Bipolaridade e gracinhas

Posted: 13th fevereiro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S. Paulo – Ilustrada
13 de fevereiro de 2012

por Vanessa Barbara

Nunca entendi a implicância do “Puxa Cachorra!” com o “Jornal Hoje”. O “Puxa!” é um blog de humor (puxacachorra.blogspot.com) com ênfase em tolices do mundo da música, artes e televisão. O nome é uma homenagem ao tio de alguém que, em reuniões de família, quando o assunto começava a ficar constrangedor, virava para a pessoa ao lado e dizia: “Está na hora de puxar a cachorra”.

Nunca entendi até que, na segunda-feira, prontifiquei-me a assistir uma edição do noticiário (Globo, seg. a sáb às 13h20). Por pouco não puxei as minhas tartarugas.

O telejornal começa com a tradicional “escalada” de notícias: “Aulas canceladas, estradas interditadas. Mais de trezentas pessoas já morreram em consequência do frio na Europa”, diz o âncora Evaristo Costa. A câmera passa para Sandra Annenberg: “Já aqui no Brasil, é verão e tempo de sorvete – e que tal um frozen yogurt?”

Sim, eu bem queria estar inventando. Ao que tudo indica, o “Jornal Hoje” é uma atração com transtorno bipolar. “Agora está todo mundo triste”, estranhou minha mãe, na matéria seguinte.

Os clichês se sucedem: por que uma notícia sobre as mudanças no Imposto de Renda tem de ser anunciada por uma repórter de campo, em frente ao Ministério da Fazenda? Por que todas as pautas sérias precisam ser “equilibradas” com futilidades? Faz sentido passar uma receita durante um telejornal?

A avalanche de gracinhas chega a ofender. Não precisava começar a matéria sobre a onda de frio europeia com a frase: “O branco é a cor de toda a Europa”. Mesmo: não precisava.

Dizem que o JH é assim por ser exibido na hora do almoço, quando há menos gente propensa a absorver notícias indigestas. Por isso, em meio às mortes na Europa, o locutor acha de bom-tom falar sobre a preocupação com os bichos do zoológico, “menos com aqueles poucos que gostam do frio” – seguem imagens de uma lontra e um urso polar.

Nem bem se recuperou da síncope depressiva na qual havia mergulhado segundos antes, Sandra dá um suspiro e diz: “Vamos refrescar um pouco esse clima?”. Ambos riem, felizes. “Sorvete nesse calor é tudo de bom!”

No jornal, a receita do acepipe ganhou um tempo total de 2 minutos, enquanto as notícias internacionais apareceram em flashes no quadro “O mundo em um minuto”.

E como termina a matéria sobre o frozen yogurt? “É sabor e saúde para aproveitar ainda mais o verão.”

Folha de S. Paulo – Ilustrada
6 de fevereiro de 2012

por Vanessa Barbara

Pode não parecer, mas o Código Brasileiro de Trânsito determina que os pedestres têm preferência, já que são o elo mais fraco do sistema – em comparação a carros, motos, caminhões. A imprensa também devia seguir uma lógica parecida: quando se tem um megaespeculador de um lado e 6 mil sem-teto de outro, a prioridade de entrevista seria dos últimos, que não têm tanto poder para se fazer ouvir.

Mas não é o que está havendo na cobertura televisiva da desocupação do Pinheirinho, uma área em São José dos Campos habitada há oito anos por 1.600 famílias. O terreno pertence à massa falida do grupo Selecta, do empresário Naji Nahas. É avaliado em R$ 180 milhões e foi objeto de desavenças em diferentes esferas do Judiciário, até que, há duas semanas, a Justiça estadual decretou a reintegração de posse.

No dia 22, o “Fantástico” dedicou pouco mais de dois minutos à cobertura. Abriu a reportagem com cenas dos policiais escancarando um portão e adentrando o terreno. Voz em off: “Seis e meia da manhã, a tropa de choque invade o Pinheirinho”. Deu para imaginar os policiais combinando com a Globo, um-dois-três-e-já.

A ação contou com um efetivo de 2 mil homens, dois helicópteros, 220 viaturas, 40 cães e 100 cavalos. “A situação ficou fora de controle”, explicou a locutora, e a cena era de um sujeito jogando uma pedra contra os policiais.

“Os moradores atearam fogo a prédios públicos e oito carros, entre eles o da TV Vanguarda, afiliada da Rede Globo.”

Aparece a repórter, com um colete à prova de balas: “Segundo policiais que entraram aqui nessa área, esses barracos todos estão abandonados porque eles serviam para o tráfico de drogas. Aqui era uma espécie de cracolândia, onde se vendia e consumia droga”.

Outra coisa que ficamos sabendo pelo “Show da Vida”: em protesto, os sem-teto bloquearam por meia hora uma das pistas da Via Dutra. Um homem foi atingido por um tiro de arma de fogo durante a operação, mas a polícia diz que só usou balas de borracha. Fim da reportagem.

Nada foi dito sobre a presença de tanques de guerra e de soldados da cavalaria com suas espadas. Nada foi dito sobre o uso de força contra idosos e crianças e nem sobre o destino dos desalojados. Alguns receberam da prefeitura de São José dos Campos passagens rodoviárias para seus “estados de origem”.

Só que muitos são paulistas.

