroica, era divertida.

Pouco mais de um ano depois, quando a Batata era uma criança pequena aprendendo a andar e falar, a Covid-19 chegou ao país. Àquela altura, eu estava contando a ela histórias sobre o meio ambiente, populações indígenas, a floresta amazônica e as crescentes taxas de desmatamento sob a gestão de Bolsonaro. Então passamos a conversar sobre patógenos, máscaras, vacinas e negacionistas da ciência — como o líder do nosso país, que aspirava pela imunidade de rebanho e trabalhou contra as vacinas.

Compartilhar histórias era a nossa forma de suportar os longos dias e noites de isolamento social. Ela demonstrou um interesse especial pelo enredo de um romance de Ivan Goncharov, o escritor russo do século XIX, que encontrou na minha mesa de cabeceira. O protagonista, Ilya Ilyich Oblomov, recusava-se a sair do quarto; levou dezenas de páginas para passar da cama a uma cadeira. (Ele respeitou a quarentena antes de virar moda.)

À medida que desenvolvia suas habilidades linguísticas, Batata começou a fazer perguntas difíceis — sobre por que os ricos podiam continuar a drenar nossos recursos naturais e por que Bolsonaro ainda não tinha sido preso. Eu tentava transmitir uma mensagem esperançosa do futuro, mas às vezes meu desalento era difícil de esconder. Por outro lado, aprendi que contar histórias era uma forma de pensar em voz alta e acalmar minhas ansiedades. Isso era bom para nós duas: eu ganhava uma pausa terapêutica das minhas neuroses e ela ganhava uma história.

Já que a Batata não tinha muitas histórias próprias verdadeiras para compartilhar e o mundo lá fora estava uma bagunça, nós costumávamos recorrer à ficção. Ela me pedia o tempo todo que eu contasse “uma coisa errada” (história fictícia) que fosse “bem comprida e difícil de entender” (envolvendo múltiplos personagens e reviravoltas). Às vezes me interrompia para dizer: “Não, outra! Uma história sem pessoas.”

Ela intervinha em tudo: no enredo, no gênero, nos diálogos, nos personagens. Exigia determinados adereços e cenários. “Agora eu quero uma história triste com o Chico Bento,” ela pediu um dia, referindo-se a um personagem de uma história em quadrinhos brasileira. “E ele canta!” Entre os membros recorrentes do elenco de suas histórias, incluem-se Greta Thunberg, Oblomov, as irmãs Bingo e Bluey (da série australiana “Bluey”), Mario e Luigi (da franquia “Super Mario”) e Luna (da série brasileira “O Show da Luna!”).

Em fins de 2022, Bolsonaro foi destituído eleitoralmente do cargo, tendo sido derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva. Contei para a minha filha sobre a prisão de Lula, sua soltura, a anulação da sentença e seu retorno como presidente. Isso, sim, era uma história. Contei sobre a cadela de Lula, uma vira-lata preta chamada Resistência que morava na rua em frente à carceragem de Lula e foi parar no palácio presidencial. A Batata adorou essa parte.

No ano que passou, com Bolsonaro e a Covid-19 longe de nossas vidas — quer dizer, mais ou menos — pudemos enfim nos concentrar em viver novas histórias, em vez de simplesmente contá-las. A depressão, minha fiel vira-lata preta, ainda me segue por toda parte, mas encontrei mais formas de mantê-la a certa distância. Uma boa noite de sono é um ótimo começo. As coisas parecem mais leves.

Hoje a Batata é uma criança de 5 anos que sabe ler, escrever e arquitetar uma narrativa envolvente. Tempos atrás, estávamos voltando da escola quando ela decidiu encenar uma história dentro do ônibus lotado. (Eu pedi que ela falasse mais baixo, sem grande sucesso.) A certa altura, estávamos todos em “uma caverna bem funda com um gigante, uma galinha e um sorvete enorme.” A moça ao nosso lado não conseguia parar de rir, sobretudo quando veio a reviravolta. Descemos no penúltimo ponto, então a maioria dos passageiros infelizmente ficou sem saber o final.

Nossa contação de histórias se desenvolveu em conjunto, uma encorajando a outra. Ano passado, rascunhei um romance sobre depressão, maternidade, mitologia grega e escrita criativa. A Batata escreveu e ilustrou cinco livros antes de se entediar: “Coisas que gosto,” “Coisas que não gosto,” “Vestido comprido,” “O Livro maluco do parabéns” e “O abacaxi cantor.” A vida está mais plena para nós duas: ela está aprendendo a nadar e eu tenho jogado vôlei de praia, arriscando uma picada de abelha ocasional.

Ela tem me ensinado como terminar uma narrativa complexa quando você está desesperado e sem nenhuma ideia de como seguir adiante: ela simplesmente aparece, voando, como artifício de resolução de enredo. Isso se chama Potato ex machina. Funciona sempre.


Manu Fernandez/Associated Press

The New York Times
May 2, 2023

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Ler em português

SÃO PAULO, Brazil — Under Jair Bolsonaro, Brazil was an international pariah. Not my words, but those of the former foreign minister: Apparently it was “good to be an outcast.” I do not miss these people.

When Luiz Inácio Lula da Silva took office in January, after defeating Mr. Bolsonaro, it was widely hoped that he would guide Brazil back to the international mainstream. The early signs were good: In November, even before assuming the presidency, Mr. Lula traveled to COP27 in Egypt, and there was an amiable visit to the United States in February. Then Mr. Lula started going off script. In a frantic few weeks, he made efforts to initiate peace talks on Ukraine, criticized the supremacy of the U.S. dollar, traveled to China and hosted Russia’s foreign minister.

Many in the West have been outraged, with one commentator accusing him of offering “political support for anti-American despots.” It’s a tempting view, especially when Mr. Lula — as he did while in China — paints Russia and Ukraine as equally responsible for the war. But all the same, it is mistaken. Taken together, Mr. Lula’s moves amount less to an attempt to thwart the West than to advance Brazil’s national interests, as well as a commitment to alleviate poverty and hunger in the Global South. In line with the country’s history of multilateralism and sensitive to its needs, Mr. Lula is charting his own course.

China is the big one. Mr. Lula’s visit to Beijing in April, where he met President Xi Jinping amid much fanfare, put several noses out of joint. But the visit, coming after trips to Argentina and Uruguay, was surely to be expected. China, after all, is Brazil’s top trade partner, importing enormous quantities of iron ore, soybeans and, increasingly, meat. For its part, Brazil imports from China, well, pretty much everything — like pesticides, semiconductors and shiny trinkets and gadgets that fill our dollar stores.

Economic interest alone could explain the trip. But Mr. Lula made plain that he had other motives for the visit. “We have political interests,” he said, “and we are interested in building a new geopolitics so that people can change the governance of the world.” The comment was of a piece with a previous obsession of Mr. Lula’s, when he was president from 2003 to 2010, to shake up the perceived Western dominance of international institutions such as the World Trade Organization and secure greater representation for developing countries in the United Nations. In this project, China is an obvious ally.

Mr. Lula’s itinerary showed the centrality of this concern. Before all else, his first appointment was to watch his successor as leader of Brazil in 2011, Dilma Rousseff, take office as the president of the New Development Bank in Shanghai. Popularly known as the bank of the BRICS — the acronym for the emerging economies of Brazil, Russia, India, China and South Africa — the institution aims to act as a counterweight to the wealthy nations of the Global North. In his accompanying speech, Mr. Lula claimed it could “free emerging countries from submission to the traditional financial institutions that intend to govern us,” pointedly criticizing the International Monetary Fund.

