Papai noel armênio, egípcio de quipá

Postado em: 1st setembro 2011 por Vanessa Barbara em Crônicas
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Adur

Revista 18, do Centro da Cultura Judaica
Setembro de 2011

por Vanessa Barbara

Quando eu tinha 3 anos, nos idos de 1985, o Papai Noel da família se chamava Adur Kiulhtzian – um descendente de gregos e armênios que posteriormente virou tenor de projeção internacional, mas que até então era um amigo de infância dos meus tios. Todos os anos, Adur arrastava um saco de presentes pelo quintal da casa dos meus avós, no Bom Retiro, enquanto sua voz potente ecoava um ho! ho! ho! macabro, que me fazia chorar a noite inteira.

Adur e o irmão Stepan eram grandes amigos da família, bem como seu primo, Kevork Zadikian. Até hoje, Stepan mora na mesma rua (a Rodolfo Miranda, próxima à estação Armênia do metrô), assim como os meus avós, Glaudy e Paulo de Moraes. Minha família tem origem portuguesa e, ao longo de cinco gerações, vem acompanhando as transformações da região, totalizando 86 anos de bairro – somos, portanto, do jet set bonretirense.

O Bom Retiro é um lugar engraçado, confuso e anacrônico, onde se ouvem ao menos cinco idiomas e coabitam várias gerações de residentes e comerciantes. Lá, existem papelarias com a aparência de que fecharam em 1967 e reabriram na semana passada, exatamente como eram. Numa mesma esquina, convivem letreiros em coreano, um empório de comida kosher, uma lanchonete de burekas búlgaras e um padre Armênio que não é armênio, mas natural da Vila Brasilândia, zona norte. (Armênio é capelão do Mosteiro da Luz, ex-árbitro de futebol, corinthiano e apaixonado por fados portugueses.) Há também joint-ventures curiosas, como a videolocadora-cabeleireiro-despachante que esteve em atividade até pouco tempo, com sua promoção de R$ 1,50 para filmes do catálogo que ninguém levava, só eu – do tipo Momo, o senhor do tempo. E mais: um boteco com um poema do Fernando Pessoa pintado na parede, um jornaleiro que emprestava revistas aos clientes e um desconhecido que deixava dinheiro na caixa de correio dos outros, sem motivo.

Caos turco

O ponto para onde convergem todas as coisas é o armarinho do Turco, na rua Três Rios, 148 – cujo nome oficial é “Loja do Turquinho”. Trata-se de uma loja ostensivamente desorganizada, de propriedade dos irmãos Sérgio e Roberto Camasmie, que sabem exatamente onde ficam os extensores para sutiã da cor creme, as flanelas para pijamas, os rolos de cetim, tules, flanelas, aviamentos de costura, botões, forros, lãs, linhas, barbantes, agulhas, zíperes, rendas, tapetes e até aquele pedaço de veludo que a dona Ione deixou em 1955 para trocar porque veio com um vinco. “Não é infinito, mas é um finito longo”, costumam dizer. “Só não achamos o que não existe.”

O pai deles, Hacib, veio da Síria no começo do século e abriu a loja em 1925. Desde então, as coisas continuam basicamente no mesmo lugar. Amontoados, os grandes rolos de tecido ocultam mais rolos de tecido, e atrás deles se pode vislumbrar uma estante de metal comprida, uma escada de quatro metros de altura e o balcão, invariavelmente ocupado pelos dois irmãos. Que repetem ao recém-chegado: “Quem não pediu, pida.”

Sérgio e Roberto são engenheiros de formação, mas resolveram assumir o negócio em reverência ao pai, falecido em 1994, aos 95 anos. Juntos, atendem dezenas de clientes ao mesmo tempo, cobram os produtos, calculam o troco e fazem gracinhas, sobretudo às mulheres, a quem Sérgio diz ser “especialista em sutiã”. Negociam com japoneses, coreanos, armênios, gregos, egípcios, bolivianos e israelitas, todos seguindo a trilha dos imigrantes italianos que tomaram o bairro no início do século. Por conta da clientela internacional, sabem falar várias línguas. O velho Hacib era fluente em russo, árabe e italiano. Sérgio é versado em rudimentos do coreano: “Estou fazendo aquele curso de coreano por correspondência”, diz, e nunca se sabe quando está brincando. Ambos dominam as saudações básicas, uma ou outra pergunta “e, claro, os números”. “Embrulha-se o freguês em qualquer língua”, riem.

