Salvos pela TV

Posted: 26th março 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
26 de março de 2012

por Vanessa Barbara

Aos que desprezam quem passa horas largado no sofá com o controle remoto apoiado na avantajada pança, aqui vai uma dica: assistir a programas de TV pode salvar a sua vida. Ou pelo menos é o que diz o especial “Salvo pelo Discovery” (hoje, às 18h), que reconstitui incidentes reais dos quais as vítimas se safaram graças a uma lição televisiva.

Com narração grave e catastrófica, o programa abusa dos adjetivos: “Uma bela tarde de surfe se transforma em terror quando um monstruoso tubarão branco surge em meio às águas escuras”. Os esforços da vítima são inúteis contra o espantoso poder do animal. “Ele pensa que eu sou uma foca.”

Seguem imagens da mandíbula do tubarão destroçando os ossos do surfista, que felizmente assistira à “Semana do Tubarão”, no Discovery. Lá, aprendeu que se deve golpear o focinho, a parte mais vulnerável do animal. (Apesar de tudo, Brian não guarda rancor dos tubarões.)

Outro testemunho é de um casal que passou doze dias preso na nevasca, dentro de uma caminhonete, e se lembrou de cortar o estofamento dos bancos para fazer botas de neve.

Até um adolescente fez uso dos ensinamentos televisivos para permanecer mais tempo submerso “numa água mortalmente congelada” enquanto esperava o resgate. “Ele fez exatamente o que Bear Grylls mandou”, disse um amigo, referindo-se ao apresentador de “À prova de tudo” e “No pior dos casos”. Questionado sobre o motivo de ter feito algo tão tolo, ele respondeu: “Somos adolescentes, não escutamos nada do que nos dizem”. Exceção feita a Bear Grylls.

Igualmente instruído pelo Discovery, um menino de 11 anos sobreviveu a uma avalanche criando bolsões de ar em torno de si, ao mover cabeça, mãos e pernas enquanto era atingido. Com essa providência, passou 39 minutos soterrado e burlou a morte.

O melhor exemplo, porém, é a luta de Corey Workman, 16, com um jacaré gigante. “O animal pretende fazer de Corey o seu jantar”, diz o narrador. O predador já executava seu rolamento mortal quando o rapaz lembrou de algo que vira na tevê: golpear o jacaré bem no olho

E foi o que fez, espancando repetidamente o pobre réptil até que ele desistisse de sua promissora refeição. Em seguida, o amigo de Corey foi resgatá-lo e aproveitou para dar mais uns sopapos no jacaré, que pelo visto não aprendeu nada assistindo “Predadores Letais” no canal NatGeo.

Padrão FOX

Posted: 19th março 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Ilustrada – Folha de S.Paulo
17 de março de 2012

por Vanessa Barbara

Estreia hoje a nova série protagonizada por Kiefer Sutherland, “Touch” (22h, FOX). O ator faz o pai viúvo de um menino autista, Jake, que tem a habilidade de prever padrões numéricos na relação entre as pessoas.

“Os padrões se escondem bem debaixo dos nossos olhos”, explica o garoto, através de narração em off. “Até as coisas que parecem caóticas seguem leis sutis de comportamento”, diz, ressaltando que algumas pessoas conseguem ver como essas peças se encaixam.

Ele conta a lenda chinesa do fio vermelho do destino, um fio atado pelos deuses no tornozelo de cada um, conectando-nos às pessoas cuja vida estamos destinados a tocar. Para o garoto, essas conexões podem ser predeterminadas pela probabilidade matemática.

Jake tem onze anos de idade e nunca emitiu uma só palavra. Não permite que ninguém o toque e costuma subir no alto de uma torre de celular, de onde desenha padrões numéricos num caderno.

Para driblar o mutismo do protagonista, criou-se um personagem misterioso (interpretado por Danny Glover) que explica por que o garoto não fala. “Falar é desnecessário, antiquado, tão inútil para a evolução quanto o seu dedo mindinho.” Pessoas como Jake enxergam o mundo como um emaranhado quântico de causa e efeito. “Ele vê tudo: passado, presente, futuro, e como eles estão interligados. Age como um controlador de tráfego.”

Por mais que a premissa seja interessante, a trama resvala em justificativas eletromagnéticas, passa por acontecimentos cada vez mais forçados e acaba tomando um tombo homérico ao apelar para a relação entre ciência e espiritualidade. Do meio para o final, o piloto é um desastre.

Através do pai, o menino vai guiando uma série de fatos que envolvem um celular perdido, uma cantora irlandesa, um executivo japonês, um sujeito que ganha na loteria, um ônibus escolar cheio de crianças, um iraquiano que vira terrorista só para ganhar um forno e outros sub-enredos decididamente inverossímeis e mal amarrados.

A série lembra o pior de “Heroes”, o pior de “Fringe” e o pior de “Lost”, limitando-se a fornecer o vislumbre do que poderia ter sido uma ótima ideia se desenvolvida de forma inteligente, limpa e plausível.

A julgar pelos lançamentos mais recentes da emissora (“Alcatraz”, “Homeland” e “Terra Nova”), a FOX tem seguido um padrão: ele é baixo e norteado pela expectativa da audiência, não pelos bons roteiros.