This is the heart of the matter. To many leaders of developing countries, the global financial system — overseen by the I.M.F. and the World Bank and administered in U.S. dollars — serves to squeeze poorer nations, locking them into debt repayment programs and forestalling investment in infrastructure and welfare. At the New Development Bank ceremony, Mr. Lula said he asks himself “every night” why all countries are forced to do their trade backed by the dollar. While that sounds like a recipe for bad sleep, the concern is not in itself unreasonable.

Much more worrying was the free pass Mr. Lula seemed to give China. It’s one thing to proclaim, as he did after a visit to Huawei’s research center in Shanghai, that “we have no prejudice in our relationship with the Chinese.” But it’s another altogether to declare that Taiwan is not an independent state while saying nothing about human rights violations or state surveillance. Such silence shows that Mr. Lula’s approach, generally described as a return to pragmatism, has its moral costs.

Yet Mr. Lula is also drawing on a Brazilian tradition in foreign policy, based on the principles of multilateralism, nonintervention and the peaceful settlement of conflicts. That’s what lies behind his refusal to sell weapons to Ukraine and efforts to convene a “peace club” of neutral nations to mediate talks between Ukraine and Russia.

A just end to the brutal war in Ukraine is to be desired, of course, but Mr. Lula has gone about his aim strangely. He has accused the United States of “stimulating the war” and the European Union of not talking about peace — and even said that “the two countries decided to go to war,” implying that Ukraine was also to blame for the conflict. In April he suggested that Ukraine could hand over Crimea to end the war.

Such comments have not gone unnoticed. Russia’s foreign minister, on a tour of Latin America that controversially included Brazil, expressed his gratitude. Others were less pleased. A U.S. official accused Mr. Lula of “parroting Russian and Chinese propaganda,” and an E.U. spokesman reiterated that Russia was the only one to blame. Ukraine’s Foreign Ministry spokesman, while diplomatic, made clear his unhappiness.

Chastened, Mr. Lula soon backed down, underlining that his government “condemns the violation of Ukraine’s territorial integrity.” Even so, he continued to advocate a “negotiated political solution” to the war and reiterated his concern “about the global consequences of this conflict.” There’s no reason to think he’s being disingenuous. For food security, peace and sustainable development — in Brazil and the world over — Mr. Lula seems willing to forfeit the good will of his democratic friends in the West.

Brazil is a pariah no more. Instead, it’s a pragmatist.


A version of this article appears in print on May 3, 2023, Section A, Page 18 of the New York edition with the headline: Lula Isn’t Trying to Make Brazil a Pariah. He’s Just Being Pragmatic.

Teria o Brasil se tornado ‘antiamericano’? (trad.)

Posted: 3rd maio 2023 by Vanessa Barbara in Traduções
Manu Fernandez/Associated Press

The New York Times
2 de maio de 2023

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Read in English

SÃO PAULO, Brasil — Na gestão de Jair Bolsonaro, o Brasil era um pária internacional. Não são minhas as palavras, mas do ex-ministro de Relações Exteriores: aparentemente era “bom ser pária.” Eu não sinto falta dessa gente.

Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o cargo em janeiro, depois de derrotar Bolsonaro, esperava-se que ele levasse o Brasil de volta ao mainstream internacional. Os primeiros sinais foram bons: em novembro, antes mesmo de ocupar a Presidência, Lula viajou para a COP27 no Egito, e em fevereiro fez uma visita amigável aos Estados Unidos. Então Lula começou a sair do roteiro. Em umas poucas e frenéticas semanas, ele fez esforços para iniciar negociações de paz na Ucrânia, criticou a supremacia do dólar americano, viajou à China e recebeu o ministro das Relações Exteriores da Rússia.

Muitos no Ocidente se sentiram ultrajados, como um crítico que acusou o presidente de oferecer “apoio político a déspotas antiamericanos.” É uma perspectiva tentadora, sobretudo quando Lula — como ele fez na China — descreve a Rússia e a Ucrânia como igualmente responsáveis pela guerra. Mas ainda assim, é uma visão equivocada. Tomados em seu conjunto, os lances de Lula correspondem menos a uma tentativa de frustrar o Ocidente do que a fazer avançar os interesses nacionais do Brasil — e são também um compromisso de aliviar a pobreza e a fome no Sul global. Em linha com o histórico brasileiro de multilateralismo, e sensível às demandas locais, Lula está traçando seu próprio itinerário.

A China é um ponto-chave. A ida de Lula a Pequim em abril, onde ele encontrou o presidente Xi Jinping com grande alarde, incomodou muita gente. Mas a viagem, que ocorreu após visitas oficiais à Argentina e ao Uruguai, foi mais do que esperada. Afinal, a China é a principal parceira comercial do Brasil, importando do nosso país gigantescas quantidades de minério de ferro, soja, e, cada vez mais, carne. De sua parte, o Brasil importa do país asiático, bem, praticamente tudo — de pesticidas a semicondutores, passando por todas as bugigangas e engenhocas reluzentes que enchem as nossas lojas de 1,99.

Por si sós, os interesses econômicos seriam capazes de justificar a viagem. Mas o próprio Lula fez questão de dizer que a visita teve outros motivos. “Temos interesses políticos,” ele disse, “e nós temos interesses em construir uma nova geopolítica para que a gente possa mudar a governança mundial.” O comentário é coerente com uma obsessão antiga de Lula, de quando ele foi presidente de 2003 a 2010, de abalar a percebida dominação ocidental em instituições internacionais como a Organização Mundial do Comércio e de garantir maior representação dos países em desenvolvimento nas Nações Unidas. Nesse projeto, a China é um aliado óbvio.

O itinerário de Lula evidenciou a centralidade dessa preocupação. Antes de tudo, seu primeiro compromisso foi assistir à sua sucessora na presidência do país em 2011, Dilma Rousseff, assumir a chefia do Novo Banco de Desenvolvimento em Xangai. Popularmente conhecido como “banco dos BRICS” — abreviatura para as economias emergentes do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — a instituição tem o objetivo de atuar como contrapeso às nações ricas do Norte global. Em seu discurso no evento, Lula alegou que o banco seria capaz de “libertar os países emergentes da submissão às instituições financeiras tradicionais, que pretendem nos governar,” criticando explicitamente o Fundo Monetário Internacional.

Esse é o núcleo da questão. Para muitos líderes de países em desenvolvimento, o sistema financeiro global — administrado pelo FMI e pelo Banco Mundial, e gerido em dólares norte-americanos — serve para oprimir as nações mais pobres, aprisionando-as em programas de pagamento de dívidas e impedindo maiores investimentos em infraestrutura e assistência social. Na cerimônia do Novo Banco de Desenvolvimento, Lula disse que “toda noite” se pergunta por que todos os países são obrigados a fazer transações lastreadas em dólar. Ainda que isso pareça uma receita para dormir mal, a preocupação não é em si irracional.

