#092 – São Paulo, 26 mar. 2024
Timor mortis conturbat me*
Não segure as portas do trem
www.hortifruti.org

“Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes”
(Carlos Drummond de Andrade)

“É como ser açoitado por uma alface quente”
(Paul Keating, primeiro-ministro australiano, referindo-se a um ataque do líder da oposição)


:: EDITORIAL ::

Após o borbulhante sucesso do retorno de A Hortaliça nesta rede mundial de computadores, um evento histórico que poucos analistas souberam interpretar com a devida racionalidade, nossos redatores deixaram que a fama lhes subisse às caixolas e saíram para tirar férias no litoral baiano.

São assim os trabalhadores em regime de CLT: pedem folga após algumas míseras semanas de trabalho, ingerem grandes quantidades de água salobra sem fazer caso de sua saúde, torram a risca do cocoruto com o sol do meio-dia e vão parar no posto médico do aeroporto com sintomas de gastroenterite aguda. Pouco nos surpreenderia se aparecessem novamente grávidos, pleiteando o transplante de um órgão qualquer, apenas para desfrutar das benesses de nosso plano de saúde platinum infinite exquisite premium, que garante a todos os segurados três dias extras de vida em regime de enfermaria sentado. (Cinco dias para quem conseguir ficar de pé.)

Mas não é esse o ponto. A despeito da insolação e de dezoito ou dezenove atestados de licença médica, todos ignorados, estamos de volta com mais uma compilação aleatória de citações esdrúxulas, enigmáticas, tolas ou fora do contexto para abrilhantar a semana das senhoras e senhores.

Aproveitamos para agradecer o apoio dos leitores que se inscreveram voluntariamente para receber esta publicação, tornaram-se assinantes pagos e/ou depositaram doações no pix (vmbarbara@yahoo.com) sem que precisássemos enviar cobradores fantasiados de legume para bater às suas portas. Gostaríamos de destacar aqui o generoso doador que nos depositou R$ 5,97 (o preço de um maço de agrião), com notável desprendimento e sem esperar gratidão. A benevolência de vocês será utilizada para financiar bobices da mais alta qualidade.

A vocês, nosso muitíssimo obrigada e os votos de que nunca tenham de se preocupar com a questão do infinitivo pessoal flexionado, como às vezes nos acontece.


:: PONTE DA LONGEVIDADE ::
Lonely Planet Hong Kong & Macau

Em frente ao santuário, à esquerda, de frente para o mar, há a Ponte da Longevidade; cruzá-la irá supostamente acrescentar três dias à sua vida.


:: UM RESUMO DESTE ALMANAQUE ::
Em nota deixada pela minha mãe


:: POR SOLIDARIEDADE ::
Franz KafkaDiaries

Esta noite, após ter estudado o dia inteiro desde as 6 da manhã, notei que a minha mão esquerda estava há algum tempo agarrando a direita pelos dedos, por solidariedade.


:: POR TÉDIO ::
Franz Kafka, Diaries

Esta noite, por tédio, lavei as mãos três vezes seguidas no banheiro.


:: POR TÉDIO (DE NOVO) ::
David Chipperfield, Turtle Care: How to Care for Pet Turtles Like an Expert

As tartarugas tendem a arrancar as plantas pela raiz, provavelmente por tédio.


:: AMARRAR INCONGRUÊNCIAS E ABSURDOS ::
Mark Twain, “How to Tell a Story

To string incongruities and absurdities together in a wandering and sometimes purposeless way, and seem innocently unaware that they are absurdities, is the basis of the American art, if my position is correct. Another feature is the slurring of the point.

[Amarrar incongruências e absurdos de uma forma errante e às vezes sem propósito, e parecer inocentemente inconsciente de que são absurdos, é a base da arte americana, se minha posição estiver correta. Outra característica é o embaçamento do ponto principal.]