Não, não e não

Posted: 1st fevereiro 2012 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
1 de fevereiro de 2012

por Vanessa Barbara

Um dos maiores críticos literários do século, Edmund Wilson nunca primou pela delicadeza. Não hesitava em criticar duramente seus próprios amigos, entre eles Vladimir Nabokov, autor de uma controversa tradução de Eugene Oneguin, de Pushkin. Wilson acusou Nabokov por “erros graves de inglês”, “um estilo desnecessariamente canhestro”, “uma linguagem pobre e deselegante”, expressões vulgares, imodéstia, transliteração imprecisa, falta de bom senso, um apêndice tedioso e interminável, um entendimento pobre de prosódia russa e falhas sérias de interpretação.

No campo do mau humor, porém, sua obra mais conhecida é um bilhete intitulado “Edmund Wilson lamenta”, enviado como resposta a pedidos de participação em palestras, festivais, entrevistas.

Diz o bilhete:

“Edmund Wilson lamenta, mas para ele é impossível:

– Ler originais,
– Escrever artigos ou livros sob encomenda,
– Escrever prefácios ou introduções,
– Dar declarações para fins publicitários,
– Desempenhar qualquer tipo de trabalho editorial,
– Ser juiz de concursos literários,
– Dar entrevistas,
– Ministrar cursos,
– Organizar conferências,
– Dar palestras ou fazer discursos,
– Aparecer na TV,
– Participar de congressos literários,
– Responder questionários,
– Tomar parte em simpósios ou “mesas” de qualquer espécie,
– Doar manuscritos para leilão,
– Doar cópias de seus livros para bibliotecas,
– Autografar livros para estranhos,
– Permitir que seu nome seja usado em cabeçalhos,
– Fornecer informações pessoais a seu respeito,
– Dar opiniões sobre literatura ou outros assuntos.

(Também não aceito convites para fazer leituras públicas, a menos que me ofereçam um bom dinheiro. E.W.)”

À parte a ranhetice e a antipatia, é preciso aplaudir o sr. Wilson. Se fosse contemporâneo, passaria a maior parte do tempo perdido em turnês de divulgação, participando de festivais literários, integrando mesas de debate sobre blogs e literatura, sendo afável em bares, respondendo se dá pra viver de quadrinhos no Brasil, filmando participações em programas de TV e dando entrevistas para estudantes que lhe perguntariam em que ano nasceu. Não teria tempo de escrever, pois gastaria toda a energia em falar sobre o assunto.

Há escritores que gostam de dar aulas e proferir palestras. Outros gostam de viajar para participar de festivais e conhecer colegas de profissão. Alguns acabam até mudando de ofício, ou conciliando a escrita com outras atividades mais sociáveis. Fato é que não dá pra dizer “sim” a tudo o que aparece, sob pena de virarmos pés de tomate e não conseguirmos tempo para escrever.

Já recebi convites para participar do programa do Ronnie Von e de congressos no Amapá. Já me sondaram para apresentar um programa na MTV e virar repórter de um jornal diário. Me pediram para traduzir um livro técnico e participar de bancas examinadoras de graduação. Por mais que a gente queira ajudar, é impossível agradar a todos — de modo que acabo aceitando só o que eu consigo fazer. E o que não me dói em demasia.

Meu bilhete de recusa personalizado atualmente está neste pé:

“Vanessa lamenta, mas para ela é impossível:

– Atender o telefone,
– Participar de congressos,
– Aparecer na tevê,
– Ministrar cursos,
– Tirar fotos fingindo ler ou conversar,
– Comparecer a congraçamentos sociais com mais de sete pessoas,
– Fazer parte de bancas examinadoras,
– Escrever livros sob encomenda,
– Ser afável indiscriminadamente,
– Trabalhar de graça quando o contratante pode pagar,
– Responder questionários com mais de seis itens,
– Responder questionários “pra amanhã”,
– Analisar originais,
– Discursar em jantares (o jantar em si é bem aceito).

(Consulte-nos sobre a disponibilidade de escalar uma atriz contratada para atuar em meu lugar, se necessário. V.B.)”


Vanessa Barbara tem 29 anos, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Congestão espontânea

Posted: 30th janeiro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
30 de janeiro de 2012

por Vanessa Barbara

No último dia 15, o colega Fabrício Corsaletti lançou uma campanha na revista sãopaulo contra a praga das televisões ligadas em bares, lanchonetes e restaurantes. Dizia o poeta que a prática se justifica em dias de jogo (vá lá) ou efemérides extraordinárias, mas que não faz sentido comer um beirute diante de uma reprise do “Vídeo Show” ou de um programa vespertino de fofocas, quando só o que se quer é prestar atenção no interlocutor ou nas copiosas fatias de rosbife no prato.

Faço coro à causa de Fabrício. Já dizia um best-seller da literatura que “tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu”. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de ver televisão e tempo de contar longas histórias sem clímax.

Via de regra, a prática de assistir TV devia limitar-se à intimidade do lar e ao aconchego do sofá. Fazê-lo durante uma conversa entre amigos devia ser punido como falar ao celular dirigindo, e é tão deselegante quanto responder mensagens SMS no meio de um casamento. Sendo um dos noivos.

Uma das piores consequências da TV ligada em congraçamentos sociais de fundo gastronômico é quando a gente conta uma história engraçada e a pessoa cai na gargalhada, batendo a mão na mesa e babando, e a gente se sente um Groucho Marx redivivo. Isso até perceber que o sujeito em questão não ouviu nada – estava prestando atenção na TV atrás de você.

Dessa prática decorre todo tipo de reações despropositadas, exageradas, distraídas ou simplesmente alheias ao que se passa ao redor.

Nada mais triste do que perder para o “Globo Repórter” ou ser trocada por um episódio de “Family Guy” – sobretudo aquele em que o cachorro pede o divórcio.

