Blog da Companhia das Letras
28 setembro 2011, 1:13 pm

Por Vanessa Barbara

[Leia A cartografia de O grande Gatsby, com um mapa da área onde se passa a história, e Gatsby no cinema, sobre as adaptações do livro.]

[Atenção: este texto contém spoilers.]

Comecei a traduzir O grande Gatsby em janeiro e, ao final da empreitada, quatro meses depois, havia um cadáver num colchão inflável, descrevendo círculos na piscina. Meu casamento chegara ao fim e, como Nick Carraway, eu estava de volta ao Oeste para limpar a sujeira que os outros deixaram pra trás — no funeral, apareceu apenas um homem com os Olhos de Coruja, e choveu bastante.

Foram cinco meses de perplexidade e angústia, ainda mais porque eu não lembrava o que acontecia no final e ia seguindo, página a página, pensando “isso não vai dar certo”, e, ainda assim, virando a folha. Mesmo que a tragédia tenha sido suficientemente anunciada, eu insistia em decifrá-la, detendo-me em parágrafos misteriosos como os do final do capítulo 2 e procurando obter maior clareza, ainda que doesse.

O grande Gatsby fala de um novo-rico que compra uma mansão à beira da baía, em West Egg, e passa a promover festas extravagantes para reconquistar um grande amor do passado, Daisy, casada com um sujeito hipócrita e arrogante chamado Tom Buchanan. O narrador é Nick Carraway, primo de Daisy, que também mora do lado pobre da baía (East Egg é onde vivem os ricos). Tom mantém um apartamento em Nova York onde costuma se encontrar com a amante, sem o menor pudor, e durante aquele fatídico verão Daisy acaba engatando um romance com Gatsby.

Há duas cenas que ilustram à perfeição o que Gatsby significou pra mim nesses quatro meses: de um lado, o incidente com a roda do automóvel, no final do capítulo 3, e de outro, o último encontro entre o narrador e Tom Buchanan, no fim do livro.

O incidente da roda fecha magistralmente a descrição de uma festa no jardim da mansão de Jay Gatsby, onde se passava a noite toda dançando, brigando e se embebedando. Quase ninguém era efetivamente convidado, poucos conheciam o anfitrião e havia uma cantora alta e ruiva, integrante de um famoso coro, que “bebera grandes quantidades de champanhe e se convencera inoportunamente, no decorrer da canção, de que tudo era muito triste — de modo que não estava só cantando, mas também chorando”. Quando alguém lhe faz uma piada, ela lança as mãos ao céu, afunda na cadeira e cai num sono etílico.

Ao final da festa, o narrador deixa a mansão e vê um carro caído numa vala, provavelmente saído da garagem há não menos de dois minutos. Completamente embriagado, o motorista sai dos escombros e pergunta o que houve.

“Meia dúzia de dedos apontaram em direção à roda amputada. Ele a encarou por um instante e então olhou para cima, como se suspeitasse que tivesse caído do céu.

[…] Então, tomando um longo fôlego e endireitando os ombros, ele comentou: — Será que alguém aí sabe informar onde tem um posto de gasolina?

Pelo menos uma dúzia de homens, alguns quase tão bêbados quanto ele, lhe explicaram que roda e automóvel não mais se encontravam unidos por um elo físico.

— Para trás — ele sugeriu, depois de uma pausa. — Vamos dar marcha a ré. — Mas falta uma roda! Ele hesitou. — Não custa tentar.”

Os trechos sobre a festa são impagáveis e me fazem lembrar uma piada do cineasta Woody Allen: “Francis Scott e Zelda Fitzgerald voltaram pra casa, após uma tresloucada festa de réveillon. Era abril.”

São passagens engraçadas e ao mesmo tempo melancólicas, que trazem à tona personagens como Klipspringer, tão assíduo das festas que era conhecido como “o hóspede” — duvidava-se que tivesse outra residência — e que, no final, ressurge apenas para pedir seus tênis de volta. As noites ofuscantes e barulhentas no jardim de Gatsby prenunciam a frieza que estava por vir.

Toda a dissimulação e desprezo tem seu ápice na cena mais sufocante do livro, dentro de um quarto no Plaza Hotel, quando Tom resolve humilhar Gatsby e passar a limpo a traição da esposa. Brutalmente, manda-os voltar no mesmo carro.

Na volta, Daisy atropela a amante de Tom e é Gatsby quem assume a culpa. Tudo termina em sangue e tragédia, menos para os Buchanan, que se mudam para outro lugar e seguem suas vidas como se nada tivesse acontecido.

O que nos leva àquela que, ao meu ver, é a principal cena do livro: Nick está andando pela Quinta Avenida, meses após o incidente, e encontra Tom. Hesita em cumprimentá-lo (“você sabe o que penso de você”).

Nesse trecho, muitos críticos falam da moralidade oscilante do narrador, que, no fim das contas, acaba apertando a mão de Tom, de certo modo compactuando com toda a sujeira e indiferença que vira até então: um marido negligente que trai publicamente a esposa, uma esposa avoada que sai impune de um homicídio culposo, uma vítima desiludida boiando num colchão inflável. A certa altura, Nick admite que Gatsby “vale mais do que todos eles juntos”, embora seja tarde demais para dizê-lo, e a despeito de o próprio Gatsby não ser uma pessoa tão admirável quanto o narrador faz pensar.

Ninguém sai impune desse romance duro e sem concessões — talvez apenas o Homem de Olhos de Coruja, que, bêbado há mais de uma semana, tem um insight sobre Gatsby, comparando-o a uma biblioteca de encadernações verdadeiras, mas que nunca foram lidas.

Lembrando o dia em que a filha nasceu, Daisy confidencia ao primo: “Não fazia nem uma hora que ela tinha nascido e Tom estava sabe Deus onde. Acordei do éter com um sentimento de completo abandono e perguntei à enfermeira se era menino ou menina. Ela me disse que era menina, e então eu virei a cabeça e chorei. ‘Que bom que é uma menina. […] Espero que ela seja uma grande tonta: é o melhor que uma garota pode ser neste mundo, uma belíssima tonta’”.

