Ueslei Marcelino/Reuters

E não é o Jair Bolsonaro

The New York Times
6 de março de 2023

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

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SÃO PAULO, Brasil — Parece ficção científica. Em 93 páginas, o texto descreve um futuro bem esquisito. Em 2027, há uma nova pandemia causada pelo “Xvírus.” Um ano depois, os Estados Unidos entram em guerra contra a China e a Rússia pela posse de depósitos de bauxita na Guiana. Por volta de 2035, os brasileiros confessam abertamente seu conservadorismo inato e abraçam um futuro onde a palavra “indígena” quase não existe.

No entanto, essas previsões não pertencem a uma obra de ficção. Pelo contrário: elas constam de um estranho plano de ação publicado no ano passado por um grupo de institutos liderados por militares da reserva brasileira. Intitulado “Projeto de Nação: O Brasil em 2035”, o relatório propõe uma grande estratégia nacional em áreas como geopolítica, ciência, tecnologia, educação e saúde. Junto com outras profecias mais excêntricas, ele prevê o fim da gratuidade do Sistema Único de Saúde e das universidades públicas, e pede a remoção de restrições da legislação ambiental.

Dá vontade de rir, mas não se trata de uma questão periférica. A cerimônia de lançamento do relatório, no ano passado, contou com a presença do vice-presidente da República e do secretário-geral do Ministério da Defesa. Afinal, estamos no Brasil, onde os militares há muito tempo se intrometem no governo — e chegaram a comandar o país em uma ditadura de 1964 a 1985.

Nas décadas seguintes, eles retornaram aos quartéis, mas seu afastamento sempre foi condicional. A gestão de Jair Bolsonaro, um capitão da reserva, trouxe os fardados de volta ao núcleo do governo. Ele pode ter até deixado o cargo (e com certa relutância), mas os militares brasileiros — privilegiados, preponderantes e inimputáveis — continuam sendo uma ameaça constante à democracia do país.

Na raiz do poder dos militares está a amnésia. Durante a ditadura, o regime matou centenas e torturou 20 mil pessoas. E ainda assim, em 1979, aprovou uma lei de anistia para quem cometeu crimes de motivação política nas duas décadas anteriores, o que incluía não só os ativistas exilados como também os agentes públicos militares e civis acusados de assassinato, tortura e abuso sexual. A lei foi corroborada em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal. Quatro anos depois, a Comissão Nacional da Verdade identificou 377 agentes públicos responsáveis por abusos contra os direitos humanos durante a ditadura, mas pouco foi feito. Nenhum militar chegou a ser punido por seus crimes.

É por isso que os brasileiros não conseguem assistir ao filme “Argentina, 1985” sem gritar de vergonha. O longa-metragem, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e indicado para o Oscar 2023, retrata o esforço para levar aos tribunais os integrantes das juntas militares que governaram a Argentina de 1976 a 1983. O julgamento, que ocorreu em 1985, ajudou a moldar o debate público sobre o que aconteceu nesses anos brutais — e mandou alguns generais para a cadeia. Até hoje, mais de mil pessoas foram condenadas por crimes contra a humanidade em nosso país vizinho.

Nada parecido chegou a ocorrer no Brasil. Aqui, em 2023, ainda há muita gente que enaltece o nosso passado militar. Como uma apoiadora de Bolsonaro me disse recentemente, o regime “não massacrou pessoas comuns”. Eu não ousaria dizer isso à família de Maurina Borges da Silveira, uma freira católica que foi torturada por cinco meses em 1969, ou de Gino Ayres Ghilardini, uma criança de 8 anos que foi torturada em 1973, ou de Esmeraldina Carvalho Cunha, uma dona de casa que foi morta em 1972 depois de culpar acertadamente os militares pelo assassinato de sua filha.

