Ser fatal em Cumbica

Postado em: 3rd março 2011 por Vanessa Barbara em Crônicas
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Revista Airborne – aviação executiva TAM
n. 4 – Março de 2011

por Vanessa Barbara

Inspirada pela experiência do escritor anglo-suíço Alain de Botton, que viveu uma semana no aeroporto de Heathrow, em Londres, na condição de escritor-residente, aceitei o convite da Airborne para passar uma tarde no Aeroporto Internacional de Guarulhos – eu, que já havia me empenhado em visitar ostensivamente o Terminal Rodoviário do Tietê por um ano, a fim de escrever O Livro Amarelo do Terminal (CosacNaify, 2008).

A data escolhida foi 15 de novembro, por razões óbvias: era o ápice de um feriado prolongado em que muitas famílias retornavam de seu retiro cívico em Miami ou Cancún, com seus travesseiros de estimação e óculos de sol desproporcionais, após prestarem um merecido tributo ao marechal Deodoro da Fonseca, proclamador da República.

A segunda-feira ensolarada tinha cara de domingo de Páscoa e, pouco antes de sair, lembrei de apanhar o passaporte e enfiá-lo na mochila, por via das dúvidas. Nunca se sabe qual será nossa reação diante do quadro geral de partidas internacionais, sobretudo naquele momento crítico em que o letreiro “Luanda” é substituído por “Istambul”, e subitamente nossa vida parece um oceano morno de estagnação e enfado.

Só o fato de conseguir chegar a Guarulhos deveria dar direito imediato a escolher um destino no painel de embarques, como quem procura um novo livro para ler – nesse caso, minha rota de fuga estaria entre Londres, Madri e Munique, por falta de um destino mais pitoresco. (Onde foram parar os voos para Gibraltar, Lukla e Narsarsuaq?)

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Se a rodoviária é uma cidade de coisas perdidas, o aeroporto é um posto de fronteira no meio do deserto, uma zona intermediária do mundo moderno. Antes, costumava haver tempo para absorver a chegada. “As mudanças geográficas graduais facilitavam as transições internas: o deserto paulatinamente dava lugar aos arbustos, e a savanas, à pradaria”, afirma Alain de Botton. Hoje, a velha noção de jornada não existe mais, tendo sido substituída por algo mais similar ao teletransporte ou ao estado de animação suspensa.

O conceito de aeroporto pode ter sido criado justamente para minimizar o choque de dormir no Azerbaijão e acordar em Guarulhos, ainda com a bochecha amassada e um gosto amargo de aeronave, possibilitando o desembarque numa zona de descompressão, onde os viajantes poderiam se aclimatar antes de voltar à realidade.

Assim estaria explicada a aura sobrenatural daqueles que desembarcam, a invariável fotofobia, o ar anestesiado de quem não entendeu a piada. Os sentidos se aguçam, registrando até as luzes mais fracas, as placas de sinalização, os cheiros. O lugar mais familiar se torna o mais estranho de todos, e aqueles que aqui permaneceram durante o tempo inteiro da viagem (sempre impossível de mensurar) são vistos com um misto de inveja e incompreensão.

Assim se explicaria também a uníssona expectativa dos que atravessam o portão automático com o logotipo da Polícia Federal, aportando oficialmente no Brasil e se deparando com uma multidão de familiares (dos outros), colegas e sobrinhos com balões de hélio e faixas de boas-vindas. São os fantasmas do portão de desembarque, pertencentes a uma realidade paralela que só a partir daquele momento voltaria a ganhar corpo.

Mesmo quem sabe que não terá ninguém à espera mal consegue conter um olhar ansioso. Passa em revista cada rosto dentre os que aguardam do lado de lá, na esperança de ser surpreendido por um grande amor do passado, um pai ausente, um avô ressuscitado ou uma ruidosa caravana de fãs e fotógrafos ávidos por saudar aquele que, enquanto sobrevoava o Atlântico, sem suspeitar de nada, ganhava notoriedade por causa de um feito heroico já há muito esquecido, ou apenas por ter um bom caráter e uma beleza descomunal que inspirava seus conterrâneos.

Não foi o caso de Karin Lohde, uma possível germânica especialista em poliuretanos customizados da Bayer que chegava de Montevidéu e era aguardada por um robótico funcionário de terno e gravata. O sujeito a levaria ao carro oficial da empresa, climatizado, e a instalaria em algum insípido hotel de rede, embora o desejo de Karin fosse provavelmente sair correndo, comprar um chapéu florido e ter um breve caso com Josh Oostuizen, um provável guitarrista sul-africano que desembarcava naquele momento do voo 222 vindo de Johannesburgo, e com quem Karin trocou um olhar quase imperceptível antes de ir embora.

Ser recebido por alguém segurando uma placa com seu nome e sobrenome só não é triste quando se trata de um tórrido romance proibido com um misterioso árabe que se revelou pela internet, ou quando porventura decidimos assumir a identidade de uma espanhola de nome Eva Yerbabuena, ruiva e fatal, pois é isso o que os aeroportos nos inspiram: o desejo de ser outra pessoa em outro lugar bem distante, onde ninguém nos conhece além da polícia, a CIA, um ex-amante ressentido e o fisco eslovaco.

Passar uma tarde em Cumbica envolve necessariamente assumir personalidades esdrúxulas, todas muito perigosas, como a de uma agente da Interpol em conexão para a Antuérpia, onde resolverá um intrincado roubo de diamantes seguido de um escândalo diplomático internacional – tudo isso a despeito de estar calçando uma prosaica sapatilha da Azaléia, comprada na rua Maria Marcolina, no Brás.

Passar uma tarde em Cumbica implica em mandar uma mensagem enigmática com o conteúdo: “Zurique às 20h30. Traga as tartarugas e o passaporte”, ou arremessar-se subitamente dentro de um táxi, com a respiração ofegante e a ordem: “Siga aquele carro!”. Mesmo que se trate de um prosaico caminhão de mudanças da empresa Lusitana – “O mundo gira, a Lusitana roda”.

Nada como ser ruiva, espanhola e fatal numa tarde em Cumbica.


A jornalista e escritora Vanessa Barbara publicou também o romance O Verão do Chibo (2008, Alfaguara), em parceria com Emilio Fraia. É colaboradora da revista piauí e assina uma crônica de TV aos domingos, na Folha de S. Paulo.