*****

Daisy e Tom pertencem a uma “irmandade secreta muito distinta” a quem tudo é permitido, e a quem basta fingir que nada aconteceu para que de fato nada tenha ocorrido. O romance inteiro é calcado em “acidentes”: o atropelamento fatal, os motoristas imprudentes, o namoro de Daisy com alguém de classe inferior, o esbarrão no trem entre Tom e a amante, que leva ao prolongado adultério. É como se os erros e descuidos das pessoas pudessem ser tomados como acidentes, como negligências inconsequentes sem qualquer implicação mais séria. “É como se Nick [o narrador] tivesse que se defrontar com um universo inteiro de casualidade. Desimportante. Insignificante”, diz Tony Tanner, na introdução desta edição. “Num mundo dominado pelos Buchanan, a pura contingência reina absoluta, ameaçadora e grotesca.”

O próprio narrador pondera:

“Eu nunca seria capaz de perdoá-lo ou de gostar dele, mas vi que seus atos eram, a seus olhos, inteiramente justificáveis. Tudo decorrera de forma descuidada e confusa. Eles eram todos descuidados e confusos. Eram descuidados, Tom e Daisy — esmagavam

coisas e criaturas e depois se protegiam por trás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam os outros limparem a bagunça que eles haviam feito…”

Na madrugada após o atropelamento, Nick espia pela cortina da cozinha e vê o casal conversando — não exatamente felizes, mas não de todo tristes. “Havia um clima inequívoco de intimidade natural naquela cena, e qualquer um poderia jurar que estavam conspirando.”

E estavam. Depois do almoço, os Buchanan já tinham partido sem avisar ninguém, e, antes do fim do ano, Tom caminhava pela rua com naturalidade, parando para olhar a vitrine de uma joalheria — talvez em busca de um presente para a nova amante. “O que vocês queriam? O que esperavam?”, diria o Homem de Olhos de Coruja, com sua sabedoria bêbada.

Para que o caso pudesse permanecer o mais simples possível, ninguém tomou a responsabilidade para si, apressando-se em atribuir o crime a um homem “louco de tristeza”. E ficou por isso mesmo. A indiferença é tamanha que, quando Tom percebe a hesitação de Nick em cumprimentá-lo, reage de forma indignada: “Você está louco, Nick. […] Não sei qual o seu problema”.

“Apertei a mão de Tom; me pareceu tolo não fazê-lo, pois tive a súbita impressão de que estava lidando com uma criança. Então ele entrou na joalheria para comprar um colar de pérolas — ou talvez apenas um par de abotoaduras —, livre para sempre da minha sensibilidade provinciana.”

Até o último instante, Gatsby esperava o telefonema de Daisy. E é assim que, ao final do romance, temos um cadáver boiando à deriva num colchão inflável, e uma tradutora que abraçou o livro por acidente — justo este livro — e até hoje não sabe ao certo se o automóvel que a atropelou era verde-claro ou amarelo.

*****

Vanessa Barbara tem 29 anos, é jornalista e escritora. Publicou O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o Escavador de Umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Politicamente cruel

Posted: 25th setembro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S. Paulo – Ilustrada
25 de setembro de 2001

por Vanessa Barbara 

No dia 16, estreou no Brasil o filme “Glee 3D”, que conta os bastidores da turnê musical dos protagonistas da série pelos EUA.

Prenunciando o fracasso de bilheteria, o astuto produtor soltou um comunicado à imprensa supostamente escrito pela vilã Sue Sylvester, treinadora das cheerleaders e arquirrival do clube de canto que dá nome ao show.

“Diga não a essa experiência cinematográfica insignificante”, ela bradou. “Seu rosto vai derreter e seus filhos irão chorar sobre o cadáver desfigurado”.

De forma absolutamente inadequada, lembrei do escritor Jorge Luis Borges, que clamava o direito de escrever uma crítica impiedosa contra si mesmo, pois ninguém conhecia melhor seus defeitos.

Egocêntrica e mesquinha, Sue Sylvester é um dos acertos da série, com suas tiradas difamatórias, o invariável abrigo de ginástica e o costume de empurrar as crianças no corredor.

Ela forma um complemento perfeito à sinceridade tocante do diretor Figgins, capaz de dizer coisas como: “Infelizmente, Fulano não pôde comparecer por desinteresse”.

Certa vez, ele anunciou nos alto-falantes: “Em primeiro lugar, os alunos que comeram o ravióli hoje e não estão em dia com a vacina de tétano devem ir à enfermaria imediatamente”.

Sue Sylvester não perde em franqueza – ela é autora do best-seller: “Eu sou uma campeã e você é gordo” e gosta de se referir aos membros do Clube Glee como “aqueles perdedores que brincam de druidas e gnomos”.

Seu método pedagógico se traduz num “estado de medo constante, um ambiente de terror irracional e aleatório”. Seu bordão: “Vocês acham isso difícil? Experimentem a tortura por afogamento”.

Num momento de ternura, ela confessa que não deseja fazer as pazes com Will Schuester, mas golpeá-lo com uma pá.

Anota todos os planos malévolos num diário, como quando falhou em trocar as cadeiras da escola por traves afiadas, “numa retumbante derrota em minha guerra contra sentar”.

Uma de suas pérolas: “Se você atrasar um minuto, irei ao abrigo de animais e lhe trarei um gatinho. Deixarei que você se apaixone pelo filhote. E aí, numa noite escura e fria, invadirei a sua casa só para surrá-lo”.

Chega de vilões sentimentais. O mundo precisa de uma nova Cruella Cruel.

A cartografia de O grande Gatsby

Posted: 20th setembro 2011 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
20 setembro 2011, 10:46 am

Por Vanessa Barbara

O mapa acima foi cuidadosa e atabalhoadamente confeccionado pela tradutora deste romance, com vistas a se localizar na geografia mítica de Fitzgerald, que mistura logradouros inventados à cartografia real de Long Island.

O objetivo é ajudar o leitor a se situar nas andanças dos personagens pela região e no caminho até Manhattan.

A fictícia “West Egg” do livro, onde moram Gatsby e Nick Carraway, corresponde a Kings Point, na península de Great Neck. A badalada “East Egg”, onde vivem os Buchanan, corresponde a Sands Point, na península de Cow Neck.

O lendário Vale das Cinzas, onde se localiza a oficina de George Wilson e onde ocorre o acidente, é uma região comprida e desolada, conhecida na época como o Depósito de Corona, no Queens, onde eram descartadas as cinzas industriais das fornalhas de carvão, além de lixo e esterco. Em 1936, a área foi revitalizada para a Feira Mundial de 1939-40, e hoje abriga o Flushing Meadows Corona Park (onde até há pouco tempo havia o Shea Stadium).

