Folha de S.Paulo – Ilustrada
15 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

Até onde eu sei, nenhuma emissora brasileira chegou a exibir os programas da “Nova”, franquia premiadíssima de documentários científicos exibida pela norte-americana PBS. (A principal inspiração é a “Horizon”, da BBC.)

Iniciada em 1974, a série tem 39 temporadas, embora cada programa seja visto como um documentário separado. Os assuntos pendem ao infinito: sonhos, tornados, genética, aquecimento global, inteligência de golfinhos, fusão nuclear.

O objetivo da série é abordar temas científicos de forma acessível, com clareza e ritmo narrativos.

Entre os títulos mais elogiados, “The Miracle of Life” (O milagre da vida), de 1983, trouxe imagens inéditas do desenvolvimento embrionário; “Musical Minds” (Mentes musicais), de 2009, foi baseado num livro do psiquiatra Oliver Sacks; e “The Elegant Universe” (O universo elegante), de 2003, abordou a teoria das supercordas.

“Nunca pensei em ‘Nova’ como uma série científica”, comentou seu idealizador, Michael Ambrosino, da produtora WGBH, de Boston. “Queria examinar o funcionamento do mundo, utilizando o processo de descobertas científicas como artifício narrativo para contar boas histórias. E aproveitar os cientistas talentosos que estavam à nossa volta em Harvard e no MIT.”

O nome da franquia foi retirado do conceito de supernova. Com o tempo – e carência de recursos –, surgiu um sentido adicional: o de um fenômeno que nasce com monumental estrondo e se desintegra de forma muito rápida. “Era assim a TV pública: conseguíamos arrecadar fundos por um ano ou dois, e então os recursos eram transferidos para algo novo, relegando o programa a um lugar frio e escuro”, brinca.

Fonte de referência (e polêmica) entre os físicos, “The Elegant Universe” ganhou um Emmy por sua tentativa de tornar concreto o abstrato, esclarecendo teorias complexas e tornando compreensível o improvável. Foi inspirado num livro de Brian Greene e une belos efeitos especiais a uma fotografia impressionante.

É nesse nível que se encontra um dos últimos episódios de “Nova”, exibido pela PBS em novembro passado: “The Fabric of the Cosmos” (O tecido do Cosmo), um conjunto de quatro capítulos sobre as últimas descobertas da física. Uma atualização do clássico “Cosmos”, de Carl Sagan.

Foi por meio deles que enfim entendi a teoria da relatividade, o salto quântico, a radiação cósmica de fundo e – mais ou menos – o bóson de Higgs. 

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Extras

“O Universo elegante” em DVD legendado, da Scientific American Brasil
https://www.lojaduetto.com.br/produtos/?idproduto=1238&action=info 

“The Fabric of the Cosmos” no YouTube, sem legendas:

– Episódio 1: What is Space
http://www.youtube.com/watch?v=CD5tBIqJU4U

– Episódio 2: Illusion of Time
http://www.youtube.com/watch?v=ppWV4UM-_LY 

– Episódio 3: Quantum Leap
http://www.youtube.com/watch?v=GRcpDlFnAQ0

– Episódio 4:  Universe or Multiverse
http://www.youtube.com/watch?v=PBf16YzWzew

– Sugestão de legenda em português para o segundo episódio:
Arquivo .srt

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Errata

Corrigi na versão acima a tradução que fiz do título da série, conforme me indicaram vários leitores por email. No texto original, optei pela forma literal porque sabia que a conotação de “fábrica” em português também incluía a de tecido, estrutura, mas devia é ter ido ver o título do livro em português, publicado pela Companhia das Letras:

O tecido do Cosmo
Trad. José Viegas Filho
2005

Fica então a correção: o nome traduzido da série seria “O tecido do Cosmo”, e não “A fábrica do Cosmo”.

Folha de S.Paulo – Ilustrada
8 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

Meses atrás, em Londres, participei de um city tour desses em que os guias estimulam a participação popular com perguntas de conhecimento geral, testando a sabedoria da plebe em temas como a peste negra, o grande incêndio de 1666, a fragilidade sentimental da rainha Victória e o barril de rum com o cadáver do almirante Nelson.

Impressionado com minha fúria replicante e minha astúcia à la “Trivial Pursuit”, o guia veio perguntar onde foi que aprendi tantas coisas. Sem hesitar, respondi: “Pela televisão!”.

Juro que não estava exagerando. Naquele dia em específico, minha perspicácia se devia a episódios de “Doctor Who” (diferença entre Union Flag e Union Jack, esta última de uso marítimo), “Monty Python’s Flying Circus” (ninguém esperava a inquisição espanhola),  “Caçadores de Mitos” (por que os piratas usam tapa-olhos), “Band of Brothers” (Segunda Guerra), “Inspetor Morse” (tudo o que sei sobre Oxford) e dois filmes que assisti na TV a cabo: “V de Vingança” (a conspiração de Guy Fawkes) e “Do inferno” (Jack, o Estripador).

À parte os programas educativos e documentários de ciência ou história, séries de ficção também podem ser fontes de conhecimento. A primeira vez que ouvi falar de efeito Coriolis foi num episódio de “Arquivo-X”. Foi nesse mesmo programa que aprendi sobre combustão espontânea e criaturas mutantes comedoras de fígado, mas isso não importa. O conteúdo pode ser simplista e distorcido, muitas vezes até errado, mas está lá, e é a partir dele que se dá o primeiro passo.

Em entrevista para a revista Serafina, o escritor Jonathan Franzen revelou: “Eu poderia aprender muito sobre metanfetamina na Wikipedia ou em outros sites. Mas é muito mais prazeroso assistir a ‘Breaking Bad’”.

Já no documentário “Como William Shatner Mudou o Mundo” (2005), cientistas comentam o papel que “Jornada nas Estrelas” teve em suas vidas. “A primeira vez que ouvi falar de propulsão a íons foi num episódio da série”, disse Mark D. Rayman, engenheiro da Nasa que veio a trabalhar na primeira missão espacial a usar essa tecnologia.

Conta-se que, em 1993, o físico Stephen Hawking fez uma visita ao cenário da série e comentou, diante de um núcleo de dobra da nave Enterprise: “Estou trabalhando nisso”.

Além do mais, conheço pelo menos uma pessoa que passou no vestibular da USP por causa de “O Mundo de Beakman”. 

Ilustração: André Farkas

A quantas anda a astronomia amadora no Brasil

Ilustríssima – Folha de S.Paulo
7 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara 

De rosto redondo e bochechas fartas, o dr. Aristóteles Orsini formou-se em medicina em 1933 pela Universidade de São Paulo. No ano seguinte, defendeu uma tese de doutorado intitulada “Fermentos amilolíticos encontrados em sementes de leguminosas”, e pouco depois assumiu a cadeira de professor-assistente de física da Faculdade de Farmácia e Odontologia da USP.

Em 1935, foi aprovado em concurso para livre-docência com a tese: “Algumas constantes físicas de tinturas oficinais”. Chegou a cursar matemática e foi professor interino da cadeira de física biológica da Escola Paulista de Medicina, além de chefe do Serviço de Radiologia da mesma instituição.

Em 1947, tornou-se catedrático de física com a tese: “Isótopos Radioativos”. Entre seus trabalhos nas áreas da medicina, biologia e física, destaca-se: “O emprego dos raios X no estudo dos expectorantes”.

Além de médico, o prof. Orsini foi filatelista e numismata. Fundou a Associação de Amadores de Astronomia de São Paulo (AAA) e foi diretor da Escola Municipal de Astrofísica (EMA), anexa ao planetário do Ibirapuera, que hoje leva seu nome.

Patrono da astronomia amadora, Orsini ilustra bem o perfil de quem estuda informalmente os astros no Brasil. São cerca de 4 mil entusiastas da disciplina com formação de geólogos, pedagogos, engenheiros, arquitetos, matemáticos, médicos e curiosos que se reúnem para desvendar o céu, retornando por um instante às carteiras escolares em anacrônicas discussões sobre nebulosas, supernovas e cometas, essas “estranhas estrelas de cabelos longos”.

 

FUNDAMENTOS

Prédio da Escola Municipal de Astrofísica

No auditório da Escola Municipal de Astrofísica, dezoito alunos se reuniram para um semestre de aulas sobre os fundamentos básicos da ciência, no curso 250 – Astronomia Geral. O professor, Paulo Gomes Varella, é um efusivo senhor de bigodes que lembra um docente dos tempos de ginásio, daqueles que tentam transmitir aos alunos seu vasto amor pelas equações de segundo grau.

As aulas tiveram início em março de 2011 e ocorreram às quintas-feiras à tarde, das duas às quatro, em pleno Parque do Ibirapuera. O edifício, que fica ao lado do planetário, conta com três salas de aula e um auditório de 100 lugares. A despeito da expectativa quanto ao moderníssimo sistema de fibra óptica do novo projetor StarMaster ZMP, da empresa alemã Carl Zeiss, só a última aula foi realizada no planetário – todas as outras se deram em diminutas salas de aula, com lousas brancas e projetores de Power Point. Os cursos têm uma taxa única que varia de 18 a 36 reais, com descontos para aposentados e funcionários públicos.

Paulo Varella, 55 anos, tem um sotaque paulistano carregado e é um trocadilhista incansável. Tem formação em geologia e meteorologia (USP) e pós em ensino de astronomia (Unicsul). Dá aulas na EMA desde 1976, foi chefe do Observatório Astronômico da instituição e autor do livro Reconhecimento do Céu (UnB, 1993), além de cartas celestes e guias práticos para observação de estrelas, constelações e chuvas de meteoros. É o expositor mais ativo da história do planetário, com 1750 apresentações ao vivo das sessões de cúpula.

As aulas começaram com uma breve apresentação sobre o programa de cursos da EMA, fundada em 1961, quatro anos após a inauguração do planetário. Lá são oferecidas disciplinas livres introdutórias (Reconhecimento do Céu e Astronomia do Sistema Solar) e também avançadas, como Cosmologia, Mecânica Celeste, Evolução Estelar e Astronomia Esférica. Até o momento, foram ministrados 646 cursos.

Dito isso, Varella passou direto para a matéria, discorrendo genericamente sobre os sistemas solares, conjunto de astros cuja principal interação é gravitacional, e sobre os planetas, “corpos errantes que caminham entre as estrelas”. Forneceu uma informação básica que quase ninguém sabia: a principal diferença observacional entre estrelas e planetas é que estes últimos não “piscam” – são pontos de luz fixa, sem a cintilação característica das estrelas.

Ao contrário dos asteroides, que vivem circundados de poeira e são astros batatiformes (com a massa pequena e alongada), os planetas têm massa suficiente para assumir forma esférica e limparem as vizinhanças de sua órbita. Os asteroides também não têm atmosfera e, por isso, são cravejados de crateras provocadas pelo impacto com outros corpos celestes (o que o professor chama de celulite planetária).

A turma anotou com fúria discreta certas informações práticas sobre a observação de Saturno, que ano passado atingiu um brilho considerável, e surpreendeu-se com a notícia de que a partir de São Paulo é possível ver cinco planetas a olho nu. (Intrépida, a repórter conseguiu identificar todos os cinco ao longo do ano, com destaque para a notável inclinação de Saturno e as quatro luas de Júpiter. A título de gabolice, dizem que Copérnico, em seu leito de morte, confessou nunca ter visto Mercúrio.)

