História triste

Posted: 15th maio 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Apesar de ter sido interrompido há três anos nos Estados Unidos e estar em vias de suspensão na RedeTV!, o reality show “Dr. Hollywood” (dom. às 23h40) continuará no ar por aqui pelo menos até o fim do mês.

Trata-se de um programa capitaneado pelo cirurgião plástico Robert Rey, brasileiro radicado nos EUA que tem uma clínica milionária em Beverly Hills, onde atende mulheres ricas que desejam aumentar os seios, fazer lipoaspiração e incrementar o estofo das nádegas.

A atração mostra cenas explícitas das cirurgias e a marcação das pelancas com caneta piloto, mas isso não é o mais chocante. Chocante é o médico protagonista, um sujeito de coloração alaranjada, branqueamento nos dentes e cabelos excessivamente viçosos, adepto de camisas cor-de-rosa e gravatas da Dolce&Gabbana.

Ele cobra 5 mil dólares por uma consulta de meia hora, na qual diz coisas como: “O céu nasce no Leste e se põe no Oeste, e é aí que a festa começa de verdade”. Seus colegas andam de Porsche, usam anéis quadrados, relógios vistosos e golas rulê.

Suas pacientes têm os cabelos lisos e repicados, em geral platinados, abusam das demãos de maquiagem no rosto, vestem óculos de mosca e minivestidos de tirar o fôlego (delas mesmas).

O médico lhes promete resgatar a autoestima com a ajuda de duas esferas de silicone “que vão fazê-la cintilar de verdade como um cisne”. Sem sair da metáfora do patinho feio, ele afirma, brandindo o implante: “Esta bolinha será essencial para que o cisne voe”.

O dr. Rey se compara a personalidades como Dilma Rousseff, Barack Obama e Madre Teresa. Diz que se orgulha de ter melhorado a condição humana com seu trabalho. Entre outras coisas, assume que “médico velho não é meu amigo. Médico jovem sim. Eles querem ser como eu: se vestem como eu, usam óculos como eu. Me seguem no Twitter”.

Tristes não são os closes de peitorais definidos e barrigas tão retas que aparentemente exigiriam a remoção total dos órgãos internos. Nem são as moças loiras do interior que vêm levantar os seios e fazer compras. Triste mesmo é a confissão do dr. Robert Rey, numa entrevista para um portal de notícias, em que ele admite: “Acho que a última vez que eu comi bolo foi em 1986”.

Força aí, dr. Rey.

O inverno está chegando

Posted: 8th maio 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Estreia hoje às 21h na HBO a superprodução “A Guerra dos Tronos”, baseada no best-seller de fantasia épica “As Crônicas de Gelo e Fogo”, de George R. R. Martin.

A saga se passa nos sete reinos de Westeros, uma terra onde “o verão se estende por décadas e o inverno pode durar uma vida inteira”. Depois de nove anos de clima ameno, o frio está prestes a chegar, condenando gerações inteiras à morte por inanição e congelamento.

Tudo começa quando o conselheiro do rei morre de forma suspeita e várias famílias passam a disputar o poder, nesta história com clima medieval e pinta de “anti-Senhor dos Anéis”.

A trama é suja e tem sua cota de incesto, tragédia, conspiração, decapitações e luxúria. Ao perder seu ajudante, o rei Robert (vivido por Mark Addy) diz que procura “alguém para governar meu reino enquanto eu como, bebo e transo com prostitutas até morrer cedo demais”. Este é o lado civilizado da trama.

Do lado selvagem estão os Dothraki, uma tribo sangrenta cujo líder se casa com a princesa loira do clã dos Targaryen, numa aliança feita para engrossar os exércitos e devolver o trono a estes últimos.

Sobre essa simpática turminha de aborígenes, diz-se que “um casamento Dothraki sem ao menos três mortes é considerado um fracasso”. Após as bodas, a noiva tenta dizer “obrigada” em dialeto, mas alguém observa: “Não existe tal palavra em Dothraki”.

