Matando personagens

Posted: 4th setembro 2012 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas

Instantâneo de “Murder by the book” (1971), episódio da série Columbo

Blog da Companhia das Letras
4 de setembro de 2012

por Vanessa Barbara

Instantâneo de “Murder by the book” (1971), episódio da série Columbo.

É um pouco como o “Assassino Terrivelmente Lento Com Arma Extremamente Ineficaz”, curta-metragem de Richard Gale sobre um sujeito que tenta cometer homicídio usando uma colher. “Isso vai soar ridículo, mas ele tem uma colher e dói pra burro”, conta a vítima ao telefone, enquanto o psicopata lhe aplica petelecos com o referido talher.

Mais ridículo ainda é o esquivo assassino da caneta, aquele escritor que, por tédio ou pura maldade, resolve um dia sair da cama e matar um de seus personagens. Assim de repente, entre o almoço e o cochilo da tarde, muitas vezes sem sentir remorso. Pior ainda é quando se trata de um herói, alguém que sinceramente não merecia terminar seus dias atropelado por uma horda de gnus ou atingido por um presunto em queda livre.

“Seja sádico”, recomenda Kurt Vonnegut em suas oito regras para escrever contos. “Não importa o quão doces e inocentes sejam seus protagonistas, faça acontecerem coisas horríveis com eles para que o leitor perceba do que são feitos.”

O psicopata da caneta segue à risca essa norma. Tal qual um Todo-Poderoso, não se importa em causar sofrimento às próprias criaturas, e, quando bem entende, pode eliminá-las no espaço entre um capítulo e outro, muitas vezes sem maiores explicações.

Kafka transformou um de seus personagens em artrópode e sujeitou outro a um pesadelo burocrático fatal; Flaubert induziu uma senhora ao adultério e a matou logo depois; Shakespeare causava tanto sofrimento que levava os outros ao suicídio; Bernard Cornwell começou guerras sangrentas; Stephenie Meyer tem personagens muito ruins e não mata nenhum deles, o que talvez seja pior.

Agatha Christie passava o fim de semana empenhada em arrumar formas engenhosas para eliminar inocentes, pesquisando sobre venenos que não deixam rastros e formas de se obter uma morte lenta e dolorosa; já Stephen King esperava que seus óbitos fossem apenas grotescos, traumáticos. J. K. Rowling diz ter chorado após matar um personagem central de Harry Potter e, quando seu marido perguntou por que então o fazia, ela explicou: “Não é assim que funciona. Quem escreve livros infantis deve ser um assassino implacável”.

Tenho lá minhas reservas e acredito que o escritor deva firmar um contrato de responsabilidade existencial com seus livros, tomando para si a culpa de traumatizar leitores e fazer marmanjos chorarem quando Gandalf é engolido pelo Balrog e só torna a aparecer lá pelo fim do livro, transformado num guru cinzento pouco convincente. Muitos autores deviam ser levados a julgamento a fim de justificar, perante os leitores, se a morte do personagem era realmente necessária e se não havia um jeito melhor de levá-la a cabo — tropeçar e cair nunca é uma opção honrada, assim como não se morre de morte natural nos melhores romances.

Eu mesma tenho um homicídio no currículo: a morte de um de meus personagens mais queridos, o besouro Bob, de O verão do Chibo, por problemas abdominais a esclarecer, isso sem falar numa lagartixa anônima covardemente esmagada, que despencou da árvore com seus olhinhos pidões. Em A Máquina de Goldberg, graphic novel que escrevi em parceria com o Fido Nesti (sairá em breve pela Quadrinhos na Companhia), passei noites em claro me torturando por não ter tido coragem de matar uma tartaruga.

O autor, enfim, tem total responsabilidade pelos seus atos, cenas e diálogos, de modo que, em literatura, estamos cercados de homicídios dolosos. Não consigo imaginar um escritor assassinando acidentalmente um personagem. Há sempre premeditação, frieza, uns quatro ou cinco capítulos preparatórios em que as engrenagens são postas em ação e a pobre vítima segue distraída para o matadouro. Há também preliminares emocionais, como nesses romances em que a gente sabe que alguém vai morrer só porque ganhou destaque de repente, em cenas lacrimosas com seus entes queridos e demoradas passagens ilustrativas de sua história, sua relevância e intenções neste mundo.

