Obrigada pelo fogo

Postado em: 12th agosto 2012 por Vanessa Barbara em Traduções
Tags: ,

Folha de S.Paulo – Ilustríssima
12 de agosto de 2012

por F. Scott Fitzgerald
Tradução de Vanessa Barbara

Aos 40 anos, a sra. Hanson era uma mulher bonita, mas um tanto apagada, que vendia espartilhos e cintas em viagens de negócios fora de Chicago. Por muitos anos seu território havia oscilado entre Toledo, Lima, Springfield, Columbus, Indianápolis e Fort Wayne, portanto a transferência para a região de Iowa–Kansas–Missouri fora uma promoção, já que a empresa estava mais fortemente estabelecida a oeste de Ohio.

No leste, ela conhecia pessoalmente a clientela e sempre tomava um drinque ou fumava um cigarro no escritório dos compradores, depois de concluídos os negócios. Mas logo descobriu que, na nova área, as coisas eram diferentes. Não só deixavam de lhe perguntar se ela desejava fumar como, em várias ocasiões, quando ela mesma indagou se alguém se importaria caso acendesse um cigarro, a resposta veio compungida: “Não é que eu me importe, mas seria um péssimo exemplo para os empregados”.

“Ah, claro, eu entendo.”

Às vezes, fumar era importante para a sra. Hanson. Ela trabalhava muito e era um jeito de fazê-la descansar e relaxar psicologicamente. Era viúva e não tinha nenhum parente próximo para quem escrever à noite, e assistir a mais de um filme por semana prejudicava seus olhos, de modo que fumar tornou-se um importante sinal de pontuação na comprida sentença de um dia na estrada.

Na última semana de sua primeira viagem pelo novo território, ela foi parar em Kansas City. Era meados de agosto e estava se sentindo sozinha entre seus novos contatos, portanto foi com alegria que encontrou, na recepção de uma das empresas, uma mulher que havia conhecido em Chicago. A sra. Hanson sentou-se enquanto aguardava ser anunciada e, conversando, descobriu um pouco sobre o homem com quem iria se encontrar.

“Ele se importaria se eu fumasse?”

“O quê? Meu Deus, sim!”, a amiga afirmou. “Ele deu dinheiro para financiar a lei contra o fumo.”

“Ah. Bem, obrigada pelo conselho – obrigada mesmo.”

“É bom você tomar cuidado por aqui”, a amiga acrescentou. “Principalmente com os maiores de 50 anos. Os que não estiveram na guerra. Um homem me disse que quem participou da guerra nunca faria objeção a um fumante.”

Porém, em sua parada seguinte, a sra. Hanson topou com uma exceção. Ele parecia um jovem muito agradável, mas tinha os olhos fixos no cigarro que ela segurava entre os dedos, tanto que ela se viu obrigada a apagá-lo. Foi recompensada quando ele a convidou para almoçar e, ao longo do período, efetuou uma compra de valor substancial.

Depois disso, ele insistiu em lhe dar carona até o compromisso seguinte, embora ela tivesse a intenção de procurar um hotel nas redondezas e dar umas tragadas no banheiro.

Foi um desses dias repletos de espera –todos estavam ocupados ou atrasados e, quando os clientes chegavam a aparecer, eram homens de rosto duro que não toleravam a autocomplacência alheia, ou então mulheres consciente ou inconscientemente comprometidas com as ideias desses homens.

A sra. Hanson não acendia um cigarro desde o café da manhã e de repente percebeu que era por isso que sentia uma vaga insatisfação ao fim de cada reunião, não importando o quanto havia sido bem-sucedida financeiramente.

Ela dizia: “Acho que cobrimos um mercado diferente. É tudo entretela e látex, claro, mas nós realmente conseguimos juntá-los de um modo diferente. O aumento de 30 por cento nas vendas deste ano fala por si só”.

Mas pensava consigo mesma: Se ao menos eu pudesse dar três tragadas, conseguiria vender até aqueles corpetes antiquados com barbatanas.

Só havia mais uma loja para visitar, porém o compromisso estava marcado para dali a meia hora. Daria tempo de passar no hotel, mas, sem nenhum táxi à vista, ela caminhou pela rua, pensando: “Talvez eu deva parar de fumar. Estou ficando viciada”.

À sua frente havia uma catedral católica. Parecia muito alta, e de repente ela teve uma ideia: se tantas nuvens de incenso haviam subido em espirais até chegar a Deus, um pouco de fumaça no vestíbulo não faria a menor diferença. Por que é que o Altíssimo iria se importar com uma mulher exausta dando umas baforadas no vestíbulo?

Contudo, ainda que não fosse católica, o pensamento a incomodou. Fumar era tão importante assim, mesmo correndo o risco de ofender tanta gente?

E ainda assim. Ele não se importaria, pensou com persistência. Na época Dele, ainda não haviam descoberto o tabaco…

A sra. Hanson entrou na igreja; o vestíbulo estava escuro e ela procurou um fósforo na bolsa, mas não encontrou nenhum.

Vou apanhar o fogo de uma das velas, pensou.

A escuridão da nave era cortada apenas por um facho de luz num dos cantos. Ela caminhou pelo corredor lateral em direção ao borrão esbranquiçado, então reparou que não era causado por velas e, em todo caso, estava quase sumindo – um homem parecia prestes a apagar a última lamparina a óleo.

“São oferendas votivas”, ele disse. “Nós apagamos à noite. Acho que é mais importante para quem ofereceu se as economizarmos para o dia seguinte, em vez de mantê-las acesas a noite toda.”

“Entendo.”

Ele apagou a última chama. Não havia mais luz na catedral, salvos um candelabro elétrico no teto e a lâmpada sempre acesa diante do sacrário.

“Boa noite”, disse o sacristão.

“Boa noite.”

“Suponho que você tenha vindo para rezar.”

“Isso mesmo.”

Ele entrou na sacristia. A sra. Hanson ajoelhou-se e rezou.

Fazia muito tempo que ela não rezava. Mal sabia para quê, então rezou para seu empregador e para os clientes em Des Moines e Kansas City. Quando terminou, olhou para cima. Uma imagem de Nossa Senhora a encarava de um nicho a menos de dois metros de sua cabeça.

A sra. Hanson contemplou vagamente a imagem. Então ficou de pé e caiu, exausta, na beira do assento. Em sua imaginação, a Virgem desceu, como na peça “O Milagre”, tomou seu lugar e vendeu espartilhos e cintas, ficando tão cansada quanto ela. Então a sra. Hanson deve ter cochilado por uns minutos. Acordou com a sensação de que algo havia mudado, sentiu aos poucos um aroma familiar no ar, que não era de incenso, e sentiu que seus dedos doíam. Então percebeu que o cigarro que trazia entre os dedos estava aceso – e queimando.

Ainda sonolenta demais para pensar, ela deu uma tragada para manter a chama viva. Então olhou para cima e viu o nicho vago de Nossa Senhora, à meia-luz.

“Obrigada pelo fogo”, ela disse.

Mas não lhe pareceu o suficiente, de modo que ela se ajoelhou, com a fumaça subindo em espirais do cigarro entre seus dedos.

“Muitíssimo obrigada pelo fogo”, ela disse.