Cerzir bem para cerzir sempre
#088 – São Paulo, 23 de janeiro de 2012
Edição especial de aniversário – 10 anos
Todo poder à beterraba
www.hortifruti.org

“Eu poderia esculpir um homem melhor de uma banana”
(Theodore Roosevelt)

“E me perguntei a respeito do presente: qual era a sua largura, qual a sua profundidade e quanto dele era meu.”
(Kurt Vonnegut Jr.)

“Não me deixe só
Eu tenho medo do escuro
Eu tenho medo do inseguro
Dos fantasmas da minha avó”
(Vanessa da Mata)

:: EDITORIAL ::

Há exatos dez anos, no dia 23 de janeiro de 2002 às 3h15 da madrugada, A Hortaliça vinha ao mundo. Destinatários criteriosamente selecionados receberam a primeira edição deste periódico, e possivelmente a enviaram direto para a lixeira. Os que assim não o fizeram foi por burrice, ou quem sabe por implicância do Mailer-Daemon – a cada número da Horta, 3,54% do nosso universo de assinantes manifesta seu desagrado via Mailer-Daemon, e uma porcentagem cada vez menor manifesta seu desagrado por meio de pesadas ofensas ao nosso staff. Destes, muitos são colegas de trabalho do meu pai (criteriosamente selecionados), que não têm culpa de haver acontecido em 2003 um tilt sistêmico no catálogo de endereços do Outlook Express, misturando os religiosos assinantes da Horta aos profanos técnicos de refrigeração deste mundo. O que permanece inexplicado é o fato de continuarem recebendo este hebdomadário, apesar dos apelos desesperados e ameaças de processo. (Um abraço para o eng. Kan Wing e o Señor Rodriguez. Alô alô, gente com sobrenome esquisito.)

Mas hoje vamos tentar não mudar de assunto: após 88 caudalosas edições enviadas a 703 assinantes, completamos dez anos de vida com a mesma falta de credibilidade e noção que nos caracterizaram desde o início. A Hortaliça nasceu naqueles dias ociosos de férias de verão em que a gente já dormiu o suficiente, cavou um buraco no jardim e chegou a martelar sem motivos a parede do vizinho, só de tédio. Esta editora-chefe que vos escreve tinha 19 anos de idade e uma multidão de colaboradores imaginários disponíveis para a empreitada, sobretudo os mortos, que não tinham como reclamar. Juntos, pinçamos trechos pitorescos de coisas que estávamos lendo, elegemos cerca de 20 destinatários e enviamos o número de estreia deste que se tornaria um jornal lendário na comunidade hortifrutigranjeira.

E aqui cabe um pronunciamento oficial sob orientação de nosso Departamento Jurídico, com vistas a dissipar os boatos que vêm circulando a nosso respeito. Quando o caderno Ilustríssima publicou uma edição d’A Hortaliça, em agosto de 2010, correram rumores de que o almanaque mandaquiense se tornaria um suplemento fixo do jornal Folha de S.Paulo, dadas as similaridades botânico-folhosas de ambas as publicações. Venho aqui esclarecer que se trata de um boato infundado: A Hortaliça nunca teve tal pretensão; ao contrário, a Folha é que se transformaria num encarte do nosso querido hebdomadário leguminoso.

As negociações não vingaram por motivos exteriores à vontade dos envolvidos – nossa redação demonstrou ganância desmedida na hora de impor os seus termos, que envolviam a instalação de uma piscina de bolinhas com raia olímpica em pleno coração do bairro –, mas o afeto mútuo permanece. O leitor desocupado que acessar o sítio http://www.hortifruti.org verá, além do arquivo integral com nossas 88 edições abertas, uma centena de crônicas resultantes da joint-venture entre ambas as empresas jornalísticas.

E a história continua, mais ou menos cambaleante, daqui até os próximos dez anos.

:: QUERIDO SCOTT, QUERIDA ZELDA ::

26 de abril de 1934
Para Zelda

E a única tristeza é viver sem você […]. Você e eu fomos felizes; não fomos felizes uma vez só, fomos felizes mil vezes.

:: RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS ::
Oliver Sacks, O Olhar da mente

Existem diversos recursos ópticos ou mecânicos para ampliar o campo de visão quando se perde um olho. O uso de um prisma, por exemplo, pode permitir de seis a oito graus adicionais de campo visual, e há também engenhosas estratégias com espelhos. Uma solução mais drástica foi tentada no século XV por Frederico, duque de Urbino, que perdeu um olho em um torneio. Diante da eterna ameaça de assassinato, e para preservar sua habilidade no campo de batalha, ele mandou cirurgiões amputarem a ponta de seu nariz para dar a seu olho remanescente um campo visual mais amplo.