Um personagem morto pode continuar a viver na existência dos demais, ou, pior, pode ser ressuscitado por um autor sem escrúpulos, pela pressão financeira de um editor mesquinho ou por puxar os pés de seu criador todas as noites. Sherlock Holmes é um desses casos, e é por essas e outras que não se recomenda decapitar ninguém na literatura. Nunca se sabe quando será preciso suturar o pescoço à cabeça.

E por falar em decapitação indiscriminada e extermínio satisfeito de quase a totalidade de seu próprio elenco, algum dia vão levar a julgamento George R. R. Martin, de As crônicas de gelo e fogo. Esse vai pegar, no mínimo, prisão perpétua. Ou uma pena de morte diligentemente aplicada pelo Assassino Terrivelmente Lento Com a Arma Incrivelmente Ineficaz.

* * * * *

Vanessa Barbara tem 29 anos, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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Cadernos Expedicionários – Usain Bolt

Posted: 4th setembro 2012 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários, Crônicas
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Usain Bolt, para a revista Sport de 27 de julho de 2012

“Nos minutos anteriores à corrida, eu aceno para a multidão e penso em qualquer coisa que não seja o que estou prestes a fazer. Em geral penso em jogos de computador, porque amo jogar e eles distraem a minha mente”, declarou.

O favorito de Bolt é Black Ops, um sangrento jogo de guerra para PlayStation 3. Então se você acha que ele está pensando em sua estratégia para a corrida, é mais provável que ele esteja ocupando a mente com assassinato.

**

Revista Sport: É verdade que você tem um filhote de guepardo de estimação? 
Bolt: Sim, e ela já está grande. O nome dela é Lightning [Relâmpago] e não a vejo muito, pois mora no Quênia. Eu apenas sou seu patrocinador. 

RS: Pensa em trazê-la para morar com você?
Bolt: Não, cara, ela está enorme. Grande demais pra isso.

RS: Já apostou corrida com ela?
Bolt: Ainda não, mas acho que poderia ganhar.

O home theater do Pateta

Posted: 3rd setembro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
3 de setembro de 2012

por Vanessa Barbara

Em fins de 2007, os estúdios Disney lançaram um curta-metragem de animação tradicional, com ares de anos 50, intitulado “O home-theater do Pateta”.

Exibido no festival Anima Mundi e nos intervalos do Disney Channel, o vídeo foi recentemente incluído no DVD “Pura Risada com o Mickey: Volume 1”, coletânea de histórias clássicas do rato e seus amigos.

Nele, ao melhor estilo “Pateta nas Olimpíadas”, o protagonista decide comprar e instalar um sistema de home-theater para ver partidas de futebol.

Quem já precisou conectar um simples aparelho de videocassete numa tevê de tubo sabe do que estamos falando. O pomposo narrador, saído diretamente d’antanho, anuncia o passo a passo para usufruir dessa tecnologia avançada “que praticamente coloca o torcedor em campo”.

“A jornada celestial começa com alguns componentes fundamentais: o DVD, o CD, o LD, o DVR, o VCR, o receptor de áudio, cabos de vídeo, cabos de TV, antenas de satélite, o Blu-ray, o Green-ray, o Y de alta definição, o HDMI, o Pi e o E=mc2”, ele diz. “Ah! E não esqueça as pilhas. Elas não estão incluídas.”

Com sua alegria inquebrantável, Pateta empilha tudo num carrinho de supermercado e vai escolher a tevê. “Um modelo de tamanho conservador é a opção mais prudente”, sugere o narrador, enquanto Pateta tira o chapéu para uma tevê extravagante e diz: “Eu te amo”.

A excruciante ansiedade pela entrega do produto (das 8 às 5 da tarde) também é retratada. Por fim, a pilha de caixas chega, soterrando a casa de bolinhas de isopor.

Após remover os cabos de áudio e vídeo de sua amigável embalagem de segurança (mostra o Pateta com uma marreta), é preciso ligá-los aos conectores apropriados, “que estão convenientemente localizados na parte de trás da tevê”.

