Top Secret

Posted: 21st março 2011 by Vanessa Barbara in Clipping, Crônicas
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Blog da Cosac Naify
21 de março, 2011, às 16:50

por Cosac Naify

A comida e a bebida foram elo e ponto de partida de muitas sociedades secretas.

No livro de Vila-Matas, História abreviada da literatura portátil, é um drinque (refrescante), o shandy, que dá nome à seita dos portáteis. Shandy, além de remeter ao Tristram Shandy, vem de uma expressão dialetal de Yorkshire que significa “indistintamente alegre, volúvel e louco”, e é também, e sobretudo, a tradicional mistura de cerveja com limonada – o que na França dá-se o nome depanaché.

Nos textos abaixo, Vanessa Barbara, Sérgio Rodrigues e Júlio Pimentel Pinto relatam histórias de sociedades secretas unidas justamente pela comida. São seitas de conspiradores guiados por quindins, legumes, goiabada e toda sorte de alimentos.

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Povo do carvão
Vanessa Barbara

“Além do mais somos cinco e não queremos ser seis” é o mote desta sociedade literária secreta, que é tão secreta que nem os seus membros desconfiam da existência. Nossa principal diretriz temática é o uso da piada interna como figura de linguagem, nave-tia da nossa literatura. Formada por mim, Emilio Fraia, Antonio Prata, Paulo Werneck, Chico Mattoso, Fabrício Corsaletti e a minha mãe, tem como principal característica o hábito de responder entrevistas só falando em comida, não importa o que perguntem.

— Como você vê a ficção moderna?
— Veja bem, eu costumo compará-la a um grande pudim de queijo.

— Senhor Emilio, senhor Emilio, qual o sentido da literatura em sua vida?
— Nunca dei muita atenção aos legumes, embora sempre os tenha consumido. E nunca entendi o porquê dessa convenção estúpida de só servir peixe às sextas-feiras.

— Qual a essência do ser humano neste tempo de mudanças? Me parece que seus livros captam isso muito bem.
— Se é preciso definir em uma palavra: “quindim”. Não que siga critérios lógicos, o que nos levaria provavelmente às batatas ou ao ovo em estado bruto, mas trata-se da multiformidade que se pode tirar de uma iguaria bem feita.

*Vanessa Barbara é jornalista e escritora, autora de O livro amarelo do terminal

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Os desafiadores da goiabada
Sérgio Rodrigues

Formulado em 1978 pelo crítico Adolfo Pinho Rosa, o chamado “desafio da goiabada” é um enigma que estudantes de Letras ainda hoje gostam de sondar quando se veem ameaçados pelo tédio da teoria: como distinguir os membros de certa sociedade literária secreta fundada no Rio de Janeiro em meados do século XX? Seus sócios se identificariam por um sutil aceno maçônico: o emprego de determinada palavra no último parágrafo de uma obra de qualquer gênero, precedida de um verbo no pretérito imperfeito e seguida de advérbio. Pinho Rosa afirmou ter encontrado a pista do conluio numa carta de Lucio Cardoso a um amigo identificado como W., comprada de um alfarrabista de Caratinga. Infelizmente, o escritor mineiro não mencionava a tal palavra, que o crítico supôs ser “goiabada” (“Comia goiabada voluptuosamente”), embora nunca tenha citado um único caso concreto que sustentasse tal conjectura. “Camafeu”, “chupão”, “pandemônio”, “teteia”, “aldraba” e “bicho-de-pé” são outros palpites que até hoje se furtaram a dar resultados conclusivos. Na verdade, não é exagero afirmar que a dificuldade do desafio tem o tamanho do vocabulário da língua portuguesa.

*Sérgio Rodrigues é jornalista e escritor, autor de Elza, a garota, entre outros

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Os glutões
Júlio Pimentel Pinto