É por isso que rogamos: desliguem as TVs dos bares, lanchonetes, restaurantes; acabem com as TVs dos ônibus e do metrô. Vamos silenciar os locais públicos e ouvir melhor o que nos dizem. Ter a atenção dividida não é bom pra ninguém – nem para o Carlos Nascimento, que está ali tentando comunicar uma notícia de escopo interplanetário, e nem para o Paulão, chapeiro da padaria que acaba de perguntar se você quer o seu lanche com ou sem maionese.

Fora que, dependendo da programação, o comensal pode até sofrer uma grave congestão.

Dez anos de conduta absurda

Posted: 29th janeiro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
29 de janeiro de 2012

por Vanessa Barbara

Em 22 de janeiro de 2002, tomada por um tédio sem precedentes, resolvi reunir todas as anotações coletadas em meus 19 anos de vida e criar uma audaciosa compilação de tolices. Cursava a faculdade de jornalismo e vivia no Mandaqui, Zona Norte de São Paulo, uma localidade digna de boas movimentações anedóticas. Mantinha um caderno espiral onde registrava tudo o que me parecia digno de nota. Foi como nasceu A Hortaliça, um almanaque eletrônico de humor com ênfase em legumes, recheado de trechos de obras literárias, fotos pitorescas e afirmações alheias tiradas do contexto. (Disponível em www.hortifruti.org.)

Há exatos dez anos, na madrugada do dia 23, às 3h15 da manhã, a primeira Hortaliça foi enviada por e-mail a uma população de aproximadamente vinte vítimas. Era uma época pré-blogs e pré-Facebook, de modo que compilar insignificâncias era uma relativa novidade. Entre os assinantes primordiais estava a também mandaquiense Stephanie Avari, que cunhou um de nossos 364 slogans: “Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido”.

De lá pra cá, foram enviadas eletronicamente 87 caudalosas edições aos nossos atuais 703 assinantes – a octogésima oitava sai amanhã, se não chover – e muitas madrugadas perdidas na organização e catalogação das besteiras que nos mandavam. Foi por causa d’A Hortaliça que fui chamada para trabalhar como preparadora de texto na Companhia das Letras e, mais adiante, como repórter na revista piauí e colunista na Folha, em nada servindo para tais propósitos minha douta formação universitária, a fluência em quatro idiomas (além de Código Morse) e nem aquele curso de sobrevivência na selva que fiz em 1998.

Nosso maior diferencial é a periodicidade: sempre que dá, ou um pouco depois disso. Não há como prever a chegada de uma edição, assim como não dá para desejar que ela vá logo embora – A Hortaliça respeita um tempo próprio regido pelos ventos, pelas chuvas e pela colheita do algodão. Somos também conhecidos pela utilização aleatória do plural majestático e pelo péssimo hábito de tirar as declarações do contexto, como esta frase do crítico de arte Rodrigo Naves, catalogada sob a alcunha “Heróis da abolição” e proferida numa aula de história da arte: “O sujeito que dá autonomia ao pastel é o Degas”.

Outras boas citações nestes dez anos de Hortaliça:

“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.” (Guimarães Rosa, A Hortaliça #001)

“A vida é apenas uma tigela de cerejas” (letra de canção popular americana, #004)

“Se você não sabe aonde está indo, qualquer lugar servirá” (Lewis Carroll, #018)

“Se teu olho te irrita, arranca-o!” (Lutero, #020)

“Todo fazedor de jornais deve tributo ao Maligno” (La Fountaine, #042)

“Meu Deus! Por que lhe terão crescido tanto as orelhas?” (Tolstói, #049)

“Que cara engraçada! Seria uma mulher ou uma alcachofra?” (Fellini, A estrada, #054)

“Os tolos vão correndo por caminhos que os anjos temem trilhar” (Alexander Pope, #055)

“Tudo escorre” (Lucrécio, #061)

“Como consegue dormir de bruços com esses botões tão grandes?” (Groucho Marx, #063)

“Pode-se perdoar a um homem a realização de uma coisa útil, contanto que ele não a admire. A única desculpa para se fazer uma coisa inútil é admirá-la imensamente.” (Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, #066)

“Oito dias com febre! Poderia ter escrito mais um livro” (Balzac, #068)

“Cangaceiro Zeferino: ‘Céus! Que burrice extraordinária!’ Graúna: ‘Agora preciso cuidar para que a consagração não me suba à cabeça!’” (Henfil, #071)

“Ai! Por que estas coisas, e não outras?” (Beaumarchais, #077)

“Todos os pensamentos de uma tartaruga são tartaruga.” (Ralph Waldo Emerson, #081)

“É arremessado pelas ondas, mas não afunda” (#087)

Folha de S. Paulo – Ilustrada
28 de janeiro de 2012

por Vanessa Barbara

“O legume mais modesto contém em si a aventura do mundo”, diz o filósofo Michel Onfray no prefácio de A Fabulosa História dos Legumes. Nele, a escritora francesa Évelyne Bloch-Dano traça uma biografia histórica, literária e sentimental dos vegetais, detendo-se em dez deles.

O livro partiu de aulas ministradas na Universidade Popular do Gosto, em Argentan, na França, onde ela pôde dar a palavra a uma alcachofra, conferir voz a um tomate e dotar de verbo o tupinambor (tubérculo similar à batata).

A importância do tema é óbvia. Diz ela que “os legumes estão na aurora da humanidade, constituem o grau elementar da organização social, a passagem do cru ao cozido, da natureza à cultura: os seres humanos domesticaram os legumes como domesticaram os animais”.