O moderno sistema de som inclui uma dezena de caixas para garantir uma acústica perfeitamente balanceada: “O canal central, equalizadores da esquerda e da direita, outro mais à esquerda, outro mais à direita, caixas de surround, caixas de surround com surround, bastante som para o caso de ter algum surdo na sala, e o super importante subwoofer”.

A essa altura, Pateta já pendurou um emaranhado de caixas acústicas no lustre, abriu um buraco na parede, encheu uma mesa de controles remotos e ganhou uma dezena de aparelhos piscando 12h00.

Quase perde o horário do jogo.

A garbosa drogaria do seu Décio, onde nem o Google Street View consegue chegar

Por que o Mandaqui está virando um reduto sem mandaquienses

Folha de S.Paulo – DNA paulistano
2 de setembro de 2012

por Vanessa Barbara

Encravado entre os bairros de Santana, Imirim e Tremembé, o Mandaqui é uma espécie de Brooklin da Zona Norte. Ou melhor: uma mistura de Brooklin, Santa Cecília e Júpiter. (É distante, divertido, inacessível e aqui o celular não pega tão bem.)

O Mandaqui se localiza a 10 km do centro. Em dias normais, são 40 minutos de ônibus até a praça da Sé e uma hora e meia até a avenida Paulista. Aqui as ruas são íngremes, há muitas ladeiras e poucas calçadas em situação decente. Há casas térreas e moradores antigos, os vizinhos se conhecem relativamente bem e os cachorros andam soltos por aí, com seus nomes de gente. (O Menelau era o meu preferido.)

Mas mesmo o Mandaqui tem mudado. Cada vez menos se vêem nativos nas ruas, andando para ir ao seu Décio (a farmácia) ou ao Roberto (dono da ótica no comecinho da avenida Santa Inês). Os mandaquienses, que vergonha, aderiram em massa aos seus possantes, automóveis lustrosos e tunados com que fazem todo tipo de tarefa cotidiana. Hoje em dia, há provavelmente mais automóveis do que mandaquienses. E mais estacionamentos do que parques.

É, sem dúvida, um dos bairros paulistanos que mais sofrem com essa estúpida valorização do carro que está matando a cidade: com o transporte público cada vez pior, mais demorado e mais cheio, todo mundo se acha no direito de ter um carro. E é cada vez mais difícil viver no Mandaqui, com ou sem carta de motorista.

Percorrer a avenida Voluntários da Pátria, por exemplo, saindo de Santana em direção ao bairro, é um exercício de amor à vida. Em dias calmos, o percurso de 4 km leva menos de 15 minutos, com o vento batendo na cara quando se está no banco alto do coletivo. Experimente fazer esse trajeto em dias úteis ou em horário de pico: só no trecho entre o terminal de ônibus e o supermercado Pastorinho você pode levar meia hora, espremido atrás de uma fila de carros numa estanque quermesse local. Não há corredores de ônibus e nem metrô próximo (o mais perto é o Jardim São Paulo, mas não há linhas pra lá, só uma lotação que passa na Zumkeller).

Cresci jogando bola na rua, e hoje em vez de mandaquienses, parques, bicicletas, clubes e campinhos, há funilarias, concessionárias e fumaça de escapamento.

A nova novela das duas

Posted: 27th agosto 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
27 de agosto de 2012

por Vanessa Barbara

Segundo a máxima de que a Justiça tarda, mas não falha, o julgamento do mensalão na última quinta-feira começou às 14h25, com um atraso de 25 minutos.

Ayres Britto e suas ombreiras deram início à plenária, que se estendeu até o anoitecer com uma única atração: o prosseguimento do voto do ministro Ricardo Lewandowski sobre as acusações de corrupção contra o deputado João Paulo Cunha e Marcos Valério.

Tomando um cafezinho após o outro, o grisalho Lewandowski, uma espécie de Clint Eastwood da mesóclise, tocou a absolver todos os réus da rodada. Passou uma eternidade elencando os valores alocados para a veiculação de propaganda em cada organização e veículo de imprensa (citar a Fundação Ubaldino do Amaral foi o ápice), e fiquei pensando se esse tipo de enumeração seria realmente necessária – já não estaria registrada nos documentos entregues pelo ministro aos seus nobres pares?

Lewandowski abusou da expressão “no sentido de”, atual substituta do “a nível de” no vocabulário do empolamento verbal. Usou as palavras “cerebrina” e “escorreita” antes mesmo do intervalo para o lanche, que demorou cerca de 40 minutos.