Aos que ainda não possuem familiaridade com as constelações e não se sentem à vontade com planisférios de papel, Varella indica um software de astronomia para iPhone: o Stellarium, que é gratuito e  reconhece os astros por meio de gps, basta apontar o aparelho para o céu.

O professor falou da inclinação das órbitas dos planetas com relação à eclíptica (órbita da Terra) e da razão pela qual estamos todos amarfanhados em torno do Sol (atração gravitacional entre massas). Explicou por que em 1986 não vimos o cometa Halley com o mesmo esplendor de 1910 – é que, no início do século, o ângulo de visão foi de 90 graus e era possível observar todo o seu comprimento.

Segundo relatos da época, e conforme registrado em A comet called Halley, de Ian Ridpath (Cambridge University Press, 1985), em 1910 a cauda do cometa chegou a varrer a Terra, gerando boatos apocalípticos de toda sorte. Paulo Varella alertou que não é possível prever o ângulo da próxima passagem, em 2061, já que o astro percorre um longo caminho e sua órbita é alterada por gigantes como Saturno e Júpiter. As variáveis são múltiplas e complexas, ou seja, astronômicas. “Você acha isso complicado?”, repetia o professor, a respeito de qualquer coisa. “Complicados são os cálculos das órbitas dos astros.”

Também complicados são os movimentos da Terra, que não se limitam à rotação e translação; incluem precessão dos equinócios, nutação, variação da excentricidade da órbita, variação de latitudes da obliquidade da eclíptica, deslocamento da linha dos apsides, rotação da Via Láctea e, ufa, movimento de expansão do Universo.

Na astronomia, afirmou Varella, “abandonam-se as unidades convencionais de medida, do contrário os números ficariam desconfortáveis”. É por isso que, em vez de quinquilhões de quilômetros, se usam parsecs e anos-luz – que, a propósito, são unidades de comprimento e não de tempo. “Não faz sentido dizer: ‘Faz uns dez anos-luz que não te vejo.’” Apesar de tudo, é difícil conceber essas distâncias de fato.

Ainda sobre cometas, Varella não resistiu à piada e disse que o Halley passa uma vez a cada 76 anos e pode ser visto durante apenas 4 meses – “É como a vida do ser humano: uns quatro meses de felicidade e o resto de martírio. Quando muito”.

  

AMADORES

A astronomia é uma das poucas áreas onde os amadores são maioria e contribuem com dados e informações para a comunidade científica profissional. Estes costumam ocupar-se com trabalhos mais específicos e segmentados, sem tantas observações diretas pelas oculares dos telescópios. Suas pesquisas envolvem registros eletrônicos, análises de dados em laboratório, exercícios de matemática bruta e desenvolvimento de teorias.

Os amadores, por sua vez, perscrutam o céu à moda antiga – com telescópios e binóculos de menor porte –, sem dependerem de orçamentos apertados e da locação de caríssimos aparelhos em observatórios internacionais. Seus pequenos instrumentos favorecem determinados tipos de exploração que, muitas vezes, complementam a dos profissionais: acompanhamento intensivo de asteroides, galáxias, manchas solares, exoplanetas, cometas e a Lua.

Alguns são excelentes construtores de telescópio. Uma área que está praticamente nas mãos deles é a de estrelas variáveis (sistemas binários), para a qual, segundo Varella, “ninguém tem saco”.

Trata-se de observar estrelas que, com o tempo, variam de brilho. Isso pode ser causado por mudanças internas da estrela ou por influência externa, como um eclipse entre as estrelas de um sistema binário. É um trabalho de paciência e observação bruta, uma braçal coleta de dados relegada aos amadores.

Uma sistematização nacional dos trabalhos desses diletantes aconteceu em 1988, com a fundação da Rede de Astronomia Observacional (REA), uma entidade preocupada com o rigor do método e a padronização na coleta dos dados, a fim de servirem de base para trabalhos científicos. Seus membros são de diversos países latinos.

O forte da REA reside na descoberta de supernovas, estrelas maciças que, num estágio avançado de evolução, explodem, emitindo um brilho intenso, para depois ir perdendo o fulgor. Nos últimos sete anos, foram reveladas quinze delas através de um programa automatizado de busca denominado Brazilian Supernovae Search, em vigor desde 2001, em parceria com o Centro de Estudos Astronômicos de Minas Gerais.

Outro exemplo digno de nota foi a descoberta de um cometa na noite de 28 de dezembro de 2002 por um brasileiro da rea, o gaúcho Paulo Holvorcem, em conjunto com um norte-americano. O cometa foi batizado de Juels-Holvorcem.

Desse modo, apesar da denominação “astrônomo amador” remeter a uma atividade diletante, muitos desenvolvem estudos científicos, coordenam trabalhos e publicam resultados em revistas especializadas – a diferença é que não possuem formação acadêmica específica. O exemplo mais lendário é o de Clyde Tombaugh, agricultor norte-americano que construiu um telescópio usando partes de um Buick 1910 e peças de uma batedeira de leite da fazenda.

Por conta própria, Tombaugh foi observando e desenhando tudo o que lhe parecia interessante no céu. Um dia encaminhou as anotações ao Observatório Lowell, no Arizona, em busca de conselhos profissionais. Pediram-lhe que fosse até lá e, para seu espanto, ofereceram-lhe um emprego como astrônomo assistente. Em 1929, foi contratado para dar prosseguimento a uma pesquisa iniciada em 1905 por Percival Lowell.

O alvo era um “planeta X” localizado além de Netuno. Dez meses mais tarde, no dia 13 de março de 1930, após passar inúmeras noites em claro na cúpula gélida do observatório, Clyde Tombaugh, de 24 anos, passaria à história como o descobridor de Plutão.

 

FURAQUINHOS 

Um tanto afastados das grandes descobertas, vários alunos foram pegos de surpresa pela notícia de que as estrelas estão (muito) mais distantes de nós do que os planetas. Se a Terra estivesse localizada na Escola de Astrofísica e Netuno no lago do Ibirapuera, Alpha Centauri estaria em Queluz, numa viagem que levaria 104 mil anos só de ida. (Também chamada de Toliman, ela é a estrela mais próxima da Terra além do Sol.)

A classe era formada por alunos de diferentes idades e profissões. O mais novo era John Riedel, de 13 anos, estudante do oitavo ano do ensino fundamental e apaixonado por astronomia. A maior parte de seu conhecimento foi adquirido em documentários do Discovery Channel. Havia também um senhor peruano chamado Iván Palacios, que sempre chegava bem cedo, um casal de aposentados aficionado em softwares de astronomia, o jornalista Jorge Luiz de Souza e uma ex-bailarina e personal trainer, Ana Maria Pereira, de 52 anos, que mora perto do parque e ficou impressionada com a didática do professor.

“Como ele de fato gosta de astronomia, conduz o curso com tanto carinho que não há como não aprender e se encantar com o universo”, declarou. “Acho que, pela minha profissão, movimento é algo que me encanta e nada melhor que estudar o universo para entendê-lo melhor.”A estudante de administração Janisse Paiva de Oliveira, de 26 anos, participa de quase todas as atividades da EMA. Cursou a disciplina Reconhecimento do Céu I simultaneamente à de Física Estelar (Introdução à Astrofísica), com Irineu Gomes Varella, e achou esta última bem complexa. “Aprendemos sobre a temperatura dos corpos celestes, as distâncias, a paralaxe, o teorema de Pitágoras e espectroscopia”, explicou. “Tinha muita gente fazendo contas.”

Num folder da escola, o artista plástico Guto Lacaz confessou matricular-se em um ou dois cursos por semestre: “Comecei com Astronomia Geral com a professora Regina Atulim. Cometas, Astronomia Esférica, Sistema Solar, Eclipses, Efemérides, Tempo e Calendários… Reconhecimento do Céu, Evolução Estelar… já fiz alguns três vezes!”, exclamou, elogiando os professores Paulo e Irineu Varella. “Conhecimento, bom humor e giz!”, resumiu.

A WMAP e o emblema do Batman

A escola também oferece palestras esporádicas sobre outros temas, como “Astronomia com o planeta Mercúrio”, ocorrida num sábado à tarde, e uma série em homenagem à Semana de Radioastronomia, em outubro do ano passado. Numa dessas aulas, ministrada por um jovem professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, falou-se das descobertas cosmológicas obtidas pela sonda WMAP (Wilkinson Microwave Anisotropy Probe) com a radiação de fundo da nossa galáxia. É uma das mais fortes evidências observacionais do modelo do Big Bang de criação do universo.

Comentou-se o formato peculiar das imagens resultantes, muito parecido com o emblema do Batman, mas, fora isso, o resto da exposição foi praticamente incompreensível. “Mede-se o espectro de potência em função do ângulo e momento do multipolo”, explicou o rapaz, com a ajuda de gráficos inexpugnáveis e equações igualmente escandalosas. Alguém fez uma pergunta cuja resposta era “dezoito avos de segundo”. Diante do silêncio, ele passou para sua especialidade: nuvens moleculares e astroquímica.

Quando desandou a falar de um tal espectro “maser” – não laser, mas “maser” –, houve suspeitas de que estaria inventando e, portanto, alguns desistiram de tentar entender. A introdução à astronomia geral parecia mais ao alcance dos mortais.

Infinitamente mais acessível, aliás: uma revelação banal que causou espécie nos alunos da turma foi a de que os meteoroides, ou cometas, possuem o tamanho de uma ervilha. “Ervilha, feijão, grão-de-bico. Os maiores são do tamanho de laranjas”, explicou Varella, creditando o alto brilho dos cometas a um fenômeno de ionização decorrente de sua altíssima velocidade ao entrar na atmosfera terrestre.

Em vinte horas-aula, até o fim do semestre, falou-se da diferença entre planetas telúricos e jovianos – os primeiros têm composição química e densidade próximas às da Terra, e os segundos são gasosos e mais parecidos com Júpiter. Este, aliás, gira tão velozmente que possui faixas gasosas alinhadas no sentido de sua rotação – vista a olho nu, a famosa estrutura em forma de olho tem 3,5 vezes o tamanho da Terra e é provavelmente uma tempestade colossal que vem ocorrendo há três séculos. “Uma espécie de furacão, sendo que, perto dele, os nossos são ‘furaquinhos’”, comparou Varella.

O professor também informou que se jogássemos os planetas na água (por alguma razão insondável), todos afundariam, menos Saturno, que tem a densidade menor do que uma rolha e, portanto, boiaria. Outra informação importante: Galileu Galilei não conseguiu identificar os “anexos” laterais do planeta como sendo anéis, e pensou que se tratasse de um astro triplo. Na mesma época, outros foram mais criativos: deparando-se com aquelas formas estranhas, concluíram que Saturno era dotado de orelhas.

 

SEU ASTRAL 

Torcedor fanático do Palmeiras e fã da série Arquivo X, Paulo Varella é uma unanimidade entre os alunos. Sempre de bom humor, compartilha o vício pela astronomia com o irmão Irineu, de 59 anos, formado em física e matemática, e com a esposa Regina Auxiliadora Atulim, de 48 anos, ambos professores da EMA. “É uma família de loucos. Imagina como são as nossas conversas em casa”, brinca.

Varella é também diretor do Observatório Céu Austral, entidade fundada em 1987 para difundir conhecimentos em astronomia e ciências da terra. Ele costuma dizer que fez tudo errado: se tivesse escolhido a astrologia e batizado o grupo de “Seu Astral”, em vez de “Céu Austral”, certamente ganharia mais dinheiro.