Os únicos que podem ser chamados de mocinhos – e olhe lá – são os Stark, uma família de “temperamento explosivo e raciocínio lento”. O patriarca é Eddard (vivido por Sean Bean, o Boromir de “O Senhor dos Anéis”).

Seus maiores inimigos são os Lannister, de quem se pode esperar todo tipo de torpeza: ao jovem príncipe que demonstrou covardia, provocando a morte de uma criança e de um filhote de lobo, a rainha diz: “Quando você estiver no trono, a verdade será o que você quiser que ela seja”.

Em lugar de hobbits expansivos e trapalhões, temos Tyrion Lannister (Peter Dinklage), um anão cínico, lascivo e cruel, mas que é solidário aos párias e desajustados como ele. Em lugar de um anel, temos uma muralha de gelo guardada por vigilantes de negro, a proteger o reino de uma misteriosa ameaça sobrenatural.

Numerologia televisiva

Posted: 1st maio 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Os relatórios de audiência da Rede Record têm precisão matemática. Por trás de tantos números desconexos, pode-se vislumbrar uma sequência mágica que rege todo o universo televisivo, e fazer uma previsão do que há de vir.

Vejamos: na manhã de 7 de outubro, o programa “Hoje em Dia”, da Rede Record, ficou em primeiro lugar na audiência durante 59 minutos. No mesmo dia, a série “Dr. House”, exibida pela emissora, registrou a liderança por 34 minutos, com 8 pontos de média, pico de 15 e share de 29%.

Pouco depois, o “Domingo Espetacular” chegou a 20 pontos e garantiu a vice-liderança isolada no ranking geral. E o jornalístico “São Paulo no Ar” ficou em primeiro lugar durante 780 segundos numa terça-feira de manhã, o mesmo ocorrendo com a minissérie “Sansão e Dalila”, que abrilhantou o pódio por 14 minutos na região do Rio de Janeiro.

Em fevereiro, o drama “Ray”, exibido pelo Cine Record Especial, ficou na liderança por 1h14, levando a crer que muita gente só viu o filme pela metade.

Somando todos esses números, multiplicando pela preguiça de mudar de canal e dividindo pelo número de insones da casa, pode-se dizer que a emissora está disposta a segurar o calção do espectador por todos os meios possíveis.

Na última terça-feira, o público paulista garantiu a primeira colocação do programa “Ídolos” durante 37 minutos – muito mais do que eu pude aguentar.

Nessa edição do reality, que busca novos cantores, dezenas de candidatos passaram por uma breve e humilhante audição, da qual só três saíram aprovados, num programa de quase uma hora de duração.

Em  busca de gloriosos segundos de vantagem, os jurados ridicularizaram os participantes, abusaram das caretas e receberam uma quantidade propositalmente alta de candidatos bizarros.

Os jurados compararam o talento dos calouros com uma Pepsi sem gás, uma aula de física, um miado de gato, e mandaram que considerassem a “possibilidade de não cantar mais nada”.

Dava pra perceber o esforço. Talvez fosse mais simples hipnotizar a audiência com um relatório do Ibope em tempo real, narrado pelo Britto Jr., e botar todo mundo pra dormir, garantindo assim umas oito horas de liderança e share de 40%.

O gravador digital

Posted: 24th abril 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Depois da penicilina, da internet e do descascador de legumes, o gravador digital de vídeo (DVR) é a maior invenção do homem. É como um videocassete, mas não precisa de fita (o conteúdo é armazenado no disco rígido) e nem de um PhD em física para agendar as gravações.

Digo isso com a experiência de quem ganhou do pai um videocassete de consórcio, na década de 80, e pouco depois já dominava a tela de configurações.