Em árabe, por exemplo, provocam o amigo e cliente Sherine Shaaban, numa cena registrada no documentário Cosmópolis (2005, Mutante Filmes). “Esse aqui é um grande shahath”, Sérgio afirma, apontando o recém-chegado. “Sabe o que é shahath? Chorão.”

Típico morador do bairro, Sherine tem 49 anos e nasceu em Alexandria, no Egito. É descendente de um muçulmano (Ibrahim Hussein Shaaban) e uma judia (Sarina Victor Schinazi). Sua esposa é nipo-brasileira, e seu filho se chama Amir Nasser Inawashiro Shaaban.

Além de praticante de xadrez e esgrima, esse egípcio é o maior fabricante de quipás da América Latina.

Seleção do resto do mundo

Artilheiro do time do Real F.S., fundado em 1979, meu tio Paulo de Moraes Júnior mora no bairro até hoje. Além dele, a escalação de base compreendia meu outro tio Mário Luiz, o Pezão (ocasionalmente substituído pelo Baleia), o Armênio (Kevork Kiulhtzian) e o Josué, neto da dona Rosária, uma espanhola que morava na rua João Kopke. “Em um dos nossos jogos internacionais, um boliviano baixinho e atarracado cabeceou o meu rosto em vez de cabecear a bola. Quebrei o nariz. Ele era tio da Kika e do Juca, que também moravam na João Kopke”, lembra.

Na época, uma das poucas bolivianas da região era a dona Fernanda, que fazia sacolas de ráfia, trabalhava “feito uma doida” e teve duas filhas gordinhas que sofriam bullying da molecada.

Na mesma calçada da casa dos meus avós ficava o prédio da Ofidas (Organização Feminina Israelita de Assistência Social), entidade beneficente hoje incorporada à Unibes (União Brasileiro-Israelita do Bem-Estar Social). No segundo andar do edifício, havia uma suculenta biblioteca, onde, em meados de 1967, aos 13 anos, minha mãe Luiza resolveu abrir uma ficha – lá em casa não havia livros, e seu material de leitura até então consistia em quadrinhos usados e fotonovelas que minha avó comprava na feira.

Pouco depois, minha mãe deixou o decoro de lado e decidiu abrir seis fichas – uma para cada membro da família, incluindo as tias. Naturalmente, era ela quem lia tudo, voltando na semana seguinte para pegar uma nova leva. As bibliotecárias, claro, perceberam a movimentação suspeita e acharam por bem admiti-la como voluntária, mantendo-a sob vigilância e, de quebra, arrumando alguém para espanar os livros. Dona Ida e suas colegas davam total liberdade de ação para a pequena devoradora de romances e sugeriam novos títulos sem, contudo, serem invasivas. Durante anos a fio, graças às senhoras da Ofidas, minha mãe pôde ler um bom número de clássicos da literatura (em edições de luxo, adornados com letras douradas e encadernação de couro ou percalina), além de lançamentos contemporâneos como Exodus, de Leon Uris, que ela até hoje adora.

Já meu tio, em sua condição de futebolista veterano, fez questão de jogar nas quadras poliesportivas das mais diversas denominações religiosas presentes no Bom Retiro. Em quase cinquenta anos de bairro, demonstrou sua habilidade com a pelota no Instituto Dom Bosco, na Igreja Armênia Ortodoxa, no Colégio Nossa Senhora do Loreto e no Liceu Coração de Jesus, onde joga até hoje. Nas férias, aluga a quadra do Colégio Brasileiro Islâmico, onde é proibido falar palavrões e o atleta deve especificar a nacionalidade no ato da inscrição. Hoje, pertencem ao time um paraguaio chamado Javier, um coreano chamado San e um grego – que por acaso se chama Homero e é quem organiza as partidas.