:: ADÍLIA LOPES ::
Rafael Mantovani, em Cão

1.
vejo Adília Lopes ler no vídeo
um rato a Capela do Rato
mas sumiu o som do vídeo

como senti saudades de Adília Lopes
enquanto reiniciava o computador

como se ela morasse pra sempre numa rua muito longe
rua rio muito longe

[…]

5.
Adília Lopes tem poemas
tão simples
que não entendo

de tão finos não consigo
entrar
porque saio do outro lado

são herméticos
ao contrário

:: SERIA NELSON JOBIM MANDAQUIENSE? ::
da piauí

Ainda menino, ele tinha obsessão pela pontualidade. Se precisasse pegar um trem, digamos, às onze da manhã, fazia questão de chegar à estação uma hora antes. Sua mãe o deixava lá, voltava para casa, e depois retornava à estação para embarcá-lo.

:: MAIS MANDAQUI ::
Juro pelo seu Farias que ouvi essa conversa

– Como é o seu nome?
– Gregório.
– E como eu posso te chamar?
– De Greg.
– Posso te chamar de “Delícia”?

:: ENSAIOS DE AMOR ::
Alain de Botton

Então, inevitavelmente, eu comecei a esquecer. Poucos meses após romper com ela, descobri-me na área de Londres em que ela havia vivido e reparei que pensar nela não me causava mais tanta agonia, eu até notei que meu primeiro pensamento não era para ela (embora aquelas fossem exatamente as suas vizinhanças), mas para o encontro que eu havia marcado com alguém num restaurante nas proximidades. Percebi que a lembrança de Chloe havia se neutralizado e se tornado parte da história. Mas a culpa acompanhava esse esquecimento. Não era mais a ausência dela que me feria, mas minha crescente indiferença por ela. […]

Foi preciso um longo tempo para que as centenas de associações que Chloe e eu havíamos acumulado juntos se desvanecessem. Tive de viver com meu sofá por meses antes que a imagem dela deitada nele de camisola fosse substituída por outra imagem, a imagem de um amigo lendo um livro nele, ou de meu casaco jogado sobre ele. Tive de andar por Islington por numerosas ocasiões até poder esquecer que Islington não era só o distrito de Chloe, mas um lugar útil para se fazer compras ou jantar. Tive de revisitar quase todos os locais físicos, reescrever todos os tópicos de conversação, tocar de novo cada música e repassar cada atividade que ela e eu havíamos compartilhado para reconquistá-las para o presente, para desfigurar suas associações. Mas aos poucos eu me esqueci.

:: AS TARTARUGAS ENTENDERAM TUDO ::


:: COISAS QUE ME SÃO CARAS ::
Ivan Karamázov, psicografado por Dostoiévski

Tenho vontade de viver e vivo, ainda que contrariando a lógica. Vá que eu não acredite na ordem das coisas, mas a mim me são caras as folhinhas pegajosas que desabrocham na primavera, me é caro o céu azul, é caro esse ou aquele homem de quem, não sei se acreditas, às vezes a gente não sabe por que gosta, me é caro um ou outro feito humano no qual a gente talvez tenha até deixado de acreditar há muito tempo e mesmo assim, movido pela lembrança antiga, o respeita de coração.

:: RIQUELME ::

De um blog português, falando sobre a seriedade em campo do jogador Riquelme:

A verdade é que, a julgar pelo semblante de Riquelme, parece que lhe morre um irmão todos os dias em que joga!

:: PARA SCOTT ::

de Zelda Fitzgerald
9 de março de 1932

Querido, eu o amo – como com certeza você já sabe – e conquanto continue confusa quanto à posição que me cabe neste universo desconcertante e cataclísmico, não me esqueci do ímpeto original: que tem sido, por um período considerável, já, moldar-me em algo de onde possamos, quietinhos, continuar nos amando como aprouver aos deuses e nós mesmos julgarmos justo e direito. De modo que se conseguir aceitar alguma ligação espiritual com esta massa de confusão, que é como cada vez mais eu me vejo, me ame também. Ao menos tente, já que um dia hei de produzir algo que vai satisfazer minha necessidade de acreditar, ao passo que você vai se sentir muito mal quando vir minha obra-prima, caso tenha de dizer: “Se ao menos eu não tivesse levado a vitrola”.

:: SLOGAN DE CAMPANHA ::
Para a festa da democracia

Mais leite, mais água, mas menos água no leite – Vote no Barão de Itararé, Apparício Torelly.