Ora, direi ouvir estrelas… Não, nada de ouvir. Comer. Não estrelas, naturalmente, que certo perderias os dentes. Nem comer livros, pois não somos cabras. Comer, simplesmente. Comer e ler, comer e escrever. Certos escritores jamais resistiram à oportunidade de trocar o livro por uma refeição; outros preferiram levar a comida para dentro do livro. Alguns foram glutões no dia a dia — casos de Balzac ou Lezama. Outros podiam até ser contidos à mesa, mas promoveram furiosos bacanais gastronômicos livrescos: sobretudo a brigada francesa — Rabelais, Voltaire, Proust, Dumas. Ah, estamos falando de comida. Então não poderiam faltar, óbvio, os espanhois. Do Sancho comilão de Cervantes ao gourmet-gourmand Pepe Carvalho, de Vázquez Montalbán. Nem italianos, ou melhor, os sicilianos: Vittorini ou Camilleri, entre peixes e doces. Também o clima frio ajuda a harmonizar pratos e leituras. Que o digam Mann, Pasternak ou Blixen, criadora do impagável (em todos os sentidos) jantar de Babette. Ou o glutoníssimo Nero Wolfe, personagem de Stout. E já que nossa pátria é nossa língua e nossa língua é nossa refeição, Eça, Vinícius e Jorge Amado. Todos reunidos numa confraria que sabe que quem devora livros devora algo mais.

*Júlio Pimentel é doutor em História pela FFLCH-USP e tradutor de História abreviada da literatura portátil e Modernidade periférica

Atropelando bebês

Posted: 20th março 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Ignorado no Brasil, o reality show “The OCD Project”, do canal VH1, agrupou seis pessoas com formas severas de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo, OCD em inglês) para fazer um tratamento de três semanas numa casa.

Em oito episódios, o dr. David Tolin, diretor do Centro de Transtornos da Ansiedade do Hospital de Hartford, submeteu seus pacientes a uma terapia de exposição radical, com base no método cognitivo-comportamental.

Arine, de 25 anos, sofria de germofobia (medo de se contaminar). O dr. Tolin a fez comer um bolinho embebido em água de privada. Kristen, de 28 anos, tinha a mesma doença, e acabou entrando numa piscina com xixi.

Tracy temia que seu filho morresse de câncer, e por isso efetuava rituais de acender e apagar luzes. O terapeuta simulou o enterro do menino e mandou-a discursar em sua memória.

Compreende-se que o programa seja ignorado por aqui, e com razão. O médico é arrogante e leva jeito para celebridade. A proposta de curar pacientes em pouco tempo e com exposições extremas (passar um tempo na prisão, lamber a sola dos sapatos) os prejudica unicamente em favor do espetáculo.

Mas há momentos interessantes: a primeira tarefa dos confinados é descrever à exaustão seus maiores medos e estimar a possibilidade real de que aconteçam. O exercício se destina a dar as devidas proporções aos temores e preconizar uma sensibilização a eles, lenta e gradual.

Outro ponto alto é mostrar o processo de habituação à fobia. Na série, isso se resume a uma única cena: Arine mergulha as mãos em chorume e as leva ao rosto. “Qual é o seu nível?”, pergunta Tolin, referindo-se a uma escala de ansiedade. Ela começa com 100, depois desce para 80 e de repente está em 35. “Isso é habituação”, ele explica. “Parabéns”.

Arine também é a protagonista da melhor cena da temporada. Outro de seus pavores é o medo de atropelar pessoas, e por isso ela tem a mania de dar voltas e voltas com o carro para se certificar de que está tudo bem. Tratamento: enquanto ela dirige, o doutor vai atirando no para-brisas um monte de bonecas, cabeças de plástico e muletas, gritando: “Oh, meu Deus! Ela atropelou um bebê! Oh, meu Deus!”.

Não sei bem se a Anistia Internacional aprovaria.

A teoria da calopsita

Posted: 13th março 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Muitos leitores escreveram para manifestar seu apoio à coluna “No próximo bloco, insânia” (23 de janeiro).

O engenheiro de sistemas Marcio José Porta conta que, em 1988, participou do planejamento financeiro da TVA, uma das primeiras operadoras de TV por assinatura no Brasil. Enquanto preenchia planilhas, perguntou se, além das receitas de assinatura, deveria considerar também as de publicidade.

“Claro que não. Os assinantes não irão admitir publicidade na TV por assinatura”, respondeu o chefe.

Ou seja: não foi por maldade. Em algum momento da história, um estagiário deve ter inserido, só de sacanagem, um comercial na grade de uma emissora a cabo. Ninguém reparou.

Daí para chegar aos cinco minutos de intervalo – os mesmos – a cada dez de programação, foi preciso apenas que as pessoas não se manifestassem. O atrevimento é tão grande que hoje o problema não é mais da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), mas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria).

Até os canais Telecine, outrora incansáveis bastiões dos filmes sem intervalos, aderiram ao “voltamos em dois minutos”, só para encaixar informes da programação.