Foram dezenas de fitas gravadas com episódios de “Animaniacs”, filmes em duas partes, o piloto de “A Gata e o Rato” e a abertura das Olimpíadas de 1992. Mais tarde, passei a estudar a relação mensal de filmes da TV a cabo, um catálogo com 1500 títulos que eu selecionava para deixar gravando.

Isso sem contar o ano de 1999, em que registrei todos os episódios do “Vestibulando” e chorei no final. Algumas fitas foram tão regravadas que havia uma camada grossa e muito tóxica de corretivo líquido no rótulo de identificação.
Com o DVR, tudo ficou mais prático. O pioneiro foi o americano TiVo, cuja novidade era detectar e excluir os comerciais. Tais aparelhos têm capacidade para 100 horas de conteúdo e funções como replay, pausa e gravação simultânea.

Possuem um guia eletrônico que dispensa cálculos mais rebuscados, como programar um filme de 188 minutos que começa às 2h15 P.M. com uma folga antes e depois, devendo ser gravado no canal 3 com o receptor ligado no 61 e o formato SLP, pra não comer muita fita.

No DVR, basta escolher o canal e selecionar o item desejado. É possível efetuar buscas por título, ator ou diretor, e agendar a gravação de episódios múltiplos.
Só falta exigir mais precisão das emissoras, sobretudo as abertas, que não respeitam as próprias grades. Num teste aleatório, só o SBT e a Gazeta foram rigorosos, possibilitando a gravação integral de “Chapolim” e “Estação Pet”.

A novela da Globo foi cortada no final (“Insensato Coração”), assim como a da Record, “Rebelde”. O “Liang Gong” da Cultura foi interrompido no ápice.

A Band exibiu o “CQC” com 15 minutos de atraso, e a RedeTV! fez o mesmo com “Dr. Hollywood”. Este foi cortado bem na hora em que uma moça mostrava o resultado de sua plástica e dizia: “vou tentar surfar com os meus novos seios”.

Coisa de menino

Posted: 17th abril 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Tomado pela mais sincera candura, Christian Wellisch olha bem para a câmera e declara: “Adoro bater nas pessoas”. Ele é conhecido como Pesadelo Húngaro e é lutador de Artes Marciais Mistas (MMA, em inglês), o popular vale-tudo.

Nessa modalidade, os competidores podem usar inúmeras técnicas: boxe, jiu-jitsu, caratê, judô, kickboxing, muay thai e luta greco-romana. Só não vale morder, puxar o cabelo, dar cabeçada e dedo no olho, o que sinceramente me deixou decepcionada.

A principal competição de MMA é o Ultimate Fighting Championship, que vem atingindo uma popularidade cada vez maior nos EUA, onde já conta com 2 milhões de espectadores. Por aqui, o UFC é exibido aos sábados de madrugada em duas emissoras: na RedeTV! (sáb., 0h) e no Canal Combate, em pay-per-view.

É o tipo de coisa que se pode assistir por horas a fio, uma superprodução com holofotes ostensivos, brutamontes de capuz, sangue no octógono e muito dinheiro envolvido.

Para completar o circo, há bravatas impagáveis e declarações viris dos lutadores contra seus rivais, à moda do bom e velho Mike Tyson: “Acerto o nariz do meu oponente para que o osso entre no cérebro”.

Os lutadores possuem apelidos como “Carrasco Africano”, “Jovem Assassino”, “Maníaco Hispânico”, “Mestre da Maldade”, “Pavio Curto”, “Rolo Compressor Filipino”, “Ninja do Amor” (?) e “O Homem Mais Perigoso do Universo”. Há também um lutador chamado Josh “Dentista” Neer.

As transmissões do Canal Combate são as mais divertidas, pois contam com um time de intrépidos comentaristas. (Lembrem-se: estamos lidando com caras que podem te fazer desmaiar com um chute na cara.)

Sobre um lutador mais rechonchudo que trazia uma tatuagem com o mapa do Havaí no peito, Luciano Andrade perguntou: “Será que ele surfa?”. Ao que João Guilherme respondeu, sem pensar: “Teria que ser uma prancha bem reforçada”.