Pode-se dizer que a oficina de Wilson no Vale das Cinzas fica próxima ao ponto onde a rodovia e a ferrovia cortam o rio Flushing. Em sua geografia mítica, Fitzgerald teve de aproximar o traçado de ambas para poder situar a oficina à beira da estrada e a pouca distância da ponte levadiça que define a parada dos trens.

Recomenda-se que o leitor imprima este garboso mapa de proporções razoavelmente fidedignas a fim de anexá-lo à última página do livro, podendo se sentir à vontade para percorrer os passos dos personagens com a ajuda de peões coloridos, feijões ou carrinhos do Jogo da Vida.

Observação: Como base, usei uma foto de satélite gentilmente fornecida pelo Google Earth, transcrita em papel vegetal com canetinhas e lápis de cor. Fica o agradecimento a Jennifer Roberts, professora de literatura americana da Point Loma High School, em San Diego, Califórnia, que postou em seu blog este belo mapa, que adotei como esboço.

* * * * *

Vanessa Barbara tem 28 anos, é jornalista e escritora. Publicou O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o Escavador de Umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Por uma miss sem noção

Posted: 18th setembro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S. Paulo / Ilustrada
18 de setembro de 2011

por Vanessa Barbara

Para ganhar o concurso de Miss Universo, é preciso ser terráquea. O que se configura extrema injustiça e tira do páreo as belas mulheres de Hercólubus, aquele planeta em rota de colisão com a Terra, e do recém-descoberto HD85512b, onde, com sua tez esverdeada, as nativas devem ficar lindas de biquíni marrom.

(Há quem diga que a representante de Andrômeda compareceu ao concurso, mas não era visível. Outras pereceram com o ar-condicionado do Credicard Hall, posto serem micróbios.)

Além da tediosa procedência terrícola, há que se ter porte, presença e elegância. Mão na cintura e olhar perdido, como se estivessem resolvendo um cálculo matemático (…menos oito, fica sete, vai um), elas foram obedientes ao treino recebido.

Daí a falta de grandes emoções e imprevistos no Miss Universo 2011, exibido pela Band na segunda-feira.

A emissora tinha um camarote de onde transmitia os comentários de Adriane Galisteu e da editora de moda Susana Barbosa. O palco da cerimônia podia ser visto ao fundo.

Melhor seria se houvessem transmitido os intervalos do show, aqueles instigantes momentos em que os produtores dão instruções para o público e há maquiadores em perpétuo estado de retoque.

Em uma dessas pausas, as misses congelaram as poses enquanto um sujeito ao microfone informava que era proibido apitar.

Na hora das perguntas, mais tédio – questionada sobre o nudismo, a representante da China, que lembrava um altivo urso panda, perdeu a chance de dizer que era, sim, a favor de todo mundo peladão. Receberia o apoio histérico da torcida.

Quanto ao que gostaria de mudar no corpo, a campeã Miss Angola podia ter dito: visão de raios X e respiração branquial subaquática, o que, se talvez não agradasse, ao menos impressionaria os jurados.

Outras perguntas versariam sobre a pena de morte (sim ou não, sem chances para tergiversar sobre a importância de manter as praias limpas), aborto, legalização das drogas e transgênicos.

Fosse eu a representante da República Popular do Mandaqui, tornaria tudo mais divertido manifestando ser contra as criancinhas do mundo e a favor das guerras, da corrupção, da fome e da saia-balão.

Meus hobbies: torturar passarinhos e tossir sem cobrir a boca.

Só mais uma observaçãozinha

Posted: 11th setembro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S. Paulo / Ilustrada
11 de setembro de 2011

por Vanessa Barbara 

Muita gente escreveu comentando a coluna sobre o ator Peter Falk (“Como se faz um ‘Columbo’”, de 10/7/11). Por isso resolvi parar à porta, hesitar um segundo e fazer “só mais uma observaçãozinha”.

O médico Fernando Corpa Fernandes, de 69 anos, quis saber por que a Universal não lançou no Brasil a série completa, desistindo do projeto antes da quarta temporada.

Ele elenca em seu e-mail as coisas de que mais gosta na vida: “pescar, Timão e Columbo”, no que estou absolutamente de acordo.

O dentista Marcio Palacios aproveitou para mandar um conto sobre manequins macabros, que compôs usando o método descrito na coluna: partindo de um fato ou situação, criam-se as condições para tudo acontecer.

O leitor Sergio Beni lembrou um de seus episódios preferidos, em que o assassino usa uma barra de gelo para cometer o homicídio, golpeando alguém à beira da piscina. Ou seja, a arma do crime nunca poderia ser encontrada.

“Que ideia maravilhosa”, ele comenta. “Vou escrever com letras maiores: QUE IDEIA MARAVILHOSA!”.

Já Aparecido Schiavone, de 63 anos, costumava assistir “Columbo” às segundas à noite na TV Tupi e enviou um verdadeiro tratado sobre o personagem, referindo-se a seus cabelos desgrenhados, “voz fina e irritante, sapatos velhos, terno gasto, camisa branca e gravata fina, estilo cowboy”.

“Tinha maneirismos como colocar o dorso da mão aberta na testa quando se via diante de um fato estranho na investigação. Mantinha uma cigarrilha apagada na mão esquerda e nunca tinha fósforos.”

Além da certeza de que ladrões pé de chinelo não cometiam crimes premeditados, Aparecido lembra outro corolário do tenente: toda teoria tem uma ramificação. Enquanto cada caminho não fosse fechado, era preciso insistir.

E quanto ao primeiro nome de Columbo? A resposta “Philip”, muito popular na época, foi inventada pelo escritor Fred Worth, que inseriu uma informação errada num livro de “trivia” só para poder processar futuros plagiadores.

(É o mesmo método usado por cartógrafos que plantam nomes fictícios de logradouros como futuras evidências de cópia não autorizada.)

Ao que parece, o primeiro nome de Columbo era, simplesmente, “Tenente”.

Dinei e as lhamas

Posted: 4th setembro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, TV
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Tenho acompanhado com avidez as notícias do reality show “A Fazenda” (Record, dom. a sex. às 23h, sáb. às 22h15), que traduzem à perfeição todo o interesse e importância inerentes ao programa – e ao noticiário em si, por tabela.