Interessou-se pela ciência aos 14 anos, trabalhando como guia do relógio de sol e sonoplasta das sessões do planetário. Tem um vozeirão de dublador profissional. Sabe contar histórias e prender a audiência; seu relato sobre a sequência de Titius-Bode – controversa equação matemática criada para prever distâncias planetárias – deixou todo mundo preso às cadeiras. Além disso, consegue responder até as dúvidas mais complexas e guarda na memória uma infinidade de distâncias interestelares, dimensões, volumes, composições químicas e temperaturas. Nas aulas, ensina como coletar meteoritos em casa, descreve os siderólitos como se fossem pés-de-moleque (sendo os amendoins as partes rochosas) e confessa, emocionado, que gostaria de ter conhecido Hiparco pessoalmente. Varella acredita na possibilidade de vida fora da Terra, mas “daí a dar um passo além e acreditar em OVNIs, é outra história”.

Fala com entusiasmo da Cratera de Colônia, que ninguém na classe conhecia e que é praticamente ignorada no meio acadêmico. Localizada na Zona Sul de São Paulo, na região de Parelheiros, tem 3,6 quilômetros de diâmetro e foi possivelmente provocada pelo impacto de um meteoro de cerca de 200 metros, há uns 5 milhões de anos. Sua profundidade máxima é de 400 metros.

Desde 1989, a área foi ocupada por loteamentos irregulares que surgiram com a instalação do Presídio de Parelheiros, situado no interior da formação geológica. Segundo a prefeitura, hoje há 30 mil pessoas morando no povoado de Vargem Grande, no nordeste da cratera, habitando porções internas e externas e distribuindo-se pelas encostas. A ocupação desconfigurou parte da borda, mas, vindo pela estrada de Colônia, lá de cima dá pra ver o contorno da estrutura. “Provavelmente o meteorito ainda está encravado lá dentro”, conta Paulo Varella, lamentando a escassez de escavações científicas na área.

Na última aula do semestre, ele obteve autorização para abrir uma vitrine onde estão expostos os meteoritos. Com as duas mãos, tomou um fragmento do segundo maior meteorito do Brasil, o Santa Luzia, caído em Goiás em 1919. Do tamanho de uma bola de boliche, ele foi passando pelas mãos dos alunos, um a um, sob avisos de que era pesado. O Santa Luzia é feito de uma liga metálica inexistente na Terra e composta quase que exclusivamente de ferro e níquel de altíssima densidade. A idade estimada é de 4 bilhões de anos. “Quero que vocês tenham a sensação de tocar em um corpo celeste que não a Terra”, explicou.

Segundo um dos alunos, foi um desses momentos em que entendemos uma coisa não só com a mente, mas com o corpo, com a pele. “Lembro quando li pela primeira vez que nós estamos em cima de uma pedrinha que flutua no espaço”, comentou o rapaz. “O frio, o arrepio que tive ao pensar nisso me deixou quase paralisado. Deu até vertigem.”

Todos se surpreenderam com o peso do objeto (22 kg) em relação ao seu tamanho (bolas de boliche têm até 7,25 kg), compreendendo empiricamente que só podia ser feito de um material muito condensado e singular. Uma rocha densa, gelada e metálica que veio do espaço. “Vou falar de novo: VEIO DO ESPAÇO!”, ressaltou uma das alunas, incrédula.

 

OBSERVATÓRIO

Olhando de longe, mais precisamente de um telescópio dobsoniano, até parece que a Escola Municipal de Astrofísica é um centro de excelência internacional com verba milionária, equipamentos modernos e total subsídio do governo. Se a estrutura funciona, é por pura tenacidade dos envolvidos, sobretudo os professores.

No último sábado de cada mês, o planetário organiza uma sessão noturna de observação com telescópios na laje da escola. “A gente tenta, na medida do possível, promover essa atividade”, comentou o diretor dos planetários da cidade, João Paulo Delicato, um rapaz de voz calma que é também coordenador da Sociedade Brasileira para o Ensino da Astronomia. Ele está no comando dos planetários desde janeiro de 2011.

Como todo bom astrônomo amador, Delicato começou com uma licenciatura em ciências exatas, passou a pesquisador do departamento de Física da Universidade Federal de São Carlos e criou o Laboratório de Magnetohidrodinâmica da USP. Trabalhou nos planetários de Brotas e de Campinas e acabou presidente da Associação Nacional de Foguetes Amadores, a ANFA.

Ele se considera na obrigação de promover esses eventos ao público apesar da precariedade das instalações do terraço, que possui fios de radiotelescópio espalhados pelo caminho e inexplicáveis reentrâncias arquitetônicas que tapam partes do céu e deixam as laterais da laje completamente vazadas. “Pra vocês terem uma ideia, o arquiteto que fez o planejamento do prédio da EMA tinha decidido que o espaço de observação com cúpula ficaria só de enfeite para a população passar e olhar”, explicou.

Daí a necessidade de orientar bem o grupo antes das observações. “A laje é aberta e vazada, então, quem está com criança pequena, por favor fique de olho, segurando a mão. Nada de correr. Até porque a gente não pode deixar a luz acesa com muita intensidade, senão ofusca a observação”, explanou Delicato a uma plateia de aproximadamente cinquenta pessoas. A maioria nunca tinha usado um telescópio.

Ele prosseguiu: “Lá em cima está muito escuro, tenham cuidado ao subir as escadas. É para andar com calma, olhando bem para não tropeçar em nenhum fio e nem nos aparelhos”.

Segundo Paulo Varella, o prédio da EMA foi construído na década de 60 pela Comissão de Construções Escolares do Município, que não levou em conta a funcionalidade do observatório. A preocupação foi mais estética, com o projeto arquitetônico, e é por isso que até hoje a cúpula prateada do terraço continua sem uso.

“Após a construção, chegou-se a abrigar um telescópio construído aqui mesmo no planetário, com 30 cm de abertura, mas isso só durou uns meses. O problema era que, quando passava um ônibus na avenida República do Líbano ou na Pedro Álvares Cabral, a cúpula tremia.” O projeto original não previa a instalação de uma coluna de concreto junto ao solo, independente da estrutura do edifício, para isolar o telescópio de vibrações.

Hoje, a administração da escola tenta pelo menos reativar a cúpula para as atividades com o público. “Seria interessante se, no futuro, a gente pudesse ter essa coluna. Isso é um trabalho de engenharia, porque vai ter que furar esses dois pisos pra colocá-la – isso se houver realmente a intenção de transformá-la numa cúpula observacional. Porque, se for só para uso didático, acho que podemos improvisar alguma coisa”, garante Varella, que pensa em instalar calços de borracha nos pés do telescópio para amortecer vibrações externas, à maneira do que é feito nas Star Parties americanas, famosos encontros de astrônomos amadores.

“Seria uma tentativa. Se não der certo, podemos tentar outra coisa: montar a base de concreto do telescópio em cima de um colchão de areia. A areia é um material não consolidado e entremeado de ar, que não transmite vibrações e até ajuda a absorvê-las.” Numa demonstração de otimismo, o grupo já faz reparos na abertura da cúpula.

Por enquanto, porém, as opções são mambembes. Orientados pelos monitores do planetário, os visitantes sobem à laje e fazem fila atrás de três telescópios ETX-125 EC, da marca Meade, cada um com 5 polegadas de diâmetro e controle eletrônico, no valor de 1,5 mil dólares. Há também um LX 200 da Meade, de 12 polegadas com GPS, que custa 7 mil dólares. Delicato especifica quais astros estarão visíveis em cada um deles. Em 2011, devido ao mau tempo, só houve três observações abertas ao público: em maio, agosto e dezembro.

No evento de agosto, com o céu de inverno a pleno vapor, os corpos observados foram a nebulosa planetária NGC 6302, também chamada de Nebulosa da Borboleta; a constelação de Scorpius (Escorpião), por onde passa o centro da nossa galáxia; e a estrela Antares, uma supergigante vermelha 700 vezes maior que o Sol. Pelo telescópio, dá pra ver que Antares é um sistema binário, ou seja, na verdade são duas estrelas.

Na observação de dezembro, às vésperas do Natal, os três telescópios foram apontados para o planeta Júpiter, com diferentes tipos de aumento. Foi possível distinguir as manchas do planeta, sua coloração alaranjada, algumas estruturas e suas quatro luas. Também houve uma breve observação de Achernar, estrela achatada e azulada que é a mais brilhante da constelação Eridanus.

Deparando-se com certa ansiedade e muxoxos esparsos, João Paulo Delicato insistiu que é preciso ter calma e concentração. “Não é como as imagens do Hubble que estamos acostumados a ver. Não é só encostar a cara no telescópio que as coisas saltam aos olhos e você vê Marte e os marcianos acenando. Depende de paciência e de uma certa delicadeza”, observou. “Se for um planeta, você vai enxergar primeiro uma bolinha, depois um contorno e um detalhe ou outro. No fim das contas, essa manchinha que você viu tem milhões de quilômetros de diâmetro, está a centenas de anos-luz de distância e é na verdade uma coisa muito interessante cuja imagem levou um tempo enorme para chegar até nós. É importante ter isso em mente.”

No fim da fila, um grupo de rapazes vestidos para a balada parecia alvoroçado com a experiência, ocupando-se em defender a existência de extraterrestres para o resto da fila. Um deles achava um erro terem enviado ao espaço uma sonda com informações sobre a Terra. “Os ETs vão pegar todos aqueles dados e invadir o planeta”, afirmou, exaltado, na certeza de estar impressionando as meninas.

 

ASSOMBRO

Caminhando pelo parque, Paulo Varella consegue reconhecer de longe quem são os loucos que estudam na Escola de Astrofísica: aqueles que olham mais pra cima do que pra baixo. E tropeçam. Certa noite, ele mesmo carregava uma caixa de equipamentos e quase foi ao chão, preocupado em sondar o céu à procura de Vênus.

Ministrado no planetário com o auxílio do projetor, o curso de número 637 – Reconhecimento do Céu I – é o mais procurado da instituição. Muitas vezes, as 120 vagas se esgotam. No segundo semestre do ano passado, 76 pessoas se inscreveram.

As aulas aconteceram às terças-feiras, das 19h30 às 21 horas, com uma turma vespertina às quintas-feiras formada pelos ex-alunos de Astronomia Geral. Aula a aula, todos procuravam se sentar nos mesmos lugares para facilitar a memorização – menos uma vez, em outubro, quando o projetor “deu chilique” e não estava funcionando devidamente, projetando o norte no sul e gerando outras imprecisões espaciais. A questão foi resolvida com a expertise de Varella na arte do improviso: ele desligou as letras verdes dos pontos cardeais e pediu que os alunos trocassem de lugar. “Finjam que o leste é pra cá”, orientou, pedindo perdão pelo despautério da proposta.

A Bolinha

Vez ou outra, o aparelho sofria panes menores ou saía de esquadro, e aí valia o conhecimento bruto do professor, que corrigia manualmente os problemas e botava a turma (e o aparelho) de volta no eixo. Em várias ocasiões, ele foi capaz de continuar a aula normalmente, falando sobre coisas complicadíssimas “enquanto, com um martelo e uma talhadeira, vou tentando consertar o projetor”. Para os íntimos, o StarMaster é também chamado de “A Bolinha”.

Reparos também são necessários no caso da esfera armilar instalada diante do planetário, uma estrutura giratória de ferro que permite a visualização espacial do movimento celeste, tendo como referência a cidade de São Paulo. Executada por um artista plástico, ela apresenta imprecisões de nomenclatura que precisam ser corrigidas verbalmente pelo professor. Além disso, só pode ser destrancada com antecedência – por segurança, a esfera é presa por um cadeado e correntes, já que uma criança “quase perdeu o braço girando ali dentro”.