O jornalista continua vivo e passa bem.

Semana passada, a mesma dupla iluminada declarou que certo lutador “não era nenhum mosca-morta”. Entretanto, seu rival parecia “estar tirando um pirulito de uma criança de seis meses”. Pausa. “Que, aliás, não chupa pirulito com seis meses.”

Pensando bem, talvez os comentaristas tenham sido afetados por algum tipo de voadora.

Onde a mobilete tem valor

Posted: 10th abril 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Tendo nascido e crescido na zona norte, foi com ardor patriótico que assisti ao programa “Manos e Minas” (Cultura, sáb. às 18h) do último dia 2.

A atração, voltada à periferia, é repleta de rap, hip-hop e grafite. Desta vez, o quadro “Suburbano Convicto” mostrou o bairro do Lauzane, onde “boa parte da vida cultural da quebrada fica na mão de dois caras: o Rashid e o Projota”.

Partindo da praça Ultramarino, onde os nativos jogam dominó e o jardineiro Pedro comanda as samambaias, os rappers levam o repórter “pra trocar uma ideia lá na laje”.

Tudo começou quando MC Rashid quis mostrar à avó as letras e batidas de sua música, e junto com o vizinho Projota fundou o “Rap no Lauzane”, um evento no portão de casa.

“Na primeira vez que ganhei um dinheiro, cheguei e falei: ‘Aí, vó, hoje vai ter pizza’”. A referida senhora é a musa de uma das canções de Rashid, na qual ele expressa sua gratidão e pede desculpas pelos palavrões.

O “Rap do Ônibus” fala de duas linhas antológicas, o 1744 e 178L. Diz o refrão: “Ô cobrador, deixa os menino passar/ Vou sofrer uma hora e meia e ainda tenho que pagar/ Libera aê, porque tá caro pra caraio”.

Como um nativo típico, desses que levam meia hora para aportar no metrô, ele diz que “dá mais trabalho chegar no trabalho do que trabalhar”.

Foi quando fiquei de pé para entoar, mão no peito, o rap “Lauzane”, que doravante empregarei como hino. No videoclipe, a avó de Rashid aparece ao fundo, com sua blusinha de lã, enquanto a coletividade canta: “Se num lugar me sinto bem, é lá/ Tô tranquilão com meus irmãos no Lauzane”.

A canção fala alto ao orgulho cívico: “Só quem vem de 8L pendurado/ O instinto pede pra descer na porta do mercado”. E completa: “Sou mais um com os pés aqui e a pele de Angola/ Atravesso a Valorbe com as mão cheias de sacola”.

Está tudo lá: o batuque na lata de cortante, os moleques de bermuda tactel (“dois números a mais”) e a proporção de 500 corinthianos para meia dúzia de santistas.

Fala-se também do status da mobilete num bairro de ladeiras (“razão da preparação física do time do Pedreira”). E, por fim: “Quem ama o seu lugar como eu amo, tio, enxerga uma estrela a mais na bandeira do Brasil”.

Pegue suas facas e vá embora

Posted: 3rd abril 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Ninguém está livre de “dar os cinco minutos” quando se trata de séries de TV. Aqui em casa, ficamos irremediavelmente viciados em reality shows culinários – sobretudo em “Top Chef” (Sony, sáb. às 23h), que está em sua melhor temporada.

Na atração, 15 chefs de cozinha competem pelo título de Top Chef e um prêmio de 125 mil dólares. Nos EUA, o programa já está na nona temporada, mas por aqui ainda estamos assistindo a sexta.

Cada episódio consiste em dois desafios: o rápido, que confere imunidade ao vencedor e/ou prêmios em dinheiro, e o eliminatório, que desclassifica um ou dois chefs da competição.