 

Revista piauí – n. 66
Março de 2012
Versão Estendida

por Vanessa Barbara

Aos 37 anos, a paulistana Cris Siqueira tem planos de vida muito específicos: “Eu preciso ter uma Monga”, exclama, bastante séria. De cabelos castanho-claros, voz rouca e tatuagens nos braços, ela foi vocalista da banda punk Go Hopey e usuária assídua da CapsLink BBS, uma rede pré-internet só para aficionados. Graduou-se em cinema pela Faculdade Armando Alvares Penteado (FAAP), onde teve a ideia de produzir um documentário sobre o Globo da Morte. Durante a pesquisa, porém, descobriu que há Globos da Morte por todo o mundo – “na Índia tem alguns com carros” –, e que o filme seria inviável com um orçamento tão baixo. Mas travou contatos no circo brasileiro e começou a se apaixonar pelo tema.

Em 2004, interrompeu o projeto e a banda punk para ir morar em Milwaukee, onde concluiu dois mestrados (em cinema e história) e deu aulas na Universidade de Wisconsin. Queria estudar a história do circo nos Estados Unidos, mas foi demovida da ideia por seus professores. “Os acadêmicos americanos não podem ver uma pessoa não branca que já mandam para estudos étnicos”, brincou. Acabou indo estudar questões de raça nos Estados Unidos e no Brasil.

Foi numa dessas pesquisas de campo que Cris descobriu que existem Mongas nos EUA – o pitoresco truque de vidros em que uma mulher se transforma em macaco e foge da jaula, para desespero do público. Lá é chamada de Zambora, A Mulher-Gorila, e faz parte dos sideshows, pequenos circos itinerantes inspirados nos espetáculos de aberrações. Originalmente eram a atração secundária do circo, com a mulher barbada, o homem de três pernas e as mutações da natureza, além dos chamados working acts – engolidor de espadas, cuspidor de fogo, atirador de facas, faquir. “São coisas que você não precisa passar a vida treinando, como o trapézio – você vai e faz. É só ser meio doido e não se importar com a dor”, explica Cris, que cospe fogo nas horas vagas.

Por essas e outras, os integrantes de um sideshow não precisam vir de uma família circense de terceira ou quarta geração – Cris se define como “geração zero incrível”, termo que ela mesma inventou. “No sideshow, não há esse esnobismo de circo. São todos empreendedores novos. São também os ‘perdidaços’ da vida, os outsiders, que te recebem de braços abertos.”

Intrigada com a origem da Zambora, ela foi pesquisar e pimba: descobriu que a Monga americana vinha do Brasil. “Achei o elo perdido!”, brinca. O número surgiu de uma técnica inglesa de ilusionismo chamada Pepper’s Ghost, que é um truque de vidros criado para transformar uma coisa em outra. “Aí um casal de brasileiros, nos anos 60, foi pros Estados Unidos com um parquinho itinerante e trouxe do Brasil essa ideia”, conta a historiadora-cineasta-punk, que é também fundadora de uma equipe feminina de roller derby, espécie de rugby de patins (sem bola). “Parece que antes eles tentaram com uma mulher que virava pedra, aí não dava certo. Um dia, fizeram a mulher virar um gorila, e o que funcionou mesmo foi ela escapar”.

Tomada por um furor patriótico, Cris decidiu: “Eu preciso ser a Monga. Preciso”. Em 2008, nas férias do mestrado, conheceu um senhor de 80 anos chamado Ward Hall, dono de um sideshow chamado World of Wonders. “Ele tinha uma Monga. A mais vagabunda que você já viu na vida, não tinha nem os vidros, era só uma máquina de fumaça”, ri. Em vez de “garota em gorila”, ele transformava “garota em fumaça”. Com a temporada prestes a começar, Ward e seu sócio, Chris Christ, convidaram a brasileira para se juntar à trupe. Ela aceitou.

Não possuía habilidades circenses e, para piorar, não era exatamente uma moça delicada, loira e magra. “Os adolescentes esperavam uma modelo. Aí vinha eu, que na época pesava uns 110kg, estava gordésima… Então eu já chegava Monga. Já chegava parecendo um gorila”, conta Cris, que emagreceu 40 quilos montando as tendas dos sideshows e hoje aparece nos espetáculos magra e linda com seus vestidos brilhantes, botas de cano alto e uma flor no cabelo.

“Além de tudo, era uma coisa extremamente racista. A moça é loira, clarinha, linda… E aí as narinas dela vão se abrir, a pele dela vai escurecer… E ela vai se transformar neste gorila macho africano, que vai te pegar e acabar com esse país!” Na época, Cris ainda dava aula de estudos étnicos, raça e gênero na universidade. E era Monga para completar o orçamento.

No World of Wonders, além de virar gorila 32 vezes por dia, ela tinha mais duas atribuições profissionais: sentar em cima do coitado que deitava na cama de pregos e atuar como “uma linda mulher com rosto de uma linda mulher e o corpo de uma aranha”. (Basicamente, um display de papelão repleto de fumaça onde ela botava a cara de vez em quando.)

Mas Cris se considera acima de tudo uma documentarista. Primeiro sonho realizado, surgiram outros dois: “Quero montar uma Monga. Uma Monga só minha. E fazer um filme sobre isso”. O projeto, que está na fase de captação de recursos, prevê uma parte histórica, a montagem de uma Monga própria e uma comparação entre as variantes brasileira e americana. “Nos Estados Unidos, a moça não pode ser nem moreninha. Tem que ser bem branquinha, senão causa desconforto racial”, filosofa. No Brasil, só causaria desconforto se ela fosse bem negra, tipo zulu.