Um dos capítulos mais comoventes fala do tupinambor, “aquela coisa esquisita, disforme, violácea e rugosa”, que por muito tempo não teve nome e nem origem precisa. É considerado o pior dos legumes. Era consumido na Quaresma, a título de penitência, e suspeitava-se que podia causar lepra. “São raízes aguadas, insípidas, nocivas à saúde e produzem muitos gases, por isso ninguém lhes dá importância”, afirmou-se em 1771.

Como se já não bastasse, logo surgiu a batata, e foi o fim para o tupinambor.

Hortaliça mais querida é a couve, verdura versátil e de domesticação arcaica. Para Catão, o Velho, ela “cura a melancolia, dá um fim em tudo, cura tudo”. O escritor Joseph Delteil afirma que “é boa para raquíticos, jovens mães e coelhos”.

Para Évelyne, falar de legumes é partir em busca de territórios e culturas. Ela cita o comentário de Marcel Proust sobre a expressão “estúpido como uma couve” – acaso seriam as couves mais estúpidas do que outras coisas? (Infelizmente para nós, brasileiros, não há qualquer menção ao termo “zé das couves”.)

Dentre os legumes citados, tupinambor e pastinaca sofreram bullying histórico. O mesmo não se pode dizer da ervilha, cuja “existência selvagem se perde na noite dos tempos”. A impaciência de comê-las, o prazer de tê-las comido e a alegria de comer mais eram as únicas preocupações da corte no século XVII. “É uma moda, é um furor.”

O livro é permeado de receitas, poemas e trechos literários. Há reproduções de pinturas relacionando a popularidade de um vegetal às naturezas-

mortas da época, ou debatendo a mudança de coloração da cenoura a partir dos temas da pintura flamenga.

Ainda assim, o resultado é um guisado confuso e sem substância que não chega a constituir um bom caldo.

**

A FABULOSA HISTÓRIA DOS LEGUMES
AUTOR Évelyne Bloch-Dano
EDITORA Estação Liberdade
TRADUÇÃO Luciano Vieira Machado
QUANTO R$ 49 (184 págs.)
AVALIAÇÃO regular

Folha de S. Paulo – Ilustrada
23 de janeiro de 2012

por Vanessa Barbara

À beira de uma piscina, Sherlock Holmes encara seu arqui-inimigo Jim Moriarty. Aponta um revólver para o rival, mas hesita: Watson está na mira de atiradores e há explosivos no chão. Sherlock mira em Moriarty e, sem opções, passa para os explosivos. Vai ou não atirar?

Essa dúvida perseguiu os fãs durante um ano e meio, mas em 1o de janeiro foi finalmente desfeita com a estreia da segunda temporada de “Sherlock” na BBC (ver coluna de 9/1/11, “O Napoleão do Crime”).

A cena fica em suspenso até que o celular de Moriarty se põe a tocar – a ringtone é “Staying Alive”, dos Bee Gees. “Tudo bem se eu atender?”, pergunta o educado vilão, pedindo constrangidas desculpas aos presentes.

Se a primeira temporada da minissérie foi genial, a segunda não fica atrás. A mente de Sherlock é como “uma locomotiva sem controle, um foguete se despedaçando no ar”, e isso se traduz em imagens. Sempre que possível, o detetive não explica em diálogos como chegou a uma conclusão: seguindo seu olhar, a câmera capta detalhes de objetos e faz estourar deduções por escrito na tela.

No episódio “O cão dos Baskerville”, Sherlock projeta um mapa mental onde deposita suas memórias. “Teoricamente, você nunca esquece nada do que viu”, explica Watson. “Tudo o que precisa é encontrar o caminho de volta.” É o que ele faz diante do espectador, arrastando e descartando no ar inúmeras associações de palavras, imagens e lembranças, à la “Minority Report”.

Também os cenários sofrem vertiginosas montagens a serviço da trama – Sherlock está na sala e “vai e volta” de uma cena de crime, ou deleta um grupo de pessoas do sofá e torna a enxergá-los assim que dizem algo interessante.

Desta nova leva, destacam-se a participação demolidora de Irene Adler e o desfecho da temporada, baseado no conto “O problema final”. O episódio foi exibido no dia 15 e já é motivo de sangrentas discussões nos fóruns. Só aqui em casa os últimos minutos foram repassados cinco vezes, com pausas estratégicas para levantamento de hipóteses.

Não se trata apenas da versão contemporânea de um clássico, mas de uma bela reinvenção de linguagem.

Bem diferente, aliás, de “Sherlock Holmes 2: O Jogo de Sombras”, longa-metragem que estreou no Brasil no último dia 13 e usa os efeitos especiais sem critérios, contentando-se com algumas boas cenas de ação e pouca engenhosidade na trama. Curiosamente, ambas as versões falam do mesmo conto.

Cerzir bem para cerzir sempre
#088 – São Paulo, 23 de janeiro de 2012
Edição especial de aniversário – 10 anos
Todo poder à beterraba
www.hortifruti.org

“Eu poderia esculpir um homem melhor de uma banana”
(Theodore Roosevelt)

“E me perguntei a respeito do presente: qual era a sua largura, qual a sua profundidade e quanto dele era meu.”
(Kurt Vonnegut Jr.)