:: HIPOTIREOIDISMO ::
Kurt Vonnegut Jr., Matadouro n. 5

– Salvei a sua vida mais uma vez, débil mental – disse Weary a Billy na vala. Há dias que vinha salvando a vida de Billy, xingando-o, acertando-lhe pontapés, esbofeteando-o, obrigando-o a ficar em movimento. Era absolutamente necessário usar de crueldade, pois Billy nada fazia para salvar a si próprio. Billy queria desistir. Tinha frio e fome, sentia-se desajeitado e incompetente. Mal podia distinguir entre sono e vigília e agora, no terceiro dia, tampouco notou diferenças importantes entre andar e ficar parado.

:: QUADRAS PAULISTANAS ::
Fabrício Corsaletti

pichação mais esquisita
nunca vi, sem brincadeira
“Rosivane, sem-vergonha
devolva minha assadeira”

missoshiro, missoshiro
delicado companheiro
que ressaca não se cura
com teu aroma e tempero?

:: RACISTAS! ::
Quino, Mafalda

:: PLANOS PARA 2012 ::
Wim Wenders, Asas do Desejo

Damiel: Às vezes me canso dessa existência espiritual. Em vez de pairar para sempre sobre os humanos eu gostaria de sentir um peso crescendo em mim, findando a eternidade e prendendo-me à terra. Gostaria de, a cada passo, a cada rajada de vento, poder dizer “Agora. Agora e agora”, e não mais “para sempre” e “por toda a eternidade”. Sentar-me num lugar vazio à mesa de carteado e ser cumprimentado, mesmo que seja com um aceno. Toda vez que participamos, foi de mentira. Brigamos de mentira com alguém, pescamos um peixe de mentira, sentamo-nos à mesa de mentira, comemos e bebemos de mentira. Fingimos comer carneiro assado e tomar vinho em tendas no deserto. Não, não preciso ter um filho e nem plantar uma árvore, mas seria ótimo voltar pra casa após um dia cansativo e dar comida para o gato, como Philip Marlowe, ter febre e os dedos sujos de tinta do jornal, empolgar-se não só por ideias, mas por uma refeição ou pela linha suave de uma nuca. Mentir! Na cara dura. Sentir os ossos conforme a gente anda. E finalmente supor, em vez de saber. Ser capaz de dizer “ah” e “oh” e “ei”, em vez de “sim” e “amém”.

Cassiel: É, ser capaz de apreciar de vez em quando a maldade. Sugar todos os demônios dos transeuntes e persegui-los mundo afora. Ser um selvagem.

Damiel: Ou ao menos saber como é a sensação de tirar os sapatos debaixo da mesa e alongar os dedos dos pés.

:: PLANOS PARA 2012 – SEGUNDA PARTE ::

Damiel: Primeiro, tomarei um banho. Depois farei a barba com um turco que me dará direito a massagem. Depois comprarei um jornal e o lerei das manchetes até o horóscopo. […] Se alguém tropeçar em mim, terá que pedir desculpas. Serei empurrado e empurrarei de volta. No bar lotado, o garçom me arrumará uma mesa. Um carro oficial irá parar e o prefeito me dará carona. Serei conhecido de todos e não desconfiarei de ninguém. Não direi uma só palavra e entenderei todos os idiomas. Esse será o meu primeiro dia.

:: 501 LOTES PARA CARPIR ::
Porque tá fácil cuidar da vida alheia

http://501lotesparacarpir.tumblr.com/

:: DIPLOMACIA ::
Shimomura & Markoff, Contra-ataque

A diplomacia é a arte de falar “que cachorrinho lindo” enquanto se tenta pegar o porrete.

:: DA IMPORTÂNCIA DOS ABSURDOS ::
Ivan Karamázov, de novo

– O problema é que existe esse porém… – bradou Ivan. – Saibas tu, noviço, que os absurdos são necessários demais na Terra. É sobre os absurdos que se funda o mundo, e neste talvez não acontecesse absolutamente nada sem eles. Nós sabemos o que sabemos!

:: PARA SCOTT ::

Primavera/verão de 1931,
Clínica Prangins, Nyon, Suíça

Querido –

Fui a Genebra sozinha, eu e outra doida, e a cidade estava densa e carregada antes da chuva. O céu cinzento gotejava sobre as calçadas feito uma sobremesa cheirosa, depois de uma refeição pesada, e eu queria tanto estar em Lausanne com você – Sábado, voltando de Berna, procurei entre todos os que estavam na estação, quando passamos. Parecia incrível que algo tão querido quanto sua face luminosa não estivesse no mesmo lugar onde eu a vi pela última vez. Alguma vez já se sentiu solitário a ponto de se julgar eternamente culpado – como se não tivesse posto parte das roupas – eu o amo tanto e estar sem você é como ter saído e deixado o gás aceso, ou largado o bebê no cesto de roupa suja. Mas vou vê-lo em breve, e a chuva martela do lado de fora da janela, achata as árvores encharcadas, sobrecarrega o cascalho do passeio e eu torço para que a terra encolha com toda essa molhadeira, assim você ficará mais perto.