O filme pretende traçar um paralelo entre a classe C americana, que está em franca decadência, e a brasileira, em ascensão. Cris percebe no dia-a-dia as consequências da crise: enquanto faz propaganda do sideshow na entrada, fica reparando se as pessoas estão carregando prêmios dos jogos, se gastaram dinheiro com as brincadeiras, se estão levando comida e bebida. “Uma coisa que eu nunca tinha visto na vida: sabe refrigerante grandão de refil? A família compra um só com um canudinho pra todo mundo!”. Em ambos os países, a entrada média da Monga custa o mesmo preço (4 reais e 2 dólares), então a comparação é pertinente.

Outra coisa que Cris descobriu em suas pesquisas de mercado junto aos donos de Monga é que, no Brasil, o grande desafio é fazer o pessoal correr. “É um problema, porque o pessoal não corre. Então você tem que infiltrar na plateia uns populares contratados pra gritar e estimular o povo a correr”. Nos EUA, é o contrário. O público corre demais e é preciso brecar a saída, por exemplo, botando uma curva no túnel. Senão eles caem um em cima do outro e processam os donos do espetáculo. “Aí eu comecei a reparar: as Mongas do Brasil têm uma rampa! É uma beleza: cai todo mundo, perde o chinelo, ninguém está nem aí…”, afirma.

**

Em busca do sonho da Monga própria, Cris foi a uma convenção de sideshows em novembro e soube que havia uma Monga à venda por 4 mil dólares em Dalton, uma cidadezinha ao norte de Minnesota. Estava completa (caminhão e tudo) e era original dos anos 80. “Ficava a oito horas de viagem, e eu havia acabado de passar cinco meses morando numa van. Fim de temporada, o veículo estava arrebentado. Era início de inverno, podia nevar a qualquer momento e eu ficaria ilhada. Falei: vou. Vale a pena”, decidiu.

No dia 12 de novembro, um sábado gelado, Cris dirigiu o dia todo, até escurecer. A rodovia interestadual 94 (I-94) é uma estrada grande, com infraestrutura, porém ladeada por cidades minúsculas, sobretudo no último trecho da viagem. Cris planejava passar a noite em Alexandria (“metrópole” de 11 mil habitantes), mas a van começou a fazer um barulho estranho pouco antes de St. Cloud e ela acabou parando num hotel de beira de estrada em Clearwater (população de 1,7 mil). Lembrava de ter trocado os pneus semanas antes e feito uma revisão no meio da temporada com Troy Jones, o mecânico de montanhas-russas, mas ficou apreensiva.

“No dia seguinte, quando fui levar a van para o mecânico, o pneu caiu ali mesmo no estacionamento do hotel. Imagina se isso acontecesse no meio da estrada?”, indaga. Preocupada com o atraso, telefonou para Phyllis Osander, 85, dona da Monga à venda, que resmungou e disse que Cris não era séria (“you’re not legit”). A velhinha aproveitou para agourar a expedição, afirmando estar na estrada há tempo suficiente para saber que ninguém iria ajudá-la numa cidade estranha, no meio do nada. “Tem uma coisa de estar na estrada, esse pessoal é muito duro”, conta Cris. “Dizem que ninguém vai te ajudar nunca, mas eu sou o contrário, sou brasileira, sempre assumo que você dá um jeito, tudo vai dar certo…”

Conforme o previsto, Cris ficou amiga do mecânico local, a quem contou suas peripécias na feira de Minnesota, que tem o maior parque dos EUA (“The Mighty Midway”). Ganhou até um desconto.

Então venceu os últimos quilômetros e foi ao encontro da Monga de sua vida, que vinha com uma tenda e um conjunto completo de seis banners pintados à mão. Na bilheteria, a inscrição: “Was Darwin right?” [Darwin estava certo?] e a propaganda da mulher-macaco, “capturada nos desertos de Nairobi”. O pacote de 4 mil dólares incluía o caminhão (sem rodas), a caixa, os vidros, as luzes, os postes para montagem da tenda e uma fantasia podre de gorila. O sistema de armazenamento e transporte do material era bem sacado e prático, e os vidros rodavam num trilho bem razoável.

Por azar, ela não tinha dinheiro para comprar a Monga. Além disso, achou que o material estava em péssimas condições de conservação e precisaria de uma reforma praticamente do zero. “Tudo velho, enferrujado, mal cuidado. Mas vi pela primeira vez a Monga que eu quero ter.”

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A segunda road trip do projeto aconteceu no Nordeste do Brasil. Dessa vez, Cris não pretendia comprar o material, mas encontrar uma Monga que representasse o país no filme. Passou sete horas rodando por estradinhas esburacadas, de duas mãos, com desvios inacreditáveis, um deles “sinalizado” por um tronco no meio da estrada – este passava pelo meio de uma favela. “Vi até carcaça de boi no caminho. Se a roda do carro tivesse caído nessa viagem ia ter carcaça de Cris no sertão, porque eu passei no meio do nada mesmo…”, narra.