Muito mais preocupante foi o passe livre que Lula parece ter dado à China. Uma coisa é proclamar, como ele fez após uma visita ao centro de pesquisa da Huawei em Xangai, que “não temos preconceito na nossa relação como os chineses.” Outra é declarar que Taiwan não é um estado independente e não dizer nada sobre as violações dos direitos humanos ou a vigilância estatal. Tal silêncio mostra que a postura de Lula, geralmente descrita como um retorno ao “pragmatismo,” tem seus custos morais.

E ainda assim, Lula também está se valendo de uma tradição brasileira em política externa, baseada nos princípios do multilateralismo, não intervenção e resolução pacífica de conflitos. É isso que está por trás de sua recusa em vender armas para a Ucrânia e de seus esforços para reunir um “clube da paz” formado por países neutros para mediar conversas entre a Ucrânia e a Rússia.

Um fim justo para a guerra brutal na Ucrânia é desejável, claro, mas Lula se lançou a esse propósito de forma esquisita. Ele acusou os Estados Unidos de “incentivar a guerra” e a União Europeia de não falar em paz — e disse até que “a decisão da guerra foi tomada por dois países,” dando a entender que a Ucrânia também era culpada pelo conflito. Antes disso, em abril, ele sugeriu que a Ucrânia podia entregar a Crimeia para pôr fim à guerra.

Tais comentários não passaram despercebidos. O ministro das Relações Exteriores russo, em um tour pela América Latina que controversamente incluiu o Brasil, exprimiu sua gratidão. Outros ficaram menos satisfeitos. Uma autoridade norte-americana acusou Lula de “papaguear a propaganda russa e chinesa,” enquanto um porta-voz da UE reiterou que a Rússia era a única culpada. O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, ainda que de forma diplomática, tornou clara sua insatisfação.

Repreendido, Lula logo recuou, salientando que seu governo “condena a violação da integridade territorial da Ucrânia.” Ainda assim, continuou a defender uma “solução política negociada” para a guerra e reiterou sua preocupação com “as consequências globais desse conflito.” Não há motivos para pensar que ele está sendo hipócrita. Em nome da segurança alimentar, da paz e do desenvolvimento sustentável — no Brasil e no resto do mundo — Lula parece disposto a abrir mão da boa vontade de seus amigos democráticos no Ocidente.

O Brasil não é mais um pária. Em vez disso, é pragmático.

Ueslei Marcelino/Reuters

The New York Times
Mar. 6, 2023

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

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SÃO PAULO, Brazil — It reads like science fiction. In 93 pages, the text sketches out a strange future. In 2027, there’s a new pandemic, caused by the “Xvirus.” A year later, war breaks out between the United States and both China and Russia over bauxite deposits in Guyana. By the year 2035, Brazilians openly admit their innate conservatism and embrace a future where the word “Indigenous” barely exists.

Yet these predictions are not from some work of fiction. Instead, they come from a strange policy document published last year by a group of institutes run by retired Brazilian military personnel. Titled “Nation Project: Brazil in 2035,” the report proposes a grand national strategy on issues like geopolitics, science, technology, education and health. Alongside its more outlandish predictions, it foresees the end of Brazil’s universal health care system and public universities, and calls for the scrapping of environmental protections.

It’s tempting to laugh, but this was no fringe affair. The presentation of the plan last year was attended by Brazil’s vice president and the secretary general of the Defense Ministry. After all, this is Brazil, where the military has long meddled with the government — and ruled over the country in a dictatorship from 1964 to 1985.

In the decades since, the military returned to the barracks, but its withdrawal was always conditional. The tenure of Jair Bolsonaro, a former army captain, brought the military back to the heart of government. He might have grudgingly left office, but Brazil’s military — privileged, preponderant and unaccountable — remains a constant threat to the country’s democracy.

At the root of the military’s power is amnesia. During the dictatorship, the regime killed hundreds and tortured 20,000 people. Yet in 1979, it passed an amnesty law for those who had committed politically motivated crimes in the previous two decades, covering not only exiled activists but also military and public officials accused of murder, torture and sexual abuse. The law was upheld in 2010 by the Supreme Court. Four years later, a National Truth Commission identified 377 public officials responsible for human rights abuses during the dictatorship, but little was done. No military officers have ever been punished for their crimes.

That’s why Brazilians cannot watch the movie “Argentina, 1985” without crying out in shame. Winner of the Golden Globe for best non-English-language film and nominated for a 2023 Academy Award, it depicts the effort to haul into court members of the military juntas that ruled Argentina from 1976 to 1983. The trial, which occurred in 1985, helped shape the public debate about what happened in those brutal years — and sent a few generals to prison. So far, more than a thousand people have been convicted of crimes against humanity in our neighboring country.

Nothing of the sort ever occurred in Brazil. Here, in 2023, there are still many people who praise the country’s military past. As one Bolsonaro-supporting woman told me recently, the regime “hadn’t butchered ordinary people.” I wouldn’t dare to say that to the family of Maurina Borges da Silveira, a Catholic nun who was tortured in 1969, or to Gino Ghilardini, an 8-year-old who was tortured in 1973, or to the family of Esmeraldina Carvalho Cunha, a homemaker who was killed in 1972 after she accurately blamed the military for the death of her daughter.

In Brazil, supporters of the dictatorship hint at the crimes of “the other side” — the leftist guerrilla groups that opposed the regime — as if their acts were in the same league as the atrocities committed by forces of the state. But it’s impossible to defend the officials who tortured pregnant women and arrested young children, calling them terrorists and threats to national security.

The Brazilian military never apologized for its crimes. On the contrary, it still celebrates what it calls the 1964 revolution. During the government of Mr. Bolsonaro, it celebrated March 31 — the date of the coup that brought the military to power — every year. The regime change, according to a former defense minister, was a “historical landmark of Brazilian political evolution.”

But the problem goes much farther back, to the very founding of the country. The republic, after all, was established by a military coup in 1889. “Military officers,” as the eminent Brazilian lawyer Heráclito Sobral Pinto once said, “never accepted not being the owners of the republic.” In the 130 years since, the military has hovered over Brazil — as the political scientist Adam Przeworski wrote, referring to democracies afflicted by overweening militaries — “like menacing shadows, ready to fall upon anyone who goes too far in undermining their values and their interests.”

And those interests are considerable. With no war in sight, Brazil has the 15th-largest standing army in the world, with 351,000 active personnel, 167,000 inactive officers and 233,400 pensioners, according to the Transparency Portal. In terms of payroll, the federal government spends more on defense than it does on education — and almost five times more than it spends on health. (By the way, the country has a huge public health care system.) The expected budget of the Defense Ministry for this year is $23 billion, 77 percent of which is earmarked to pay personnel.

Military officials enjoy many privileges, with their own systems of education, housing, health care and even criminal justice. They were, tellingly, exempt from Brazil’s recent pension reform. Lucky for them: In 2019, the average remuneration for a retired member of the military was more than six times that of a retired civilian.

It’s not just military officials who benefit from such largess, but their families too. For instance, 137,900 unmarried daughters of military members will receive their father’s pensions for the rest of their lives — a list that includes the two daughters of Col. Carlos Alberto Brilhante Ustra, who was accused of torturing hundreds of people and retired with the rank of marshal.

After Mr. Bolsonaro became president in 2019, the military flooded into the civilian administration. In 2020, 6,157 military officers — half of them on active duty — worked for the federal government, more than twice the number in 2018. At one point, 11 of the 26 ministers in Mr. Bolsonaro’s administration were current or former officers, including the health minister during most of the pandemic, Gen. Eduardo Pazuello, who has yet to be held accountable for his misdeeds.