Acompanhar o julgamento do mensalão revelou-se uma opção de entretenimento mais interessante do que a de outras emissoras: na FOX Sports, o time peruano León de Huánuco enfrentava o equatoriano Deportivo Quito pela Copa Sul-Americana; no canal Bem Simples passava a segunda temporada do programa de costura “Ponto e Linha”; no Net Cidade São Paulo, a “Hora do Pescador”; e no RIT a florista Osmarina tirava suas dúvidas com um cardiologista.

A sessão terminou com um “cliffhanger”: o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo, levantou-se e disse que, na próxima plenária, responderá às divergências apontadas pelo eminente colega. Com verve de protagonista, o revisor Lewandowski dirigiu-se ao presidente Ayres Britto: “Também peço que me reserve espaço para responder. Se houver réplica, deverá haver tréplica”.

Britto recusou o pedido sob a alegação de que, segundo o regimento, o relator tem proeminência sobre o revisor na condução do processo. “Claro que é uma leitura muito particular que Vossa Excelência faz”, ironizou Lewandowski.

Nos minutos finais, ele ameaçou ausentar-se do pronunciamento de Barbosa, ao melhor estilo “não brinco mais”.

Não percam o capítulo de hoje, a partir das 14h, na TV Justiça.

Neymar e batata frita

Posted: 20th agosto 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
20 de agosto de 2012

por Vanessa Barbara

Uma mesa-redonda de futebol formada só por crianças: foi da TV Cultura a melhor ideia televisiva do ano, o “Cartãozinho Verde” (seg. a sex., 19h15). Na bancada, torcedores de 8 a 11 anos representando os maiores times paulistas, mediados pela atriz Cristina Mutarelli.

Os programas são curtos (menos de 15 minutos) e discutem os acontecimentos futebolísticos do dia. À diferença dos debates “adultos”, neste cada um assume de antemão suas preferências – mas, curiosamente, não há ofensas e nem bate-boca.

Ainda assim, a cada dia, os meninos se soltam mais. O melhor é quando desatam a falar ao mesmo tempo, empolgados com algum lance em específico, ou quando alguém dispara um comentário como: “E o goleiro, que não conseguia botar o calção?”.

Gosto dos apartes entusiasmados e sem sentido, que vêm do âmago dos pequenos fanáticos. A final da Libertadores foi narrada da seguinte maneira: “Quando o Corinthians fez o primeiro gol, meu dente estava mole e eu estava comendo maçã. Aí comecei a mexer nele e arranquei”, disse o são-paulino Pedro Crema, de 8 anos, que gosta de churrasco, de matemática e do desenho “Cocoricó”.

“O meu primo, quando foi o segundo gol do Corinthians, chutou a mesa, caiu farofa em cima do celular da minha mãe, o santinho voou para a cozinha, vixe”, narrou Matheus Ribeiro, 9 anos, que gosta de Neymar e batata frita. A apresentadora ficou na dúvida: “Seu primo estava totalmente contra?”. E a resposta: “Não, ele gostou. Foi sem querer.”

O corintiano João Braga, 8 anos, temeu quando o goleiro Júlio César foi levantar a taça porque “ele tem mão de alface”. Num exemplo de elegância e autocontrole, contemporizou: “Tudo bem que o Corinthians foi campeão da Libertadores, mas eu acho essa taça muito feia”.

O palmeirense Eric Lanfredi é o mais maduro do time, com 11 anos. Num dos programas, seu pai foi convidado para falar sobre preparação de goleiros, e certamente não esperava a (excelente) metralhadora de perguntas a que foi submetido, com espaço até para a questão: “É melhor luva com bolinha ou sem bolinha?”.

Nada supera um comentário infantil vindo do nada, sem presunção de especialista e nem objetivo aparente. No meio da discussão, o pequeno Pedro levantou a voz e disse: “O pai do meu amigo encontrou o Riquelme no restaurante”.

“Ah, é?”, retrucou a apresentadora, sem ação.