:: A BERINJELA QUE PARECIA NIXON ::

Carl SaganO mundo assombrado pelos demônios

De vez em quando, um legume, uma disposição de sementes silvestres ou o couro de uma vaca parece uma face humana. Houve uma famosa berinjela que se parecia muitíssimo com Richard M. Nixon. O que devemos deduzir desse fato? Intervenção divina ou extraterrestre? Intromissão republicana na genética das berinjelas? Não. Reconhecemos que há muitas berinjelas no mundo e que, de posse de um grande número delas, mais cedo ou mais tarde encontraremos uma que se assemelha a uma face humana, até mesmo a um rosto em particular.

:: NADA COMO A TARDE ::
Paulo Henriques Britto, Macau

Nada como a tarde,    trapos encardidos
enxugando os restos    de uma luz já suja,
recolhendo as manchas    de sol desmaiado
com a complacência    de um apagador.

Nada como a manhã,    com seus dedos de feltro,
flanelas metafóricas    de pura indiferença,
a estender sobre o escuro    a realidade plena
de um dia ainda há pouco    de todo inconcebível.


:: GAFANHOTOS GIGANTES ::
Matéria de Ellen Barry no FSP NYT, 15 de agosto de 2011

Tbilisi, Geórgia – A notícia de que escorpiões tinham sido avistados em sua rua deixou Nana Beniashvili apavorada.

Os gafanhotos gigantes já tinham sido muito ruins. Depois, houve as cobras, que são conhecidas em georgiano como “aquilo que não pode ser mencionado”. Na verdade, ela mesma não tinha visto nenhum escorpião, mas acreditava que uma de suas vizinhas tinha, e, no calor atordoante do verão, ela não estava ocupada em ser detalhista sobre as evidências.

“Isso significa que o apocalipse está chegando”, disse Beniashvili, 72, que estava debruçada em sua janela. “Não posso lhe dizer exatamente quando, pois não sou muito informada sobre isso. Mas é claro que o apocalipse está chegando. O mundo enlouqueceu”.


:: ONDE SE TORNOU OLEIRO ::
Bill BrysonUma breve história da vida doméstica

Durante o censo de 1085, Guilherme, o Conquistador, descobriu que havia um cavaleiro chamado Wulfric que detinha mais de 100 propriedades espalhadas por toda a Inglaterra. Preocupado com o que julgava ser um potencial problema, Guilherme mandou alterar os arquivos, que passaram a registrar Wulfric como um cavalo. O sujeito perdeu a posse de todas suas propriedades e se mudou para a Escandinávia, onde se tornou oleiro.


:: EDITORES E ESCRITORES ::
Joyce Carol OatesA Widow’s Story

Certa vez, ouvi Ray dizer a um amigo que ser editor não era nada parecido com tentar ser escritor: “Ninguém nunca se matou por motivos de ‘editar’”.


:: HUMANOS E DÁLMATAS ::
A. J. JacobsThe Know-It-All: One Man’s Humble Quest to Become the Smartest Person in the World

Dálmatas e seres humanos têm uma urina estranhamente parecida (são os únicos dois mamíferos que produzem ácido úrico). Isso poderia ser útil se um dia eu fumasse maconha, me candidatasse a um emprego estatal e tivesse acesso a dálmatas. Ainda assim, as conexões inesperadas continuam a surpreender.


:: SOBRE A NATUREZA DE DEUS ::
Matthew ParrisScorn

“Uma afeição desmedida por besouros”
(J. B. S. Haldane, quando lhe perguntaram que deduções era possível tirar sobre a natureza de Deus a partir de um de seus estudos.)


:: MINHA FILHA ::
Provando que o punk rock não morreu

:: PARA SEU CONHECIMENTO ::
Scott StosselMy Age of Anxiety

Um pregador franciscano na Alemanha estimou as probabilidades a favor da condenação de qualquer alma em 100 mil para um.