The new president, Luiz Inácio Lula da Silva, has been trying to slowly remove military personnel from the government — especially after the insurrection of Jan. 8, in which the military played a murky role. If the military did not participate in the riots, it certainly didn’t do much to prevent them. In January, Mr. Lula fired the head of the army, who allegedly protected pro-Bolsonaro rioters at an encampment in Brasília on the night of the attacks. Encouragingly, a Supreme Court justice has ruled that military officers involved in the riots will be tried by a civilian court.

It’s a start, but there’s much further to go before we’re free from the shadow of the military. Then, at last, we can relegate its plans to the realms of fantasy, where they belong.


A version of this article appears in print on March 9, 2023, Section A, Page 26 of the New York edition with the headline: Bolsonaro May Be Gone, but Brazil Is Still Under Threat.

Ueslei Marcelino/Reuters

E não é o Jair Bolsonaro

The New York Times
6 de março de 2023

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

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SÃO PAULO, Brasil — Parece ficção científica. Em 93 páginas, o texto descreve um futuro bem esquisito. Em 2027, há uma nova pandemia causada pelo “Xvírus.” Um ano depois, os Estados Unidos entram em guerra contra a China e a Rússia pela posse de depósitos de bauxita na Guiana. Por volta de 2035, os brasileiros confessam abertamente seu conservadorismo inato e abraçam um futuro onde a palavra “indígena” quase não existe.

No entanto, essas previsões não pertencem a uma obra de ficção. Pelo contrário: elas constam de um estranho plano de ação publicado no ano passado por um grupo de institutos liderados por militares da reserva brasileira. Intitulado “Projeto de Nação: O Brasil em 2035”, o relatório propõe uma grande estratégia nacional em áreas como geopolítica, ciência, tecnologia, educação e saúde. Junto com outras profecias mais excêntricas, ele prevê o fim da gratuidade do Sistema Único de Saúde e das universidades públicas, e pede a remoção de restrições da legislação ambiental.

Dá vontade de rir, mas não se trata de uma questão periférica. A cerimônia de lançamento do relatório, no ano passado, contou com a presença do vice-presidente da República e do secretário-geral do Ministério da Defesa. Afinal, estamos no Brasil, onde os militares há muito tempo se intrometem no governo — e chegaram a comandar o país em uma ditadura de 1964 a 1985.

Nas décadas seguintes, eles retornaram aos quartéis, mas seu afastamento sempre foi condicional. A gestão de Jair Bolsonaro, um capitão da reserva, trouxe os fardados de volta ao núcleo do governo. Ele pode ter até deixado o cargo (e com certa relutância), mas os militares brasileiros — privilegiados, preponderantes e inimputáveis — continuam sendo uma ameaça constante à democracia do país.

Na raiz do poder dos militares está a amnésia. Durante a ditadura, o regime matou centenas e torturou 20 mil pessoas. E ainda assim, em 1979, aprovou uma lei de anistia para quem cometeu crimes de motivação política nas duas décadas anteriores, o que incluía não só os ativistas exilados como também os agentes públicos militares e civis acusados de assassinato, tortura e abuso sexual. A lei foi corroborada em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal. Quatro anos depois, a Comissão Nacional da Verdade identificou 377 agentes públicos responsáveis por abusos contra os direitos humanos durante a ditadura, mas pouco foi feito. Nenhum militar chegou a ser punido por seus crimes.

É por isso que os brasileiros não conseguem assistir ao filme “Argentina, 1985” sem gritar de vergonha. O longa-metragem, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e indicado para o Oscar 2023, retrata o esforço para levar aos tribunais os integrantes das juntas militares que governaram a Argentina de 1976 a 1983. O julgamento, que ocorreu em 1985, ajudou a moldar o debate público sobre o que aconteceu nesses anos brutais — e mandou alguns generais para a cadeia. Até hoje, mais de mil pessoas foram condenadas por crimes contra a humanidade em nosso país vizinho.

Nada parecido chegou a ocorrer no Brasil. Aqui, em 2023, ainda há muita gente que enaltece o nosso passado militar. Como uma apoiadora de Bolsonaro me disse recentemente, o regime “não massacrou pessoas comuns”. Eu não ousaria dizer isso à família de Maurina Borges da Silveira, uma freira católica que foi torturada por cinco meses em 1969, ou de Gino Ayres Ghilardini, uma criança de 8 anos que foi torturada em 1973, ou de Esmeraldina Carvalho Cunha, uma dona de casa que foi morta em 1972 depois de culpar acertadamente os militares pelo assassinato de sua filha.

No Brasil, os apoiadores da ditadura acenam para os crimes do “outro lado” — os guerrilheiros de esquerda que se opunham ao regime — como se suas ações estivessem no mesmo patamar do que as atrocidades cometidas pelas forças do próprio Estado. Mas é impossível defender agentes públicos que torturaram mulheres grávidas e prenderam crianças pequenas, chamando-as de “terroristas” e “ameaças à segurança nacional.”

Os militares brasileiros nunca se desculparam por seus crimes. Pelo contrário, eles ainda comemoram o que chamam de “revolução de 1964”. Durante o governo Bolsonaro, celebraram o dia 31 de março — data do golpe que levou os militares ao poder — todos os anos. A troca de regime, de acordo com um ex-ministro da Defesa, foi “um marco histórico da evolução política brasileira.”

Mas o problema vem de muito antes, da própria fundação do país. A República, afinal, foi proclamada após um golpe militar em 1889. “Os militares,” como disse uma vez o eminente advogado brasileiro Heráclito Sobral Pinto, “nunca aceitaram não ser os donos da República.” Nos 130 anos que se seguiram, eles pairaram sobre o Brasil — nas palavras do cientista político Adam Przeworski, referindo-se a democracias sufocadas por arrogantes militares — “como sombras ameaçadoras, prontas a cair sobre qualquer um que vá longe demais na ameaça a seus valores ou seus interesses.”

E esses interesses são consideráveis. Mesmo sem nenhuma guerra à vista, o Brasil tem o 15o maior exército permanente no mundo, com 351 mil militares ativos, 167 mil inativos e 233,4 mil pensionistas, de acordo com o Portal da Transparência. Em termos de folha de pagamento, o governo federal gasta mais com defesa do que com educação – e quase cinco vezes mais do que gasta com saúde. (A propósito, o país tem um gigantesco sistema de saúde pública.) A previsão de orçamento do Ministério da Defesa para este ano é de 23 bilhões de dólares, 77 por cento dos quais são destinados a despesas com pessoal.

Os militares desfrutam de inúmeros privilégios, tendo seus próprios sistemas de educação, moradia, saúde e até justiça criminal. De forma bastante reveladora, eles foram retirados da nossa recente reforma previdenciária. Sorte a deles: em 2019, a remuneração média de um militar na reserva era mais de seis vezes a de um aposentado do INSS.

E não são só os membros das Forças Armadas que se beneficiam de tamanha generosidade, mas também suas famílias. Por exemplo, as 137.900 filhas solteiras de militares que irão receber a pensão dos pais para o resto da vida — a lista inclui as duas filhas do falecido coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi acusado de torturar centenas de pessoas e se aposentou com os vencimentos de um marechal.