Uma leitora, pedindo desculpas pelos palavrões, reclamou também do looping infinito dos filmes. “‘Velozes e Furiosos’ é o campeão: já vi passar em três canais ao mesmo tempo”. Eu acrescentaria à lista “Um lugar chamado Notting Hill” e “A Identidade Bourne”, que deve passar na Fox em dias alternados (o resto do tempo é preenchido com “Os Simpsons”).

Muitos sugerem que os canais sejam obrigados a informar o tempo líquido do programa e a porcentagem de comerciais, para que as pessoas decidam se estão dispostas a assisti-lo. Outros dizem que se deve estipular um limite de veiculação para a mesma peça publicitária (uma vez por hora), a fim de coibir a repetição.

Sugiro que informem também os efeitos colaterais da exposição, como: ansiedade, palpitação, ira e catatonia. E que admitam de vez que não há ninguém no estúdio de transmissão, só uma sonolenta calopsita silvestre, cujo ofício é copiar e colar os mesmos reclames em intervalos aleatórios. E botar a fita pra rodar no dia primeiro de cada mês.

Passa rápido o desfile carioca

Posted: 8th março 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Os locutores bem que tentaram, mas não há conversa que se sustente diante dos delirantes enredos das escolas de samba. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Mocidade Independente abordou a história da agropecuária brasileira, a Vila Isabel falou de cabelo e a União da Ilha escolheu o evolucionismo.

Um dos melhores temas foi o da Portela, com um samba-enredo sobre as grandes navegações. E dá-lhe Fenícia, Farol de Alexandria, galés do Oriente, especiarias, navios negreiros, Iemanjá e até um ou outro pirata, numa letra que “deságua na imaginação”.
É trabalho dobrado para os comentaristas, que precisam dar naturalidade ao texto fornecido pelas escolas e arrumar nexo histórico para tudo. Nessa balbúrdia, a Imperatriz Leopoldinense falou das origens da medicina e conseguiu ir dos curandeiros da África à vaca louca, passando por centauros e homeopatia.

“Esses chifres representam os chifres do antílope”, tenta explicar o narrador Luis Roberto, ou então: “Esta ala invoca o ritual de magia da mãe África, a sabedoria da mãe natureza que curava com batidas de tambor”.

No sambódromo, há um bloco de múmias “que representam o processo de conservação natural de corpos no antigo Egito”, segundo a locutora Glenda Kozlowski, fazendo o que pode.

Atordoado, Luis Roberto tenta aparentar espontaneidade: “Vamos dar uma passadinha pela China também, a influência do taoísmo na medicina…”. Silêncio. Ele faz sua última tentativa (5 de 5) de emplacar uma discussão sobre a “função precípua” da comissão de frente, que é de reverenciar a plateia e apresentar a escola aos jurados. Fala-se no nariz entupido do puxador Dominguinhos do Estácio, mas o assunto torna a morrer.

Na passagem da ala que homenageia os Raios-X, Luis Roberto pergunta à colega: “Sabe quando foi descoberto o Raio-X?”. Ela retruca, animada: “Não, me conta”. Ele diz que foi em 1895, e ela: “Passa rápido, né?”.

[especial para o caderno “Cotidiano”]

Momices televisivas

Posted: 7th março 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Há que se aplaudir a coragem dos que passam a madrugada comentando desfiles de Carnaval na TV, mesmo diante do risco de virarem legumes. Todavia, isso não os isenta do escrutínio dos críticos, que avaliam suas performances sob os mesmos critérios da apuração do Carnaval.

No sábado, enquanto a bateria de trocadilhos infames abria com um comentário de Cléber Machado – “O povo está esperando a Nenê, que já não é mais nenhuma criança” – , o quesito evolução do raciocínio seguia mediano (nota 6,5).

O conjunto também não se destaca. Cléber discorre sobre a salinidade do mar, ao que Mariana Godoy emenda: “E assim surgiu a feijoada”. Harmonia: zero.

O critério da fantasia tem seu ápice (nota 8,5) no desfile da Águia de Ouro, quando uma repórter de campo anuncia: “Estou aqui, em meio aos homens pré-históricos…”. O ponto alto é um carro alegórico que festeja a Inquisição, com direito a verdugos sacolejando e um Torquemada feliz.