Finalmente, em Parelhas, no Rio Grande do Norte, encontrou o “Castelo da Monga”, também chamado de “A Monga mais bonita do Nordeste”. Após a visita, Cris concordou com o epíteto: “Fiquei super impressionada e quero muito fazer o filme com eles. Os caras são batalhadores, herdeiros de uma tradição”. A trupe é comandada pelo Paulo da Monga (pai) e Paulinho da Monga (filho), de Campina Grande, na Paraíba. O sogro é o Zezé da Monga, que tem Monga há 40 anos. “Eles são inovadores também, aproximaram a atração do universo de terror para atrair o público e reformaram o ônibus recentemente”, analisa a cineasta-punk-patinadora-e-cuspidora-de-fogo.

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Hoje Cris Siqueira trabalha para o Jim Zajicek’s Big Circus Sideshow, que tem como atrações uma tartaruga albina, um touro de seis patas, um anão malvado e Eartl & Myrtle, a tartaruga de duas cabeças. Todos os anos, no verão americano, ela sai em turnê. Em 2011, apresentou-se em Louisiana, Texas, Pensylvania, New Jersey, Maryland e Ohio. Com seus dois mestrados e uma experiência de vida quase que totalmente urbana, ela escolheu morar numa van e tomar banho em postos de gasolina na estrada. “É uma vida desconfortável, de trabalho braçal”, admite. Mas Cris adora. “Entender o resto do mundo tem sido bem interessante.”

De vez em quando, ela cospe fogo profissionalmente para atrair o público, mas diz que é péssima nisso. “Eu queimo a boca inteira, não consigo engolir, tenho que tentar várias vezes… E às vezes bate um vento na cara…” Sua especialidade no sideshow é de captar a audiência, discursando num microfone com uma cobra ao redor do pescoço. De pé, ela faz truques de mágica e usa frases clássicas do circo de horrores. “Aberrações, monstros e mulheres estraaaaanhas!”, anuncia, ao lado da colega engolidora de espadas, Diane Falk, que assina as fotos desta matéria. “Nós somos as mulheres estranhas. Boa noite!”


GALERIA DE FOTOS

 

Folha de S.Paulo – Ilustrada
12 de março de 2012

por Vanessa Barbara

Não há dúvida de que a corda rompida e os barris amarelos sendo arrastados pelo oceano convencem mais do que o eventual close de um boneco mecânico no filme “Tubarão”, de Steven Spielberg. O bicho termina por aparecer – desfocado –, mas a sugestão de sua presença é mais forte.

Há outros exemplos: Godot, da peça de Beckett, é insistentemente aguardado, mas nunca vem. Dulcinéia, no romance “Dom Quixote”, é mencionada pelo herói e influencia seus atos, mas não aparece.

São personagens silenciosos e vistos apenas sob os olhos dos demais, ainda que a audiência os conheça bem. Sua personalidade e ações ecoam pela trama.

Alguns são invisíveis, porém audíveis: Charlie Townsend, o chefe de “As Panteras”, e Miss Othmar, professora de Charlie Brown. E o sujeito que dá avisos no alto-falante em “M.A.S.H.”: “Atenção, todas as tropas. Devido a circunstâncias fora do nosso controle, lamentamos informar que o almoço está servido.”

Temos também a mãe gorda de Peggy Bundy, em “Married with Children”, que nunca é vista, mas provoca abalos sísmicos quando anda.

Alguns mostram sua silhueta por trás de poltronas altas, como o chefe de George Costanza em “Seinfeld”, que fala sem parar e dá ordens aleatórias.

Há uma miríade de cônjuges sem rosto como a sra. Columbo, esposa do detetive; Stan Walker, marido de Karen em “Will & Grace”; a sra. Wolowitz, mãe de Howard em “Big Bang Theory”; Vera Peterson, ex-mulher de Norm em “Cheers”; e Maris Crane, esposa de Niles em “Frasier”. Além, é claro, da misteriosa Mãe, esposa de Ted em “How I Met Your Mother”.

A empregada de “Tom & Jerry” também entra nessa categoria, assim como os pais da Vaca e o Frango, que não possuem a parte de cima do tronco – daí só aparecerem as pernas.

Em “Animaniacs”, o menino Colin cita sem parar um amigo desconhecido: “Teve uma vez em que o meu amigo Randy Beaman comeu sucrilhos, mas não eram sucrilhos, era a coleção de cascas de ferida do irmão dele. Ok, tchau.”

Outros invisíveis de renome são Bob Sacamano, de “Seinfeld”, e o Cara Feio e Pelado, de “Friends”.

“Tem gente que é meio invisível, como o Willian Bonner, que só aparece pela metade”, afirma o leitor Roberto Bencz.

No fundo, todos somos personagens sem rosto na vida de alguém – podemos não aparecer, mas somos constantemente mencionados. “Na vida real, eles são o chefe do chefe, a ex-namorada, o vizinho, a apendicite”.

Contusões com papel

Posted: 6th março 2012 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
6 de março de 2012

Por Vanessa Barbara

Excetuando-se provavelmente a topada de mindinho na quina, temida até por Genghis Khan e pelos grandes hunos da história, não há dor que se compare a um corte com folha de papel. Você está manuseando a correspondência, acaba se distraindo com um besouro e catapimba: um corte fino no dedo, que te faz urrar e emitir palavras de baixíssima estirpe em público.