Cadernos Expedicionários – Olimpíada

Posted: 15th agosto 2012 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários

O mais vendido

Posted: 13th agosto 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
13 de agosto de 2012

por Vanessa Barbara

Assisti “Carrossel” quando passou pela primeira vez, em maio de 1991, do alto da minha segunda série. Torcia fervorosamente pela gordinha Laura e pelo Davi, dono de uma tartaruga, e imitava o estilo de cabelo da Maria Joaquina. Adorava o Kokimoto Mishima e morria de pena do Cirilo.

Produzida pela rede Televisa e exibida pelo SBT, a novela mexicana era o remake de um título argentino, “Jacinta Pichimahuida, la maestra que no se olvida” [A professora que não se esquece]. Dublada e reprisada no Brasil três vezes, chegou a ultrapassar a audiência do Jornal Nacional e da principal novela da Globo, “O Dono do Mundo”.

(Na época, a atriz que interpretava a professorinha Helena desceu a rampa do Congresso Nacional com o presidente Collor.)

Em outubro de 2011, o SBT começou a filmar o novo “Carrossel”, um remake do remake, com atores brasileiros. A novela foi anunciada à exaustão na própria programação da emissora, através de rápidas e inesperadas inserções publicitárias em outras atrações.

Foi assustador: em pleno episódio de “Dois Homens e Meio”, surgiu um frame verde com os dizeres “Carrossel vem Aí”. Na novela “Pequena Travessa”, que também possuía uma personagem de nome Helena, apareceu um insert de 0,35 segundos com a imagem da protagonista de “Carrossel”. Também durante um episódio de “Chaves” viu-se um pôster na vila anunciando a atração do SBT.

Dois dias antes da estreia, a emissora exibiu um especial de cinco horas com o elenco da novela e os palhaços Patati e Patatá. No domingo, os atores foram ao “Programa Silvio Santos”.

Na segunda-feira, 21 de maio, a atração foi enfim exibida com ótimos índices de audiência, que mantêm até hoje. Sem mais necessidade de ser vendida (subliminarmente ou não), dedicou-se ao passo seguinte: vender.

A marca de sabonetes Lifebuoy é anunciada sem pudor a qualquer momento, quando as crianças brincam com argila ou quando alguém espirra, em arremedos constrangedores.

No capítulo do dia 7 de junho, o tema da aula foi bactérias e a necessidade de se lavar as mãos com sabonete. A classe inteira rumou ao banheiro e Jaime Palilo ficou feliz ao reconhecer a marca usada em casa. “Sua família faz bem”, disse a professora. “Lifebuoy tem a fórmula Active 5, que protege contra até dez doenças, por isso é o mais vendido do mundo.”

Até parece que estamos sintonizados no canal de tapetes.

Obrigada pelo fogo

Posted: 12th agosto 2012 by Vanessa Barbara in Traduções
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Folha de S.Paulo – Ilustríssima
12 de agosto de 2012

por F. Scott Fitzgerald
Tradução de Vanessa Barbara

Aos 40 anos, a sra. Hanson era uma mulher bonita, mas um tanto apagada, que vendia espartilhos e cintas em viagens de negócios fora de Chicago. Por muitos anos seu território havia oscilado entre Toledo, Lima, Springfield, Columbus, Indianápolis e Fort Wayne, portanto a transferência para a região de Iowa–Kansas–Missouri fora uma promoção, já que a empresa estava mais fortemente estabelecida a oeste de Ohio.

No leste, ela conhecia pessoalmente a clientela e sempre tomava um drinque ou fumava um cigarro no escritório dos compradores, depois de concluídos os negócios. Mas logo descobriu que, na nova área, as coisas eram diferentes. Não só deixavam de lhe perguntar se ela desejava fumar como, em várias ocasiões, quando ela mesma indagou se alguém se importaria caso acendesse um cigarro, a resposta veio compungida: “Não é que eu me importe, mas seria um péssimo exemplo para os empregados”.

“Ah, claro, eu entendo.”

Às vezes, fumar era importante para a sra. Hanson. Ela trabalhava muito e era um jeito de fazê-la descansar e relaxar psicologicamente. Era viúva e não tinha nenhum parente próximo para quem escrever à noite, e assistir a mais de um filme por semana prejudicava seus olhos, de modo que fumar tornou-se um importante sinal de pontuação na comprida sentença de um dia na estrada.