Liderando a comissão de frente, Mariana lê o material de apresentação da Mocidade Alegre: “A intenção da escola é a seguinte: aquele que embarcar na ilusão vai embarcar num carrossel que vai levar à ilusão”. Pausa. Para mudar de assunto, acrescenta: “A criança que você foi ainda está dentro de você”.

A única nota dez vai para o Mestre-Sala Cléber Machado, que, encorajado pelo tropicão de sua Porta-Bandeira, diz: “Tão importantes quanto as cartas são as cartolas, de onde saem os coelhos”.

Às 4h25, o cansaço se instala. Cléber é lacônico e mal consegue apresentar a Ala da Pedofilia na X-9. Também troca “telespectador” por “torcedor” e, até então comedido, comete um ato falho: “Cris Rabelo, parabéns pela sua comissão de frente”. “Da X-9”, completa.

Daí pra frente liberou geral: Chico Pinheiro graceja com as repórteres de campo e declara, a respeito do chapéu de uma passista: “Quem é que olha para a cabeça com um corpo desses?”. Faz-se uma pausa, em que provavelmente a mulher de Chico entrou com os papéis do divórcio. “Digam que não me arrependo de nada”, ele entoaria, em rede nacional.

Mas não. Eram 5h15 e a dupla de locutores decidiu que valia a pena enumerar os sete emirados árabes, a título de ilustração. Nota final: 6,6.

[especial para o caderno “Cotidiano”]

O cinismo de Charlie

Posted: 6th março 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S. Paulo / Ilustrada
6 de março de 2011

por Vanessa Barbara

“Não sou um completo inútil, posso servir de mau exemplo”, diz Charlie Harper, o protagonista de “Two and a Half Men”.

Nas últimas semanas, o ator Charlie Sheen tem seguido à risca a filosofia de seu personagem, um mulherengo alcoólatra que “ganha uma fortuna trabalhando pouco, dorme com mulheres lindas que não ligam para os seus sentimentos e, às vezes, durante o dia, sem nenhum motivo, prepara um monte de margaritas e tira um cochilo ao sol”.

Na série, o bon-vivant Charlie se vê obrigado a acolher o irmão Alan, um quiroprata recém-divorciado, e o sobrinho Jake, de dez anos.

A atração, em sua oitava temporada, era campeã de audiência nos EUA, com uma média de 15 milhões de espectadores por semana. Sheen ganhava o maior salário da tevê: 1,25 milhões de dólares por episódio.

O sucesso esteve relacionado, desde o início, às tiradas cínicas do protagonista, alter ego do próprio ator. Charlie Harper é imaturo e adora refugiar-se em bares onde “as garrafas são cheias e as mulheres, vazias”. Charlie Sheen, idem.

Usuário confesso de crack e cocaína, ele trocou na semana passada o programa de reabilitação por uma viagem às Bahamas na companhia de três loiras: a ex-mulher, Brooke Mueller, que outrora o denunciara por agressão, e duas atrizes pornô de 24 anos.

O Charlie ficcional tem um histórico parecido. Ao levar um fora da namorada, diz não saber bem o motivo: pode ter sido seu alcoolismo, sua compulsão por apostas ou o fato de ter dormido com a melhor amiga dela. “Mas me recuperei e fui morar com uma stripper viciada. Só que ela já era casada. Então achei que devia dar um tempo com os namoros e sair só com prostitutas.”

Cansado de tanto cinismo, o criador da série Chuck Lorre divulgou um manifesto levemente constrangedor logo após os créditos do último episódio, o que mais tarde deu origem à declaração ofensiva de Sheen e ao fim da série.

Lorre disse que passa fio dental todas as noites e faz radiografias periódicas do tórax. “Eu não bebo. Não fumo. Não uso drogas. Não pratico sexo selvagem com estranhos. Se Sheen viver mais do que eu, ficarei muito puto.”

Ao que tudo indica, Charlie Sheen já tem um lugar reservado no inferno. “Ótimo”, diria Charlie Harper. “Odeio ter que pegar fila.”

Bial cede ao desvario

Posted: 6th março 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Pedro Bial enlouqueceu de vez. Faltam três semanas para o fim do “Big Brother Brasil 11”, mas já dá pra eleger sua adesão definitiva ao nonsense como o destaque desta edição.