De acordo com estatísticas aleatórias encontradas na internet, mais de 50% dos assistentes administrativos sofrem um corte desse tipo por mês, e quase metade deles sofre múltiplos cortes no mesmo período. “É importante lembrar que mesmo um machucado pequeno pode tornar-se fatal em caso de infecção. Mesmo um corte com folha de papel pode resultar numa amputação”, afirma um site americano de acidentes de trabalho, decerto pensando em lucrativos processos trabalhistas. Os danos morais, dizem, são irreparáveis.

Apesar da importância insofismável do tema, não foram encontradas estatísticas confiáveis sobre os acidentes com papel cortante em editoras, e nem o índice de funcionários que grampeiam os próprios dedos ou se veem soterrados em pilhas de originais para corrigir. Sabe-se, porém, que o urro emitido por quem corta o dedo com papel (o chamado paper cut) pode atingir até 98 decibéis, similar ao de quem é atingido por um piano (112 decibéis), quem prende o dedo na porta (99 dB), quem morde a língua (77 dB), quem masca a afta (84 dB), quem bate o cotovelo na parede (72 dB), quem quebra a unha (63 dB) ou é subitamente contrariado em seus planos malignos de dominação do universo (http://nooooooooooooooo.com).

Mas por que cortar o dedo com uma folha de papel dói tanto, ainda que mal sangre e seja imperceptível? Há inúmeras teorias:

Teoria nº 1: Rugosidade maligna

Um corte provocado por papel não só rasga a carne como também a dilacera, por conta da superfície áspera e rugosa desse material. É essa a principal diferença entre uma incisão provocada por um instrumento afiado de cutelaria e por uma folha de papel: esta última ocorre de forma irregular. É só pensar numa faca com o fio cego, que demora mais para cortar um bife e o faz com pouca precisão, “mascando” a superfície atingida. Além disso, o papel deixa pra trás pequenas partículas fibrosas que não são limpas pelo sangue, já que este não flui tão livremente como nos ferimentos por lâminas.

Teoria nº 2: Infecções perversas

Intimamente ligada à primeira teoria, esta se relaciona aos produtos químicos utilizados na fabricação do papel. Quando o material penetra a pele, deixa no local parte de suas fibras quimicamente tratadas, estimulando os receptores da dor. Alguns dizem que, por ser poroso, o papel é um pródigo hospedeiro de bactérias. Como o ferimento é geralmente pequeno e superficial, a pele se fecha sem demora, aprisionando os fragmentos e bactérias em seu interior. O resultado é uma dor de cortar em fatias.

Teoria nº 3: Resmas mortais

Há os que sustentam que as incisões por papel são mais comuns de ocorrer quando manuseamos blocos ou resmas que mantém as folhas unidas e compactadas. Assim, quando uma única folha desliza do conjunto, expõe alguns milímetros de sua aresta e torna-se robusta o suficiente para rasgar a carne.

Teoria nº 4: Ferimento escancarado

Em franca contradição com a teoria número 2, esta afirma que o sangramento comedido dificulta a coagulação e a cicatrização da ferida. Assim, as fibras nervosas ficam mais tempo expostas ao ar e à sujeira, prolongando a dor.

Teoria nº 5: Nociceptores do mal

As vítimas do talho são geralmente acometidas na polpa dos dedos, onde há alta concentração de nociceptores, fibras nervosas que enviam sinais de tato e dor ao cérebro. Diz-se que esses receptores são particularmente sensíveis a estímulos leves. Além disso, por ser pouco profundo, o corte com papel só afeta as camadas externas da pele, precisamente onde se localizam os nociceptores que enviam os sinais agudos de dor. É por isso que às vezes a dor do corte é pior do que se fosse mais profunda — é muito mais aguda e ardida.

As lacerações leves apenas irritam as terminações nervosas, em vez de destruí-las. Isso significa (infelizmente) que os nervos continuam funcionando e enviando suas mensagens excruciantes ao cérebro. A boa notícia: se a dor for insuportável, sempre se pode tentar golpear o dedo com um martelo para destruir as terminações nervosas. A má notícia é que, quando os nervos forem reparados, vai doer bem mais.

* * * *

Embora algumas dessas teorias façam sentido, nenhuma delas é amplamente aceita como causa inequívoca do suplício desse tipo de laceração. Deve haver alguma hipótese alternativa que acuse a natureza perniciosa do papel, sobretudo quando preenchido por má literatura.

Funcionários de gráfica afirmam que as folhas mais cortantes seriam da gramatura 75 a 120 g/m², principalmente do tipo AP. No meio gráfico de Belo Horizonte, há uma lenda corrente sobre um sujeito que morreu quando uma folha do estoque (que era no andar de cima) voou e cortou a jugular do infeliz.

Não se sabe se a história é verídica, mas os Caçadores de Mitos, do Discovery Channel, já colocaram à prova o mito do atirador mortal de cartas de baralho. (O vídeo sem legendas pode ser visto aqui: http://dsc.discovery.com/videos/mythbusters-killer-deck-minimyth.html) Diz a lenda que uma carta de baralho comum pode matar uma pessoa caso seja arremessada com força suficiente. Para testá-la, Jamie e Adam construíram uma máquina atiradora de cartas a 249 km/h, que causou apenas um corte modesto com pouco sangue. O mito foi descartado.

