Contusões com papel

Postado em: 6th março 2012 por Vanessa Barbara em Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Blog da Companhia das Letras
6 de março de 2012

Por Vanessa Barbara

Excetuando-se provavelmente a topada de mindinho na quina, temida até por Genghis Khan e pelos grandes hunos da história, não há dor que se compare a um corte com folha de papel. Você está manuseando a correspondência, acaba se distraindo com um besouro e catapimba: um corte fino no dedo, que te faz urrar e emitir palavras de baixíssima estirpe em público.

De acordo com estatísticas aleatórias encontradas na internet, mais de 50% dos assistentes administrativos sofrem um corte desse tipo por mês, e quase metade deles sofre múltiplos cortes no mesmo período. “É importante lembrar que mesmo um machucado pequeno pode tornar-se fatal em caso de infecção. Mesmo um corte com folha de papel pode resultar numa amputação”, afirma um site americano de acidentes de trabalho, decerto pensando em lucrativos processos trabalhistas. Os danos morais, dizem, são irreparáveis.

Apesar da importância insofismável do tema, não foram encontradas estatísticas confiáveis sobre os acidentes com papel cortante em editoras, e nem o índice de funcionários que grampeiam os próprios dedos ou se veem soterrados em pilhas de originais para corrigir. Sabe-se, porém, que o urro emitido por quem corta o dedo com papel (o chamado paper cut) pode atingir até 98 decibéis, similar ao de quem é atingido por um piano (112 decibéis), quem prende o dedo na porta (99 dB), quem morde a língua (77 dB), quem masca a afta (84 dB), quem bate o cotovelo na parede (72 dB), quem quebra a unha (63 dB) ou é subitamente contrariado em seus planos malignos de dominação do universo (http://nooooooooooooooo.com).

Mas por que cortar o dedo com uma folha de papel dói tanto, ainda que mal sangre e seja imperceptível? Há inúmeras teorias:

Teoria nº 1: Rugosidade maligna

Um corte provocado por papel não só rasga a carne como também a dilacera, por conta da superfície áspera e rugosa desse material. É essa a principal diferença entre uma incisão provocada por um instrumento afiado de cutelaria e por uma folha de papel: esta última ocorre de forma irregular. É só pensar numa faca com o fio cego, que demora mais para cortar um bife e o faz com pouca precisão, “mascando” a superfície atingida. Além disso, o papel deixa pra trás pequenas partículas fibrosas que não são limpas pelo sangue, já que este não flui tão livremente como nos ferimentos por lâminas.

Teoria nº 2: Infecções perversas

Intimamente ligada à primeira teoria, esta se relaciona aos produtos químicos utilizados na fabricação do papel. Quando o material penetra a pele, deixa no local parte de suas fibras quimicamente tratadas, estimulando os receptores da dor. Alguns dizem que, por ser poroso, o papel é um pródigo hospedeiro de bactérias. Como o ferimento é geralmente pequeno e superficial, a pele se fecha sem demora, aprisionando os fragmentos e bactérias em seu interior. O resultado é uma dor de cortar em fatias.

Teoria nº 3: Resmas mortais

Há os que sustentam que as incisões por papel são mais comuns de ocorrer quando manuseamos blocos ou resmas que mantém as folhas unidas e compactadas. Assim, quando uma única folha desliza do conjunto, expõe alguns milímetros de sua aresta e torna-se robusta o suficiente para rasgar a carne.

Teoria nº 4: Ferimento escancarado

Em franca contradição com a teoria número 2, esta afirma que o sangramento comedido dificulta a coagulação e a cicatrização da ferida. Assim, as fibras nervosas ficam mais tempo expostas ao ar e à sujeira, prolongando a dor.

Teoria nº 5: Nociceptores do mal

As vítimas do talho são geralmente acometidas na polpa dos dedos, onde há alta concentração de nociceptores, fibras nervosas que enviam sinais de tato e dor ao cérebro. Diz-se que esses receptores são particularmente sensíveis a estímulos leves. Além disso, por ser pouco profundo, o corte com papel só afeta as camadas externas da pele, precisamente onde se localizam os nociceptores que enviam os sinais agudos de dor. É por isso que às vezes a dor do corte é pior do que se fosse mais profunda — é muito mais aguda e ardida.

As lacerações leves apenas irritam as terminações nervosas, em vez de destruí-las. Isso significa (infelizmente) que os nervos continuam funcionando e enviando suas mensagens excruciantes ao cérebro. A boa notícia: se a dor for insuportável, sempre se pode tentar golpear o dedo com um martelo para destruir as terminações nervosas. A má notícia é que, quando os nervos forem reparados, vai doer bem mais.

* * * *

Embora algumas dessas teorias façam sentido, nenhuma delas é amplamente aceita como causa inequívoca do suplício desse tipo de laceração. Deve haver alguma hipótese alternativa que acuse a natureza perniciosa do papel, sobretudo quando preenchido por má literatura.

Funcionários de gráfica afirmam que as folhas mais cortantes seriam da gramatura 75 a 120 g/m², principalmente do tipo AP. No meio gráfico de Belo Horizonte, há uma lenda corrente sobre um sujeito que morreu quando uma folha do estoque (que era no andar de cima) voou e cortou a jugular do infeliz.

Não se sabe se a história é verídica, mas os Caçadores de Mitos, do Discovery Channel, já colocaram à prova o mito do atirador mortal de cartas de baralho. (O vídeo sem legendas pode ser visto aqui: http://dsc.discovery.com/videos/mythbusters-killer-deck-minimyth.html) Diz a lenda que uma carta de baralho comum pode matar uma pessoa caso seja arremessada com força suficiente. Para testá-la, Jamie e Adam construíram uma máquina atiradora de cartas a 249 km/h, que causou apenas um corte modesto com pouco sangue. O mito foi descartado.

Em todo caso, convém não ignorar a amputação e morte possivelmente advindas de um prosaico paper cut; dizem os especialistas que a conduta mais indicada é manter a calma, desinfetar a ferida e cobri-la. (Alguns mencionam Super Bonder, mas eu recomendaria um band-aid).

E por falar nisso, convém ter cuidado ao abrir a embalagem do curativo. São abundantes os casos de paper cut na caixa do band-aid e nos cartões de “Estimo as melhoras” enviados pelos amigos.