No discurso de eliminação de Adriana, no último dia 22, o sr. Nexo e a dona Coerência foram dar uma longa volta e esqueceram suas blusas de frio. O apresentador começou dizendo que “está rolando malícia demais e imaginação de menos”, e emendou afirmando que Adriana “do limão fez limonada, sem despentear o cabelo dele”. (Perceba a atordoante inversão dos elementos sintáticos.)

Comparou Rodrigão a Sansão e Wesley ao rei Artur, “que recebeu espada e queijo na mão. Desdenhou do queijo, vai entender. E ainda doou, com salamaleques, a faca ao rival.” Ele continua: “Espinafre também tem seu valor, é verdade”, referindo-se a Deus sabe o quê.

Àquela altura, muitos espectadores decidiram medir a febre. Boninho acionou os psiquiatras do Projac, que não são poucos. Bial concluiu: “E beleza por beleza, já foi dito por Safo, sete séculos antes de Cristo: ‘Quem é belo, o é naquele instante quando está diante dos olhos. Quem também é bom, o será agora e sempre.’”

E assim ele anuncia a eliminação de Adriana, cujos batimentos cardíacos oscilaram o tempo todo, numa vã tentativa de captar o sentido do discurso. Rodrigão era o mais calmo dos três, talvez porque desistira de entender. Há quem diga que efetuava mentalmente uma operação matemática de subtração.

Até então, Adriana fora a responsável por duas das melhores frases do programa: a primeira, ao vestir a fantasia de símio, quando perguntou: “Mas tem macaco hoje em dia?”. A segunda, antes do paredão, quando declarou que uma das coisas que mais gostou no confinamento foi ter aprendido palavras novas.

Em tempo: Adriana era também uma das mais fiéis executoras da Manobra Picard. O termo, tirado da série “Jornada nas Estrelas”, designa aquela ajeitadinha no uniforme que se dá ao levantar, muito comum na série de ficção científica (o figurino era justo) e mais ainda nos reality shows. Mil vezes ao dia, como numa coreografia, as participantes se erguem do sofá e repuxam suas microssaias.

Afinal, dizia Safo, “se você é sensível, não futuque os seixos da praia”.

Ser fatal em Cumbica

Posted: 3rd março 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Revista Airborne – aviação executiva TAM
n. 4 – Março de 2011

por Vanessa Barbara

Inspirada pela experiência do escritor anglo-suíço Alain de Botton, que viveu uma semana no aeroporto de Heathrow, em Londres, na condição de escritor-residente, aceitei o convite da Airborne para passar uma tarde no Aeroporto Internacional de Guarulhos – eu, que já havia me empenhado em visitar ostensivamente o Terminal Rodoviário do Tietê por um ano, a fim de escrever O Livro Amarelo do Terminal (CosacNaify, 2008).

A data escolhida foi 15 de novembro, por razões óbvias: era o ápice de um feriado prolongado em que muitas famílias retornavam de seu retiro cívico em Miami ou Cancún, com seus travesseiros de estimação e óculos de sol desproporcionais, após prestarem um merecido tributo ao marechal Deodoro da Fonseca, proclamador da República.

A segunda-feira ensolarada tinha cara de domingo de Páscoa e, pouco antes de sair, lembrei de apanhar o passaporte e enfiá-lo na mochila, por via das dúvidas. Nunca se sabe qual será nossa reação diante do quadro geral de partidas internacionais, sobretudo naquele momento crítico em que o letreiro “Luanda” é substituído por “Istambul”, e subitamente nossa vida parece um oceano morno de estagnação e enfado.

Só o fato de conseguir chegar a Guarulhos deveria dar direito imediato a escolher um destino no painel de embarques, como quem procura um novo livro para ler – nesse caso, minha rota de fuga estaria entre Londres, Madri e Munique, por falta de um destino mais pitoresco. (Onde foram parar os voos para Gibraltar, Lukla e Narsarsuaq?)

**

Se a rodoviária é uma cidade de coisas perdidas, o aeroporto é um posto de fronteira no meio do deserto, uma zona intermediária do mundo moderno. Antes, costumava haver tempo para absorver a chegada. “As mudanças geográficas graduais facilitavam as transições internas: o deserto paulatinamente dava lugar aos arbustos, e a savanas, à pradaria”, afirma Alain de Botton. Hoje, a velha noção de jornada não existe mais, tendo sido substituída por algo mais similar ao teletransporte ou ao estado de animação suspensa.

