Ayumi Tanaka

The New York Times
1 de janeiro de 2024

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

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Eu estava amamentando uma bebê de 4 meses quando Jair Bolsonaro venceu a eleição presidencial no Brasil em 2018. Era um desastre, e eu já sabia. Minha filha — vamos chamá-la de Batata — continuou sugando enquanto eu derramava lágrimas sobre sua cabeça. Então eu a vesti com um macacão de arco-íris para indicar meu desgosto com nosso futuro presidente, que declarou uma vez que era “homofóbico, sim, com muito orgulho.”

Não havia muito mais que eu pudesse fazer em meu estado de exaustão e desespero. Mas então, em uma dessas noites solitárias de amamentação, comecei a contar para a Batata histórias aleatórias, apenas para me sentir menos sozinha e desviar meus pensamentos tristes. Mal sabia que esse simples ato de fabulação nos ajudaria a atravessar uma tresloucada presidência de extrema direita e uma pandemia devastadora. Nos períodos mais difíceis, era uma tábua de salvação.

Lembro da história que deu início a tudo: foi a lenda de Damão e Pítias, que eu havia lido em algum lugar e queria passar adiante. De acordo com o mito, eles eram grandes amigos que viajaram até Siracusa, onde Pítias fez algo desagradável para o rei Dionísio e foi condenado à morte. Pítias queria se despedir da família, então Damão se ofereceu como refém enquanto o amigo resolvia seus assuntos. O rei concordou. Ninguém esperava que Pítias voltasse, mas ele o fez. Dionísio ficou tão comovido pela demonstração de amizade que revogou a sentença.

Quando eu revelei o final da história, juro que minha bebê parou de mamar por um segundo, seus grandes olhos castanhos me encarando de forma interrogativa. Depois disso, decidi contar a ela qualquer anedota que me vinha à mente e parecia remotamente apropriada ao público infantil. Isso me ajudou muito durante as trocas noturnas de fralda, sobretudo quando eu também precisava trocar a roupa de cama encharcada da Batata enquanto distraía uma bebê indignada e com frio.

Ela prestava atenção — primeiro para a minha entonação e depois para a narrativa, assim que começou a entender nossa linguagem. Contei-lhe histórias do dia em que escorreguei de um barco, o dia em que meu ônibus pifou, o dia em que confundi maçãs com tomates, o dia em que dois baldes saíram voando pela nossa janela, qualquer coisa. Ela amava a história de um amigo que foi picado por uma abelha e continuou a jogar uma partida recreativa de vôlei com o pé inchado; era gráfica, era heroica, era divertida.

Pouco mais de um ano depois, quando a Batata era uma criança pequena aprendendo a andar e falar, a Covid-19 chegou ao país. Àquela altura, eu estava contando a ela histórias sobre o meio ambiente, populações indígenas, a floresta amazônica e as crescentes taxas de desmatamento sob a gestão de Bolsonaro. Então passamos a conversar sobre patógenos, máscaras, vacinas e negacionistas da ciência — como o líder do nosso país, que aspirava pela imunidade de rebanho e trabalhou contra as vacinas.

Compartilhar histórias era a nossa forma de suportar os longos dias e noites de isolamento social. Ela demonstrou um interesse especial pelo enredo de um romance de Ivan Goncharov, o escritor russo do século XIX, que encontrou na minha mesa de cabeceira. O protagonista, Ilya Ilyich Oblomov, recusava-se a sair do quarto; levou dezenas de páginas para passar da cama a uma cadeira. (Ele respeitou a quarentena antes de virar moda.)

À medida que desenvolvia suas habilidades linguísticas, Batata começou a fazer perguntas difíceis — sobre por que os ricos podiam continuar a drenar nossos recursos naturais e por que Bolsonaro ainda não tinha sido preso. Eu tentava transmitir uma mensagem esperançosa do futuro, mas às vezes meu desalento era difícil de esconder. Por outro lado, aprendi que contar histórias era uma forma de pensar em voz alta e acalmar minhas ansiedades. Isso era bom para nós duas: eu ganhava uma pausa terapêutica das minhas neuroses e ela ganhava uma história.

Já que a Batata não tinha muitas histórias próprias verdadeiras para compartilhar e o mundo lá fora estava uma bagunça, nós costumávamos recorrer à ficção. Ela me pedia o tempo todo que eu contasse “uma coisa errada” (história fictícia) que fosse “bem comprida e difícil de entender” (envolvendo múltiplos personagens e reviravoltas). Às vezes me interrompia para dizer: “Não, outra! Uma história sem pessoas.”

Ela intervinha em tudo: no enredo, no gênero, nos diálogos, nos personagens. Exigia determinados adereços e cenários. “Agora eu quero uma história triste com o Chico Bento,” ela pediu um dia, referindo-se a um personagem de uma história em quadrinhos brasileira. “E ele canta!” Entre os membros recorrentes do elenco de suas histórias, incluem-se Greta Thunberg, Oblomov, as irmãs Bingo e Bluey (da série australiana “Bluey”), Mario e Luigi (da franquia “Super Mario”) e Luna (da série brasileira “O Show da Luna!”).

Em fins de 2022, Bolsonaro foi destituído eleitoralmente do cargo, tendo sido derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva. Contei para a minha filha sobre a prisão de Lula, sua soltura, a anulação da sentença e seu retorno como presidente. Isso, sim, era uma história. Contei sobre a cadela de Lula, uma vira-lata preta chamada Resistência que morava na rua em frente à carceragem de Lula e foi parar no palácio presidencial. A Batata adorou essa parte.

No ano que passou, com Bolsonaro e a Covid-19 longe de nossas vidas — quer dizer, mais ou menos — pudemos enfim nos concentrar em viver novas histórias, em vez de simplesmente contá-las. A depressão, minha fiel vira-lata preta, ainda me segue por toda parte, mas encontrei mais formas de mantê-la a certa distância. Uma boa noite de sono é um ótimo começo. As coisas parecem mais leves.

Hoje a Batata é uma criança de 5 anos que sabe ler, escrever e arquitetar uma narrativa envolvente. Tempos atrás, estávamos voltando da escola quando ela decidiu encenar uma história dentro do ônibus lotado. (Eu pedi que ela falasse mais baixo, sem grande sucesso.) A certa altura, estávamos todos em “uma caverna bem funda com um gigante, uma galinha e um sorvete enorme.” A moça ao nosso lado não conseguia parar de rir, sobretudo quando veio a reviravolta. Descemos no penúltimo ponto, então a maioria dos passageiros infelizmente ficou sem saber o final.

Nossa contação de histórias se desenvolveu em conjunto, uma encorajando a outra. Ano passado, rascunhei um romance sobre depressão, maternidade, mitologia grega e escrita criativa. A Batata escreveu e ilustrou cinco livros antes de se entediar: “Coisas que gosto,” “Coisas que não gosto,” “Vestido comprido,” “O Livro maluco do parabéns” e “O abacaxi cantor.” A vida está mais plena para nós duas: ela está aprendendo a nadar e eu tenho jogado vôlei de praia, arriscando uma picada de abelha ocasional.

Ela tem me ensinado como terminar uma narrativa complexa quando você está desesperado e sem nenhuma ideia de como seguir adiante: ela simplesmente aparece, voando, como artifício de resolução de enredo. Isso se chama Potato ex machina. Funciona sempre.