Também têm problemas os planisférios impressos pela Prefeitura em 2005 para a inauguração do planetário do Carmo, distribuídos gratuitamente aos alunos no final do semestre. Por algum motivo, o leste e o oeste foram assinalados no lugar errado, a muitos graus de distância de sua localização efetiva, como se os diagramadores houvessem tentado “centralizar” as legendas.

No interior da cúpula, a dinâmica das aulas era sempre a mesma: uma explanação teórica no início, com as luzes acesas, e depois o fechamento das portas, o breu e as estrelas surgindo garbosamente no céu. Mesmo na última aula, quando a turma já deveria estar acostumada, ouviam-se expressões de assombro seguidas de um silêncio quase religioso, sobretudo quando as estrelas mais fracas, de quinta ou sexta grandeza, terminavam de preencher a abóbada.

Paulo Varella falou orgulhoso do alemão Johannes Bayer, advogado de formação e astrônomo amador que inventou a atual nomenclatura estelar. Seguindo a ordem decrescente de brilho, pega-se uma letra do alfabeto grego e junta-se à forma genitiva da constelação em latim, o que resulta em nomes como Alpha Centauri (a estrela mais brilhante da constelação de Centaurus) e Eta Carinae (a quinta estrela mais brilhante de Carina), que está prestes a explodir e virar supernova. “Se a Terra estiver no caminho, estamos perdidos”, comenta um dos professores da Semana de Radioastronomia.

Já as cores das estrelas estão diretamente relacionadas às suas temperaturas superficiais. As mais quentes são azuis (Rigel, Achernar), e, em ordem decrescente de calor: brancas (Vega, Sirius), amarelas (nosso Sol, Capella), alaranjadas (Arcturus, Aldebaran) e vermelhas (Antares, Betelgeuse).

A cada aula correspondeu um modelo de céu e sua respectiva constelação-símbolo: em pleno inverno, começamos pelo céu de verão, o mais simples, que entrou em campo com Orion, as Três Marias e Sirius, a estrela mais brilhante do céu noturno. Depois passamos para o céu de outono (constelações Leo e Crux), inverno (Scorpius) e primavera (Pegasus). Varella iniciava a projeção recapitulando as aulas anteriores e agregando uma ou outra novidade, de modo que, lá pelas tantas, a crença geral era de sairíamos confusos o bastante para estranhar a própria Lua.

Porém, aos poucos, as coisas foram se encaixando. Incentivado por um chilique permanente do projetor, Varella não ativava os desenhos artísticos das constelações (linhas imaginárias que ligam as estrelas), limitando-se a apontar suas respectivas formas com a caneta laser para que os alunos as visualizassem mentalmente.

A todo instante, lembrava que os desenhos saíram da imaginação dos antigos e que não faziam necessariamente sentido. “Alguém aí está conseguindo ver um homem vertendo água de uma ânfora? Parabéns, porque eu não vejo nada”, comentou sobre a constelação de Aquarius. Ou: “Não dá pra saber se isso é cavalo, peixe, borboleta ou princesa.”

Foi assim que, para muitos, a constelação Piscis Austrinus passou a ser imediatamente reconhecida sob a alcunha de Pimentão Celestial, e Sagitarius virou Bule de Chá, para fins didáticos. Em Eridanus há uma curva de estrelas com um perturbador formato de panetone, aclamada pela turma como O Bolsão do Panetone (a maioria dos alunos não havia jantado). Já Canis Major parecia um cão bassê com as patas dianteiras num galope celestial. Muito repetido foi o trocadilho “no meu tempo, havia láctea”, um sucesso até entre os alunos repetentes.

“No final da aula, lá pelas nove, nos reuníamos na rosa-dos-ventos, ao ar livre, para tentar caçar as poucas estrelas que apareciam no céu”, conta Nicol Alexander Alfaro, jovem chileno radicado no Brasil que se formou em engenharia elétrica, mas largou tudo para estudar produção audiovisual. “A maioria das vezes estava nublado, uma vez ou outra o céu um pouco mais aberto, mas só conseguíamos ver umas poucas estrelas. O Paulo, com aquela precisão e sotaque característicos, apontava seu raio laser para uma estrela solitária e sentenciava: ‘Aquela é RRRRigel’”. E era mesmo.

 

BLECAUTE

Ao ar livre, os caçadores de estrelas do curso quase nunca tinham sorte. Ainda mais no último ano, depois que o Parque do Ibirapuera ganhou um sistema de iluminação 350% mais potente do que o anterior.

Sem consultar a Escola de Astrofísica, a administração trocou as lâmpadas tradicionais de vapor de sódio ou mercúrio por lâmpadas LED de 113 watts, que emitem luz branca. As bases de 13 metros também foram reduzidas para 5 metros de altura, para que as copas das árvores não interferissem na projeção de luz. A troca do sistema custou 11 milhões de reais, compartilhados entre Eletropaulo e o Departamento de Iluminação Pública de São Paulo, o Ilume.

A medida visava melhorar a segurança do parque, mas, para os astrônomos da EMA, foi como um assalto à mão armada. “A poluição luminosa é a maior inimiga da observação”, sentenciou o diretor do planetário, enquanto regulava um telescópio.

Mesmo com um céu sem nuvens e os aparelhos de alta precisão espalhados sobre a laje, era difícil obter um bom horizonte de observação. A iluminação ultra potente deixava o céu esbranquiçado, opaco, sem contraste. Inadequada, desperdiçava boa parte da energia para cima, ofuscando o céu e a terra. “Inclusive já é possível fazer cirurgias lá na calçada”, informou Paulo Varella.

Na rosa-dos-ventos, após as aulas, ele instruía os alunos a taparem com as mãos as lâmpadas mais próximas. A cena era surreal: uma dezena de pessoas agrupadas no meio do nada, com as mãos estendidas em posições aleatórias, olhando para cima. “Haja estilingue”, brincou o professor, que desde então procurou convencer a administração do parque a instalar um interruptor para apagar as lâmpadas em torno do planetário, nem que fosse só no horário das aulas.

Há alguns meses, o problema foi resolvido. Agora é possível apagar as luzes no entorno do edifício da EMA, o que melhora muito as observações na laje. Além disso, foi instalada uma iluminação mais direcional nos postes. Foi um avanço, mas ainda há muito a fazer. “É por isso que a gente ama blecaute”, o professor resumiu.

Para além dos esforços em adequar a iluminação, Varella afirma que tentou instalar um posto de observação no jardim da escola, às margens do lago, próximo ao chamado Patódromo – praça circular que à tarde é invadida por patos e à noite cai numa relativa escuridão. A ideia era distribuir pelo espaço três pequenas cúpulas fixas para os telescópios ETX, recém-doados pela Fundação Vitae. “Cada cúpula teria no máximo uns 2 metros de altura e 1,80 metro de diâmetro, só pra abrigar o instrumento e evitar que, a cada observação, tivéssemos que transportá-lo e montá-lo. Sobretudo porque são aparelhos delicados e pesados, de uns 55 kg cada, que podem ser descolimados com facilidade.”

Ele encaminhou o projeto ao Condephaat, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, que negou o pedido. A justificativa? “Quebraria a ambiência do parque.” Além disso, Varella descobriu que o parque inteiro fora tombado, não só os edifícios como o projeto paisagístico, e por isso não se permitem novas construções.

Em matéria estelar, a sonolência generalizada do poder público não é novidade. Em 1952, o prof. Aristóteles Orsini encomendou um projetor de última geração da Alemanha (o Zeiss III) e deu início aos trabalhos para a construção do primeiro planetário paulista, no Ibirapuera, a ser inaugurado no quarto centenário da cidade. Após passar um tempo retido na alfândega, o aparelho ficou encaixotado no Viveiro Manequinho Lopes à espera do término da construção do edifício. A inauguração se deu em 1957, três anos depois do previsto.

O mesmo ocorre ainda hoje com o planetário do parque do Carmo, em Itaquera, fechado há cinco anos. O milionário projetor Universarium VIII, da Zeiss, foi adquirido em 1996 e ficou encostado num depósito por quase uma década. Bancado pela Telefônica, o edifício em si começou a ser construído em 2002, com uma cúpula de 20 metros de altura – maior que a do Ibirapuera. Já nessa época, devido à prolongada inatividade, o projetor precisou de reparos e foi enviado de volta a Alemanha.

A inauguração ocorreu em novembro de 2005, três anos e 11 milhões de reais depois. Contudo, em fevereiro de 2007, o edifício começou a apresentar goteiras e rachaduras e foi fechado para reformas. Por conta da umidade, os equipamentos voltaram a apresentar problemas.

Em junho do ano passado, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente manifestou-se sobre o assunto para um jornal da Zona Leste. Declarou que a Prefeitura estaria “viabilizando trâmites para a compra das peças avariadas do projetor” e que “todas as medidas formais estão sendo tomadas para que o planetário volte a funcionar o mais rapidamente possível”.

Nas últimas semanas, o projetor voltou a funcionar e houve algumas sessões experimentais para escolas. A reabertura oficial do Planetário do Carmo não deve demorar.

  

FREITAS

Quando o assunto é telescópio ou binóculo quebrados, a senha é “Passa no Freitas”, acompanhada de um misterioso número de telefone. De cabelos grisalhos, olhos castanhos e voz grave, Roberto Freitas conserta e monta aparelhos ópticos em sua garagem, numa bucólica casa de vila no Cambuci.

É formado em administração de empresas com pós-graduação em marketing. Trabalhou na Victorinox, fábrica suíça de materiais de cutelaria, até que, há dez anos, decidiu pedir um afastamento para dedicar-se integralmente à construção e manutenção amadora de telescópios. Batizou seu empreendimento de Razão Focal. “Eu acho que sempre fui um astrônomo”, confessou, enquanto examinava um binóculo SkyMaster da marca Celestron, de 15×70 milímetros.

O cliente que procura seus serviços ópticos já chega avisado de que deve reservar uma tarde inteira para a visita, pois Freitas adora conversar. Ainda que esteja acostumado a colimar (alinhar) um instrumento em poucos minutos, ele gasta o resto do tempo falando de seu assunto preferido: astronomia amadora. “Já me chamaram de lunático, de professor Pardal, dizem que vivo no mundo da Lua”, admite.

De saída para assistir a uma palestra sobre espelhos metálicos no 14o Encontro Nacional de Astronomia, o ENAST, na qual basicamente pretendia discordar de tudo o que fosse dito, ele convida os visitantes a voltarem com mais calma em uma noite de céu limpo. “A gente faz um pão de queijo e brinca com este telescópio”, diz, referindo-se a um modelo que ele mesmo montou a partir de peças avulsas.

Freitas não se considera um comerciante e nem se preocupa com o lucro. Gosta de despertar o interesse pela ciência e compartilhar conhecimentos. Sua área de interesse aumenta a cada dia, conforme ele navega na internet em busca de novidades, participa de fóruns e manipula uma infinidade de lentes, adaptadores, tubos de foco e tripés, abarrotados em caixas de papelão nas estantes.

  

A REVANCHE

“A astronomia é uma experiência de humildade e formação de caráter”, escreveu o cientista Carl Sagan em Pálido Ponto Azul. Embora seja uma ciência complexa e intimamente ligada à física e à matemática, ela costuma cativar as pessoas pelo seu aspecto humanista. Numa matéria sobre o Ano Internacional da Astronomia (2009) para a revista da Livraria Cultura, o engenheiro químico Tasso Napoleão descreve o processo: “Primeiro vem o deslumbramento. Depois, aquela sensação de que não passamos da ‘mosquinha no cocô do cavalo do bandido’.”