Depois que Bolsonaro se tornou presidente em 2019, os militares inundaram a administração civil. Em 2020, 6.157 militares — metade deles na ativa — trabalhavam para o governo federal, mais do que o dobro do número de 2018. A certa altura, 11 dos 26 ministros da gestão Bolsonaro eram militares da ativa ou da reserva, incluindo o ministro da Saúde durante boa parte da pandemia, o general Eduardo Pazuello, que ainda está para ser responsabilizado por seus crimes.

Pouco a pouco, o novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, está tentando retirar os funcionários militares do governo — sobretudo após a insurreição de 8 de janeiro, na qual os fardados tiveram um papel nebuloso. Se não participaram dos ataques, decerto não fizeram muito para evitá-los. Em janeiro, Lula demitiu o comandante do Exército, que supostamente protegeu os vândalos pró-Bolsonaro em um acampamento em Brasília na noite dos ataques. De forma encorajadora, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os militares envolvidos nos ataques serão julgados por um tribunal civil.

É um começo, mas ainda há muito a fazer antes de ficarmos livres da sombra dos militares. Só então finalmente poderemos relegar seus planos para o reino da fantasia, que é o lugar a que pertencem.


A version of this article appears in print on March 9, 2023, Section A, Page 26 of the New York edition with the headline: Bolsonaro May Be Gone, but Brazil Is Still Under Threat. Tradução da autora.


New York Review of Books (newsletter)
February 25, 2023

Vanessa Barbara, interviewed by Willa Glickman

This article is part of a regular series of conversations with the Review’s contributors; read past ones here and sign up for our e-mail newsletter to get them delivered to your inbox each week.

“The following is a description of a video that I did not watch,” writes Vanessa Barbara in her report on the nation’s recent presidential election in the February 23, 2023, issue of the Review. “‘A male synthetic organism was walking down the street when it came across an evil 5G entity. The biological entity had taken the third dose of the vaccine and its graphene nano-bot system was revved up.’” Though the leftist candidate Luiz Inácio Lula da Silva prevailed over the right-wing Jair Bolsonaro in the October election, a thriving cottage industry of social media conspiracies still mobilizes support for extremist, pro-dictatorship politicians, leaving Brazil’s democracy in a fragile, if hopeful, state.

Barbara, a Brazilian novelist, journalist, and translator, has a lively eye for detail (to take only one example, an Op-Ed she wrote for The New York Times took time to record the name of a neighbor’s pet: Turtle Moses). A current of humor runs through her writing—on subjects as diverse as health, media, and environmental degradation—which is perhaps necessary when reporting on the surrealist turn that politics has taken in both Brazil and the United States.

Last week we corresponded over e-mail about the private messaging app Telegram, Borges, and leftist vegans.


Willa Glickman: What brought you to writing and journalism? 

Vanessa Barbara: I was born in 1982 on the outskirts of São Paulo, where I’ve lived my whole life. I started by getting a degree in journalism, but then realized that reporting was not exactly what I wanted to do. I also tried to concentrate on writing fiction, but that was not what I wanted to do, either. Then I tried doing a little bit of everything, and it somehow worked better. That’s what I’m still doing today. In 2008 I earned the Jabuti Prize for O Livro Amarelo do Terminal, a nonfiction book about São Paulo’s—and Latin America’s—largest bus terminal, and in 2014 I received two other prizes (one in France) for a novel, Lettuce Nights. I’ve also written a graphic novel (why not?), and I’m going to publish a children’s book in April. I swear I once copyedited the Portuguese subtitles in a Polish documentary.

Does your writing for an English-speaking audience in the US feel distinct from what you write in Portuguese for Brazilian readers? Is there one genre you especially enjoy? 

My Brazilian writing career is very diverse and loose, as I mentioned. But when I’m asked to write for an American audience, things get a little tenser. As someone who’s never studied abroad and who spent most of her life mastering the Portuguese language, writing in English feels like trying to play the flute on a bamboo stick. Not very easy. Additionally, I rarely get asked to write about issues other than Brazilian politics, which eventually becomes a little restrictive. Jorge Luis Borges once said that Argentine writers should not confine themselves to a few local themes, because the universe is their patrimony too. I do try to honor Borges: in eighty pieces for The New York Times during the last nine years, I’ve managed to write about astronomy, turtles, mental health, obstetrics, my sleep disorder, feminism, dengue fever, and the nail polish industry. For the Review I once wrote about the World Cup sticker album. I love writing essays, but my favorite genre is the crônica, a Portuguese-language essay form that is a playful combination of journalism and literature.

With Bolsonaro out of the way, I look forward to writing more about mental health issues and other topics of everyday life. For example, I’ve never written about dance, planetariums, odontology, or Carnival.

In your essay about the election, you document a number of fascinating examples of political and scientific misinformation that are often spread over the messaging service Telegram, which we’re less familiar with in the US. Could you tell us a bit more about this app—what makes it so popular, and does it have certain features that make it easy for users to spread misinformation?

Telegram is an encrypted message platform that supports group chats with up to 200,000 users and channels with an unlimited number of subscribers, so it’s easier to mass-reproduce content there than on WhatsApp, for example, which limits the size of groups. Telegram’s rules on abuse and disinformation are vague, and they are loose about moderation. The company has also, until very recently, eluded all orders and requests from the Brazilian courts. Other social media companies, such as Facebook, Twitter, YouTube, and WhatsApp, had working relationships with the courts; they started flagging and removing false information. So when users were banned from other platforms, they went to Telegram.

Was there already a current of mistrust for scientists in the country before Bolsonaro came to power? You note that vaccination rates for children were once very robust.

We’ve always been cited for our successful children’s vaccination campaign. Our national immunization program, which is among the best in the world, offers more than twenty free vaccines to all Brazilians and has been making its way to self-sufficiency in vaccine production. Between 2002 and 2012 the program achieved an average child vaccination rate of 95 percent. This started to change after presidents Michel Temer (2016–2018) and Jair Bolsonaro (2019–2022) both delivered damaging cuts to our national healthcare system. Bolsonaro has also worked hard to discredit Covid vaccines, and delayed the government from buying them, while promoting an imaginary “early treatment” with ineffective drugs such as hydroxychloroquine and ivermectin. Bolsonaro has in fact embodied a historical shift in the Brazilian population’s trust in science, especially on public health and environmental issues.

The January 8 attack on the capitol by Bolsonaro supporters echoed the January 6 attack in the United States, and there are obvious parallels in the vaccine denialism and other preoccupations of the so-called culture war—to what extent does information flow directly between American and Brazilian right-wing influencers? 

Brazilian and American far-right supporters are close to one another. Steve Bannon, for example, has repeatedly cast doubt on the integrity of Brazil’s electoral system and is considered an informal advisor to Jair Bolsonaro’s campaign. Tucker Carlson has also amplified the baseless claims of election fraud in Brazil. The national politician Eduardo Bolsonaro, one of our former president’s sons, acts as Brazil’s primary representative to the American right; in the last five years, according to the Brazilian news agency Pública, he has attended seventy-seven meetings with high-ranking Trump supporters, including Trump himself, as well as Jared Kushner, several Republican senators, and representatives from the alt-right platforms Gettr and Project Veritas. (The list is very long.) He attended a CPAC conference and hosted a CPAC meeting in Brazil. During my incursion into Brazilian far-right Telegram groups and channels, I’ve seen many translations of fake news articles from American far-right conspiracy theory websites like Infowars and The Gateway Pundit describing how vaccines are supposedly killing children and how the vegan leftists are trying to normalize cannibalism.