Minhas preferidas se referem ao envolvimento emocional de Dinei com a população residente de lhamas (um macho e uma fêmea), suas melhores amigas e confidentes, que ouvem as angústias do atleta enquanto coçam as costas na cerca e mastigam portentosas graminhas.

De início, o ex-jogador do Corinthians temia levar uma boa cusparada dos animais, batizados pelo público de Lana e Lino. Com a convivência, perdeu o medo e também o pudor.

“Eu nunca vou esquecer vocês”, declarou, improvisando um samba cujos versos diziam: “Seu sorriso alto, nananã…/ Na orgia…/ Seu sorriso alto, simpatia…/ Nem tudo/ Em tuas glórias/ Eu lhe garanto…”, levantando dúvidas quanto à sua sanidade mental.

Segundo a imprensa, Dinei se afeiçoou aos ruminantes e passa as tardes gritando “Lino!” quando está sozinho na casa da árvore. “Falavam que você cuspia na cara”, afirmou, “mas nós viramos irmãos, mano”.

Num dos desabafos ele até chorou, exclamando, diante do camelídeo cada vez mais perplexo: “Por que fiz tanta besteira na minha vida, meu Deus do céu?”.

Dinei costuma procurar o pacato lhama para “trocar uma ideia”, e, no domingo passado, confidenciou que, se ganhar os 2 milhões, irá levá-lo para casa. Em público, disfarça sua afeição: “Se ele cuspir em mim, eu cuspo nele também”.

Até o fechamento desta edição, Lino não se pronunciou. Se persistir o assédio, temo que o lanífero peça para sair do programa, alegando que conversar com Dinei não está no contrato. “É muito degradante, né? A gente é lhama, mas a gente tem o nosso valor”, há de comentar o ruminante.

Outras notícias recentes: “Anna Markun se irrita com cabras”, “Compadre Washington assa a batata de Joana” e “Valesca Popozuda provoca avestruz”.

***

P.S.: Ainda que as lhamas sejam o destaque absoluto do programa, o paraquedista Gui Pádua se saiu bem num desses momentos de histeria após o corte de um dos confinados. “Ela foi eliminada do jogo, não da vida”, filosofou.

Papai noel armênio, egípcio de quipá

Posted: 1st setembro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Adur

Revista 18, do Centro da Cultura Judaica
Setembro de 2011

por Vanessa Barbara

Quando eu tinha 3 anos, nos idos de 1985, o Papai Noel da família se chamava Adur Kiulhtzian – um descendente de gregos e armênios que posteriormente virou tenor de projeção internacional, mas que até então era um amigo de infância dos meus tios. Todos os anos, Adur arrastava um saco de presentes pelo quintal da casa dos meus avós, no Bom Retiro, enquanto sua voz potente ecoava um ho! ho! ho! macabro, que me fazia chorar a noite inteira.

Adur e o irmão Stepan eram grandes amigos da família, bem como seu primo, Kevork Zadikian. Até hoje, Stepan mora na mesma rua (a Rodolfo Miranda, próxima à estação Armênia do metrô), assim como os meus avós, Glaudy e Paulo de Moraes. Minha família tem origem portuguesa e, ao longo de cinco gerações, vem acompanhando as transformações da região, totalizando 86 anos de bairro – somos, portanto, do jet set bonretirense.

O Bom Retiro é um lugar engraçado, confuso e anacrônico, onde se ouvem ao menos cinco idiomas e coabitam várias gerações de residentes e comerciantes. Lá, existem papelarias com a aparência de que fecharam em 1967 e reabriram na semana passada, exatamente como eram. Numa mesma esquina, convivem letreiros em coreano, um empório de comida kosher, uma lanchonete de burekas búlgaras e um padre Armênio que não é armênio, mas natural da Vila Brasilândia, zona norte. (Armênio é capelão do Mosteiro da Luz, ex-árbitro de futebol, corinthiano e apaixonado por fados portugueses.) Há também joint-ventures curiosas, como a videolocadora-cabeleireiro-despachante que esteve em atividade até pouco tempo, com sua promoção de R$ 1,50 para filmes do catálogo que ninguém levava, só eu – do tipo Momo, o senhor do tempo. E mais: um boteco com um poema do Fernando Pessoa pintado na parede, um jornaleiro que emprestava revistas aos clientes e um desconhecido que deixava dinheiro na caixa de correio dos outros, sem motivo.

Caos turco

O ponto para onde convergem todas as coisas é o armarinho do Turco, na rua Três Rios, 148 – cujo nome oficial é “Loja do Turquinho”. Trata-se de uma loja ostensivamente desorganizada, de propriedade dos irmãos Sérgio e Roberto Camasmie, que sabem exatamente onde ficam os extensores para sutiã da cor creme, as flanelas para pijamas, os rolos de cetim, tules, flanelas, aviamentos de costura, botões, forros, lãs, linhas, barbantes, agulhas, zíperes, rendas, tapetes e até aquele pedaço de veludo que a dona Ione deixou em 1955 para trocar porque veio com um vinco. “Não é infinito, mas é um finito longo”, costumam dizer. “Só não achamos o que não existe.”

O pai deles, Hacib, veio da Síria no começo do século e abriu a loja em 1925. Desde então, as coisas continuam basicamente no mesmo lugar. Amontoados, os grandes rolos de tecido ocultam mais rolos de tecido, e atrás deles se pode vislumbrar uma estante de metal comprida, uma escada de quatro metros de altura e o balcão, invariavelmente ocupado pelos dois irmãos. Que repetem ao recém-chegado: “Quem não pediu, pida.”

Sérgio e Roberto são engenheiros de formação, mas resolveram assumir o negócio em reverência ao pai, falecido em 1994, aos 95 anos. Juntos, atendem dezenas de clientes ao mesmo tempo, cobram os produtos, calculam o troco e fazem gracinhas, sobretudo às mulheres, a quem Sérgio diz ser “especialista em sutiã”. Negociam com japoneses, coreanos, armênios, gregos, egípcios, bolivianos e israelitas, todos seguindo a trilha dos imigrantes italianos que tomaram o bairro no início do século. Por conta da clientela internacional, sabem falar várias línguas. O velho Hacib era fluente em russo, árabe e italiano. Sérgio é versado em rudimentos do coreano: “Estou fazendo aquele curso de coreano por correspondência”, diz, e nunca se sabe quando está brincando. Ambos dominam as saudações básicas, uma ou outra pergunta “e, claro, os números”. “Embrulha-se o freguês em qualquer língua”, riem.