Na última semana de sua primeira viagem pelo novo território, ela foi parar em Kansas City. Era meados de agosto e estava se sentindo sozinha entre seus novos contatos, portanto foi com alegria que encontrou, na recepção de uma das empresas, uma mulher que havia conhecido em Chicago. A sra. Hanson sentou-se enquanto aguardava ser anunciada e, conversando, descobriu um pouco sobre o homem com quem iria se encontrar.

“Ele se importaria se eu fumasse?”

“O quê? Meu Deus, sim!”, a amiga afirmou. “Ele deu dinheiro para financiar a lei contra o fumo.”

“Ah. Bem, obrigada pelo conselho – obrigada mesmo.”

“É bom você tomar cuidado por aqui”, a amiga acrescentou. “Principalmente com os maiores de 50 anos. Os que não estiveram na guerra. Um homem me disse que quem participou da guerra nunca faria objeção a um fumante.”

Porém, em sua parada seguinte, a sra. Hanson topou com uma exceção. Ele parecia um jovem muito agradável, mas tinha os olhos fixos no cigarro que ela segurava entre os dedos, tanto que ela se viu obrigada a apagá-lo. Foi recompensada quando ele a convidou para almoçar e, ao longo do período, efetuou uma compra de valor substancial.

Depois disso, ele insistiu em lhe dar carona até o compromisso seguinte, embora ela tivesse a intenção de procurar um hotel nas redondezas e dar umas tragadas no banheiro.

Foi um desses dias repletos de espera –todos estavam ocupados ou atrasados e, quando os clientes chegavam a aparecer, eram homens de rosto duro que não toleravam a autocomplacência alheia, ou então mulheres consciente ou inconscientemente comprometidas com as ideias desses homens.

A sra. Hanson não acendia um cigarro desde o café da manhã e de repente percebeu que era por isso que sentia uma vaga insatisfação ao fim de cada reunião, não importando o quanto havia sido bem-sucedida financeiramente.

Ela dizia: “Acho que cobrimos um mercado diferente. É tudo entretela e látex, claro, mas nós realmente conseguimos juntá-los de um modo diferente. O aumento de 30 por cento nas vendas deste ano fala por si só”.

Mas pensava consigo mesma: Se ao menos eu pudesse dar três tragadas, conseguiria vender até aqueles corpetes antiquados com barbatanas.

Só havia mais uma loja para visitar, porém o compromisso estava marcado para dali a meia hora. Daria tempo de passar no hotel, mas, sem nenhum táxi à vista, ela caminhou pela rua, pensando: “Talvez eu deva parar de fumar. Estou ficando viciada”.

À sua frente havia uma catedral católica. Parecia muito alta, e de repente ela teve uma ideia: se tantas nuvens de incenso haviam subido em espirais até chegar a Deus, um pouco de fumaça no vestíbulo não faria a menor diferença. Por que é que o Altíssimo iria se importar com uma mulher exausta dando umas baforadas no vestíbulo?

Contudo, ainda que não fosse católica, o pensamento a incomodou. Fumar era tão importante assim, mesmo correndo o risco de ofender tanta gente?

E ainda assim. Ele não se importaria, pensou com persistência. Na época Dele, ainda não haviam descoberto o tabaco…

A sra. Hanson entrou na igreja; o vestíbulo estava escuro e ela procurou um fósforo na bolsa, mas não encontrou nenhum.

Vou apanhar o fogo de uma das velas, pensou.

A escuridão da nave era cortada apenas por um facho de luz num dos cantos. Ela caminhou pelo corredor lateral em direção ao borrão esbranquiçado, então reparou que não era causado por velas e, em todo caso, estava quase sumindo – um homem parecia prestes a apagar a última lamparina a óleo.

“São oferendas votivas”, ele disse. “Nós apagamos à noite. Acho que é mais importante para quem ofereceu se as economizarmos para o dia seguinte, em vez de mantê-las acesas a noite toda.”

“Entendo.”

Ele apagou a última chama. Não havia mais luz na catedral, salvos um candelabro elétrico no teto e a lâmpada sempre acesa diante do sacrário.

“Boa noite”, disse o sacristão.

“Boa noite.”

“Suponho que você tenha vindo para rezar.”

“Isso mesmo.”

Ele entrou na sacristia. A sra. Hanson ajoelhou-se e rezou.