“Não me deixe só
Eu tenho medo do escuro
Eu tenho medo do inseguro
Dos fantasmas da minha avó”
(Vanessa da Mata)

:: EDITORIAL ::

Há exatos dez anos, no dia 23 de janeiro de 2002 às 3h15 da madrugada, A Hortaliça vinha ao mundo. Destinatários criteriosamente selecionados receberam a primeira edição deste periódico, e possivelmente a enviaram direto para a lixeira. Os que assim não o fizeram foi por burrice, ou quem sabe por implicância do Mailer-Daemon – a cada número da Horta, 3,54% do nosso universo de assinantes manifesta seu desagrado via Mailer-Daemon, e uma porcentagem cada vez menor manifesta seu desagrado por meio de pesadas ofensas ao nosso staff. Destes, muitos são colegas de trabalho do meu pai (criteriosamente selecionados), que não têm culpa de haver acontecido em 2003 um tilt sistêmico no catálogo de endereços do Outlook Express, misturando os religiosos assinantes da Horta aos profanos técnicos de refrigeração deste mundo. O que permanece inexplicado é o fato de continuarem recebendo este hebdomadário, apesar dos apelos desesperados e ameaças de processo. (Um abraço para o eng. Kan Wing e o Señor Rodriguez. Alô alô, gente com sobrenome esquisito.)

Mas hoje vamos tentar não mudar de assunto: após 88 caudalosas edições enviadas a 703 assinantes, completamos dez anos de vida com a mesma falta de credibilidade e noção que nos caracterizaram desde o início. A Hortaliça nasceu naqueles dias ociosos de férias de verão em que a gente já dormiu o suficiente, cavou um buraco no jardim e chegou a martelar sem motivos a parede do vizinho, só de tédio. Esta editora-chefe que vos escreve tinha 19 anos de idade e uma multidão de colaboradores imaginários disponíveis para a empreitada, sobretudo os mortos, que não tinham como reclamar. Juntos, pinçamos trechos pitorescos de coisas que estávamos lendo, elegemos cerca de 20 destinatários e enviamos o número de estreia deste que se tornaria um jornal lendário na comunidade hortifrutigranjeira.

E aqui cabe um pronunciamento oficial sob orientação de nosso Departamento Jurídico, com vistas a dissipar os boatos que vêm circulando a nosso respeito. Quando o caderno Ilustríssima publicou uma edição d’A Hortaliça, em agosto de 2010, correram rumores de que o almanaque mandaquiense se tornaria um suplemento fixo do jornal Folha de S.Paulo, dadas as similaridades botânico-folhosas de ambas as publicações. Venho aqui esclarecer que se trata de um boato infundado: A Hortaliça nunca teve tal pretensão; ao contrário, a Folha é que se transformaria num encarte do nosso querido hebdomadário leguminoso.

As negociações não vingaram por motivos exteriores à vontade dos envolvidos – nossa redação demonstrou ganância desmedida na hora de impor os seus termos, que envolviam a instalação de uma piscina de bolinhas com raia olímpica em pleno coração do bairro –, mas o afeto mútuo permanece. O leitor desocupado que acessar o sítio http://www.hortifruti.org verá, além do arquivo integral com nossas 88 edições abertas, uma centena de crônicas resultantes da joint-venture entre ambas as empresas jornalísticas.

E a história continua, mais ou menos cambaleante, daqui até os próximos dez anos.

:: QUERIDO SCOTT, QUERIDA ZELDA ::

26 de abril de 1934
Para Zelda

E a única tristeza é viver sem você […]. Você e eu fomos felizes; não fomos felizes uma vez só, fomos felizes mil vezes.

:: RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS ::
Oliver Sacks, O Olhar da mente

Existem diversos recursos ópticos ou mecânicos para ampliar o campo de visão quando se perde um olho. O uso de um prisma, por exemplo, pode permitir de seis a oito graus adicionais de campo visual, e há também engenhosas estratégias com espelhos. Uma solução mais drástica foi tentada no século XV por Frederico, duque de Urbino, que perdeu um olho em um torneio. Diante da eterna ameaça de assassinato, e para preservar sua habilidade no campo de batalha, ele mandou cirurgiões amputarem a ponta de seu nariz para dar a seu olho remanescente um campo visual mais amplo.

:: ADÍLIA LOPES ::
Rafael Mantovani, em Cão

1.
vejo Adília Lopes ler no vídeo
um rato a Capela do Rato
mas sumiu o som do vídeo

como senti saudades de Adília Lopes
enquanto reiniciava o computador

como se ela morasse pra sempre numa rua muito longe
rua rio muito longe

[…]

5.
Adília Lopes tem poemas
tão simples
que não entendo

de tão finos não consigo
entrar
porque saio do outro lado

são herméticos
ao contrário

:: SERIA NELSON JOBIM MANDAQUIENSE? ::
da piauí

Ainda menino, ele tinha obsessão pela pontualidade. Se precisasse pegar um trem, digamos, às onze da manhã, fazia questão de chegar à estação uma hora antes. Sua mãe o deixava lá, voltava para casa, e depois retornava à estação para embarcá-lo.

:: MAIS MANDAQUI ::
Juro pelo seu Farias que ouvi essa conversa

– Como é o seu nome?
– Gregório.
– E como eu posso te chamar?
– De Greg.
– Posso te chamar de “Delícia”?

:: ENSAIOS DE AMOR ::
Alain de Botton

Então, inevitavelmente, eu comecei a esquecer. Poucos meses após romper com ela, descobri-me na área de Londres em que ela havia vivido e reparei que pensar nela não me causava mais tanta agonia, eu até notei que meu primeiro pensamento não era para ela (embora aquelas fossem exatamente as suas vizinhanças), mas para o encontro que eu havia marcado com alguém num restaurante nas proximidades. Percebi que a lembrança de Chloe havia se neutralizado e se tornado parte da história. Mas a culpa acompanhava esse esquecimento. Não era mais a ausência dela que me feria, mas minha crescente indiferença por ela. […]

Foi preciso um longo tempo para que as centenas de associações que Chloe e eu havíamos acumulado juntos se desvanecessem. Tive de viver com meu sofá por meses antes que a imagem dela deitada nele de camisola fosse substituída por outra imagem, a imagem de um amigo lendo um livro nele, ou de meu casaco jogado sobre ele. Tive de andar por Islington por numerosas ocasiões até poder esquecer que Islington não era só o distrito de Chloe, mas um lugar útil para se fazer compras ou jantar. Tive de revisitar quase todos os locais físicos, reescrever todos os tópicos de conversação, tocar de novo cada música e repassar cada atividade que ela e eu havíamos compartilhado para reconquistá-las para o presente, para desfigurar suas associações. Mas aos poucos eu me esqueci.