O grupo segue o chamado “sistema homérico” de divisão dos times. Dono de uma papelaria na rua Correia de Melo, ele é responsável por imprimir, embaralhar e sortear os números plastificados que determinam a composição dos escretes (não só os que irão se enfrentar imediatamente, como também os que ficarão “de próximo”). É ele o dono do cronômetro.

Em 13 de junho de 2010, em plena Copa do Mundo, o Bom Retiro teve sua própria versão de Grécia vs. Coreia, um dia após a partida oficial. Homero foi chamado para disputar um arranca-toco contra um combinado de coreanos, proprietários de um comércio na rua Correia de Melo (hoje apelidada de “Coreia de Melo”). Tomado por um sentimento de civilidade neoclássica, encomendou um jogo de camisas nas cores branca e azul-claro e convocou a sua própria seleção: além do meu tio e do meu primo, que de gregos só tinham a afeição ao churrasco, o grupo era formado pelo filho de Homero, Emanuil, alguns brasileiros, um paraguaio e até um coreano. Mais uma vez, os helenos perderam.

Ecumenismo para todos os gostos

No distrito do Bom Retiro, que engloba os bairros da Ponte Pequena, Ponte Grande e Luz, há templos de pelo menos dez diferentes denominações religiosas. Há, por exemplo, uma igreja batista, uma Assembleia de Deus, uma igreja apostólica armênia, uma igreja ortodoxa grega, cinco paróquias católicas (Nossa Senhora da Auxiliadora, Santo Eduardo, São Cristóvão, São Gregório e o Santuário das Almas), um mosteiro (da Luz), seis sinagogas (Adat Ischurum, Ahavat Reim, Kehilat Israel, Kehilá Hadass Iereim, Machzikei Hadat, Rabi Itzchak Elchanan, Talmud Thorá Lubavitch) e um centro israelita (Knesset Israel), além da Congregação Israelita Ortodoxa Kehal Hassidim. Os coreanos têm sete opções: Igreja Batista Coreana, Igreja Missionária Emaús Coreana do Brasil, Igreja Coreana Missão Evangélica de São Paulo, Igreja Presbiteriana Fiel Coreana, Igreja Católica Coreana do Brasil, a Paróquia São Kim Degun e a Igreja Missionária Oriental de São Paulo. Outros templos da região são a Igreja Internacional da Graça de Deus, a Igreja Presbiteriana da Paz de São Paulo, a Presbiteriana Emanuel do Brasil, a Presbiteriana Feliz e a Congregação Cristã do Brasil (conhecida como “igrejinha dos italianos”, de confissão protestante).

De fato, os primeiros a se instalarem no bairro foram os portugueses e os italianos, já no fim do século XIX, atraídos pela crescente demanda de mão de obra nas indústrias e pelas políticas de subsídio à imigração. Depois vieram os judeus, antes mesmo da Primeira Guerra, embora a maioria tenha vindo no período de 1930 a 1947, tentando escapar do nazismo na Europa. Foi aproximadamente na mesma época que aportaram os gregos, fugindo da guerra civil no país (1946-49).

No final da década de 60, vieram os coreanos, que hoje ocupam 70% dos pontos comerciais da região – como se pode perceber pelos letreiros das lojas –, sendo os 20% restantes judeus e 10% italianos e gregos.

Imigração sideral

Quando moleque, meu tio fez kung-fu na rua José Paulino. Namorou uma boliviana e também uma judia, mas se casou mesmo com uma nipo-brasileira. Meu primo Daniel, hoje com 23 anos, passou a infância brincando com os filhos mineiros do vizinho, e aos cinco anos de idade já ostentava um inconfundível sotaque de Santa Rita do Sapucaí.

Até pouco tempo atrás, os moradores mais longevos da rua eram os italianos da família Del Bianco, que chegaram um mês depois dos meus tataravós, em 1926. Eu só conhecia o seu Roque de nome – era ele quem furava as bolas de capotão do meu tio e que saía escondido à noite para fazer cocô num buraco, a fim de incrementar o esterco dos patos e galinhas. Seu Roque era também o zelador da rua: varria o meio-fio de ponta a ponta, incluindo os bueiros, e aproveitava para catar todo tipo de bagulhos, que armazenava no quintal (placas, calotas, bolinhas de gude).