Fazia muito tempo que ela não rezava. Mal sabia para quê, então rezou para seu empregador e para os clientes em Des Moines e Kansas City. Quando terminou, olhou para cima. Uma imagem de Nossa Senhora a encarava de um nicho a menos de dois metros de sua cabeça.

A sra. Hanson contemplou vagamente a imagem. Então ficou de pé e caiu, exausta, na beira do assento. Em sua imaginação, a Virgem desceu, como na peça “O Milagre”, tomou seu lugar e vendeu espartilhos e cintas, ficando tão cansada quanto ela. Então a sra. Hanson deve ter cochilado por uns minutos. Acordou com a sensação de que algo havia mudado, sentiu aos poucos um aroma familiar no ar, que não era de incenso, e sentiu que seus dedos doíam. Então percebeu que o cigarro que trazia entre os dedos estava aceso – e queimando.

Ainda sonolenta demais para pensar, ela deu uma tragada para manter a chama viva. Então olhou para cima e viu o nicho vago de Nossa Senhora, à meia-luz.

“Obrigada pelo fogo”, ela disse.

Mas não lhe pareceu o suficiente, de modo que ela se ajoelhou, com a fumaça subindo em espirais do cigarro entre seus dedos.

“Muitíssimo obrigada pelo fogo”, ela disse.

O que o Rio pode aprender com Londres 2012 (antes que seja tarde)

Folha de S.Paulo – Esportes
Especial Olimpíada
12 de agosto de 2012

por Vanessa Barbara 

O primeiro passo foi escolher a área mais pobre e degradada da capital, Stratford, e elegê-la como futura localização do Parque Olímpico. A região era uma antiga zona industrial, com áreas abandonadas e terrenos contaminados por petróleo, alcatrão, cianeto e metais pesados.

Cinco máquinas foram designadas para lavar, peneirar e sacudir o solo, que também recebeu um tratamento chamado biorremediação, no qual microorganismos naturais consomem petróleo e diesel. Quase 2 milhões de toneladas de terra foram limpas e recolocadas no próprio parque. A operação demandou quatro anos de trabalho.

Com 2,5 quilômetros quadrados (quase o dobro do Parque do Ibirapuera), o complexo ganhou uma cobertura de 4 mil árvores e 300 mil plantas aquáticas. O rio Lea, antigo esgoto a céu aberto, foi recuperado. Milhares de girinos, peixes e criaturinhas silvestres, retirados na fase de construção, foram devolvidos ao seu habitat.

As fábricas sediadas no local foram transferidas e ganharam a prioridade de serviço nos Jogos – a cobertura de PVC da Arena de Basquete foi produzida por uma empresa de Stratford. Também a mão de obra local foi privilegiada.

A proposta desta Olimpíada sempre esteve ligada à sustentabilidade. Minha parte preferida é a da mobilidade – 100% dos espectadores chegaram às instalações olímpicas via transporte público, bicicleta ou a pé. Não havia estacionamentos nos ginásios e nem em suas proximidades. Só autoridades, atletas e jornalistas, além de pessoas com mobilidade reduzida, puderam utilizar automóveis. (Ainda assim, muitos não o fizeram, como o time americano de basquete, visto esta semana esperando o trem, e o esgrimista venezuelano que pegou o metrô com a medalha de ouro no peito.)

Impressionado, o presidente do Comitê Olímpico Internacional elogiou o “legado tangível” destes Jogos, sem elefantes brancos para a população. A ideia foi utilizar edificações já existentes (as quadras de Wimbledon para o tênis, Earls Court para o vôlei) ou edificar estruturas temporárias.

As arenas de basquete e polo aquático, por exemplo, são recicláveis – ao final dos jogos, todas as estruturas (bancos, quadras, ferragem e até os parafusos) serão desmontadas e reutilizadas.

O funcional Estádio Olímpico, com uma capacidade original de 80 mil assentos, foi pensado de forma modular. Após os Jogos, será reduzido para 50 mil lugares, visando o Mundial de Atletismo, em 2017. Depois disso, ficará com apenas 25 mil.

Também os anexos do Centro Aquático serão removidos, mas as piscinas e a arquibancada permanecerão como legado.

A partir do ano que vem, o parque será aberto à população.