A sexta temporada chegou a ser proclamada pelos juízes como a mais forte: há o ruivo Kevin, especialista em cocção de suínos, a neurótica Jennifer, com sua descontrolada agressividade culinária, e os irmãos Voltaggio, sofisticados representantes da cozinha internacional desconstrutivista.

Além do porto-riquenho Hector Santiago, que costuma fritar todos os seus pratos – mesmo depois de prontos.

Num episódio recente, um dos juízes chegou a cuspir a comida de um concorrente e outro se referiu a um patê como “ração de gato”. No último programa, alguém fez uma sopa de pepino e abacate apimentado para acompanhar um salgadinho de cebola e ganhou o desafio. Um dos Voltaggio cozinhou couve-de-Bruxelas com rúcula e foi chamado de Picasso.

Como sempre, a temporada tem sobremesas com bacon, comidas com cacto, receitas desconstruídas, gastronomia molecular, vieiras, espumas, reduções e o misterioso “sous vide”, além de muito funcho, ceviche e halibute – essas comidas que a gente nunca sabe bem o que são.

No próximo sábado, a convidada especial será a atriz Natalie Portman, que obrigará os mais ferrenhos defensores do porco a preparar um prato vegetariano. Outros juízes desta rodada são a chef e apresentadora de TV Nigella Lawson e os ilusionistas Penn & Teller.

No âmbito privado, a série revolucionou nosso cardápio da madrugada: agora enfiamos miojo num saco plástico para cozinhar em “sous vide” e empilhamos finas rodelas de banana, fatias de bolo de rolo e salame, decorando com folhas de funcho e creme de ruibarbo.

Resta saber por que chamam de “funcho” e não de “erva-doce”.

O popular exaltado

Posted: 1st abril 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista Piauí
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Tipos brasileiros: O popular exaltado
Aristóteles e Sêneca analisam o sujeito que cospe, berra, xinga, faz discurso em cima do caixote e se julga permanentemente ultrajado. Suas frases prediletas são “Não tem cabimento” e “Disso a imprensa não fala”

por Vanessa Barbara

Piauí n. 55
Abril de 2011

Ao contrário de nós, que afastamos discretamente um fio de cabelo do macarrão, e que não nos sentimos ofendidos quando um voo Rio-Curitiba tem que fazer escala em Ribeirão Preto devido a uma tramoia da companhia aérea; ao contrário de nós, que aguardamos com boa vontade a moça do guichê terminar de falar com a prima no celular, enfim, ao contrário de nós, existe o popular exaltado.

É ele que, com a mão no volante do carro, num congestionamento, xinga todos os membros do gabinete do prefeito, um a um (inclusive a tia do café). É ele que faz referência ao “bolso do contribuinte”, que reclama do rodízio de carros e denuncia “disso a imprensa não fala!”, apontando para a fila dupla na porta de uma escola.

É o popular exaltado quem invoca o Código de Defesa do Consumidor a respeito de qualquer coisa, que cita a Declaração Universal dos Direitos Humanos ao trocar uma centrífuga que não coa bem o bagaço. É aquele advogado careca que arenga para multidões na fila do banco, e aproveita para se queixar das taxas de juros, da tarifa dos serviços, da necessidade de duas senhas e da matança de bebês panda na Mongólia.

O popular exaltado destaca-se pelo tom injuriado das reclamações, que têm pertinência, mas, em geral, descambam para a emissão violenta de perdigotos e impropérios a quem estiver pela frente e imediações, seja o funcionário recém-contratado, a estagiária sensível, o zelador gago, o rapaz do almoxarifado, o porteiro distraído.

Numa loja de celulares, ele pede para chamar o gerente. Ao gerente, pede para chamar o supervisor. Quando o funcionário mais graduado garante que não há mais ninguém acima dele, o popular exaltado fica transtornado, quase feliz, e, aos urros, indaga: “É com a presidenta Dilma que estou falando?”