Em todo caso, convém não ignorar a amputação e morte possivelmente advindas de um prosaico paper cut; dizem os especialistas que a conduta mais indicada é manter a calma, desinfetar a ferida e cobri-la. (Alguns mencionam Super Bonder, mas eu recomendaria um band-aid).

E por falar nisso, convém ter cuidado ao abrir a embalagem do curativo. São abundantes os casos de paper cut na caixa do band-aid e nos cartões de “Estimo as melhoras” enviados pelos amigos.

Folha de S. Paulo – Ilustrada
5 de março de 2012

por Vanessa Barbara

Três colunas atrás, falamos do “Jornal Hoje”, esse programa vespertino de variedades travestido de noticiário.

O leitor Edson Lucafó, de Piracicaba, jura que deve haver no teleprompter a indicação “notícia boa” ou “notícia ruim”, já que, antes mesmo de introduzir o assunto, a apresentadora assume uma expressão de alegria (sorriso) ou de indignação (testa franzida). As reações faciais são tão repentinas quanto as de um ator do Método tomado por uma iluminação mística.

Outro leitor, Roberto Bueno, questiona o caráter jornalístico de uma receita e vai além: diz que “a TV aberta é só uma reminiscência formal de algo do que, no caso, um dia foi um telejornal. É um desfavor, uma violação a sua natureza de concessão pública”. Ayrton Passos concorda: “A TV precisa melhorar a qualidade, deixar de pensar que o brasileiro é idiota”.

Outros lamentaram a falta de menções ao incidente do mamão, protagonizado pelo âncora Evaristo Costa na edição do dia 2 de janeiro. Antes de apresentar uma reportagem sobre os benefícios do mamão para a saúde, Evaristo perguntou à companheira se ela gostava da fruta. “Adoro. Como todo dia de manhã”, ela responde, com a alegria reservada apenas aos animais e legumes. Cedendo ao trocadilho, Evaristo estendeu a mão e a cumprimentou. “Uma mão aqui”, disse, rindo. “Que piada velha”.

Virou imediatamente meme de internet.

Chegará o dia em que Sandra e Evaristo se entregarão à bazófia e farão uso do tabuleiro temático do “Puxa Cachorra”, um gerador automático de edições do JH (puxacachorra.blogspot.com). Seria mais ou menos assim:

Sandra Annenberg dá início à partida, anunciando a queda de preços nos materiais de construção. Evaristo não se deixa intimidar e tira doze no dado, ganhando o direito de exibir bebês panda com suas mamadeiras. “Queimadas ameaçam parque do Trululu”, ela sentencia, e ao adversário resta uma matéria sobre finanças domésticas.

Na Tailândia, um elefante invade um casamento e Sandra noticia o fato, abocanhando também as pautas de frente fria e mofo nos casacos. Evaristo contra-ataca com os benefícios do chá de cacto. “Comprovado! Linhaça fortalece os ombros!”, ela apela, quase gritando, e se arremessa em direção à receita do dia: bolo de linhaça com cacto.

Evaristo ainda tenta apelar com o Festival da Água-Viva, em Tóquio, mas não há páreo para a primeira-dama do “Jornal Hoje”.

Unanimidade em dúvida

Posted: 27th fevereiro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
27 de fevereiro de 2012

por Vanessa Barbara

Vencedora do Globo de Ouro de melhor série dramática, “Homeland” estreia domingo que vem às 22h no canal FX. Na premiação, bateu as favoritas “Game of Thrones” e “Boardwalk Empire”, duas gigantes da hbo. É uma das favoritas de Barack Obama e uma das raras unanimidades do site Metacritic, que faz uma compilação de resenhas publicadas na grande imprensa.

Enfaticamente citado nas listas de melhores estreias de 2011, o thriller da Showtime tem Claire Danes no papel principal e dois produtores de “24 horas” na folha de pagamento.

“Homeland” conta a história de uma agente de contra-terrorismo da CIA que passa a questionar a lealdade de um heroi de guerra americano, um fuzileiro naval recém-libertado do cativeiro no Iraque. Ela acredita que o militar converteu-se à Al-Qaeda e planeja um atentado terrorista contra os Estados Unidos.

O grande trunfo do show é a condição psiquiátrica da heroína, que sofre de transtorno bipolar e apresenta um comportamento paranoico e instável, o que pode (ou não) interferir em sua capacidade de julgamento.

Ou seja: é uma série de espionagem e política que só pode ser muito boa. Tem sido difícil encontrar resenhas negativas sobre a atração, o que torna ainda mais estranho o fato de eu não ter gostado. Nem um pouco.

E digo mais: a série “24 horas”, com sua mirabolância e ataques nucleares, falta total de verossimilhança e exageros patrióticos, é melhor do que a cult “Homeland”. A saga de Jack Bauer não se propõe a raciocínios complexos, nuances de personagens, tentativas de se tornar obra de arte. É divertida e cheia de explosões, e o herói é tão durão que chega a ser engraçado.

“Homeland” é pretensiosa. Os episódios são arrastados, previsíveis, e a heroína é irritante, mais do que a Kim em “24 horas” e mais do que o Jesse do início de “Breaking Bad”. Mas Jesse evolui na trama, enquanto Carrie continua na mesma.

O mistério em si não convence. Os diálogos são esquisitos e apelam para a forte identificação dos americanos com o trauma, o medo e a paranoia pós-11 de Setembro.