A personal trainer Ana Maria Pereira concorda: “Para mim, as aulas foram uma terapia. Aprendi a ver como tudo é grandioso e que podemos passar o resto de nossos dias descobrindo coisas, se quisermos”.

Outra coisa que atrai os amantes da astronomia é saber que, em cada ponto do céu que observamos, há um passado diferente. A luz de Alpha Centauri, por exemplo, saiu de lá em novembro de 2007. A de Beta Centauri, em fevereiro de 1522, pouco depois do Descobrimento do Brasil. Paulo Varella costuma dizer que o telescópio Hubble não é só um instrumento óptico, mas um verdadeiro observador do passado, pois suas imagens captam a história longínqua do universo.

“Os números astronômicos são tão gigantescos que olhar para toda a história da civilização é como lembrar de um pequeno espirro ocorrido alguns segundos atrás. Essa sensação é ao mesmo tempo aterradora e libertadora”, filosofa um dos alunos, que por humildade não quis se identificar.

Já para Nicol Alexander, o melhor de tudo foi passar horas mergulhado na cadeira, olhando para aquela abóbada. “Mais para o final do curso, estudamos o movimento dos planetas, então o professor acelera o tempo para que tenhamos uma percepção mais clara do processo. Dá até vertigem olhar para as estrelas. Vemos um ano passando em segundos, acompanhamos a dança de Mercúrio, as mudanças da Lua”, lembra.

Ele diz que gostaria de fazer os cursos de Reconhecimento do Céu II, III e IV, e “até os confins do Universo conhecido”. Sexta-feira passada encerraram-se as inscrições para o tão sonhado “Reconhecimento do Céu II – A Revanche”, que vai acontecer às terças-feiras à noite, de 9 de outubro a 13 de novembro. Ainda não há previsão para o “Reconhecimento do Céu III – A Fronteira Final”.

Acessível a curiosos com todo tipo de formação, a astronomia desdenha da nossa arrogância e da ilusão de que estamos numa posição privilegiada do Universo. “Nosso planeta é um grão solitário na vasta escuridão cósmica”, definia Carl Sagan. Diante de grandezas assim inconcebíveis, nossas preocupações e angústias caem fatalmente no ridículo. Nas palavras de Sagan: “Não há, talvez, prova maior da tolice das vaidades humanas do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela enfatiza nossa responsabilidade de tratar melhor uns aos outros e de preservar e estimar o único lar que conhecemos.”

Não há dor nas costas e desilusão amorosa que resista a uma boa aula no planetário.

Páginas viradas

Posted: 2nd outubro 2012 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
2 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

Desde que saí de casa, ano passado, tive de lidar com uma redução considerável no espaço útil para a biblioteca (ver “A questão das estantes”). Confrontada com um dilema espacial e com a questão da rinite alérgica, decidi tomar uma decisão drástica e levar comigo apenas os livros que se enquadrassem em uma de três categorias:

  1. Livros que ainda não li e pretendo ler. Atenção: exige-se honestidade.
  2. Livros que ajudei a fazer, seja traduzindo, preparando, fornecendo pitacos de natureza diversa ou escrevendo aparatos editoriais.
  3. Livros impossíveis de se desfazer.

A maioria dos títulos nas categorias 2 e 3 foi friamente encaixotada e alocada na lavanderia. São seis caixas transparentes divididas por ordem alfabética de sobrenome do autor — de Abramo a Eliachar, de Fitzgerald a Hustvedt, de Joyce a Orwell, de Passos a Quino, de Ramos a Yeats.

Na estante com portas de vidro da foto acima ficaram apenas os livros que pretendo ler (ou reler) num futuro próximo. Estes permanecem à mão e à vista durante todo o dia, o que também me ajuda a manter boas perspectivas de vida e facilita o buliçoso processo de escolher o próximo livro para ler.

Quando acontece uma coisa muito ruim ou inesperada em nossas vidas — por exemplo, ser demitido de um emprego de vinte anos por comparecer repetidamente ao trabalho com cheiro de verdura cozida, ou morte de tartaruga, ou perder todo o dinheiro para um chefe da máfia —, enfim, quando somos desestruturados por algum incidente, todos deviam selecionar os livros (e pessoas) que gostariam de manter à vista. Só merecem tal honraria aqueles que trouxerem alguma boa expectativa, como os romances clássicos que a gente nunca conseguiu ler ou os lançamentos de não ficção com histórias curiosíssimas sobre caçadores de lulas. Livros que não nos façam recordar o passado e carreguem, em si, a possibilidade de gerar lembranças novas em folha.

Uma das coisas que aprendi de um ano pra cá (além de dançar o charleston) é que, com o tempo, podemos percorrer as mesmas ruas e frequentar os mesmos parques sem que isso necessariamente nos traga memórias difíceis. A cada passagem por uma esquina, vamos agregando novas sensações e preenchendo a calçada com outras experiências.

Assim também podemos, de início, ocupar os dias com livros estranhos, romances por vezes desinteressantes ou lamentáveis até que não seja mais preciso fazer esforço para prestar atenção. Um dia você apanha da sua estante de vidro um livro incrível de reportagens ou um volume de contos com as obras completas do Bruno Schulz e se vê absorto numa vida diferente, melhor ou pior, mas envolvente.

Daí para, quem sabe, conseguir ler O grande Gatsby e enxergar outras coisas no capítulo final, ou mesmo visitar Long Island sem sentir nada além de vontade de dançar o charleston com um chapéu engraçado, daí pra frente é um pulo.

* * * * *

Vanessa Barbara nasceu em 1982, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Chega de hipnose no ônibus

Posted: 1st outubro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
1 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

Não há dúvida de que os monitores de tevê acoplados aos ônibus, do tipo BusTV, BusMedia e TVO, servem a um eficaz (e astuto) plano da SPTrans para nos endoidar.

As mesmas propagandas e resumos de novelas repetidos à exaustão, três ou quatro vezes numa só viagem, são o que basta para o cidadão equilibrado, honesto e ciente de seus deveres se arremessar pela janela pedindo penico.

Servem sobretudo para exaurir o passageiro e habituá-lo à programação dos patrocinadores – a Globo, por exemplo, reina soberana nos monitores da BusMedia –, mesmo quando se trata de uma notícia de telejornal. (Nada se salva ao ser repetido pela quinta vez.)

Isso sem falar na propaganda. Em 2008, a SPTrans recebia o equivalente a 7 tarifas por anúncio veiculado em cada ônibus. Ano passado, aprovou-se uma nova portaria com um valor fixo por ônibus que varia de 80 a 140 reais mensais, conforme a quantidade de carros com monitores. Não há nenhum artigo dispondo sobre o repasse dessa receita.

Prezados administradores da SPTrans: se a questão é falta do que fazer, aqui vão sugestões.

Primeiro, substituir os monitores de tevê por monitores informando a próxima parada e a estimativa de chegada ao destino, como nos coletivos de Londres e Paris.

Painéis na parede detalhariam o percurso da linha, com nomes de identificação relativos a cada ponto de parada. Isso evita que o cobrador tenha que gritar: “BergaMais é o próximo” ou “Metrô Santa Cecília, Santa Casa, Rua das Palmeiras: é pra descer aqui”.

Atenção: não adianta tentar lucrar, batizando a parada “Nove de Julho” de “Chamyto Com Cinco Vitaminas e Ferro”. Os nomes devem facilitar a localização do usuário.

Nesse caso, seria bom se todos os pontos divulgassem seus nomes no topo. Atualmente, nem vemos mais painéis indicando as linhas atendidas por aquela parada – o vendedor de balas e o jornaleiro é que se responsabilizam pelas informações.

Um segundo painel relacionaria as localidades atendidas pelos pontos das proximidades. Se o sujeito mora no Tremembé e está nos Jardins, procuraria “Santana” na lista e rumaria ao local onde passa o 106-A, a três ruas dali, no ponto identificado como “Oscar Freire”.

Como já existe em certos corredores, um painel eletrônico divulgaria o tempo de espera dos ônibus.

Só não adianta deixar ligados os monitores de propaganda compulsória, para prejuízo mental das vítimas. Digo, passageiros.

Folha de S.Paulo – Ilustrada
24 de setembro de 2012

por Vanessa Barbara

A moderna culinária de guerrilha se caracteriza pela urgência estomacal e pelo aproveitamento de quaisquer sobras da geladeira.

Seu maior expoente é Paulo Oliveira (Paulo Tiefenthaler), pândego apresentador do “Larica Total” (Canal Brasil, ter. às 21h30), um programa de receitas em que “a gente nunca sabe o que vai fazer, mas vai fazendo”. De regata, chinelo e bermudas, a pança de fora, o festivo careca comanda a atração da cozinha de seu apartamento, no bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro.

Juntando os ingredientes que possui – como cerveja, macarrão e linguiça –, ele ensina o telespectador a saciar com estilo aquela fome da madrugada, ainda que o resultado seja por vezes duvidoso. “Isto aqui só às cinco da manhã, muito bêbado”, confessa.

Ao contrário dos colegas de grife, seus instrumentos de trabalho não são impecáveis cumbucas de vidro, faqueiros importados e bancadas de aço inox. Há uma ou duas assadeiras tortas, uma velha faca de pão e a famosa “panela preta”, que tem até vinheta própria.

Seu fogão é antigo, de quatro bocas e revestido de papel alumínio. A pia vive lotada. Falta um azulejo na parede. Vez ou outra ele resgata uma colher de pau do meio da louça suja, passa uma água e se põe a usá-la: “É só tirar aquele cocô de mosca”.

As receitas não são científicas: no bolo de carne, vão “restos de geladeira para recheio”. Modo de preparo: “Ponha no forno e deixe lá por um tempo. Primeiro fica cinza, depois fica crocante e então bonito pra cacete”.

Enquanto o molho ferve, ele se dedica a tarefas mundanas, como num sábado em que preparou um pavê e cumpriu uma lista de pendências. Durante os 25 minutos de programa, Paulo instalou uma cortina, configurou o modem, pregou uma prateleira e terminou com a Marise. “Tudo aquilo que você fica enrolando: hoje é dia de fazer”.

O excelente humorista fala rápido e se perde na argumentação. “Isso aqui é a pele do porco, isso aqui é pura alegria”, exclama, improvisando. Diz que a abóbora tem a cor mais antidepressiva que existe e que o garfo “atravessa melhor as fronteiras do legume”.

Às vezes o interfone toca e, num descuido, ele deixa a comida cair no chão.

O episódio final da temporada será exibido na semana que vem. No programa de amanhã, Paulo preenche os papéis para um edital do governo enquanto prepara um empadão de casca de legumes.

“Isso aqui é alto nível”, garante.

Tela azul para prefeita

Posted: 17th setembro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
17 de setembro de 2012

por Vanessa Barbara

Nas últimas semanas, muito se falou da tela azul da Record News, um fenômeno de audiência que tem marcado em média 0,5 pontos (cada ponto corresponde a 60 mil domicílios).

Como o sinal da emissora é gerado em Araraquara, ela não é obrigada a exibir o horário eleitoral gratuito da capital. No entanto, por ser aberta, não pode colocar nada no lugar. Então veicula, duas vezes ao dia, por meia hora, um slide azul muito vivo e estático, avisando que se trata da faixa reservada à propaganda política.