:: AS TARTARUGAS ENTENDERAM TUDO ::


:: COISAS QUE ME SÃO CARAS ::
Ivan Karamázov, psicografado por Dostoiévski

Tenho vontade de viver e vivo, ainda que contrariando a lógica. Vá que eu não acredite na ordem das coisas, mas a mim me são caras as folhinhas pegajosas que desabrocham na primavera, me é caro o céu azul, é caro esse ou aquele homem de quem, não sei se acreditas, às vezes a gente não sabe por que gosta, me é caro um ou outro feito humano no qual a gente talvez tenha até deixado de acreditar há muito tempo e mesmo assim, movido pela lembrança antiga, o respeita de coração.

:: RIQUELME ::

De um blog português, falando sobre a seriedade em campo do jogador Riquelme:

A verdade é que, a julgar pelo semblante de Riquelme, parece que lhe morre um irmão todos os dias em que joga!

:: PARA SCOTT ::

de Zelda Fitzgerald
9 de março de 1932

Querido, eu o amo – como com certeza você já sabe – e conquanto continue confusa quanto à posição que me cabe neste universo desconcertante e cataclísmico, não me esqueci do ímpeto original: que tem sido, por um período considerável, já, moldar-me em algo de onde possamos, quietinhos, continuar nos amando como aprouver aos deuses e nós mesmos julgarmos justo e direito. De modo que se conseguir aceitar alguma ligação espiritual com esta massa de confusão, que é como cada vez mais eu me vejo, me ame também. Ao menos tente, já que um dia hei de produzir algo que vai satisfazer minha necessidade de acreditar, ao passo que você vai se sentir muito mal quando vir minha obra-prima, caso tenha de dizer: “Se ao menos eu não tivesse levado a vitrola”.

:: SLOGAN DE CAMPANHA ::
Para a festa da democracia

Mais leite, mais água, mas menos água no leite – Vote no Barão de Itararé, Apparício Torelly.

:: HIPOTIREOIDISMO ::
Kurt Vonnegut Jr., Matadouro n. 5

– Salvei a sua vida mais uma vez, débil mental – disse Weary a Billy na vala. Há dias que vinha salvando a vida de Billy, xingando-o, acertando-lhe pontapés, esbofeteando-o, obrigando-o a ficar em movimento. Era absolutamente necessário usar de crueldade, pois Billy nada fazia para salvar a si próprio. Billy queria desistir. Tinha frio e fome, sentia-se desajeitado e incompetente. Mal podia distinguir entre sono e vigília e agora, no terceiro dia, tampouco notou diferenças importantes entre andar e ficar parado.

:: QUADRAS PAULISTANAS ::
Fabrício Corsaletti

pichação mais esquisita
nunca vi, sem brincadeira
“Rosivane, sem-vergonha
devolva minha assadeira”

missoshiro, missoshiro
delicado companheiro
que ressaca não se cura
com teu aroma e tempero?

:: RACISTAS! ::
Quino, Mafalda

:: PLANOS PARA 2012 ::
Wim Wenders, Asas do Desejo

Damiel: Às vezes me canso dessa existência espiritual. Em vez de pairar para sempre sobre os humanos eu gostaria de sentir um peso crescendo em mim, findando a eternidade e prendendo-me à terra. Gostaria de, a cada passo, a cada rajada de vento, poder dizer “Agora. Agora e agora”, e não mais “para sempre” e “por toda a eternidade”. Sentar-me num lugar vazio à mesa de carteado e ser cumprimentado, mesmo que seja com um aceno. Toda vez que participamos, foi de mentira. Brigamos de mentira com alguém, pescamos um peixe de mentira, sentamo-nos à mesa de mentira, comemos e bebemos de mentira. Fingimos comer carneiro assado e tomar vinho em tendas no deserto. Não, não preciso ter um filho e nem plantar uma árvore, mas seria ótimo voltar pra casa após um dia cansativo e dar comida para o gato, como Philip Marlowe, ter febre e os dedos sujos de tinta do jornal, empolgar-se não só por ideias, mas por uma refeição ou pela linha suave de uma nuca. Mentir! Na cara dura. Sentir os ossos conforme a gente anda. E finalmente supor, em vez de saber. Ser capaz de dizer “ah” e “oh” e “ei”, em vez de “sim” e “amém”.

Cassiel: É, ser capaz de apreciar de vez em quando a maldade. Sugar todos os demônios dos transeuntes e persegui-los mundo afora. Ser um selvagem.

Damiel: Ou ao menos saber como é a sensação de tirar os sapatos debaixo da mesa e alongar os dedos dos pés.

:: PLANOS PARA 2012 – SEGUNDA PARTE ::

Damiel: Primeiro, tomarei um banho. Depois farei a barba com um turco que me dará direito a massagem. Depois comprarei um jornal e o lerei das manchetes até o horóscopo. […] Se alguém tropeçar em mim, terá que pedir desculpas. Serei empurrado e empurrarei de volta. No bar lotado, o garçom me arrumará uma mesa. Um carro oficial irá parar e o prefeito me dará carona. Serei conhecido de todos e não desconfiarei de ninguém. Não direi uma só palavra e entenderei todos os idiomas. Esse será o meu primeiro dia.