:: NA NORUEGA É ASSIM ::
a sabedoria de Rafael Mantovani, Cão

(na Noruega é assim:
o sono desce de trenó
desembarca em pernas curtas
traz uma mochila, diz que vai morar comigo

ele tem o rosto de um cachorro
e um rastro escuro na barriga
ele guarda os nomes de lugar
escritos todos numa lista.)

:: OTIMISMO EM GOTAS ::

Como dizia o Barão de Itararé, “é de onde não se espera nada que não sai coisa alguma”.

:: PARA SCOTT ::

25 de novembro de 1931
Montgomery, Alabama

O Natal está chegando e sua mãe estará aqui dentro de duas semanas, espero. Mandei o vestido para Annabel. Ela vai achá-lo um tanto Botticelli, mas talvez acabe sendo convidada para um festival de morangos, ou para rolar toras nos jogos da Vestfália, e aí poderá usá-lo para amarrar as canelas; ou talvez se veja presa num prédio em chamas e o vestido servirá para fazer uma escada.

:: MUITAS VEZES ::
Marcel Proust, Em busca do Tempo Perdido (Combray)

“É engraçado, penso muitas vezes na minha pobre mulher, mas não posso pensar muito de cada vez”.

“Muitas vezes, mas pouco de cada vez, como o pobre do velho Swann” tornara-se uma das frases favoritas do meu avô, que a dizia a propósito das coisas mais diversas.

:: O AVÔ NA MPB ::

Nos últimos dez anos, a série “O avô na Música Popular Brasileira” andou progredindo e agora comporta a variante “avó” – às vezes mesclada ao seu companheiro e às vezes em voo solo, como nos exemplos a seguir. Outra novidade revelada por nossos estudos: além de “amor” por “avô” e “voz” por “avó”, temos também “alegria” por “alergia”, vocábulos substituídos no tempo da ditadura para despistar os milicos dos nossos familiares e das nossas crises de rinite.

“Tanto tempo longe de você
Quero ao menos lhe falar
A distância não vai impedir
Meu avô de lhe encontrar

Cartas já não adiantam mais
Quero ouvir a sua avó
Vou telefonar dizendo
Que eu estou quase morrendo
De saudades de você”
(MONTE, Marisa)

“Coração não é tão simples quanto pensa
Nele cabe o que não cabe na despensa
Cabe o meu avô
Cabem três vidas inteiras
Cabe uma penteadeira”
(CIDADE, Banda Mais Bonita da)

“Quem inventou o avô?
Me explica por favor
Daqui vejo seu descanso
Perto do seu travesseiro
Depois quero ver se acerto
Dos dois quem acorda primeiro”
(URBANA, Legião)

“Meu peito agora dispara
Vivo em constante alergia
É o avô que está aqui”
(MONTE, Marisa)

:: NÃO GOSTEI ::

Março de 1920
Montgomery, Alabama

Eu amo você, querido Scott, e você me ama, de modo que podemos ao menos ser gratos por isso –
Obrigada pelo livro – não gostei –
Zelda Sayre

>>>> Agradecimentos

A Isabel A. W. de Nonno, Marcos Barbará, Mariana Delfini, Nayra Dmitruk, Paulo Henrique Martins. Assessoria jurídica: dr. Renato Onofri. Aproveitamos para cumprimentar alguns dos mais vetustos colaboradores deste jornal, a saber: Adriano Marcato, Antonio Prata, Bruno Brasil, Chico Mattoso, Maria Emilia Bender, Paulo Werneck, Reinaldo Moraes, Ricardo Monier, Sérgio Praça, Stephanie Avari, o Zé, os Dadás.

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“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado — logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie Avari, a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)   ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e o To Fu, que ganhou o direito de trazer um tufo de nenúfares e furar a fila. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para hortalica@gmail.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja — e nem queira ser — Kudno Mojesic.

::: www.hortifruti.org :::

  1. Pacheco disse:

    Os trechos do Asas do Desejo me lembram de um outro diálogo marcante da história do cinema que terminava assim: “não… NÃO!”

    =)