Ao se perder na argumentação, apelando para vitupérios insolentes ou aproveitando para desfiar todas as suas mágoas, o popular exaltado é tratado como um reles Doido de Fila de Banco, ou então como o Querelante Convicto, ou mesmo como a Hiena Reclamona (“Ó vida, ó céus, ó azar!”) – tipos populares também eles, mas de outra estirpe.

***

Popular exaltado legítimo foi aquele que, em abril do ano passado, apoquentado com as enchentes que mataram mais de 200 pessoas no Rio de Janeiro, ficou preso no trânsito e foi entrevistado por um repórter de televisão (o vídeo está no YouTube). Ele começa pelo “governador Sérgio Cabral, com aquela cara de tartaruga Touché, falando que o Rio é uma cidade maravilhosa”.

Vai em cima do prefeito: “Isto aqui é um engodo, uma cidade governada por milícias, traficantes e vagabundos. Meu carro, com o IPVA em dia, está enchendo d’água, e cadê aquele f*&%p do Eduardo Paes?”

Volta-se contra o entrevistador: “E vocês, da imprensa, ficam lá tirando fotinha dele, ‘Ai, Eduardo Paes, Choque de Ordem, tirou da rua o camelô, multou o carrinho que estava na calçada’. Agora, cadê a Guarda Municipal?”

E delira: “A gente paga imposto para sustentarDaniel Dantas e Eike Batista. F*&%-se o Eike Batista, que está f*&#@&o uma piranha que cobra mil reais a hora. F*&%-se a Nicole Bahls, que está d%@&o pro filho do Eike Batista. F*&%-se se a Britney Spears está grávida de um cavalo. Eu quero saber quem vai pagar o prejuízo do meu carro, tá?”

E vem a apoteose: “Essa coisa fascista de dizer que a gente mora numa cidade maravilhosa, isso aí é uma falácia criada por aquela bicha enrustida do Tom Jobim, prócer da ditadura que cantava assim: ‘Ipanema é tão legal, o meu pai é general.’ Então é isso aí: F*&%-se a bossa nova,f*&%-se o Sérgio Cabral tartaruga Touché e f*&%-se o Eduardo Paes.”

E conclui o depoimento com um agradecimento ao repórter: “Olha, você me curou de um câncer agora.”

Dá vontade de aplaudir.

O popular exaltado é uma versão loquaz e combatente do “Popular”, personagem de Luis Fernando Verissimo que está sempre assistindo aos acontecimentos com um embrulho debaixo do braço, a camisa esporte clara para fora da calça (marca Volta ao Mundo?), o ar de eterno espectador.

Mas o popular ortodoxo não se mete nos assuntos, não se manifesta, não se queixa, não expõe sua opinião, não acha nada de coisa nenhuma. Já o popular exaltado cospe, berra, xinga, faz discurso em cima de um caixote e se julga permanentemente ultrajado. Suas frases prediletas são “É um absurdo”, “Não tem cabimento” e “Isso a televisão não mostra”.

***

Quando em viagem, o popular exaltado se solta. No livro Uma Semana no Aeroporto, Alain de Botton descreveu um sujeito que dava murros no balcão e soltou um grito de desespero tão lancinante que se ouviu “lá longe, na loja da WH Smith, no final da ala oeste do terminal”. Para o escritor, o uivo seria sinal de uma disposição esperançosa: “Temos raiva porque somos seres otimistas demais, pouquíssimo preparados para as endêmicas frustrações da existência. Um homem que berra toda vez que perde as chaves ou é barrado no avião demonstra uma tocante mas ingênua e imprudente fé em um mundo onde não se perdem chaves, nem malas, nem voos.”

Em Ética a Nicômaco, Aristóteles defende o popular exaltado: “O que se irrita justificadamente nas situações em que se deve irritar, ou com as pessoas com as quais se deve irritar, e ainda da maneira como deve ser, quando deve ser e durante o tempo em que deve ser, é geralmente louvado.”