:: 501 LOTES PARA CARPIR ::
Porque tá fácil cuidar da vida alheia

http://501lotesparacarpir.tumblr.com/

:: DIPLOMACIA ::
Shimomura & Markoff, Contra-ataque

A diplomacia é a arte de falar “que cachorrinho lindo” enquanto se tenta pegar o porrete.

:: DA IMPORTÂNCIA DOS ABSURDOS ::
Ivan Karamázov, de novo

– O problema é que existe esse porém… – bradou Ivan. – Saibas tu, noviço, que os absurdos são necessários demais na Terra. É sobre os absurdos que se funda o mundo, e neste talvez não acontecesse absolutamente nada sem eles. Nós sabemos o que sabemos!

:: PARA SCOTT ::

Primavera/verão de 1931,
Clínica Prangins, Nyon, Suíça

Querido –

Fui a Genebra sozinha, eu e outra doida, e a cidade estava densa e carregada antes da chuva. O céu cinzento gotejava sobre as calçadas feito uma sobremesa cheirosa, depois de uma refeição pesada, e eu queria tanto estar em Lausanne com você – Sábado, voltando de Berna, procurei entre todos os que estavam na estação, quando passamos. Parecia incrível que algo tão querido quanto sua face luminosa não estivesse no mesmo lugar onde eu a vi pela última vez. Alguma vez já se sentiu solitário a ponto de se julgar eternamente culpado – como se não tivesse posto parte das roupas – eu o amo tanto e estar sem você é como ter saído e deixado o gás aceso, ou largado o bebê no cesto de roupa suja. Mas vou vê-lo em breve, e a chuva martela do lado de fora da janela, achata as árvores encharcadas, sobrecarrega o cascalho do passeio e eu torço para que a terra encolha com toda essa molhadeira, assim você ficará mais perto.

:: NA NORUEGA É ASSIM ::
a sabedoria de Rafael Mantovani, Cão

(na Noruega é assim:
o sono desce de trenó
desembarca em pernas curtas
traz uma mochila, diz que vai morar comigo

ele tem o rosto de um cachorro
e um rastro escuro na barriga
ele guarda os nomes de lugar
escritos todos numa lista.)

:: OTIMISMO EM GOTAS ::

Como dizia o Barão de Itararé, “é de onde não se espera nada que não sai coisa alguma”.

:: PARA SCOTT ::

25 de novembro de 1931
Montgomery, Alabama

O Natal está chegando e sua mãe estará aqui dentro de duas semanas, espero. Mandei o vestido para Annabel. Ela vai achá-lo um tanto Botticelli, mas talvez acabe sendo convidada para um festival de morangos, ou para rolar toras nos jogos da Vestfália, e aí poderá usá-lo para amarrar as canelas; ou talvez se veja presa num prédio em chamas e o vestido servirá para fazer uma escada.

:: MUITAS VEZES ::
Marcel Proust, Em busca do Tempo Perdido (Combray)

“É engraçado, penso muitas vezes na minha pobre mulher, mas não posso pensar muito de cada vez”.

“Muitas vezes, mas pouco de cada vez, como o pobre do velho Swann” tornara-se uma das frases favoritas do meu avô, que a dizia a propósito das coisas mais diversas.

:: O AVÔ NA MPB ::

Nos últimos dez anos, a série “O avô na Música Popular Brasileira” andou progredindo e agora comporta a variante “avó” – às vezes mesclada ao seu companheiro e às vezes em voo solo, como nos exemplos a seguir. Outra novidade revelada por nossos estudos: além de “amor” por “avô” e “voz” por “avó”, temos também “alegria” por “alergia”, vocábulos substituídos no tempo da ditadura para despistar os milicos dos nossos familiares e das nossas crises de rinite.

“Tanto tempo longe de você
Quero ao menos lhe falar
A distância não vai impedir
Meu avô de lhe encontrar

Cartas já não adiantam mais
Quero ouvir a sua avó
Vou telefonar dizendo
Que eu estou quase morrendo
De saudades de você”
(MONTE, Marisa)

“Coração não é tão simples quanto pensa
Nele cabe o que não cabe na despensa
Cabe o meu avô
Cabem três vidas inteiras
Cabe uma penteadeira”
(CIDADE, Banda Mais Bonita da)

“Quem inventou o avô?
Me explica por favor
Daqui vejo seu descanso
Perto do seu travesseiro
Depois quero ver se acerto
Dos dois quem acorda primeiro”
(URBANA, Legião)

“Meu peito agora dispara
Vivo em constante alergia
É o avô que está aqui”
(MONTE, Marisa)

:: NÃO GOSTEI ::

Março de 1920
Montgomery, Alabama

Eu amo você, querido Scott, e você me ama, de modo que podemos ao menos ser gratos por isso –
Obrigada pelo livro – não gostei –
Zelda Sayre

>>>> Agradecimentos

A Isabel A. W. de Nonno, Marcos Barbará, Mariana Delfini, Nayra Dmitruk, Paulo Henrique Martins. Assessoria jurídica: dr. Renato Onofri. Aproveitamos para cumprimentar alguns dos mais vetustos colaboradores deste jornal, a saber: Adriano Marcato, Antonio Prata, Bruno Brasil, Chico Mattoso, Maria Emilia Bender, Paulo Werneck, Reinaldo Moraes, Ricardo Monier, Sérgio Praça, Stephanie Avari, o Zé, os Dadás.