Em árabe, por exemplo, provocam o amigo e cliente Sherine Shaaban, numa cena registrada no documentário Cosmópolis (2005, Mutante Filmes). “Esse aqui é um grande shahath”, Sérgio afirma, apontando o recém-chegado. “Sabe o que é shahath? Chorão.”

Típico morador do bairro, Sherine tem 49 anos e nasceu em Alexandria, no Egito. É descendente de um muçulmano (Ibrahim Hussein Shaaban) e uma judia (Sarina Victor Schinazi). Sua esposa é nipo-brasileira, e seu filho se chama Amir Nasser Inawashiro Shaaban.

Além de praticante de xadrez e esgrima, esse egípcio é o maior fabricante de quipás da América Latina.

Seleção do resto do mundo

Artilheiro do time do Real F.S., fundado em 1979, meu tio Paulo de Moraes Júnior mora no bairro até hoje. Além dele, a escalação de base compreendia meu outro tio Mário Luiz, o Pezão (ocasionalmente substituído pelo Baleia), o Armênio (Kevork Kiulhtzian) e o Josué, neto da dona Rosária, uma espanhola que morava na rua João Kopke. “Em um dos nossos jogos internacionais, um boliviano baixinho e atarracado cabeceou o meu rosto em vez de cabecear a bola. Quebrei o nariz. Ele era tio da Kika e do Juca, que também moravam na João Kopke”, lembra.

Na época, uma das poucas bolivianas da região era a dona Fernanda, que fazia sacolas de ráfia, trabalhava “feito uma doida” e teve duas filhas gordinhas que sofriam bullying da molecada.

Na mesma calçada da casa dos meus avós ficava o prédio da Ofidas (Organização Feminina Israelita de Assistência Social), entidade beneficente hoje incorporada à Unibes (União Brasileiro-Israelita do Bem-Estar Social). No segundo andar do edifício, havia uma suculenta biblioteca, onde, em meados de 1967, aos 13 anos, minha mãe Luiza resolveu abrir uma ficha – lá em casa não havia livros, e seu material de leitura até então consistia em quadrinhos usados e fotonovelas que minha avó comprava na feira.

Pouco depois, minha mãe deixou o decoro de lado e decidiu abrir seis fichas – uma para cada membro da família, incluindo as tias. Naturalmente, era ela quem lia tudo, voltando na semana seguinte para pegar uma nova leva. As bibliotecárias, claro, perceberam a movimentação suspeita e acharam por bem admiti-la como voluntária, mantendo-a sob vigilância e, de quebra, arrumando alguém para espanar os livros. Dona Ida e suas colegas davam total liberdade de ação para a pequena devoradora de romances e sugeriam novos títulos sem, contudo, serem invasivas. Durante anos a fio, graças às senhoras da Ofidas, minha mãe pôde ler um bom número de clássicos da literatura (em edições de luxo, adornados com letras douradas e encadernação de couro ou percalina), além de lançamentos contemporâneos como Exodus, de Leon Uris, que ela até hoje adora.

Já meu tio, em sua condição de futebolista veterano, fez questão de jogar nas quadras poliesportivas das mais diversas denominações religiosas presentes no Bom Retiro. Em quase cinquenta anos de bairro, demonstrou sua habilidade com a pelota no Instituto Dom Bosco, na Igreja Armênia Ortodoxa, no Colégio Nossa Senhora do Loreto e no Liceu Coração de Jesus, onde joga até hoje. Nas férias, aluga a quadra do Colégio Brasileiro Islâmico, onde é proibido falar palavrões e o atleta deve especificar a nacionalidade no ato da inscrição. Hoje, pertencem ao time um paraguaio chamado Javier, um coreano chamado San e um grego – que por acaso se chama Homero e é quem organiza as partidas.

O grupo segue o chamado “sistema homérico” de divisão dos times. Dono de uma papelaria na rua Correia de Melo, ele é responsável por imprimir, embaralhar e sortear os números plastificados que determinam a composição dos escretes (não só os que irão se enfrentar imediatamente, como também os que ficarão “de próximo”). É ele o dono do cronômetro.

Em 13 de junho de 2010, em plena Copa do Mundo, o Bom Retiro teve sua própria versão de Grécia vs. Coreia, um dia após a partida oficial. Homero foi chamado para disputar um arranca-toco contra um combinado de coreanos, proprietários de um comércio na rua Correia de Melo (hoje apelidada de “Coreia de Melo”). Tomado por um sentimento de civilidade neoclássica, encomendou um jogo de camisas nas cores branca e azul-claro e convocou a sua própria seleção: além do meu tio e do meu primo, que de gregos só tinham a afeição ao churrasco, o grupo era formado pelo filho de Homero, Emanuil, alguns brasileiros, um paraguaio e até um coreano. Mais uma vez, os helenos perderam.

Ecumenismo para todos os gostos

No distrito do Bom Retiro, que engloba os bairros da Ponte Pequena, Ponte Grande e Luz, há templos de pelo menos dez diferentes denominações religiosas. Há, por exemplo, uma igreja batista, uma Assembleia de Deus, uma igreja apostólica armênia, uma igreja ortodoxa grega, cinco paróquias católicas (Nossa Senhora da Auxiliadora, Santo Eduardo, São Cristóvão, São Gregório e o Santuário das Almas), um mosteiro (da Luz), seis sinagogas (Adat Ischurum, Ahavat Reim, Kehilat Israel, Kehilá Hadass Iereim, Machzikei Hadat, Rabi Itzchak Elchanan, Talmud Thorá Lubavitch) e um centro israelita (Knesset Israel), além da Congregação Israelita Ortodoxa Kehal Hassidim. Os coreanos têm sete opções: Igreja Batista Coreana, Igreja Missionária Emaús Coreana do Brasil, Igreja Coreana Missão Evangélica de São Paulo, Igreja Presbiteriana Fiel Coreana, Igreja Católica Coreana do Brasil, a Paróquia São Kim Degun e a Igreja Missionária Oriental de São Paulo. Outros templos da região são a Igreja Internacional da Graça de Deus, a Igreja Presbiteriana da Paz de São Paulo, a Presbiteriana Emanuel do Brasil, a Presbiteriana Feliz e a Congregação Cristã do Brasil (conhecida como “igrejinha dos italianos”, de confissão protestante).