:: O PREPARADOR, ESSE DESCONHECIDO ::
Mary NorrisBetween You & Me: Confessions of a Comma Queen
(Dedicado à Luiza Barbara)

Eleanor Gould foi uma lendária gramática e checadora da New Yorker. Ela era um gênio certificado — membro não apenas da Mensa, mas de algum supergrupo dentro da Mensa — e o sr. Shawn [William Shawn, editor da revista] tinha total confiança nela. Gould lia tudo nas provas — quer dizer, tudo menos ficção, seção da qual havia sido afastada anos antes, pelo que entendi, porque tratava todo mundo da mesma forma, fosse Marcel Proust ou Annie Proulx, Nabokov ou Malcolm Gladwell.

Clareza era a estrela-guia de Eleanor, sua bíblia o Modern English de Fowler, e, quando ela concluía uma prova, as linhas de lápis pareciam dreadlocks. Alguns dos artigos tinham noventa colunas e o sr. Shawn respondia a todos os questionamentos. Meu questionamento favorito de Eleanor Gould foi sobre presentes de Natal para crianças: a autora repetiu o velho ditado de que toda boneca de pano Raggedy Ann tinha “eu te amo” inscrito em seu pequeno coração de madeira, e Eleanor escreveu à margem que isso não era verdade, e ela sabia porque, quando pequena, havia feito uma cirurgia de coração aberto em sua boneca de pano e viu com os próprios olhos que nada estava escrito no coração.


:: MAIS DA RAINHA DAS VÍRGULAS ::
Mary Norris, Between You & Me

Certa vez, perguntei a Eleanor Gould qual era o plural possessivo de McDonald’s, e ela muito sensatamente me pediu para deixar para lá. “Você tem que parar em algum lugar”, ela disse. Nós paramos em McDonald’ses’.


:: ALTAMENTE REATIVOS ::

Robert SapolskyWhy Zebras Don’t Get Ulcers

[…] o que ele chama de “altamente reativos”. Assim como aqueles babuínos que consideram o cochilo de um rival uma ameaça alarmante, esses macacos enxergam desafios em todos os lugares. Mas, no caso deles, a resposta à ameaça percebida é uma timidez encolhedora. Coloque-os em um ambiente novo que outros macacos rhesus consideram um lugar estimulante e eles reagirão com medo, despejando glicocorticóides. Coloque-os com novos colegas e eles congelarão de ansiedade – tímidos e retraídos, e novamente liberando grandes quantidades de glicocorticóides. Separe-os de um ente querido e eles terão uma propensão atípica a entrar em depressão, com excesso de glicocorticóides, superativação do sistema nervoso simpático e imunossupressão. Esses parecem ser estilos de lidar com o mundo que duram a vida toda, começando na infância.


:: A INSOLAÇÃO ::
Richard Gordon, A assustadora história da medicina

Sir Victor Horsley afirmava com determinada convicção que a insolação era causada pelos elegantes goles de bebida, e não sair para o sol sem seu capacete de cortiça. Ele provou isso na Mesopotâmia, saindo com a cabeça descoberta, e logo depois morreu de insolação.


:: APANHADAS NO CHÃO ::

Paulo Mendes Campos, Hora do recreio

De Juscelino Kubitschek, achando muito seco o discurso que lhe escrevera um assessor: “Espalhe umas borboletas aí entre os parágrafos.”


:: POR DIABOS ::
Matthew ParrisScorn

Quando eu flexiono um infinitivo, por diabos, eu o flexiono para que continue flexionado.
(Raymond Chandler em carta para seu editor inglês)


:: DICA CULTURAL ::

Assistir Perfect Days (Wim Wenders, 2023) e emendar com uma visita aos banheiros da Japan House, em São Paulo, para experimentar uma privada tecnológica japonesa em toda a sua glória.

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*A ideia da morte me deixa morto de medo, em latim.
Agradecimentos: Marcos Barbará e Richard Nixon.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)  ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.

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