“Homeland” podia aprender algo sobre vigilância e caracterização de personagens com a excelente “The Wire”, série da HBO sobre o tráfico em Baltimore, e “A vida dos outros”, filme alemão de 2006 sobre um oficial da Stasi que se vê atraído pela vida de um suspeito em vigilância.

 

Folha de S. Paulo – Ilustrada
20 de fevereiro de 2012

por Vanessa Barbara

Em outubro de 2003, o time de baseball Chicago Cubs estava prestes a quebrar um jejum de 95 anos sem o título de campeão da World Series. Em casa, vencia o Florida Marlins por 3×0, tendo já eliminado um jogador da equipe rival.

Foi quando o rebatedor dos Marlins mandou uma bola alta em direção à linha das arquibancadas. O defensor Moisés Alou correu tresloucado para alcançá-la. Se conseguisse, eliminaria mais um atleta e praticamente garantiria a vitória para os Cubs. Mas os torcedores ali sentados, por instinto ou reflexo, esticaram-se para apanhar a bolinha – e o pacato Steve Bartman conseguiu tocá-la, desviando-a das mãos de Alou e melando o lance para os donos da casa.Depois disso, o time sucumbiu ao pânico, a torcida esfriou e os Marlins viraram o jogo, vencendo por 8×3. Hoje já são 103 anos de jejum para os Cubs.

É esse o tema do documentário “Catching Hell”, de 102 minutos, dirigido por Alex Gibney e produzido pela ESPN. O filme  conta como se elegem bodes expiatórios no esporte.

Sob uma chuva de cerveja, insultos e ameaças de linchamento, Bartman desapareceu sem deixar rastros. Chegou-se a sugerir que entrasse para o programa de proteção a testemunhas ou pedisse abrigo na Flórida.

São tocantes os closes do rosto de Bartman, sozinho e vulnerável na cadeira 113, mascando chicletes, com o olhar perdido no horizonte. Ele usava óculos de grau, boné azul dos Cubs, blusa verde de gola alta e um moletom por cima. “Nunca chegou a tirar os fones do ouvido”, dizem.

Até hoje Bartman não dá entrevistas e vive em reclusão, mantendo-se surpreendentemente fora do alcance dos repórteres e rejeitando propostas milionárias da mídia.

Como se analisasse o assassinato de Kennedy, o filme especula sobre a trajetória da bola, a direção do vento, as chances de Alou apanhá-la. Consulta as testemunhas-chave do incidente e até sincroniza a transmissão radiofônica para saber o que Bartman escutava naquele instante.

Sua tragédia é comparada à do jogador Bill Buckner, que em 1986 deixou uma bola escapar por baixo das pernas. Ele jogava pelos Red Sox, mas usava uma luva com o logotipo dos Cubs.

A maldição do time teria começado em 1945, quando expulsaram um torcedor do estádio porque seu bode estava fedendo. “Os Cubs não vão ganhar o campeonato. Nunca mais, enquanto não deixarem meu bode entrar.”

 

O número 1 do xadrez perdeu as estribeiras no Parque do Ibirapuera

Revista piauí n. 65
Fevereiro de 2012

por Vanessa Barbara

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Havia uma ambulância a postos na tenda principal do 4o Grand Slam de Xadrez, realizado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Intrigados, corredores e ciclistas das imediações acharam graça – afinal, que tipo de emergência médica poderia acometer aqueles pacatos enxadristas, confinados num cubo de vidro durante três ou quatro horas, olhos pregados no tabuleiro?

Mal sabem eles que o xadrez é um esporte dos mais violentos. Talvez nunca tenham reparado na divisória de madeira que separa as pernas dos oponentes sob a mesa, prevenindo os enxadristas mais exaltados de agraciar seus adversários com pontapés. E decerto não conhecem os inúmeros casos de jogadores que sofreram colapsos nervosos durante as partidas ou enlouqueceram irreversivelmente.

Que o diga o letão Aaron Nimzowitsch. Ao antever uma derrota, ele subiu na mesa e gritou: “Como posso perder para esse idiota?” Ou o polonês Achilles Frydman, que foi parar num sanatório após um torneio particularmente exaustivo. De acordo com um artigo da Chess Digest Magazine, Frydman gostava de deixar a sala para dar telefonemas internacionais e encomendar objetos insólitos, como uma bicicleta alemã ou uma flauta húngara. Durante uma competição na Polônia, correu de cueca pelo hotel, gritando “Fogo!”. Outro caso irremediável é o do austríaco Wilhelm Steinitz, que alegava ter jogado xadrez contra Deus – e vencido.

Era reconfortante, afinal, que uma ambulância estivesse de prontidão para a eventualidade de um ataque de nervos vitimar algum dos enxadristas hospedados em São Paulo. Eram estrelas de primeira grandeza do xadrez, a começar pelo norueguês Magnus Carlsen, número 1 do mundo – um rapaz de 21 anos que guarda semelhança perturbadora com o ator Matt Damon.

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A tenda montada nas proximidades do Planetário abrigou três partidas simultâneas por dia, durante uma semana. Os embates ocorriam dentro de uma sala de vidro com isolamento acústico, onde ficavam os enxadristas e os árbitros. Do lado de fora, o público podia acompanhar as partidas e ouvir o comentário de especialistas ao microfone.