Aristóteles, no entanto, admite haver “excessos a respeito de todos os elementos circunstanciais envolvidos num acesso de ira (seja por se dirigir contra as pessoas indevidas, seja por motivos falsos, seja por exagero, ou por surgir rapidamente, ou por durar tempo demais)”. Ainda assim, insiste: Iram calcar ait esse virtutis (A ira é o aguilhão da virtude).

Podem ser classificados, assim, na categoria de populares exaltados e persistentes, a costureira Rosa Parks, que se recusou a dar lugar no ônibus para um branco, Martin Luther King, Antígona, o rebelde desconhecido da Praça da Paz Celestial e os franceses (pois vivem reclamando de tudo, mas com lógica cartesiana).

Embora o popular exaltado possa ser visto com admiração em certos casos, não é o que pensa o filósofo romano Sêneca. No tratado Da Ira, ele indaga: seria certo considerar saudável “aquele que, como que arrastado por uma tempestade, não caminha por si mesmo, mas é levado e feito escravo de um delírio furioso, não confiando a ninguém a sua vingança, mas executando-a ele próprio, com a alma e as mãos enfurecidas?”.

Na dúvida, convém enviar uma carta à redação protestando contra a ausência de uma conclusão satisfatória neste artigo, e denunciando a agonia do jornalismo, o sofrimento de bebês panda e a derrocada generalizada de tudo e de todos.

Acredite… se quiser

Posted: 27th março 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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No último dia 18, estreou na Band o programa “Acredite se Quiser” (sex., 22h15), um show de variedades baseado no americano “Ripley’s believe it or not”.

No Brasil, a atração fez sucesso nos anos 80, quando foi exibida pela Rede Manchete sob a apresentação do ator Jack Palance. Com a maior calma do mundo, ele mostrava reportagens sobre assuntos insólitos, como um menino-bolha, ursos ginastas e verduras gigantes.

A versão da Band é produzida pela Sony e traz apenas casos americanos. O episódio de estreia mostra um homem com uma faca de 28 cm enterrada no crânio, uma cadela bassê que acredita ser mãe de três telefones sem fio, um artista que completou uma réplica da Torre Eiffel com os próprios dentes e um sujeito que andou numa corda bamba entre dois edifícios de vinte andares.

Na série brasileira, tem-se a impressão de que todos os vídeos foram feitos em 1988. O equilibrista não causa o menor espanto, até porque, já em 1974, Philippe Petit atravessou as Torres Gêmeas do World Trade Center num cabo de aço, a uma altura de 400 metros.

A comedora de minhocas e o homem que desafia um jacaré também parecem saídos do século dezenove, sendo facilmente ultrapassados por uma visita ao You Tube, ao Google ou à enciclopédia “O Mundo Pitoresco” (Jackson Ed., 1944).

Há algo ainda pior nesta versão de “Acredite Se Quiser!”: o alarmismo. Um tom sensacionalista e espetacular domina a narração, desnecessariamente adjetivada, numa tentativa de prefigurar a reação do espectador.

O primeiro caso é “apavorante”, diz o narrador: um homem “malvado” enfiou uma “faca do Rambo” no crânio de outro e houve uma cirurgia “perigosa”. A palavra “inacreditável” é repetida às dúzias, bem como “glorioso”, “grotesco” e “espetacular”. As minhocas engolidas pela dançarina são “nojentas, escorregadias, molhadas e pegajosas”.

A toda hora, recomenda-se que o espectador “não faça isso em casa”, embora seja improvável que alguém tente enfiar uma faca serrilhada no próprio crânio.

É uma diferença considerável do programa original, em que Palance (dublado por Darcy Pedrosa) apresentava as histórias com uma voz calma, neutra e indiferente. Na Band, o apresentador Felipe Folgosi só falta comer minhocas.

Guia da Folha
25 de março de 2001