Leituras radicais

Postado em: 20th dezembro 2011 por Vanessa Barbara em Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
20 de dezembro de 2011

por Vanessa Barbara


 

Durante muito tempo, minha única frustração na vida foi não poder levar os livros comigo para o chuveiro, grudando-os com ventosas à parede do box e tentando virar a página com os dentes. Naquela época, não existiam livros infantis emborrachados e nem audiobooks (até hoje, a Bíblia narrada pelo Cid Moreira me desperta uma curiosidade sem fim).

Fato é que interromper um romance nunca é agradável, e por isso há quem tenha o desastroso hábito de ler pendurado nas alças dos ônibus, ou mesmo enquanto anda — antes isso do que perder o ponto de descer, dizem. Eu mesma já fui vista plantada em plena calçada, nas últimas páginas de O Senhor dos Anéis, dando um passo e parando, outro passo e parando, e só não me sentei no meio-fio porque podiam me prender por perturbação da ordem pública. Há os que leem atravessando a rua e, quando a calçada está excessivamente cheia, fazem uma parada estratégica no canto de um prédio para terminar um capítulo.

Já li em cima do telhado, principalmente volumes de suspense e terror, sob a ameaça constante de quebrar uma telha e cair. Outra vez, instalei-me no beiral externo da praça Buenos Aires, ou seja, na rua, em busca dos últimos raios de sol daquela tarde, e liElizabeth Costello. Ganhei uma moeda.

Os locais mais visados para a prática da leitura são a cama (abajur opcional), a poltrona, o banheiro, a mesa da cozinha, a praia e a sala de espera dos médicos. Alguns leem durante refeições solitárias, no cabeleireiro, no aeroporto, nos trens e nos parques. Há quem devore um volume inteiro enquanto espera um amigo atrasado, mesmo que de pé e procurando um facho de claridade em meio à penumbra.

Cresci numa família de gente que gosta de comer lendo (ou de ler comendo, uma das principais causas de obesidade em intelectuais), o que, se não preza pela sociabilidade em termos de interação familiar, ao menos pode render assuntos dos mais variados, sobretudo quando alguém acha algo engraçado e decide ler em voz alta. Meu sobrinho, do alto de seus 20 meses de idade, já demonstra um nítido comichão literário no decurso das refeições, quando costuma pedir para analisar os folhetos promocionais de supermercado e os cardápios de pizzarias.

Semana passada, o estudante paraense Diego Uchôa postou no Facebook esta foto de um gari lendo um livro dependurado no caminhão de lixo. Mais de 7 mil pessoas compartilharam a imagem, e, embora a maioria se limitasse a enaltecer a força de vontade essencial para vencer na vida, não é bem isso o que me vem à mente. Afinal, qual será o título da obra? Também me pego a pensar nesse braço esquerdo astutamente preso ao suporte do caminhão (ele deve ter prática no desporto radical) e na disponibilidade quase absoluta das duas mãos para o manejo do livro — como qualquer bom leitor também irá reparar, admirado.

É gente que aproveita qualquer brecha no cronograma para ler mais um trecho de um romance policial, nem que, para isso, tenha que o fazer dirigindo, com o livro sobre o volante. Ou enquanto pratica a equitação.

Pesquisando por aí, encontrei relatos de gente que lê enquanto passeia de bicicleta ou toca órgão na igreja — esta última, aliás, é uma ocorrência comum, já que os músicos são obrigados a escutar várias vezes o mesmo sermão nas missas e correm o risco de cochilar bem em cima do instrumento. Devo confessar que já levei um livro de bolso para ler num show de rock, enquanto a banda de abertura tocava, e se não me engano era um Dostoiévski (mas também podia ser um gibi do Cebolinha).

Nesses termos, ninguém supera a minha mãe, que leu um romance inteiro nas arquibancadas de um estádio de futebol. Foi num Juventus vs. Joinville, na rua Javari, pela Taça São Paulo de Futebol Junior de 1986. Os gols foram de Camus (contra), Duras e Dumas (de barriga).

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Vanessa Barbara tem 29 anos, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.