O conceito de aeroporto pode ter sido criado justamente para minimizar o choque de dormir no Azerbaijão e acordar em Guarulhos, ainda com a bochecha amassada e um gosto amargo de aeronave, possibilitando o desembarque numa zona de descompressão, onde os viajantes poderiam se aclimatar antes de voltar à realidade.

Assim estaria explicada a aura sobrenatural daqueles que desembarcam, a invariável fotofobia, o ar anestesiado de quem não entendeu a piada. Os sentidos se aguçam, registrando até as luzes mais fracas, as placas de sinalização, os cheiros. O lugar mais familiar se torna o mais estranho de todos, e aqueles que aqui permaneceram durante o tempo inteiro da viagem (sempre impossível de mensurar) são vistos com um misto de inveja e incompreensão.

Assim se explicaria também a uníssona expectativa dos que atravessam o portão automático com o logotipo da Polícia Federal, aportando oficialmente no Brasil e se deparando com uma multidão de familiares (dos outros), colegas e sobrinhos com balões de hélio e faixas de boas-vindas. São os fantasmas do portão de desembarque, pertencentes a uma realidade paralela que só a partir daquele momento voltaria a ganhar corpo.

Mesmo quem sabe que não terá ninguém à espera mal consegue conter um olhar ansioso. Passa em revista cada rosto dentre os que aguardam do lado de lá, na esperança de ser surpreendido por um grande amor do passado, um pai ausente, um avô ressuscitado ou uma ruidosa caravana de fãs e fotógrafos ávidos por saudar aquele que, enquanto sobrevoava o Atlântico, sem suspeitar de nada, ganhava notoriedade por causa de um feito heroico já há muito esquecido, ou apenas por ter um bom caráter e uma beleza descomunal que inspirava seus conterrâneos.

Não foi o caso de Karin Lohde, uma possível germânica especialista em poliuretanos customizados da Bayer que chegava de Montevidéu e era aguardada por um robótico funcionário de terno e gravata. O sujeito a levaria ao carro oficial da empresa, climatizado, e a instalaria em algum insípido hotel de rede, embora o desejo de Karin fosse provavelmente sair correndo, comprar um chapéu florido e ter um breve caso com Josh Oostuizen, um provável guitarrista sul-africano que desembarcava naquele momento do voo 222 vindo de Johannesburgo, e com quem Karin trocou um olhar quase imperceptível antes de ir embora.

Ser recebido por alguém segurando uma placa com seu nome e sobrenome só não é triste quando se trata de um tórrido romance proibido com um misterioso árabe que se revelou pela internet, ou quando porventura decidimos assumir a identidade de uma espanhola de nome Eva Yerbabuena, ruiva e fatal, pois é isso o que os aeroportos nos inspiram: o desejo de ser outra pessoa em outro lugar bem distante, onde ninguém nos conhece além da polícia, a CIA, um ex-amante ressentido e o fisco eslovaco.

Passar uma tarde em Cumbica envolve necessariamente assumir personalidades esdrúxulas, todas muito perigosas, como a de uma agente da Interpol em conexão para a Antuérpia, onde resolverá um intrincado roubo de diamantes seguido de um escândalo diplomático internacional – tudo isso a despeito de estar calçando uma prosaica sapatilha da Azaléia, comprada na rua Maria Marcolina, no Brás.

Passar uma tarde em Cumbica implica em mandar uma mensagem enigmática com o conteúdo: “Zurique às 20h30. Traga as tartarugas e o passaporte”, ou arremessar-se subitamente dentro de um táxi, com a respiração ofegante e a ordem: “Siga aquele carro!”. Mesmo que se trate de um prosaico caminhão de mudanças da empresa Lusitana – “O mundo gira, a Lusitana roda”.

Nada como ser ruiva, espanhola e fatal numa tarde em Cumbica.


A jornalista e escritora Vanessa Barbara publicou também o romance O Verão do Chibo (2008, Alfaguara), em parceria com Emilio Fraia. É colaboradora da revista piauí e assina uma crônica de TV aos domingos, na Folha de S. Paulo.

Hidroginástica ou morte

Posted: 1st março 2011 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Hidroginástica ou morte
Desespero e amolação em sorteio de vagas no Sesc

por Vanessa Barbara

Piauí n. 54
Março de 2011

Centenas de pessoas se acotovelavam no ginásio vermelho, aguardando o sorteio. Nos corredores do 2o andar, a fila dava voltas, descia as escadas e parava no térreo. Eram seis da tarde da quarta-feira, 16 de fevereiro, e a cidade de São Paulo acabara de passar por mais uma das suas chuvas formidandas, deixando um rastro de setenta pontos de alagamento e uma avenida crucial interditada, a 23 de Maio.