Towels for sale featuring presidential candidates Luiz Inácio Lula da Silva and Jair Bolsonaro, São Paulo, Brazil, September 2022. 2022 Getty Images

Lula’s election comes as a relief to many Brazilians, but in this historically violent and unequal country, a void in the democratic field endures.

New York Review of Books
February 23, 2023 issue

by Vanessa Barbara

A truism for our times: a story doesn’t need to be factual to go viral. In June 2020, not long into the Covid-19 pandemic, an Instagram user shared a video of a mustachioed man wearing floral shorts and a cropped tank top, pouring himself some beer at a crowded bar in Santos, a coastal city in southeastern Brazil. According to the caption, the man was Tedros Adhanom Ghebreyesus, the director-general of the World Health Organization. He had apparently decided to break the quarantine by ditching his shoes and dancing to a forró song called “Já que me ensinou a beber” (Since You Taught Me to Drink).

Of course, it wasn’t the director of the WHO in the video, which was actually recorded before the start of the pandemic. Nonetheless it circulated as evidence of the hypocrisy of international health authorities, and news of it was translated into several languages. Last August I saw an updated version of the video: this time, Ghebreyesus had been “caught enjoying his vacation in Brazil and spreading monkeypox.” So much homophobia and moral outrage in such a short phrase.

Brazilians, like many others around the world, have been exposed to a deluge of fake news and social media hoaxes over the past few years. Again and again we have been pushed toward radicalization, tribalism, and conspiracy. In this light, the results of the presidential election held in October are not surprising: the center-left candidate, Luiz Inácio Lula da Silva, known as Lula, did prevail, but it was an alarmingly tight race against the far-right incumbent, Jair Bolsonaro, who led a catastrophically irresponsible administration. The race went to a runoff, which Lula won with 50.9 percent of the vote. Despite refusing to implement measures scientifically proven to mitigate the spread of the virus, leading to over 695,000 Covid deaths in the past three years, Bolsonaro still enjoys enormous support in much of the country.

Indeed, on January 8 thousands of his supporters marched to the federal government buildings in Brasília. They proceeded—in an echo of the January 6, 2021, attempted coup at the US Capitol, and with the same baseless claims of election fraud—to invade and ransack the National Congress building, the Supreme Federal Court, and the presidential palace. (After an insufficient initial reaction, the police managed to reclaim the three buildings.)

In the October election the far right tightened its grip on both houses of Congress. Bolsonaro’s Liberal Party won ninety-nine seats in the 513-member lower house—an increase of twenty-two—and a coalition of right-leaning parties now controls half the chamber. In the Senate, the Liberal Party won eight of the twenty-seven seats in dispute. Four of the new senators, who will be in office for the next eight years, are Bolsonaro’s former ministers; Hamilton Mourão, his former vice-president and a retired army general, also won a seat. Bolsonaro’s close allies and former high officials have also been elected governors of major states such as São Paulo and Rio de Janeiro. In total he helped to elect fourteen governors of Brazil’s twenty-seven federative units.

These are not ordinary conservatives. They are extremist politicians who seem to celebrate the period of brutal military dictatorship, when, beginning in 1964, the military dissolved Congress, suspended constitutional rights, and imposed extensive censorship; democracy was not restored until 1985. They claim that the great mistake of the military regime was “to torture but not kill,” as Bolsonaro himself declared in 2016.

Many of these right-wing figures are not ashamed to call for a new military intervention in the government. They follow a leader who advocated for the death penalty and sought impunity for police officers who murder alleged lawbreakers. And they still panic, or at least perform panic, over the threat of Communists, who will supposedly confiscate their property, turn their children into homosexuals and drug addicts, and convince all women to stop shaving their armpits. “They want a single bathroom for boys and girls,” a conservative woman in her seventies told me in December when I visited a pro-Bolsonaro campsite in São Paulo. She was one of the thousands of far-right extremists who spent two months after the vote lodged in front of military barracks around the country demanding a coup.

Over the past decade the country’s center-right has steadily collapsed. Bolsonaro’s radical vision has ascended. What remained of other centrist democratic parties gathered around Lula, but even that broad front was nearly defeated. Lula’s return to the presidency is a profound relief. All the same, the election results were shocking.

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Brazil is the largest country in Latin America, with more than 215 million people and the highest GDP in the region. Historically, it has been conservative and majority-Catholic, with a stratified and hierarchical society. Brazil was the last nation in the Americas to abolish slavery, in 1888. Today 60 percent of the population is against the legalization of abortion.

The Portuguese arrived in 1500 and ruled until 1822, when Emperor Pedro I established a Brazilian monarchy. In 1889 the military worked with large landholders to create a republican government. The presidents of the First Republic were backed by the wealthy coffee and dairy oligarchs in fecund states like São Paulo and Minas Gerais, and ruled until 1930, when Brazilians revolted after the assassination of João Pessoa, a vice-presidential candidate in that year’s election. The military swiftly staged a coup and handed power to the populist dictator Getúlio Vargas, who governed until 1945, when he was deposed in another military coup.

Vargas returned in 1951 but in 1954 was again threatened by the military (and discredited after one of his bodyguards attempted to assassinate a political opponent); then he shot himself. The next elected president, Juscelino Kubitschek, built a new capital, Brasília, and ruled until 1961, when the conservative Jânio Quadros was elected under an anticorruption banner. But Quadros resigned after seven months in office. He was succeeded by the left-wing reformist João Goulart, a member of the Brazilian Labor Party who had served as vice-president under both Kubitschek and Quadros.

Goulart was deposed in the 1964 coup. The military dictatorship, backed by the United States, seized power, claiming it would save the country from the (vastly overblown) threat of communism. In the two dark decades that followed, five generals took turns as president. The regime tortured approximately 20,000 people and killed or “disappeared” more than four hundred.

The government at last returned to civilian control in 1985, after a complex redemocratization process during which the old military regime’s main opposition groups consolidated into political parties. They have been succeeding one another in the presidency ever since. In her recent book O ovo da serpente (The Serpent’s Egg, 2022), the Brazilian journalist Consuelo Dieguez offers an excellent synthesis of our recent history, one deeply informed by her interview with the Brazilian economist Eduardo Giannetti. In the late 1980s the first of these opposition groups, the center-right PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), solidified Brazil’s young democracy by organizing and putting into place a new constitution. Ulysses Guimarães and José Sarney were the PMDB’s main leaders.

The second group, the more centrist PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), formed in 1988, managed to stabilize the economy and end inflation. One of its leaders was the sociologist Fernando Henrique Cardoso, who governed the country from 1995 to 2002. The last group, the center-left PT (Partido dos Trabalhadores, or Workers’ Party), led by Lula from 2003 to 2010 and then by Dilma Rousseff from 2011 to 2016, pursued macroeconomic balance and bolder income-distribution policies. Millions of Brazilians were lifted from poverty. Lula’s government implemented a pioneering program of monthly cash allowances to the poor called Bolsa Família, which also contributed to advances in children’s schooling, nutrition, and health care.