De fato, os primeiros a se instalarem no bairro foram os portugueses e os italianos, já no fim do século XIX, atraídos pela crescente demanda de mão de obra nas indústrias e pelas políticas de subsídio à imigração. Depois vieram os judeus, antes mesmo da Primeira Guerra, embora a maioria tenha vindo no período de 1930 a 1947, tentando escapar do nazismo na Europa. Foi aproximadamente na mesma época que aportaram os gregos, fugindo da guerra civil no país (1946-49).

No final da década de 60, vieram os coreanos, que hoje ocupam 70% dos pontos comerciais da região – como se pode perceber pelos letreiros das lojas –, sendo os 20% restantes judeus e 10% italianos e gregos.

Imigração sideral

Quando moleque, meu tio fez kung-fu na rua José Paulino. Namorou uma boliviana e também uma judia, mas se casou mesmo com uma nipo-brasileira. Meu primo Daniel, hoje com 23 anos, passou a infância brincando com os filhos mineiros do vizinho, e aos cinco anos de idade já ostentava um inconfundível sotaque de Santa Rita do Sapucaí.

Até pouco tempo atrás, os moradores mais longevos da rua eram os italianos da família Del Bianco, que chegaram um mês depois dos meus tataravós, em 1926. Eu só conhecia o seu Roque de nome – era ele quem furava as bolas de capotão do meu tio e que saía escondido à noite para fazer cocô num buraco, a fim de incrementar o esterco dos patos e galinhas. Seu Roque era também o zelador da rua: varria o meio-fio de ponta a ponta, incluindo os bueiros, e aproveitava para catar todo tipo de bagulhos, que armazenava no quintal (placas, calotas, bolinhas de gude).

Sua irmã, dona Ida, passava o Natal conosco (e, por extensão, com o Papai Noel armênio) e gostava de ouvir aquela piada sobre a Corrida de São Silvestre, em que o atleta português, até então na dianteira, é ultrapassado porque parou no sinal vermelho.

Há meses, meu tio frequenta a Formativa Academia, na rua Bandeirantes, cujos proprietários (e muitos dos associados) são de origem coreana. Lá, minha tia Elizabet Sueda conheceu Norma Kosol, de 78 anos, judia polonesa que ainda mora na região e malha três vezes por semana. Quando Norma tinha 6 anos de idade, viu os nazistas queimarem sua terra natal, Kalish, e foi levada para morar com uma tia em Varsóvia. O pai voltou ao vilarejo destruído e ela não soube mais o que houve com os seus dois irmãos.

Em Varsóvia, Norma recebeu ajuda de uma associação católica para viver junto a outras quatro crianças, e pouco depois foi para a França com o apoio de uma organização judaica. Quando a guerra acabou, voltou para a Polônia. Lá se casou, teve um filho chamado Marcos e, aos 25 anos, veio para o Brasil, onde teve outro filho, José. Norma e Henrique Kosol moram há 52 anos no Bom Retiro. Ela é baixinha, magra, loira e faz musculação. É muito amiga da minha tia, que, por sua vez, é neta de japoneses nascidos em Kumamoto e Nagasaki.

Pertencente à geração seguinte, meu primo Daniel estudou com os coreanos Dong e Charly, além da boliviana Alessandra. Hoje, entre os melhores amigos da minha prima Victória, de 10 anos, aluna do Colégio de Santa Inês, estão os bolivianos Yosinory e Davi, e a coreana Stella Her.

Para além de todas as etnias citadas, minha família é testemunha de que não foram só armênios, portugueses, gregos, italianos, bolivianos, espanhóis, egípcios, sírios, israelitas, turcos e coreanos que visitaram o Bom Retiro. Habitantes de longe, muito longe, já frequentaram o bairro.

Certa noite, o Tuco, cachorro da casa, começou a latir. “Acho que foi no ano de 1978 ou 1979, porque a Luiza já estava casada e eu ainda usava óculos”, disse o meu tio, conferindo precisão histórica ao relato. A família toda saiu para averiguar, e se deparou com inúmeras luzes no céu. “Eram triangulares, sem as pontas, e em cada canto uma luz esverdeada. Vinham em alta velocidade da direção sul, mais ou menos da igreja armênia da avenida Tiradentes. Praticamente pairavam sobre nossas cabeças”, conta. Fora da família, a única testemunha foi o Pedrão, irmão do Josué, um dos espanhóis da João Kopke.

“Subimos até o prédio abandonado da transportadora, mas então ‘eles’ não voltaram. O Pedro tentou até uma telepatia para convencê-los a aparecer de novo, mas acho que foi um momento único”, disse. Minha tia Marisa chegou a telefonar para a base da Aeronáutica, no Campo de Marte, mas eles só mencionaram que detectaram os objetos, e que estavam bem altos e velozes.

Meu tio concluiu: “Em plena cidade de São Paulo, na rua Rodolfo Miranda, só nós tivemos a curiosidade de olhar para o céu. Ganhamos o privilégio de descobrir que não estamos sós no universo – e eles, de saberem que o Bom Retiro existe.”

Alergia a amendoim

Posted: 28th agosto 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Muito já se falou sobre Sue Sylvester, a vilã carismática e desequilibrada que é uma das principais atrações da série musical “Glee” (Fox, seg. às 21h; Globo, sáb. às 11h15).

Pouca gente reparou em outra boa figura da série: Brittany, a cheerleader loira de ascendência holandesa que entra para o grupo vocal da escola. É interpretada pela atriz Heather Morris, que improvisa muitas das tiradas nonsense da personagem.

Brittany tem a inteligência de um peixinho dourado. Vive distraída, entende tudo errado e faz os melhores comentários do grupo, com o rosto impassível, mesmo que sua frase não faça o menor sentido.

Na segunda temporada, descobriu-se que ela acreditava em Papai Noel. Também foi pega em atividades insólitas como tentar botar o papel higiênico de volta ao rolo e levantar a mão para perguntar quantos Ms tem na letra R.