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“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado — logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie Avari, a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)   ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e o To Fu, que ganhou o direito de trazer um tufo de nenúfares e furar a fila. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para hortalica@gmail.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja — e nem queira ser — Kudno Mojesic.

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Revista sãopaulo – Folha de S.Paulo
22 de janeiro de 2012

Especial aniversário de São Paulo

por Vanessa Barbara 

Uma vez me perguntaram se a Zona Norte tinha condições de se separar de São Paulo, constituindo uma cidade com outro nome. Respondi que sim: a ZN podia se emancipar de São Paulo e se chamar Hospício.

Foi grande o risco que corri de ser expatriada e perseguida em praça pública por nativos brandindo tochas e tridentes, já que uma das características dos locais é justamente o senso de humor confuso. É fácil ofender um morador da ZN sem querer; por outro lado, é dificílimo magoar um nativo de propósito. Os mais vis xingamentos não atingem o sujeito que, distraído, nunca acha que é com ele.

Nasci e vivi praticamente a vida toda no Alto do Mandaqui, que faz fronteira com os condados do Lauzane Paulista, Bancários, Pedra Branca e Santa Terezinha. Fica para além de Santana, em direção ao fim do mundo, onde ainda se diz “vou para a cidade” referindo-se ao centro, como se o bairro não fizesse parte da capital.

Hoje os moradores se encontram espiritualmente mais próximos do resto da metrópole, por conta de seus possantes tunados e do ímpeto catequizante dos motoristas do 118C, que cruzam as ruas com o furor da cavalaria cossaca.

A despeito disso, zona-nortenses mantêm suas diferenças antropológicas, tornando imediato o reconhecimento entre iguais. Por exemplo: o típico nativo da ZN é aquele que chega cedo nos lugares e compra o material escolar na primeira semana de janeiro. Ele é regrado, usa roupas de domingo e tem leve tendência ao corinthianismo.

Nestas terras, vizinhos costumam telefonar perguntando onde se pode adquirir uma bigorna de segunda mão, e é aqui que se recebe uma resposta. Há muitas casas, árvores, pássaros e sete tartarugas na mesma quadra – a maior média de cascos “per capita” do Brasil. Há gente que sai de casa com o cabelo cheio de bobes, e eu já vi uma menina atravessando a rua Voluntários da Pátria com uma toalha enrolada na cabeça.

A Zona Norte é também a terra do futuro, onde o progresso segue a galope e ninguém anda de costas. Possuímos três shoppings de grande porte, dezoito filiais da Drogaria São Paulo e incontáveis pet shops.

A Zona Norte é inexplicável: aqui se encontram serralheiros que dominam o sueco, faxineiras que são também cabeleireiras e decoradoras de interiores, relojoeiros nipônicos que combateram pelas forças do Eixo e a maior piscina de bolinhas da América Latina.

Em que pesem a falta de transporte público decente e a quantidade excessiva de automóveis, a Zona Norte é um belo lugar para se morar, com vizinhos muito interessantes. Basta ajustar o fuso horário e a lógica.

Folha de S. Paulo – Ilustrada
16 de janeiro de 2012

por Vanessa Barbara

Há um fenômeno televisivo pouquíssimo documentado que não tem nome, mas afeta a todos os espectadores sem distinção; para propósitos de estudo, iremos chamá-lo de Teorema do Disco Riscado, embora a expressão não faça o menor sentido hoje em dia. Só de invocá-lo, me vem à mente duas cenas: o discurso final de “Um lugar chamado Notting Hill” e a remoção do inseto do umbigo do herói em “Matrix”.

O Teorema do Disco Riscado ocorre quando a vítima se posta em frente à televisão, liga o aparelho e dá de cara com um filme que já viu, desenrolando-se no exato ponto das últimas três vezes. É como um sulco na grade de programação que garante uma reprise cada vez mais recorrente, quanto mais fundo se cava – se você já viu “Identidade Bourne” na TV quatro vezes, é certo que assistirá mais quatro, por pura contingência.

Um dos problemas do Disco Riscado Televisivo é que, nessas oito vezes, você fatalmente irá pegar a história no mesmo trecho – se tiver sorte, cinco minutos antes ou meia hora depois, e ai de quem se animar pensando que desta vez vai descobrir o que está havendo. Muitos espectadores sabem diálogos de cor, mas só intuem vagamente do que se trata o filme como um todo. (Ninjas ou mafiosos? Terremoto ou ameaça nuclear?)

Por sorte, o sulco repetitivo parece restrito a certos filmes ou episódios de séries – nas maratonas de “Friends”, é sempre aquele com o Russ.

Os demais seguem o Corolário da Persistência Recompensada: na primeira vez, você vai pegar um filme lá pelo meio e não irá entender patavinas. Na segunda, entenderá menos ainda, já que a trama está a poucos frames do final – mas, se continuar insistindo, um dia conseguirá juntar uma porção de peças essenciais, um tanto do começo, um flashback do fim, e conseguirá dar um sentido ao que viu.

Mesmo que seja totalmente equivocado.

Minha mãe, por exemplo, teve de assistir cinco vezes ao “Soldado Universal”, em prestações, até entender por que diabos enfiaram o Van Damme numa banheira de gelo. Quando lhe contei a sinopse de “A Força em Alerta” (visto três vezes), ela demonstrou intensa surpresa ao saber que Steven Seagal era um fuzileiro naval infiltrado no navio, especialista em artes marciais e mísseis, e não um simples cozinheiro sob ataque de piratas.

É a Lei do Maçante: a versão oficial nunca é tão divertida.