A cerúlea imagem tem angariado mais espectadores do que certas emissoras no mesmo horário, e mais do que a própria Record News costuma obter com sua programação policromática.

A raiz desse fenômeno está no hábito de mudar de canal quando começa a propaganda eleitoral. Em busca de uma rota de fuga, quem não possui TV a cabo acaba sintonizando na tela azul, e por lá o aparelho permanece até que a programação volte ao normal. É como um alarme da hora da novela.

Tenho acompanhado as peripécias da efígie celeste com grande afinco, não por aversão ao horário eleitoral, que é bem divertido, mas por ter plena convicção de que se trata de uma das coisas mais interessantes que a televisão apresentou nos últimos tempos.

A tela azul, por exemplo, não teria coragem de começar um telejornal com observações engraçadinhas e trocadilhos espirituosos sobre o trânsito da cidade. A tela azul não oferece reviravoltas inverossímeis ou atuações vergonhosas como nas novelas, tampouco exibe imagens do Pantanal mato-grossense em especiais sobre plantas que curam.

Naquele cárdeo retângulo, nenhum comentarista esportivo fala platitudes no show do intervalo, nem há mulheres dançando em maiôs de zebra enquanto o auditório bate palmas, amestrado.

A tela azul não desbota e nem cede ao degradê só porque os níveis de audiência baixaram de repente; a tela azul não tira a camisa e nem conta piadas quando os produtores assim o determinam. Não dá prêmios aos primeiros que telefonarem e não tenta empurrar produtos de ginástica ou tônicos capilares aos espectadores, que tampouco precisam se submeter a sofríveis dicas de saúde e fofocas de celebridades.

Sem locuções melosas em off, a tela azul é uma bela surpresa na televisão brasileira.

Seus bons índices de audiência me fazem torcer para que outras emissoras sigam o exemplo, aumentando exponencialmente a qualidade média dos programas. 

Folha de S.Paulo – Ilustrada
10 de setembro de 2012

por Vanessa Barbara

Há pouco menos de um mês, estive em Londres para cobrir os Jogos Olímpicos. Foram três semanas de velocistas extraordinários quebrando recordes, nadadores corpulentos planando na superfície da água, gigantes segurando bolas de vôlei como se fossem laranjas, gente saltando, voando, dando piruetas triplas e caindo no chão com os dois pés, sob os aplausos do estádio lotado.

Estaria mais à vontade se ficasse para assistir à Paraolimpíada, que acabou ontem e foi transmitida no Brasil pelo SporTV. Esta, sim, trata de pessoas comuns tentando lidar com imprevistos da vida, divididas em categorias tão imperfeitas quanto seus participantes.

A natação, por exemplo, separa os atletas em catorze níveis de função e movimento. O grau de deficiência vai de um a dez para limitações físicas e motoras; quanto maior o número, menor a limitação. Um nadador S10, portanto, tem poucas restrições.

A numeração de onze a treze indica deficiência visual e a catorze inclui atletas com deficiência intelectual.

Por mais que se procure ser justo no nivelamento, é impossível padronizar deficiências, o que torna a competição ainda mais plural e interessante, com nadadores anões competindo lado a lado com atletas amputados.

A largada é tão alternativa quanto possível: alguns saltam do bloco, outros pulam de barriga, outros já saem de dentro da piscina, as pernas agarradas pelo técnico. No nado costas, muitos não têm braço para segurar a borda da piscina, por isso, antes do tiro de largada, agarram com os dentes as toalhas estendidas pelos treinadores.

Uns não têm pernas e usam os braços, outros nadam num estilo meio lontra, como o chinês Tao Zheng, que não possui os dois braços e ganhou o ouro nos 100 m costas. Há técnicas ousadas de respiração, comemorações com o cotoco, nadadores de uma perna só e bastões para guiar os cegos. Houve um anão que entrou de motoca, todo pimpão, e um russo que agradeceu ao público em linguagem de sinais.

E como sorriem os atletas paraolímpicos – sorriem o tempo todo, aplaudindo a si mesmos.

Uma boa surpresa nessa cobertura é que o SporTV escalou um comentarista cego para os eventos de atletismo: Hilário Moreira Neto, que recebe a ajuda do guia Delton Leuri para explicar as provas.

“Com o perdão do trocadilho, assim a gente consegue ter uma visão melhor do que está acontecendo”, brincou Hilário.

A Hortaliça – edição #089

Posted: 8th setembro 2012 by Vanessa Barbara in Hortaliças

É couve no dente
#089 – São Paulo, 7 de setembro de 2012
Edição olímpica
Vida de tocha é fogo
www.hortifruti.org

“É de onde não se espera nada que não sai coisa alguma.”
(Barão de Itararé)


“Só eu e meu pai, naquela casa, é que compreendíamos os tomates.”
(Samuel Beckett, Primeiro Amor)

:: EDITORIAL ::

Como é largamente sabido pela comunidade hortifrutigranjeira, esta Hortaliça foi convidada por um grande conglomerado da mídia a cobrir a Olimpíada de Londres, de 27 de julho a 13 de agosto do corrente, ao que decidimos aproveitar a oportunidade para coletar ainda mais dados estratégicos desses povos excêntricos e irrelevantes que ainda não se dobraram à dominação colonizadora da Força Expedicionária Mandaquiense.

Reunimos, nesta edição, algumas das observações etnográficas que ficaram de fora da cobertura oficial do evento. Esta pode ser vista em http://www.hortifruti.org/category/cronicas/folha/londres-2012.

Por hoje é só.

:: HAIKAI: REGRAS DA CASA ::
De um proprietário do Airbnb.com

Seja amigável
Converse com o dono da casa
Trate bem o pássaro

:: NOTÍCIAS DOS JOGOS OLÍMPICOS DE 2064 ::
Cortesia de Marcos Barbará

– Medalha de ouro no judô, robô naturalizado japonês se emociona ao lembrar de engenheiro que o fabricou
– Chinês de 7 anos bate recorde dos 400 metros medley nadando os quatro estilos simultaneamente
– Ronaldinhozinho fracassa em levar o Brasil ao primeiro ouro olímpico no futebol
– Australásia do Sul perde para o Reino da Venezuela na lambada esportiva
– Romeno muda de sexo duas vezes durante os Jogos e ganha ouros no arremesso de peso masculino e feminino
– Sob a batuta de Clébernylson, Brasil garante medalha no Guitar Hero
– Estreando novo cérebro artificial, rainha Elizabeth participa de cerimônia de abertura

:: AMSTERDÃ, 1928 ::
O australiano temente ao pato

O australiano Henry Pearce disputava as quartas-de-final no remo skiff simples contra o francês Victor Saurin. No meio da prova, Pearce estava um pouco à frente quando se deparou com uma família de patinhos cruzando perigosamente sua raia. Sem hesitar, o australiano abandonou sua busca pela glória olímpica para permitir que Mamãe Pato e seus patinhos nadassem em fila indiana até a outra margem, de forma despreocupada e tranquila.

Ao término da travessia, ele conseguiu retomar o ritmo e vencer a prova, classificando-se para a semifinal, a qual também ganharia, a exemplo da final, conquistando a medalha de ouro para alegria dos humanos e dos ovíparos.

:: ESTOCOLMO, 1912 ::
O japonês que mudou de ideia
 
Fazia um calor incomum na Suécia durante os Jogos de 1912, e para piorar, a prova mais desgastante, a maratona, começava ao meio-dia. Dentre os competidores estava o japonês Shizo Kanaguri, um dos primeiros asiáticos a competir em uma Olimpíada. Ao fim da primeira metade da prova, muitos competidores já tinham desistido por conta do calor, mas Kanaguri resistia heroicamente, ainda que tenha deitado no percurso por duas vezes. Ao passar por um bosque, o japonês se deparou com uma família sueca fazendo um animado piquenique naquele domingo glorioso. Convidado a se unir a eles, não foi necessário um segundo pedido para convencer Kanaguri, que aceitou a generosa oferta e bebeu suco de framboesa até pegar no sono. Ao acordar, percebeu que era muito tarde para retomar a corrida, então pegou um trem direto ao porto, onde, envergonhado, decidiu não contar a ninguém o que tinha acontecido, retornando de volta ao Japão.
 
Após a corrida, a organização localizou os 33 corredores que não haviam terminado a prova – exceto Shizo Kanaguri, que foi dado como desaparecido. A situação se tornou uma anedota popular na Suécia, onde se usava o nome do japonês para denotar algo que havia sumido sem explicação.
 
Em 1962, no 50º aniversário dos Jogos, um jornalista sueco foi ao Japão tentar descobrir pistas sobre o paradeiro de Kanaguri. Eis que o japonês é encontrado dando aula de geografia na cidade de Tamana. Kanaguri não tinha ideia que ele era uma celebridade na Suécia e cinco anos depois, aos 76 anos de idade, foi contratado para a inauguração de uma loja de departamentos em Estocolmo. De lá foi caminhando até o Estádio Olímpico, onde, para o delírio dos suecos, correu até a linha de chegada, completando a maratona que havia iniciado 55 anos antes.

:: SEMELHANÇAS ENTRE A VILA OLÍMPICA E A VILA OLÍMPIA ::

– Ambas são de difícil acesso
– De dia todo mundo trabalha, à noite todo mundo bebe
– Há muitos seguranças barrando a entrada de mandaquienses
– Ambas são artificiais
– E muito caras
– Você só pode ver de longe, e uma vez a cada quatro anos
– Tem que levar lanche de casa
– Impossível arrumar um apartamento por lá

:: CONSELHO DE CAMPEÃO ::
Cortesia de Michael Phelps

Tudo bem fazer xixi na piscina. Todo mundo faz.

:: 200 M RASOS NO MOONWALKING ::
Cortesia de Paulo Henrique Martins

É preciso entender que certas atitudes drásticas são justificáveis dentro de um contexto. Jim Lee havia viajado vários dias de trem, de Myanmar até Londres, somente para poder desfrutar do ambiente do Parque Olímpico. Depois de ter ido a Pequim quatro anos atrás, ele precisava ver o que Londres havia aprontado dessa vez.

Foi, portanto, compreensível a decepção de Jim Lee ao chegar em Stratford e ver que as entradas para visitar o Parque Olímpico não estavam mais disponíveis à venda; só visitava a região quem tivesse ingressos para ver as competições. Jim Lee se esforçou: tentou comprá-los, mas já não restava nenhum disponível. Passou horas na frente da estação com um cartaz avisando que queria ingressos – e pagava bem por eles, mas foi alertado pela polícia que era uma prática ilegal e ele poderia ser preso. Voltar para casa sem ter entrado no Parque Olímpico seria uma decepção sem tamanho.

Naquela sexta-feira, Jim Lee tomou uma atitude drástica. Foi até Stratford e posicionou-se de costas ao portão de saída do Parque Olímpico. Encarando a fonte do shopping Westfield, Jim Lee começou a sentir as pessoas passando por ele, aqueles que haviam assistido às primeiras provas do dia, saindo do Parque em bando. Sem olhar pra trás, começou a fazer o moonwalking.

Os seguranças a princípio estranharam. Parecia que alguém vinha em direção ao Parque Olímpico, mas não fazia sentido: a pessoa estava de costas e andava para frente. Provavelmente estaria saindo. Não? Um deles, desesperado, puxou da mochila o manual de regras que havia recebido para tomar conta daquela saída. Ele deveria barrar todo mundo que tentasse entrar pela saída, mas aquele homem parecia estar saindo pela saída, só que ao contrário. Junto com outro voluntário, viravam páginas desesperadamente procurando instruções sobre como proceder naquela situação. Enquanto isso, Jim Lee, andando para frente e indo para trás, passava com naturalidade pela linha de pessoas de camisa magenta, e o público que saía do Parque Olímpico desviava dele.