Certa feita, ela entrou no consultório do dentista e declarou: “Esta sala parece a espaçonave onde fui testada uma vez”. Os colegas a ignoram, na esperança de que ela desista.

Não adianta – Brittany insiste em fazer confissões absolutamente despropositadas, como: “Tenho quase certeza de que o meu gato está lendo o meu diário”.

Ainda nesta temporada, ela ganha confiança após ter uma alucinação com a cantora Britney Spears, de quem sentia ciúmes por dividir “o mesmo nome”: Brittany Susan Pierce. Abreviando, Brittany S. Pierce.

O que lhe falta em inteligência e bom-senso sobra em bondade e inocência – embora, é verdade, ela já tenha saído com quase todos na escola, homens e mulheres, inclusive o zelador.

Ainda assim, quando o tetraplégico Artie reclama que ela nunca havia reparado nele, Brittany argumenta: “Até pouco tempo atrás, achei que você fosse um robô”. E está sendo sincera.

Certa vez, a loirinha passou o verão inteiro supostamente viajando, quando na verdade se perdeu na rede de esgotos. Foi o prof. Schuester que lhe ensinou a segunda metade do alfabeto: “Eu parava depois de M e N. Achava muito parecidos”.

Brittany não sabe ligar o computador, não é capaz de ler calendários, confunde-se com receitas e gosta de beber água salgada. Na próxima festa de Halloween, anunciou que irá se fantasiar de “alergia a amendoim”.

Os canadenses

Posted: 21st agosto 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S. Paulo – Ilustrada
21 de agosto de 2011

por Vanessa Barbara 

Ilustração: Águeda Horn

Sempre chega um momento em que até o colunista mais democrático cede ao ímpeto de falar de temas obscuros. O assunto de hoje versará sobre séries de TV canadenses.

O subsídio do governo do Canadá para utilização de suas florestas como locação já é bastante conhecido pelo público, em séries como “Arquivo-X”, “Battlestar Galactica” e “24 Horas”, rodados em Vancouver.

Mas o país tem também produções próprias, sendo as mais célebres “La Femme Nikita” e “Slings and Arrows”, que no Brasil ganhou um remake na Globo, “Som & Fúria”.

De todas, minha favorita só teve 22 episódios, passava no Multishow e se chamava “Hope Island” – era sobre um pastor protestante assumindo uma comunidade pacata de pessoas comuns. Não foi para a frente, claro.

Das séries esquisitas, a maior delas é “Wonderfalls”, exibida pela Fox em 2004. Por motivos que jamais poderão ser racional e absolutamente esclarecidos, passei o fim de semana assistindo a primeira (e única) temporada, de 13 episódios.

“É um conluio. Não só a Via Láctea e o planeta Terra, mas toda a Criação”, diz a protagonista, Jaye Tyler, uma garota formada em filosofia que decide viver num trailer e trabalhar como atendente numa loja de recordações nas Cataratas do Niágara. “Olha só para eles: trabalham muito e são infelizes. Eu consigo ser infeliz sem ter que trabalhar tanto”, justifica.

Numa conjuntura tampouco suficientemente explicada, Jaye recebe ordens de objetos com cara de animais. As tarefas dão início a uma corrente bizarra de eventos, com resultados positivos para os outros – menos para ela.

Na série, ela conclui que somos reféns do destino. “Você pode muito bem se entregar desde já e curvar-se perante a sua sorte”, ela diz a um atônito desconhecido.

Por suas próprias ações, acaba lançando o homem que ama nos braços da ex-mulher, conformando-se e chorando “até se formarem depósitos de sal sobre as suas bochechas”.

Em seu derrotismo irônico, Jaye é uma bela personagem cercada de outros bons coadjuvantes, mas a série ainda assim é esquisita. Destaque para um momento de fúria em que ela arremessa pela janela um bonequinho pendurado no espelho do carro. “Mas eu não disse nada!”, ele protesta, espatifando-se na calçada.

 

Gatsby no cinema

Posted: 19th agosto 2011 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
23 agosto 2011, 1:00 pm

Por Vanessa Barbara

Em 29 de setembro, a Penguin Companhia irá lançar O grande Gatsby, com introdução e notas de Tony Tanner e tradução desta vossa humilde criada. Até então, o clássico de F. Scott Fitzgerald havia sido publicado no Brasil em 1980, pela Abril Cultural, em tradução de Brenno Silveira, e este ano pela Record, traduzido por Roberto Muggiati.

Durante os quatro meses que passei com Nick Carraway em Long Island, pude assistir três das seis versões cinematográficas do romance. Da primeira, lançada em 1926, restou apenas o trailer, mas sabe-se que era bastante fiel ao romance (embora fosse um filme mudo). A segunda é muitíssimo interessante, mas pelos motivos errados.

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Gatsby de 1949

Lançada em 1949 e dirigida por Elliott Nugent, esta adaptação ganhou um delirante subtítulo em português: O grande Gatsby – Até o céu tem limites. Encontrei muitas resenhas elogiando a performance de Alan Ladd no papel principal, e foi com grande expectativa que me dispus a ver o filme, após procurá-lo febrilmente pelos torrents desta vida.

Quase morri de decepção. O longa já começa equivocado: vinte anos mais tarde, o casal Nick e Jordan visita o túmulo do notório gângster Jay Gatsby (o leitor não precisa se preocupar com spoilers, já que muita coisa dessa trama passa bem longe do original). Sim, pois as cenas seguintes deixam bem clara a ocupação do nosso herói: ele é visto trocando tiros com a polícia, traficando bebidas alcoólicas, sendo perseguido pela Lei e tocando o horror num flashback moralizante e destituído de nuances.

Em sua lápide, uma passagem bíblica escolhida por Nick: “Tal caminho parece reto para alguém, mas afinal é o caminho da morte”. Fiquei imaginando que tipo de gente bota uma coisa dessas na lápide do amigo.

Uma a uma, todas as ambiguidades do romance são destroçadas a golpes de marreta: com sua estola de peles, Myrtle sai da oficina correndo e grita: “O carro amarelo! É ele! Pare!”, algo que é apenas sugerido no livro — se tanto. A cena mostra sem pudor quem estava ao volante do automóvel, o momento da colisão e o ímpeto vingativo de George Wilson.