No Brasil, os apoiadores da ditadura acenam para os crimes do “outro lado” — os guerrilheiros de esquerda que se opunham ao regime — como se suas ações estivessem no mesmo patamar do que as atrocidades cometidas pelas forças do próprio Estado. Mas é impossível defender agentes públicos que torturaram mulheres grávidas e prenderam crianças pequenas, chamando-as de “terroristas” e “ameaças à segurança nacional.”

Os militares brasileiros nunca se desculparam por seus crimes. Pelo contrário, eles ainda comemoram o que chamam de “revolução de 1964”. Durante o governo Bolsonaro, celebraram o dia 31 de março — data do golpe que levou os militares ao poder — todos os anos. A troca de regime, de acordo com um ex-ministro da Defesa, foi “um marco histórico da evolução política brasileira.”

Mas o problema vem de muito antes, da própria fundação do país. A República, afinal, foi proclamada após um golpe militar em 1889. “Os militares,” como disse uma vez o eminente advogado brasileiro Heráclito Sobral Pinto, “nunca aceitaram não ser os donos da República.” Nos 130 anos que se seguiram, eles pairaram sobre o Brasil — nas palavras do cientista político Adam Przeworski, referindo-se a democracias sufocadas por arrogantes militares — “como sombras ameaçadoras, prontas a cair sobre qualquer um que vá longe demais na ameaça a seus valores ou seus interesses.”

E esses interesses são consideráveis. Mesmo sem nenhuma guerra à vista, o Brasil tem o 15o maior exército permanente no mundo, com 351 mil militares ativos, 167 mil inativos e 233,4 mil pensionistas, de acordo com o Portal da Transparência. Em termos de folha de pagamento, o governo federal gasta mais com defesa do que com educação – e quase cinco vezes mais do que gasta com saúde. (A propósito, o país tem um gigantesco sistema de saúde pública.) A previsão de orçamento do Ministério da Defesa para este ano é de 23 bilhões de dólares, 77 por cento dos quais são destinados a despesas com pessoal.

Os militares desfrutam de inúmeros privilégios, tendo seus próprios sistemas de educação, moradia, saúde e até justiça criminal. De forma bastante reveladora, eles foram retirados da nossa recente reforma previdenciária. Sorte a deles: em 2019, a remuneração média de um militar na reserva era mais de seis vezes a de um aposentado do INSS.

E não são só os membros das Forças Armadas que se beneficiam de tamanha generosidade, mas também suas famílias. Por exemplo, as 137.900 filhas solteiras de militares que irão receber a pensão dos pais para o resto da vida — a lista inclui as duas filhas do falecido coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi acusado de torturar centenas de pessoas e se aposentou com os vencimentos de um marechal.

Depois que Bolsonaro se tornou presidente em 2019, os militares inundaram a administração civil. Em 2020, 6.157 militares — metade deles na ativa — trabalhavam para o governo federal, mais do que o dobro do número de 2018. A certa altura, 11 dos 26 ministros da gestão Bolsonaro eram militares da ativa ou da reserva, incluindo o ministro da Saúde durante boa parte da pandemia, o general Eduardo Pazuello, que ainda está para ser responsabilizado por seus crimes.

Pouco a pouco, o novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, está tentando retirar os funcionários militares do governo — sobretudo após a insurreição de 8 de janeiro, na qual os fardados tiveram um papel nebuloso. Se não participaram dos ataques, decerto não fizeram muito para evitá-los. Em janeiro, Lula demitiu o comandante do Exército, que supostamente protegeu os vândalos pró-Bolsonaro em um acampamento em Brasília na noite dos ataques. De forma encorajadora, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os militares envolvidos nos ataques serão julgados por um tribunal civil.

É um começo, mas ainda há muito a fazer antes de ficarmos livres da sombra dos militares. Só então finalmente poderemos relegar seus planos para o reino da fantasia, que é o lugar a que pertencem.


A version of this article appears in print on March 9, 2023, Section A, Page 26 of the New York edition with the headline: Bolsonaro May Be Gone, but Brazil Is Still Under Threat. Tradução da autora.