Ainda assim, houve os que chegaram ao Sesc Consolação com duas horas de antecedência, embora a ordem de chegada não fizesse diferença. O burburinho da espera indicava que aquele seria o maior sorteio do ano e, quiçá, da história da instituição: ao todo, eram 791 candidatos para 412 vagas. Os primeiros a serem escolhidos garantiam os cursos mais concorridos. Aos seguintes sobrariam as modalidades tediosas e os horários risíveis.

As vagas pertenciam a sete diferentes cursos de atividades físicas e estavam disponíveis só para os portadores de carteirinha de comerciário. As opções variavam de futsal com condicionamento físico (13 vagas), hatha yoga (91 vagas) e ginástica postural (segundas e quartas às 7h10 da matina, 33 vagas), passando por natação e hidroginástica. Os cursos são pagos, mas as mensalidades variam de 28 a 56 reais (esportes aquáticos), o que é uma pechincha numa cidade em que as academias cobram até 500 reais mensais. O ambiente, porém, era de sorteio da Mega Sena.

Faltando vinte minutos para as sete, os funcionários trouxeram mais cadeiras para suprir a demanda da terceira idade. No telão, passavam cenas de um DVD de música étnica, um vídeo promocional do Sesc ou de um show de Hermeto Pascoal dedilhando sua própria barba.

Às 19h18, encerrou-se o cadastramento. Mas ainda não chegou o grande momento: a funcionária do Sesc Carol Ribas recitou as regras do sorteio e deu informações sobre os cursos. Os reincidentes já sabiam os mandamentos de cor: ginástica postural não é RPG, o exame dermatológico custa 9 reais, não é permitido fazer natação a quem já sabe nadar, não se atendem grávidas e portadores de necessidades especiais, e o boleto chega ao endereço cadastrado e deve ser pago até o dia 10, senão o usuário perde a vaga. “Não adianta reclamar depois que não chegou, que o cachorro comeu, que o porteiro saiu de férias”, ela repetiu. Para o curso de condicionamento físico (musculação, esteira e aulas de ginástica), é preciso agendar um horário para a avaliação e prescrição de exercícios com um professor.

***

É sempre a mesma coisa. O computador embaralha os nomes e efetua um sorteio. Os resultados saem imediatamente no telão, em forma de lista com nome e sobrenome, mas só dos primeiros vinte colocados – conforme as vagas vão sendo tomadas, a lista vai revelando os nomes seguintes. É nessa hora que todos se levantam, aproximam-se da tela e estreitam os olhos para enxergar melhor. Já cheguei a reconhecer meu nome pelo contorno das letras a 10 metros de distância, numa eletrizante 13a posição. Foi o meu melhor resultado em três anos de participação nos sorteios – minhas outras classificações incluem um patético 325o lugar, um 145o que não serviu para nada e, em agosto passado, um 90o que me granjeou apenas uma vaga rejeitada na turma de ioga intergeracional (adultos e terceira idade) na hora do almoço.

O anúncio do primeiro colocado é uma comoção. O contemplado costuma se erguer de um salto, abrir um sorriso, é cumprimentado pelos circunstantes e caminha rumo ao palco, de cabeça erguida. Agora, o abençoado foi Vinícius Monteiro, um rapaz de mochila nas costas e tênis All Star branco que optou pelo condicionamento físico às terças e quintas, período noturno.

Em meio à histeria, os contemplados escolhiam o curso e partiam para a próxima fila, a do agendamento, enquanto a lista ia descendo no telão. Ao todo, eram quatro filas: a de cadastramento no sorteio, a de escolha do curso, a do agendamento da primeira aula e a última, na Central de Atendimento, destinada a efetuar o pagamento e confirmar a matrícula.

Os mais desafortunados aguardavam o direito de entrar numa quinta fila. É que, num segundo momento da noite, foram divulgadas as listas impressas com a classificação geral, divididas por ordem alfabética e afixadas no fundo do ginásio. Uma horda de aflitos se aglomerou em torno das listas num clima de aprovados no vestibular. Fez-se uma fila secundária para consultar a ordem – uma verdadeira fila da fila. “Calma, calma, sem desespero”, pediu Carol ao microfone. “Eu sou o 655, você é o 522”, disse um rapaz, lamentando sua triste sina. Este mês, a média foi de 1,9 candidato por vaga, mas, nas modalidades mais cobiçadas (como natação e condicionamento físico noturnos), a média saltou para 20, como no vestibular para direito na Universidade de São Paulo e no concurso para auditor fiscal da Receita Federal (salário inicial de 13 mil reais).