Sua irmã, dona Ida, passava o Natal conosco (e, por extensão, com o Papai Noel armênio) e gostava de ouvir aquela piada sobre a Corrida de São Silvestre, em que o atleta português, até então na dianteira, é ultrapassado porque parou no sinal vermelho.

Há meses, meu tio frequenta a Formativa Academia, na rua Bandeirantes, cujos proprietários (e muitos dos associados) são de origem coreana. Lá, minha tia Elizabet Sueda conheceu Norma Kosol, de 78 anos, judia polonesa que ainda mora na região e malha três vezes por semana. Quando Norma tinha 6 anos de idade, viu os nazistas queimarem sua terra natal, Kalish, e foi levada para morar com uma tia em Varsóvia. O pai voltou ao vilarejo destruído e ela não soube mais o que houve com os seus dois irmãos.

Em Varsóvia, Norma recebeu ajuda de uma associação católica para viver junto a outras quatro crianças, e pouco depois foi para a França com o apoio de uma organização judaica. Quando a guerra acabou, voltou para a Polônia. Lá se casou, teve um filho chamado Marcos e, aos 25 anos, veio para o Brasil, onde teve outro filho, José. Norma e Henrique Kosol moram há 52 anos no Bom Retiro. Ela é baixinha, magra, loira e faz musculação. É muito amiga da minha tia, que, por sua vez, é neta de japoneses nascidos em Kumamoto e Nagasaki.

Pertencente à geração seguinte, meu primo Daniel estudou com os coreanos Dong e Charly, além da boliviana Alessandra. Hoje, entre os melhores amigos da minha prima Victória, de 10 anos, aluna do Colégio de Santa Inês, estão os bolivianos Yosinory e Davi, e a coreana Stella Her.

Para além de todas as etnias citadas, minha família é testemunha de que não foram só armênios, portugueses, gregos, italianos, bolivianos, espanhóis, egípcios, sírios, israelitas, turcos e coreanos que visitaram o Bom Retiro. Habitantes de longe, muito longe, já frequentaram o bairro.

Certa noite, o Tuco, cachorro da casa, começou a latir. “Acho que foi no ano de 1978 ou 1979, porque a Luiza já estava casada e eu ainda usava óculos”, disse o meu tio, conferindo precisão histórica ao relato. A família toda saiu para averiguar, e se deparou com inúmeras luzes no céu. “Eram triangulares, sem as pontas, e em cada canto uma luz esverdeada. Vinham em alta velocidade da direção sul, mais ou menos da igreja armênia da avenida Tiradentes. Praticamente pairavam sobre nossas cabeças”, conta. Fora da família, a única testemunha foi o Pedrão, irmão do Josué, um dos espanhóis da João Kopke.

“Subimos até o prédio abandonado da transportadora, mas então ‘eles’ não voltaram. O Pedro tentou até uma telepatia para convencê-los a aparecer de novo, mas acho que foi um momento único”, disse. Minha tia Marisa chegou a telefonar para a base da Aeronáutica, no Campo de Marte, mas eles só mencionaram que detectaram os objetos, e que estavam bem altos e velozes.

Meu tio concluiu: “Em plena cidade de São Paulo, na rua Rodolfo Miranda, só nós tivemos a curiosidade de olhar para o céu. Ganhamos o privilégio de descobrir que não estamos sós no universo – e eles, de saberem que o Bom Retiro existe.”

  1. Sandra disse:

    Vanessa! Gostei muito do seu texto. E claro, me lembrou dois filmes, “A musa impassível” e “Segundo movimento para piano e costura”, que falam sobre: Bom Retiro. Infelizmente não estão disponíveis por ai, mas qdo surgir dou uma dica.
    E convido para visitar o blog cidadeando. Lá discutimos questões sobre cidades e suas idiosincrasias :)
    Ah! A dica foi do Junior do clock!
    ;)