This steady progress was marred by corruption scandals and the economic crisis in the 2010s. Brazilians began to feel dissatisfied. In 2013 an estimated one million people took to the streets, demanding everything from free public transportation to the end of endemic corruption. Multiple groups rose up, on the left and the right. In 2016 Rousseff was impeached and removed from office by a largely conservative legislature on vague charges of manipulating the federal budget to conceal evidence of economic shortcomings. It was, in fact, a congressional coup to oust a very unpopular president.

Lula was considered a front-runner in the 2018 presidential election, but he was deemed ineligible to participate after he was arrested on money-laundering and corruption charges. He spent 580 days in prison. In 2021 the Supreme Federal Court nullified the convictions, declaring that the trial was faulty and the judge biased. (Sergio Moro, the crusading young judge who presided over Lula’s trial, later served as Bolsonaro’s minister of justice and public security.)

Bolsonaro, a sixty-three-year-old retired army captain, emerged from the depths of Congress, where he had served in relative obscurity for twenty-seven years, to speak to those nostalgic for the military era. Born in the countryside of São Paulo, he served briefly in the army’s parachute brigade. He was considered a “bad military man” by the former president General Ernesto Geisel. After being imprisoned for insubordination, he left the armed forces and launched a political career in Rio de Janeiro.

Bolsonaro is a self-declared homophobe. He once told a congresswoman that he would never rape her because she didn’t “deserve it.” After his decades in Congress he ran for president with a promise to drag the country back into the past if elected. In 2018—while Lula was still imprisoned—Bolsonaro defeated Fernando Haddad of the PT with 55.1 percent of the vote.

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How did Bolsonaro stage this ascendance? And how has the Brazilian center-right been so totally overrun? In The Chaos Machine: The Inside Story of How Social Media Rewired Our Minds and Our World (2022), the New York Times reporter Max Fisher begins to answer that question. In a chapter on the political situation in Brazil over the past few years, Fisher correctly notes that the political establishment had rejected Bolsonaro for decades because of his fanatical positions, misogyny, and hate speech. “But that attention-grabbing behavior performed well online,” Fisher notes, with social media channels such as WhatsApp, Telegram, and particularly YouTube responsible for the upsurge in Bolsonaro’s popularity. I especially appreciated a comment from Brian Winter, the editor of Americas Quarterly, who visited Bolsonaro’s office before the 2018 election. All eight staffers were “doing social media the entire time I was there,” he said. “There was no legislative work being done.”

Fisher explains how social media platforms are designed to provide users with more and more divisive content, driving them into “self-reinforcing echo chambers of extremism” in order to retain their attention and increase engagement time. A 2019 internal Facebook report on hate and misinformation found “compelling evidence that our core product mechanics, such as virality, recommendations, and optimizing for engagement, are a significant part of why these types of speech flourish on the platform.” Fisher’s book is not specific to Brazil, but the populous, diverse country offers a laboratory for his thesis.

Fisher draws on his field research to argue that YouTube not only created an online fringe community but also radicalized Brazil’s entire conservative movement, displacing traditional right-wing politics almost completely. The results of the October election corroborate this. The PSDB, which once was one of the strongest political forces in the country, is now virtually dead.

I have followed many right-wing groups on social media for The New York Times and piauí, a monthly Brazilian magazine, trying to make sense of these changes. I’ve been submerged in racist, misogynist, anti-Semitic, and violent discussions. (“Nobody in the past hundred years has done more for peace than Adolf Hitler,” I read in a Brazilian chat group with over 4,500 members.) I’ve heard endless refutations of science and epidemiology. Social media has let opinions that long lurked in the ugly political fringes bask in the open.

In this historically violent and unequal country we feel that there is a void in the democratic field, that political rationality has been disappearing before our eyes. This void can be explained by the conversion of a large group of voters to autocratic extremisms with conspiratorial outlooks.

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“I think even fake news is valid, with all due respect,” Bolsonaro said in a radio interview in 2018, months before that year’s election. Three years later, as president of the country, he declared: “Fake news is part of our lives.” And: “The Internet is a success.” He had just been granted a special communication award from his own Ministry of Communications (which kind of sums up our situation).

From the beginning of his presidency Bolsonaro tried to undermine the credibility of Brazil’s media and the Supreme Federal Court, institutions necessary for rational balance in our democracy and capable of constraining his totalitarian impulses. He also worked hard to disparage Brazil’s electronic voting machines—the same ones on which he was elected. In July 2022, for example, he called dozens of foreign diplomats to the presidential palace to discredit the country’s voting system, lecturing from a baseless and bizarre PowerPoint presentation. After he finished there was an embarrassing silence from the audience, followed by timid applause from the president’s cabinet members.

Apparently the main goal of Bolsonaro’s right is to promote a flood of disinformation to keep people disoriented and angry, spreading distrust. A (provisional) list of institutions vilified on Brazilian Telegram by the far right includes the United Nations, UNESCO, the WHO, the Supreme Federal Court, Brazil’s Superior Electoral Court, the Health Regulatory Agency, NASA, the mainstream media, fact-checking organizations, Pope Francis, heliocentrism, stars, dinosaurs (they never existed), pollsters, and padded bras.

On Telegram, a messaging service that supports groups of up to 200,000 members and channels with an unlimited number of subscribers, a kind of moral and epistemological free-for-all has been reigning for years. YouTube videos are often among the most shared posts on the platform. According to Digital Democracy Room, a project run by the Getulio Vargas Foundation, a Brazilian think tank and higher education institution, YouTube videos accounted for eight of the top ten major links shared on Telegram in August. These are often videos from right-wing influencers who spread misinformation about their political enemies to keep their base inflamed.

It took me a while to absorb the terminology used by members of these communities. People who trust vaccines are called aceitacionistas (a neologism to describe people who accept things without questioning). Those of us who received Covid shots are “hybrids” who have been “zombified.” LGBTQ people are “people with inverted poles.” I have browsed through a Telegram dating group exclusive to single heterosexuals “with a 100 percent uncorrupted DNA,” which means those who have gotten no Covid vaccinations and never submitted to PCR tests. The main goal is to “date, marry, and procreate.”

Despite exhaustive efforts from fact-checking agencies and the WHO, these groups continue spreading old falsehoods claiming that Covid vaccines contain microchips, nanoparticles, graphene oxide, quantum dots, and parasites activated by electromagnetic impulses. According to them, vaccines can carry HIV (the virus that causes AIDS), make coins stick to our arms, and give us the ability to connect to Wi-Fi networks or pair with Bluetooth devices. From these groups I have also learned of “vaccine shedding,” which occurs when a vaccinated individual stands near someone “with pure DNA,” sometimes fatally contaminating them. Members still apparently believe in hydroxychloroquine and ivermectin as Covid treatments, while denying effective mitigations like masking and social distancing.

Their rhetoric is so absurd that, after many turns of the screw, it almost becomes a work of art. My favorite channel is the completely insane “Desmagnetizado” (Demagnetized), which has over 11,000 subscribers and headlines such as “Zombified Hybrids Interacting with 5G” and “Explosive Zombified People.” The following is a description of a video that I did not watch: “A male synthetic organism was walking down the street when it came across an evil 5G entity. The biological entity had taken the third dose of the vaccine and its graphene nano-bot system was revved up.”