***

Dependendo da posição no ranking, a maioria persiste. Uma moça aproveitou para adiantar sua leitura de Balzac, outra resolvia um caça-palavra, uma senhora costurava uma toalhinha em crochê e havia um garoto cuidando da lição de casa, lápis e borracha no colo. Senhoras se abanavam com leques e um sujeito conferia a programação dos cinemas em seu iPad.

Há gente que veio de Guarulhos ou da Lapa e saiu de mãos abanando. “Achou que ia ser fácil, é?”, ironizou um veterano a uma moça que, meia hora atrás, pensou que a vaga estivesse garantida mediante o comparecimento. “Mas, viu, a chance é grande”, interrompeu uma amiga, acrescentando: “… de sair daqui e ter perdido o seu tempo.”

Conforme as primeiras dezenas de sorteados passavam pela mesa de matrícula, a funcionária ao microfone começava a proferir anúncios funestos: “Atenção. Não há mais vagas para natação às terças e quintas, 19h30.” Muita gente abria os braços, indignada, praguejando contra aquele senhor cabeçudo que tomou seu lugar. “Atenção. Não há mais vagas para…”

O computador travou e foi preciso reiniciá-lo, paralisando o sorteio por duas vezes. Alguém mencionou o infeliz Natan da Rocha, que ficou na 791a posição – o que estatisticamente é tão difícil quanto ficar em primeiro, com a diferença de que não se ganha nada. Exceto amargura.

Outros se levantaram de súbito, viraram as costas e foram embora. Só não rasgaram suas carteirinhas porque precisarão delas para o próximo sorteio, que acontecerá no dia 16 de março e contará com os azarados de sempre.

Troca de família

Posted: 27th fevereiro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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“A comida aqui é péssima”, diz uma senhora num restaurante. “E vem em porções tão pequenas!”

A piada de Woody Allen se aplica perfeitamente a alguns programas de tevê, como séries e telejornais que, a despeito de serem ruins, são também curtos demais.

O mesmo não se pode dizer do reality show “Troca de Família” (Record, terças e quintas às 23h), baseado no programa “Trading Spouses”, da Fox. A versão brasileira é duas vezes mais longa que a original: cada experiência é contada em dois programas de 54 minutos.

Na atração, duas famílias fazem um intercâmbio de esposas por uma semana, ganhando 25 mil reais pela participação. A mãe substituta decide como aplicar o dinheiro. “É angústia que não acaba mais”, exclama a apresentadora Amanda Françozo.

Na quinta temporada, que começou dia 8, a escritora gaúcha Clara Averbuck trocou com a estilista baiana Daniela McMullan, num episódio que levantou suspeitas de traição entre o marido de Clara e Daniela.

No episódio seguinte, foi a vez da vegetariana Fernanda Tavares trocar de lugar com Adriana Silva, esposa de peão de rodeio. Na série, uma cigana já revezou com uma metódica, uma japonesa com uma naturista, uma palmeirense com uma corinthiana.

Duas coisas me incomodam: primeiro, saber que o programa é gravado com um ano de antecedência e que, portanto, boa parte dos casais já se separou –– como Clara e também Gretchen que, meses após a gravação, pediu o divórcio e desposou o 14o marido.

Se não há como agilizar o processo de edição, sugiro que acrescentem legendas atualizadas após os créditos, como: “Dois meses depois, Clodoaldo pediu o desquite e virou ateu”, ou “A pedidos da família, Maria hoje toma medicamentos para tratar o chulé”.

A segunda crítica se dirige às esposas. Caso tivessem senso de oportunidade, elas podiam aproveitar a humilhação em curso para praticar uma saudável vingança.

A esposa sertaneja, por exemplo, poderia obrigar a família da vegetariana a gastar o dinheiro numa churrasqueira. Outra poderia mencionar em sua carta as “despesas inevitáveis com a internação psiquiátrica de toda a família”. E a japonesa poderia determinar que a turma dos naturistas usasse todo o valor do prêmio para abrir uma confecção de maiôs.