Assim ele foi indo. Em pouco tempo, ultrapassou os portões. Começou a cruzar a ponte que levava e trazia transeuntes, só que a cruzou pelo lado contrário, mas virado para o lado certo, só que andando na contramão. Ou algo assim. Passou por baixo de uma placa com um letreiro que, pelo que ele podia ler, agradecia a visita ao Parque Olímpico. Mais à frente, virou à direita e pôde ver o Orbit em frente, o grande estádio olímpico à sua esquerda e a multidão andando ainda em todos os sentidos. Jim Lee havia entrado.

A visita do rapaz, entretanto, poderia ser mais agradável. Em nenhum momento Jim Lee se sentiu seguro o suficiente para abandonar o moonwalking e voltar a andar normalmente. Quando saiu do Parque Olímpico pela entrada, leu o aviso de “Bem-Vindo” e passou pelos detectores de metais sem ter a mala devidamente vistoriada. Foi acusado de furar fila ao contrário e só parou quando a catraca do metrô lhe impediu de continuar andando para trás.

:: ATRIBUÍDO A ::
Winston Churchill

Não se ganha uma guerra com alface nos dentes.

:: COISAS DA INGLATERRA ::
Da Seleções do Reader’s Digest, maio de 1965

Há muitos anos, a relutância dos marinheiros em navegarem às sextas-feiras atingia tais proporções que o Govêrno Inglês resolveu provar a falácia da superstição. Iniciaram a construção de um navio numa sexta-feira, lançaram-no ao mar em outra sexta-feira, denominaram-no H. M. S. Friday (sexta-feira), e fez-se ao mar numa sexta-feira.
O plano teve apenas um inconveniente: nunca mais se ouviu falar do navio nem da tripulação.
Our Navy

Recentemente, o Rev. Michael Newman e outras cinquenta pessoas caminharam dez quilômetros e subiram trezentos metros até Dartmoor para um serviço religioso de madrugada. Alguém perguntou ao reverendo por quê, e ele explicou:
– Estávamos revivendo um velho costume, mas ninguém se lembra exatamente qual.
Quote

:: POR DIVERSÃO ::
Time Out, 9-15 de agosto de 2012

Você sabia?
Londres tem sua própria força voluntária de informações sobre ônibus noturnos

Todas as sextas e sábados à noite, há um sujeito que fica sentado no ponto da Trafalgar Square fornecendo informações impecáveis aos bêbados sobre os ônibus noturnos. Ele não cobra nada e não é contratado por ninguém. Só faz isso por diversão.

:: A CADA DEZ SEGUNDOS ::
Sam Levenson

Somewhere on this globe, every ten seconds, there is a woman giving birth to a child. She must be found and stopped.
[Em algum ponto do planeta, a cada dez segundos, uma mulher dá à luz uma criança. Precisamos encontrá-la e detê-la.]

:: HISTORINHA ::

No trem para Cardiff, um brasileiro gritava ao celular: “Alô? Só pra avisar que consegui os ingressos. Queria agradecer por ter procurado pra mim. Hoje cedo achei que não ia conseguir… Mas arrumei os ingressos, Neymar, obrigado.”

:: THE EMPTY SEAT @OLYMPIC SEAT ::
Time Out, 9-15 de agosto de 2012

Esta semana, ele alcançou 20 mil seguidores, mas ainda não logrou abrigar um só traseiro.

@Assento_Vazio: Minha mãe queria que eu seguisse uma carreira mais estável, como por exemplo tornar-me uma cadeira da Ikea. Mas achei que estava destinado a algo maior.
@Assento_Vazio: Esperei sete anos por esse momento. Sete anos, e pra quê?
@Assento_Vazio: Estou me sentindo um fracasso.

:: BRIAN, O POMBO ::
Time Out, 9-15 de agosto de 2012

Um relatório semanal do nosso correspondente olímpico aviário, que está literalmente cobrindo os Jogos Olímpicos de 2012, em Londres

Quase tão rápido quanto começou, já está quase no fim. Não acho que já vi duas semanas passarem tão rápido. E olha que chacoalhei meu traseiro gordo por toda parte. Voei de Soho até Stratford, depois pela M4 até Eton Dorney, então voltei pela M40 até Wembley. Tem sido incrível. Uma das melhores coisas é flanar pelos shows gratuitos no Hyde Park. Esse chão coberto de serragem foi um toque de gênio. Nada como mascar um naco de serragem úmida para animar o dia. Também nunca vi tantos carrinhos de comida. Macarrão, curry, batatas fritas, salsichas, cerveja. Há todo tipo de comida que você pode imaginar, e os comensais estão sempre sentados no chão vendo esportes no telão. Batatas e salgadinhos voando por toda parte. Pombos de todas as procedências estão vindo se juntar à festa. Trombei com um casal de Birmingham que veio para acompanhar o basquete. O melhor lugar é geralmente nos bastidores: cheio de gente desperdiçando canapés por cima dos ombros. Aqui não. Os bastidores vivem vazios. Curti a tarde com Sophie Ellis-Bextor e o The Feeling, antes do show de semana passada. Quando digo que “curti”, quer dizer que cisquei por baixo da mesa e fiquei lá por um tempo. Ainda assim, estive perto o suficiente e dei uma porção de rasantes quando eles tocaram naquela noite. Só foi esquisito quando fiz cocô sem querer na cabeça do Johnny Vaughan justo quando ele concluía seu show, transmitido ao vivo pela Absolute Radio. Decerto a última coisa de que ele precisava. Johnny, se você estiver lendo isto: foi mal, cara. Não tive a intenção. Apenas escapou.

:: ENCRENQUEIRO ZÉ COLMÉIA É FERIDO EM ACIDENTE DE TREM ::
Metro (Londres), 3 de maio de 2012

Um legítimo urso Zé Colméia que prefere roubar comida a sair para caçar está em situação crítica após ser atropelado por um trem. O urso mal teve tempo de deixar as manchetes desde que acordou de seu período de hibernação este ano: primeiro, foi acusado de assaltar lixeiras e cutucar colméias na Áustria e na Suíça.

Depois, o animal microchipado largou um carrinho de neve após utilizá-lo para afiar suas garras e, na semana passada, usou um poste de luz como coçador de costas, provocando um incêndio florestal. Agora, ao que tudo indica, está ferido e escondeu-se numa caverna após ter sido atropelado por um trem entre as cidades de Scuol e Klosters, na Suíça.

O urso, chamado de M13 pelos especialistas, perdeu o irmão M14 no mês passado, atropelado por um carro na Itália.

:: A GRANDE FUGA DE HOUDINI ::
Com informações da BBC, em 1 de maio de 2012, e do Metro, 3 de maio de 2012

Um hamster em fuga causou a seus donos um prejuízo de mil libras após abrir caminho mascando os fios elétricos do carro da família. Apropriadamente chamado de Houdini, o rato alcançou o motor durante uma viagem em que seria levado para sua nova residência, em Micklover, Derbyshire, numa caixa de papelão. Foi localizado e recuperado pelo Automóvel Clube depois de uma busca de duas horas no Passat. “Tivemos que desmantelar o carro. Tiramos o porta-luvas e o volante, então o homem do Automóvel Clube lançou um facho de luz com a lanterna por trás do rádio e gritou: ‘Acho que posso vê-lo!'”. Então abriram o capô e, quando surgiu a cabecinha de Houdini, o retiramos de lá.

“Ele parecia indiferente à comoção”, declarou a proprietária, Victoria Cooper.

Não foi o fim da aventura, já que, no dia seguinte, Houdini teve de ser resgatado da mandíbula do gato da família.

O hamster custou 7 libras num pet shop.

:: BÊBADOS PAGAM MULTA POR FURTAR PINGUIM ::
Metro (Londres), 3 de maio de 2012

Dois turistas bêbados que invadiram um parque temático e roubaram um pinguim chamado Dirk foram multados em mais de 600 libras.

Rhys Jones, 21, e Keri Mules, 21, naturais de Cardiff, também nadaram com golfinhos e entraram numa jaula de tubarões para acionar um extintor de incêndio. Mas, em vez de guardar segredo sobre suas façanhas, a dupla gabou-se no Facebook e foi denunciada à polícia de Brisbane, Austrália.

Eles beberam grandes quantidades de vodca numa festa e escalaram o portão do Sea World, em 14 de abril. Na manhã seguinte, acordaram no apartamento ao lado de Dirk, um pinguim de sete anos.

Jones e Mules tiraram fotos e fizeram vídeos do animal antes de liberá-lo num canal da região. Ele foi visto por um passante e resgatado pelo Sea World.

Os galeses se declararam culpados por invasão, furto e captura de animal selvagem. O juiz Brian Kucks recomendou à dupla: “Da próxima vez que estiverem numa festa, deviam considerar beber um pouco menos de vodca”.

:: MELHOR PONTO DE VISTA JORNALÍSTICO ::
Evening Standard, 4 de maio de 2012

Título da matéria: Ken planeja cuidar de jardim enquanto sua campanha se prepara para a derrota

Ken Livingstone declarou hoje que pretende praticar um bocado de jardinagem, enquanto encara a possibilidade de derrota nas eleições municipais. O candidato do Partido Trabalhista declarou ao Standard que só espera que não chova este fim de semana. Fontes da campanha admitem que são baixas as chances de vitória para o ex-prefeito.

No quintal de sua casa em Cricklewood, Livingstone, 66, afirmou: “Meu futuro imediato não é diretamente afetado pela vitória ou pela derrota. Minha cunhada acaba de se mudar para uma nova casa e eu prometi que cuidaria de seu jardim neste feriado”.

“Espero que não chova. O canteiro está coberto de ervas daninhas e eu adoro cuidar disso”.

:: PROIBIDO TREPAR EM ÁRVORES E EMPINAR PIPAS ::
Evening Standard

Os administradores da subprefeitura de Enfield estão sendo chamados de estraga-prazeres após proibir as crianças de trepar em árvores e empinar pipas nos parques da região. Mais de 40 regras foram introduzidas no bairro, incluindo o veto à prática de aeromodelismo e skate de forma “irritante e perigosa”.

Adultos pegos no descumprimento da lei podem levar uma multa de 500 libras, enquanto crianças ficarão sujeitas às leis de comportamento antissocial, criadas para deter vândalos e vizinhos barulhentos. Dizem as normas: “A nenhum cidadão é permitido, sem desculpa razoável, subir numa árvore”.

Andar de bicicleta fora das vias específicas também é proibido. […] As pessoas estão sujeitas a multas por nadar em lagos, jogar golfe, “andar a cavalo de forma que prejudique os demais”, usar detector de metais ou andar de skate de forma “irritante” ou perigosa.

:: PESQUISA DE OPINIÃO ::
do Direct Matin

36% dos americanos acreditam na existência de extraterrestres, segundo uma pesquisa efetuada pelo National Geographic. E 65% dos entrevistados pensam que o presidente Obama se sairia melhor do que Mitt Romney, seu adversário republicano nas eleições presidenciais, na eventualidade de uma invasão alienígena.


(acima, nuvem com o formato da Grã Bretanha)

:: NUVENS QUE SE PARECEM COM OUTRAS COISAS ::
Metro (Londres), 3 de maio de 2012

Gavin Pretor-Pinney, 43, é fundador da Sociedade de Apreciação das Nuvens. Seu best-seller Guia do Observador de Nuvens foi publicado em 2007. Ele também é autor de Nuvens Que Se Parecem Com Outras Coisas.