Antes disso, no quarto do hotel, em lugar de uma situação tensa e trágica, Daisy se decide a ficar com Gatsby, exclamando: “Estou indo embora e nada no mundo vai me segurar!”. Confesso que ri em voz alta. Mais que isso, ela faz menção de se entregar à polícia e pede ajuda ao marido. “Não me deixe ser covarde, não me deixe ser fraca e egoísta. Por favor, pela primeira vez na vida, me ajude a ser leal e decente, fazendo o que é certo”. Tom responde: “Não, você está tentando me confundir”. Em seguida, tenta avisar Gatsby de que alguém está atrás dele.

Nessa versão, assim como nas demais, Nick é um santo: não só precisa ser contido em sua ânsia de fazer o bem (“vocês não podem deixar Jay levar a culpa!”), como no final se casa com Jordan. Tom é coagido por um homem armado, mas ainda assim não dedura o rival.

É como se fosse tudo um mal-entendido, um azar cósmico, e não uma consequência direta dos atos dos personagens, todos egoístas e descuidados — sem exceções, como observa Tony Tanner sobre Nick em sua introdução.

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Gatsby de 1974

A mais famosa das adaptações para o cinema é a dirigida por Jack Clayton e roteirizada por Francis Ford Coppola. Mia Farrow está no papel de Daisy, Sam Waterston é o narrador e Robert Redford é Jay Gatsby, numa eterna pose blasé com as mãos nos bolsos que até hoje me vem à mente quando penso no personagem.

Trata-se de uma versão quase literal dos acontecimentos do livro, unanimemente massacrada pela crítica por ser fiel ao texto e equivocada quanto às emoções e simbolismos do livro. O próprio Coppola renega o roteiro, dizendo que o diretor nem deve tê-lo levado em conta. Antes de Coppola, Truman Capote arriscou-se na função, mas parece que seu rascunho inicial fazia de Nick um homossexual e de Jordan uma lésbica vingativa. Foi demitido, e Coppola escreveu seu roteiro em três semanas.

O resultado é um filme idêntico ao livro na aparência. Por dentro, é “tão morto quanto um cadáver que está há muito tempo no fundo da piscina”, conforme um crítico do Times. É superficial e melodramático, focando apenas no romance entre os personagens, mas, ainda assim, foi a versão que mais me agradou — fiquei satisfeita de poder assistir à história e às cenas do livro, com diálogos literais, embora o fato de Mia Farrow resistir a um Gatsby interpretado por Redford não faça o menor sentido. (Talvez tivesse sido melhor escolher um ator menos charmoso — entre os nomes cogitados à época, Warren Beatty e Steve McQueen dariam na mesma, mas Jack Nicholson seria uma boa opção, pois que é mais feioso.)

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Gatsby de 2000

A adaptação seguinte foi feita para a TV e dirigida por Robert Markowitz, numa parceria entre o canal norte-americano A&E e a britânica Granada Produções. Mira Sorvino faz o papel de Daisy, Paul Rudd é o narrador e Toby Stephens é Jay Gatsby.

Esta versão também situa Gatsby como protagonista, numa trama invariavelmente focada no romance entre os dois amantes, prestando pouca ou nenhuma atenção ao narrador. Embora a adição das palavras finais do livro seja louvável, não gostei dos atores que fazem Gatsby e Tom — este último, que é pra ser um brutamontes, atua de forma quase gentil. Ele acerta no desdém, mas falha em agir como um grandalhão preconceituoso e agressivo, sem o menor respeito pelas mulheres. Tanto que, na cena da bofetada, ele chega a pedir desculpas à amante, como se o próprio ator não conseguisse evitar seu cavalheirismo.

Outro deslize do roteiro é associar grosseiramente o Homem dos Olhos de Coruja ao anúncio do Dr. T. J. Eckleburg, como se estivéssemos filmando um Gatsby for Dummies.

Uma das principais cenas do livro, a meu ver, é o encontro final entre Tom e o narrador, quando este finalmente cede e decide cumprimentar o brutamontes — apesar de tudo o que houve. Em nenhuma das adaptações a cena foi bem resolvida, tornando-se mais um momento de piedade do que de submissão moral do narrador perante as atrocidades dos demais.

Contudo, esta adaptação de 2000 é uma versão interessante que contém um quê da atmosfera do livro, e devo confessar que a Daisy de Mira Sorvino me agradou mais do que eu estaria disposta a admitir.

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Outros Gatsbies

Além dessas adaptações, há um filme obscuro do diretor Christopher Scott Cherot, de 2002, chamado G: Triângulo amoroso, cuja história é vagamente baseada no romance de Fitzgerald. O herói é um magnata do hip hop que deseja conquistar de volta o amor de sua vida.

Em 2007, o coreano Lee Kang-hoon dirigiu uma série de TV para o público jovem chamada The Great Catsby que, a despeito do que se pensa, não é uma adaptação direta do romance, mas de uma história em quadrinhos protagonizada por gatos — esta, sim, foi vagamente baseada no livro. Daisy ganhou o nome de Persu e troca Catsby por Houndu, um executivo bem-sucedido. Um trecho dessa insólita série pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=UmRgUn7PTCE.

Por fim, chegamos a 2011, quando o diretor Baz Luhrmann decidiu filmar, na Austrália, uma adaptação em 3D do clássico romance. Leonardo DiCaprio está no papel principal, Tobey McGuire é o narrador e Carey Mulligan é Daisy.

Os críticos já prenunciam mais um desastre, argumentando que é impossível adaptar o livro para as telas do jeito que Hollywood gostaria, já que o protagonista não é Gatsby, mas Nick Carraway, e o livro trata de seus dilemas morais.

A despeito de toda essa polêmica, há uma adaptação que ninguém menciona e que se ergue soberana entre as demais: O grande Gatsby para NES, um jogo de 8-bits com cara de antigo, criado por Charlie Hoey e Pete Smith. Este, sim, captura as nuances simbólicas do livro e se arrisca a modificações necessárias, como a jornada de Nick pela rede de esgoto novaiorquina e a aparição de espectros holandeses na praia, que são derrotados quando o herói arremessa seu chapéu. Os olhos do Dr. T. J. Eckleburg são um dos chefes de fase, bem como a luz verde que pisca no cais. Também é a única versão que acerta no protagonista: Nick Carraway.

Para jogar: http://greatgatsbygame.com.

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Vanessa Barbara tem 28 anos, é jornalista e escritora. Publicou O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o Escavador de Umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.