Ao longo da semana, houve também atividades abertas ao público, como torneios simultâneos contra veteranos. Num deles, o grande mestre internacional Gilberto Milos, terceiro lugar no ranking brasileiro, enfrentou 32 jogadores de todas as idades. Ganhou 28 partidas, empatou três e perdeu uma. Quem o derrotou foi um menino franzino de 11 anos chamado Igor Kikuchi Cadilhac, natural de Registro, interior de São Paulo, que aprendeu a jogar xadrez com o vizinho e não tem treinador. Suas participações nos torneios são bancadas pelos amigos, familiares e estabelecimentos registrenses como a Swagat Modas (especializada em roupas indianas), o Mercado Preço Bom, a Pizzaria Beirute e a Esteiras Yoshimoto. Em 2011, Igor sagrou-se campeão paulista na categoria Sub-12.

Perto dele, brincando com uma garrafa d’água e falando sozinha, estava outra jovem promessa do xadrez brasileiro – uma menina chamada Katherine Vescovi, muito magra, pequena e loira, de olhos azuis e jeito de bailarina. Aos 12 anos, é campeã paulista, brasileira e sul-americana. A despeito de sua aparência frágil e angelical, enxadristas veteranos garantem: Katherine joga de forma agressiva e é conhecida por derrotar os adversários de forma impiedosa.

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Contrariando a expectativa, o número 1 do mundo não se saiu muito bem na etapa brasileira do Grand Slam. Quem teve o melhor desempenho foi o ucraniano Vassily Ivanchuk, que ocupava a sétima posição no ranking, com três vitórias, um empate e uma derrota. Chucky, como é chamado, mostra um estilo de jogo imprevisível e inovador, o que o torna um competidor perigoso, porém instável. Sua originalidade não se limita ao tabuleiro: ele costumava fazer aulas de turco e já foi visto bêbado cantando poemas ucranianos, segundo seu próprio colega Viswanathan Anand disse a um jornal indiano.

A zebra correu solta no Ibirapuera na terceira rodada. No mesmo dia em que Ivanchuk bateu o atual campeão Anand, o favorito Magnus Carlsen perdeu para o espanhol Paco Vallejo, então número 28 do mundo, após um lance de rematada tolice. Até ali, o jogo estava favorável para Carlsen, não obstante jogasse com as pretas (no mundo do xadrez, sabe-se que as brancas têm ligeira vantagem no jogo, pois detêm o privilégio de começar a partida). O norueguês passou muito tempo tentando forçar a vitória e chegou inclusive a desperdiçar uma chance. Mas, num apuro de tempo, acabou “pendurando uma peça”, ou seja, cometendo um erro crasso que lhe custou a partida.

O lance fatídico se deu quando Vallejo ameaçou ingenuamente capturar o bispo de Carlsen com o cavalo. Teria sido só uma investida aparvalhada se, na sequência, o norueguês houvesse se esquivado do mensageiro equino da morte como qualquer amador faria ou, melhor ainda, caso tivesse se saído com um contra-ataque sofisticado. Em vez disso, “ele viu duendes”, na avaliação de um popular, e moveu a rainha de forma a deixar seu bispo exposto, pronto para a degola.

Ao perceber o lapso, Carlsen olhou para os lados como se o mundo tivesse caído, empurrou algumas peças, esboçou gestos de irritação para o árbitro e a plateia, e foi tomado pela fúria. Desistiu da partida doze lances depois, enquanto o elegante Vallejo saía de cena com sua garrafinha de Gatorade cítrico. Ao final, não deu autógrafos nem tirou fotos.

O algoz de Carlsen era o lanterna do grupo. Em São Paulo, vinha de duas derrotas consecutivas. Perderia de novo na rodada seguinte, mas nem por isso se deixou abalar. Vallejo foi um dos mais jovens enxadristas a ser sagrado com o título de “Grande Mestre”. Em 2000, após ganhar o mundial Sub-18, tomou a decisão: “Serei jogador profissional, mas não pretendo passar dez horas por dia treinando. Quero aproveitar a vida.” Dali para a frente, sua carreira progrediu mais lentamente, para desgosto dos espanhóis.

Três campeões mundiais julgam que Vallejo possui talento suficiente para estar entre os dez melhores do ranking. Mas ele dispensa esse tipo de ambição. “Isso implicaria estudar e me dedicar mais, e tenho outros interesses na vida”, explicou ao público do Ibirapuera, pouco antes do encerramento do torneio. Sobre o descontrole emocional dos enxadristas diante da derrota, Vallejo aproveitou para rir de si mesmo: “O bom de perder tanto é que a gente se acostuma e passa a encarar tudo com mais tranquilidade. Além disso, há maior mérito em se levantar após uma queda do que em seguir de pé.”

Já Carlsen deu uma entrevista coletiva desolado após perder para o lanterna. Mas manteve a cabeça erguida. “Eu simplesmente pendurei uma peça. Não sei se podemos chamar isso de ilusão de óptica.” Mais tarde, no Twitter, considerou “ultrajante” o fato de ter tido problemas com o tempo e de haver perdido uma posição vantajosa em poucos lances. Acinte mesmo foi o atentado gastronômico do qual ele fora vítima em São Paulo. “Servir pizza sem queijo para clientes desavisados é simplesmente um crime contra a humanidade.”