Metro: A Sociedade de Apreciação das Nuvens possui quantos membros?
Gavin Pretor-Pinney: 29.534 associados e continua crescendo. É uma ideia que se espalhou de forma viral. As pessoas costumam observar nuvens quando crianças – olhando para o céu e identificando padrões – e, mesmo que hoje reclamem delas, o afeto ainda permanece. Nossa sociedade lembra às pessoas que as nuvens não precisam ser fontes de lamúria.  

M: Há um perfil típico do associado?
GPP: Não. Já chegaram a comprar títulos de afiliação para bebês, e nosso membro mais idoso tem 96 anos. O perfil varia de físicos de nuvens a fotógrafos que apreciam o fenômeno por sua beleza estética. Não há um membro típico, embora nos vejamos como pessoas que enxergam a beleza no dia-a-dia.

M: Quais são os principais objetivos e atividades da sociedade?
GPP: Lembrar que não é preciso cruzar o mundo para encontrar o exótico. Há aspectos estonteantes de natureza à nossa volta, basta mudar ligeiramente a perspectiva. Seríamos mais felizes se não desejássemos sempre estar em outro lugar do mundo, um lugar sem nuvens no céu. Se apreciássemos essa beleza, seríamos mais felizes.

M: Por que você fundou a sociedade?
GPP: Foi numa palestra no festival de literatura de Cornwall, em 2004. Me pediram para fazer uma palestra sobre nuvens, mas fiquei com medo que ninguém aparecesse, então a chamei de “Palestra Inaugural da Sociedade de Apreciação de Nuvens”. Depois disso, as pessoas vieram pedir para se associar. Começou como uma piada, mas as melhores ideias surgem quando você está numa disposição leve e despreocupada.

M: Quais são as suas estatísticas preferidas sobre nuvens?
GPP: As gotas de água numa cumulus média, essas que têm consistência de lã e surgem nos dias de sol, têm o peso de oitenta elefantes. As gigantescas cumulus nimbus podem ter o dobro da altura do Everest.


:: GIRAFA’S ::

Entrevista com a atriz Joanna Lumley, 66, mais conhecida pelo papel de Patsy em Absolutely Fabulous. Ela diz que gostaria de reencarnar como uma girafa.

:: NOTAS BIOGRÁFICAS ::
Redigidas pelo meu irmão

1) Em meados de 1986, fomos todos a Itu e lá entramos no estádio do Ituano. Tem foto minha e sua com o Delei, reserva do Ituano que provavelmente nos deu o único autógrafo de sua vida esportiva.

2) Em 8 de janeiro de 1995, fui com o papai à Rua Javari e lá encontramos o Professor Pupo Gimenez, técnico dos juniores do Corinthians na época. Apesar do jogo não ser do Corinthians, era do mesmo grupo, o que motivou a frase do papai para o Professor Pupo Gimenez, que provavelmente não queria ser reconhecido: “SEU PUPO, VEIO VER OS ADVERSÁRIOS???” (aprox. 170 decibéis). O jogo era Juventus x Juventude, placar de 3-0 para o Juventus.

:: FRASES OUVIDAS ::

“Vai, Brasil! Tem que ganhar porque é o único ingresso que a gente tem.”

“Vai, vermelho!”

“Força, azul!” (Numa partida de vôlei de praia em que os dois lados eram alemães.)

:: VIDA DE TOCHA É FOGO ::
Temas esparsos desta Olimpíada

– BBC e sua transmissão Cléber-Machadiana: o locutor especialista em vôlei dessa reputadíssima emissora inglesa pareceu arrasado com a vitória do Brasil contra os Estados Unidos, na final do vôlei feminino. Durante o primeiro set (no qual as ianques ganharam de lavada, por 25×11), ele só faltava trazer a mãe para cumprimentá-las, empolgadíssimo com a performance americana e já botando terra em cima da tumba das adversárias. Em comentários deprimentes, observou que os pontos brasileiros “apenas adiavam o inevitável”, ou seja, a derrota, e ironizou qualquer ataque certeiro das meninas. Fez comentários pessoais sobre a habilidade de cada uma e ressaltou a superioridade inconteste das estrangeiras. Mas, ao que parece, as brasileiras devem ter ouvido a narração, porque voltaram com sangue nas órbitas.

A partir do segundo set, o time protagonizou uma bela virada, e o que se ouvia na locução da BBC eram longos minutos de silêncio. Durante os pontos finais, pouco antes do ouro brasileiro, parecia até que o locutor tinha ido embora. Ele ainda tentou se justificar por um tempo, quase atribuiu a recuperação brasileira a uma tática norte-americana ou a um milagre religioso, e então desistiu. Entregou a locução ao Senhor.

O mesmo aconteceu em outras partidas de vôlei. Ele parecia triste, macambúzio em suas narrações, verdadeiramente infeliz com as partidas. Cada ponto era apenas uma confirmação de sua lamentável visão de mundo, no que pareceu uma nova tática de locução da BBC, destinada a deprimir o espectador para que não saia de casa nunca mais e continue dando boas audiências à emissora.

– Usain Bolt costuma ir ao McDonald’s e pedir vinte nuggets antes de correr. Não consegui desenvolver essa informação. Só ficou a dúvida: qual seria o molho preferido do velocista?

– Onde é que a tocha dorme durante sua passagem pelo mundo?

– Por que a seleção búlgara de basquete estava caminhando pelo Parque Olímpico se a Bulgária não foi classificada para a modalidade? E mais: poderiam os bons resultados do país no vôlei ser atribuídos a ela?

:: ATÉ UM FILATELISTA ::
De um episódio da série Tatort

Você está começando a ficar paranoico, Moritz. Nós temos cristãos, ateus, muçulmanos, esotéricos. Um ou dois maçons. Temos até um filatelista!

:: BONGÔ! BONGÔ! ::

É hora de quebrar o silêncio da grande imprensa e revelar, em primeira mão, a melhor coisa da Olimpíada 2012: a pausa do bongô. Em poucas palavras, é o seguinte: no intervalo das partidas de basquete, entravam dançarinos apresentando coreografias de street dance. Ou uma equipe de corda chamada Get Tricky, que distraía o público com truques atléticos na arte de pular corda, rodopiando, saltitando em fileiras e trançando grossas cordas. No intervalo do vôlei de praia, meninas de biquíni com grandes bolas de plástico dançavam ao som de Beach Boys, numa das atrações mais cafonas dos Jogos.

No intervalo das partidas de vôlei, porém, era o Homem frente a frente com o Bongô. Um duelo de corações e mentes numa excêntrica simbiose. O apresentador pimpão e anedótico ficava ao microfone entretendo o público e levantando questões básicas da modalidade, numa inútil tentativa de ganhar tempo para o que realmente importava: o bongô. A certa altura, no telão, ele exibia um desenho do instrumento. Ao fundo, a trilha sonora. Pedia que a câmera desse closes em torcedores e, ao vivo, instava-os a batucar o instrumento imaginário – não houve quem saísse incólume da experiência, e devo confessar que assisti uma final única e exclusivamente por causa do bongô. Treinei em casa, inclusive. A alguns afortunados, o apresentador concedia palavras elogiosas como: “Claramente não é a sua primeira vez”, ou: “Você nasceu pra isso, cara!”. Quando a câmera focalizava uma senhora idosa, o povo ia ao delírio. Alguns chegavam a hesitar, desacostumados a passar vergonha dessa forma, mas a plateia urrava e o sujeito acabava cedendo. E com gosto: alguns batucavam cruzando as duas mãos, ou com a cabeça, outros ficavam de pé e sapateavam no tambor.

Um dos únicos a resistir foi uma celebridade do basquete inglês, um certo jogador que assistia seus compatriotas do vôlei e foi focalizado nos primeiros instantes do intervalo. Soberbo, não só resistiu ao apelo do bongô como virou-se de costas, recebendo um apupo instantâneo da multidão. Sua seleção perdeu vergonhosamente no dia seguinte, e dizem que foi culpa da arrogância perante o bongô.

Na foto acima, um anônimo cede ao desvario musical.

:: NOTÍCIA ::

“Tênis: No. 1 do mundo perde e ainda prende cabelo na raquete”.

Esse tipo de notícia me dá um senso de comunhão com a humanidade.

:: EU DURMO COMIGO ::
Angelica Freitas

eu durmo comigo/ de bruços deitada eu durmo comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão longa em que não durma comigo/ como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo comigo às vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir ao lado.

:: ANOTAÇÃO ESPARSA ::

Durante a Batalha de Poitiers (1356), o exército inglês fez um cerco para capturar João II, da França. Para se esconder, o monarca francês tirou suas túnicas reais, anéis e colares, e se misturou a multidão. Contudo, os soldados ingleses o capturaram sem dificuldades em poucos minutos. João II era a única pessoa que estava de coroa.

:: REPÚDIO AO COLEGA ::

Considerei bastante infeliz a observação do colega Antonio Prata em sua coluna na Folha no último dia 5 de agosto, na qual proclamou a corrida um esporte de fujões. Em sua tocante defesa do levantamento de peso, este sim um desporto notável, ele chega a falar de um mundo “decadente e esquálido, em que a virilidade escorreu pelo ralo”.

Deveria o chocarreiro escrivão refletir um pouco e considerar uma questão essencial: que esportes seriam realmente úteis na eventualidade de um apocalipse zumbi? Qual a serventia, afinal, do levantamento de peso diante de um ataque de mortos-vivos? E da marcha atlética, essa piada que deu certo?

Já o treinamento em atletismo, arco-e-flecha, tiro e arremesso de dardo seriam determinantes para a sobrevivência da humanidade e perpetuação da espécie.

:: MALLEUS MALEFICARUM ::
Colaboração de Adriano Marcato

[…] Caso semelhante é relatado por São Gregório em seu primeiro diálogo: uma freira que comeu alface sem ter antes feito o sinal da cruz foi depois liberada (da possessão demoníaca) pelo padre Equitius.

:: AS COISAS ::
Georges Perec

Assim viviam, eles e seus amigos, em seus pequenos apartamentos abarrotados e simpáticos, com seus passeios e seus filmes, seus grandes jantares fraternos, seus projetos maravilhosos. Não eram infelizes. Alguns prazeres de viver, furtivos, evanescentes, iluminavam seus dias. Certas noites, depois de jantar, hesitavam em se levantar da mesa; terminavam uma garrafa de vinho, beliscavam nozes, acendiam cigarros. Certas madrugadas, não conseguiam dormir e, meio sentados, recostados contra os travesseiros, um cinzeiro entre eles, conversavam até de manhã. Certos dias, passeavam batendo papo horas inteiras. […] Bastava estar ali, na rua, num dia de frio seco, de muito vento, bem agasalhados, no cair da tarde, se dirigindo sem pressa, mas em bom passo, a uma casa amiga, para que o menor de seus gestos — acender um cigarro, comprar um saquinho de castanhas assadas, se esgueirar no tumulto de uma saída de estação de trem – lhes parecesse a expressão evidente e imediata de uma felicidade inesgotável.

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Agradecimentos
Aos de sempre. Obrigada.

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“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado — logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie Avari, a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)   ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e o To Fu, que ganhou o direito de trazer um tufo de nenúfares e furar a fila. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para hortalica@gmail.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja — e nem queira ser — Kudno Mojesic.

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