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Here is an example of a fake headline that caused moral outrage on a Brazilian Telegram channel: “UNICEF Suggests That Pornography May Be Good for Children.” On a YouTube channel, a similar assertion aroused the wrath of its members: “They want to pass a pro-incest law.” (“They” are obviously the Satan-worshiping, pedophilic left.) Made-up stories like these are designed to set off tribal defense instincts among groups that feel they are threatened, creating a climate of “us versus them.”

There are many who share fake news unwittingly, and there are those who exploit this vulnerability. Rodrigo Nunes, a philosophy professor at the Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro, explains that the new Brazilian far right can be seen as an entrepreneurial movement, with politicians carving out a niche market for the high demand of frustrated citizens. In his essay collection Do transe à vertigem (From Trance to Vertigo, 2022), Nunes discusses the resentment among the Brazilian petty bourgeoisie, who feel aggrieved by a “cultural elite” that masters intellectual codes, a “social elite” that has connections, and an “economic elite” that holds the wealth. On the other hand, they also feel the threat of losing their markers of dominance: exclusive access to services such as international travel and paid domestic work. Meanwhile, Nunes writes, sensing new market demands, hundreds of “bankrupt businessmen, decadent rock stars, failed actors, journalists of dubious reputation, sub-celebrity ‘activists,’ struggling traders, mediocre life coaches, police and military officers looking to supplement their income” have found an opportunity for a new career. They began to identify themselves as conservative and patriotic agitators, often entering mainstream politics. Look at Nikolas Ferreira, a twenty-six-year-old evangelical TikTok star who received nearly 1.5 million votes in his run for a seat in Congress.

We are trapped in a vicious cycle: moral outrage and threats to status produce stronger group affiliations, which are then exploited by politicians who profit from this division and further incentivize it. It can be a short climb from here to autocracy. As noted in the 2022 Democracy Report published by the V-Dem Institute, a research group based in Sweden that tracks the state of democracy around the world, “Once political elites and their followers no longer believe that political opponents are legitimate and deserve equal respect, democratic norms and rules can be set aside to ‘save the nation.’”

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The race between Lula and Bolsonaro was, seen from this perspective, a momentous crossroads: Brazil could either keep sliding toward a democratic rupture or reverse course.

The political scientist Oliver Stuenkel, a professor at the School of International Relations at the Getulio Vargas Foundation and a columnist for Americas Quarterly, argues that to sink a democratic system an authoritarian leader in most cases needs to be reelected at least once. This is because, first, the dismantling of institutions usually takes time. Reducing legislative and judicial independence might require, for example, multiple opportunities to nominate ideologically aligned judges. Second, reelection represents both a moral boost for the authoritarian leader and a strong letdown for the opposition and civil society.

Bolsonaro’s own tactics mixed a violent and morally righteous discourse with a generous dash of militarism. In 2019 around a third of his cabinet was made up of retired or active-duty military personnel, with many more in crucial government positions. While in power Bolsonaro helped to dismantle environmental agencies, increasing the rate of deforestation in the Amazon. Each year he was in office, hundreds of indigenous people were murdered. He signed over a dozen decrees loosening restrictions on civilian gun ownership; as a result, the number of privately owned weapons rose to 1.9 million in 2022, up from 695,000 in 2018.

Luckily, we’ll never know what he had in mind for a second term, but his next step at least was clear: to eliminate the opposition from the judiciary. He appointed two hard-right justices to the Supreme Federal Court. Had he won, he would have appointed two more to fill this year’s vacancies. (There are eleven members of the court.) The Supreme Federal Court and the Superior Electoral Court were a strong check on Bolsonaro; in 2022, for instance, they ordered social networks to remove antidemocratic posts spreading disinformation about the electoral system. They also issued an arrest warrant for a right-wing congressman for inciting both a coup and violence against the judges. (Bolsonaro pardoned him the next day.)

Most importantly, the judiciary has been conducting investigations to identify the groups responsible for funding and spreading misinformation and propaganda in the country. The evidence points to an orchestrated scheme that fabricates and broadcasts disinformation on social networks for “ideological, party-political, and financial gains.” This so-called cabinet of hate is allegedly composed of Bolsonaro’s closest allies, his special aides, and members of his family. Carlos Bolsonaro, one of the former president’s sons and a Rio de Janeiro city councilman, has been identified as a central player in the scheme. The former president himself is being investigated for his “direct and relevant role” in spreading disinformation. (They all deny the accusations.)

Now the federal police are working to identify the January 8 rioters and their financial sponsors, and a Supreme Federal Court judge approved a request from prosecutors to include Bolsonaro in the investigation. Around 1,500 people have been detained so far in relation to January 8—two hundred during the attacks on government buildings and others at the pro-Bolsonaro camp in Brasília—on charges of terrorism, criminal association, attacks on the democratic rule of law, coup d’état, persecution, and inciting crime. There’s nothing left of the campsite in São Paulo that I visited in December.

Bolsonaro’s electoral defeat means respite for Brazilians from his endless promotion of conspiracy theories. Lula’s victory was only possible because democratic forces from many points on the political spectrum united to block the country’s descent into the old depths of totalitarianism. This means that Lula will have to share power with a broad-based coalition whose interests are quite varied.

But it also means that there will be no place anymore for antiscientific discourse in the fight against Covid and other illnesses, including polio and tuberculosis; we desperately need to restore the excellent vaccination coverage for childhood diseases that we had in the not-so-distant past. Lula has promised to address the urgency of food deprivation and hunger, which affect 33 million Brazilians (an increase of 57 percent from December 2020). And with Marina Silva as minister of the environment and climate change and Sônia Guajajara in the newly created Ministry of Indigenous People, there is also great hope for the Amazon rainforest. It is perhaps here that Lula’s election matters most to the planet.

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Still, we are at a fragile moment. All the components that enabled Bolsonaro’s rise are still in place. As two Democratic members of the US Congress, Tom Malinowski and Anna Eshoo, wrote in a letter to the CEOs of Google and YouTube, it would take eliminating “the fundamental problem” of algorithms that reinforce users’ existing biases—“especially those rooted in anger, anxiety, and fear”—to curb this toxic polarization.

Facebook, according to internal documents quoted by Fisher, knew by April 2021 that their algorithms “were boosting dangerous misinformation, that they could have stemmed the problem dramatically with the flip of a switch, and that they refused to do so for fear of hurting traffic.” The company’s researchers had found that “serial reshares” were likelier to be false, but the algorithm, measuring them for potential virality, artificially boosted their reach anyway. “Simply turning off this boost,” the researchers found, “would curb Covid-related misinformation by up to 38 percent.” This would be an important step to amend political fracturing in Brazil and elsewhere. After all, despite the results of the last presidential election, extremism on the Brazilian far right has not been defeated.

The day after the election, my four-year-old daughter returned from preschool telling me about a heated bathroom scuffle. A little boy shouted that President-elect Lula was a thief. My daughter and her classmate yelled back at him, “He is not! He is not!” A commotion followed. Luckily, discussions in the preschool bathroom are not intensified by an exploitative algorithm, and before long the children were on speaking terms again.

Lula was inaugurated on the first day of the year, but liberals should not presume that almost half of the population has returned to their senses now that the sensible guy is back in office. It is still up to Brazilians to set their country on a more democratic, less ludicrous course.

—January 26, 2023