A protest against Brazil’s president, Dilma Rousseff, in Brasilia on Monday. Credit: Andressa Anholete/Agence France-Presse — Getty Images

A protest against Brazil’s president, Dilma Rousseff, in Brasilia on Monday. Credit: Andressa Anholete/Agence France-Presse — Getty Images

The New York Times
March 26, 2016

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — If you’re in Brazil these days, you shouldn’t wear red. Or grow a beard. In the current political climate, you’ll risk being tagged as a Communist and a supporter of the leftist Workers Party. You could be bullied and called mortadela (a sausage commonly regarded as a poor man’s food).

On the other hand, I wouldn’t wear the yellow-and-green jersey of the Brazilian soccer team, either. That could get you mistaken for a coxinha (fried chicken dumpling), a nickname given, inexplicably, to those calling for President Dilma Rousseff’s ouster. Nowadays, coxinhas hate the government — and mortadelas — with a passion most people reserve for someone who stole their parking space.

How did it come to this? The political situation in Brazil right now is a blend of “House of Cards” and “Game of Thrones.” The new season began on March 4, when Luiz Inácio Lula da Silva (popularly known as Lula), the former president and the distinguished leader of the Workers Party, was taken into custody by the Federal Police. He was questioned as part of an investigation into a sprawling graft scheme that has implicated many of his allies, including his former chief of staff and the treasurer of the Workers Party. Mr. da Silva gave about three hours of testimony, and then public prosecutors sought his arrest on suspicion of money laundering. (The warrant is still pending in the court.)

When he was released from questioning, the country was on fire. On one side, people celebrated, either out of joy that even a former president could be held accountable by the law or out of hatred for the Workers Party and Ms. Rousseff, Mr. da Silva’s handpicked successor, who is facing impeachment proceedings in Congress over allegations that she manipulated the state budget. On the other side, Mr. da Silva’s supporters worried that corporate media outlets, along with the judiciary and opposition parties, might be orchestrating a coup to remove leftists from power and put Brazil back in the hands of conservatives. (It doesn’t help that some of the people calling for Ms. Rousseff’s impeachment are also in favor of a military intervention.)

Since then there have been more cliffhangers. On March 13, more than a million people took to the streets across the country to protest the government. Three days later, Ms. Rousseff appointed Mr. da Silva as her chief of staff, a move that could shield him temporarily from prosecution because ministers can be judged only by Brazil’s highest court. On the same day, a federal judge leaked the wiretap recording of a telephone call between Ms. Rousseff and Mr. da Silva, in which she informed him that she would send the appointment papers “in case they are needed.” Critics say this proves the nomination’s purpose was to protect the former president from arrest; the president’s office says Ms. Rousseff had been misunderstood. Huge protests and counterprotests have clogged the streets since then.

For those who still support Ms. Rousseff, the judge’s decision to leak the audio recordings was outrageous, intended to incite demonstrations, and suggests that a handful of judges are willing to violate the privacy and civil liberties of high-level officials in order to bring down the government. Even many legal experts have said that the judiciary has breached protocol and acted outside the law, strongly suggesting that the release of intercepts is part of a coup. Government supporters also fear that the political crisis could create a political void that is filled by opportunists from the extreme right.

Both sides, it seems, have their own fears for the country’s future and their own versions of reality. The polarization between mortadelas and coxinhas has gotten so bad that you can’t even take your dog for a walk without hearing cries of “Fora Dilma!” (“Out with Dilma!”) or “Não vai ter golpe” (“There will be no coup”). In fact, a dog was attacked last week in Rio de Janeiro for wearing a red bandanna. Sometimes the angry opposition sounds like hysterical soccer fans: Every time Ms. Rousseff speaks on the evening newscast, people lean out their windows to bang pots, and drivers honk their horns in a sign of protest.

That is what frightens me. The frenzy seems to be escalating on both sides. It would be better now for Brazilians to calm down, listen carefully to one another (without pot-banging or blind alarmism) and let the criminal investigations run their course, provided they are carried out according to the law. It’s time to believe in the strength of our democratic institutions. And in the ideological neutrality of our dogs.

Lula e o frango

Posted: 22nd março 2016 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags: , , , ,

O Estado de São Paulo – Caderno 2
21 de março de 2016

por Vanessa Barbara

A essa altura, todo cidadão que se preze já conhece a história do frango. Se há um ponto alto no depoimento do ex-presidente Lula para a Polícia Federal, ocorrido no início do mês, é o momento em que ele descreve uma viagem para Nova York realizada em 2003.

Lula afirma que a diária paga pelo governo era muito baixa, de modo que alguns seguranças levaram comida para o quarto do Waldorf Astoria – mais especificamente, frango com farinha. “Eles imaginaram que o cofre era o micro-ondas e colocaram o frango lá dentro, e não conseguiram abrir o cofre, acho que o frango deve estar lá até hoje ou o cara do hotel encontrou o frango”, ele conta, sabe-se lá a troco de quê. O delegado da PF concorda e diz que até hoje não é possível pagar um hotel decente com a verba repassada pelo Poder Executivo.

O depoimento segue nesse tom um tanto amigável e gratuito, como um interrogatório de filme no qual se prepara o terreno para extrair confissões. Ler a íntegra da transcrição, um documento de 109 páginas recentemente divulgado pela imprensa, é uma atividade surreal de lazer que foi executada por muita gente em busca de alívio para a insônia.

Muitos consideraram o depoimento de Lula uma excelente montagem de uma peça de Teatro do Absurdo, escrita por um autor situado entre Beckett e Stoppard. Em certos momentos, há apenas nonsense, como quando ele diz que o papel do Instituto Lula é “tentar mostrar para as pessoas que é possível pescar”, ou quando confessa ficar “chateado de ver um delegado de Polícia Federal se preocupar com pedalinho”. Diante de um questionamento obscuro, ele diz: “Não entendi a pergunta. Dormiu pouco essa noite?”.

Em linhas gerais, o tédio domina. Uma das indagações feitas pelo delegado é: “Mas o que cansa mais, estar fora do país ou viajar para aquele país?”. A resposta: “Eu acho que o que cansa mais é o avião mesmo, é desgastante”.

Não estou aqui tecendo juízos de valor sobre o conteúdo, mas afirmando que a transcrição tem inegáveis qualidades literárias. Quem duvidar que recorra a esta cena, que menciona um ex-prefeito petista: “O senhor sabe se o José Fillipi costuma usar um serviço de táxi com o mesmo taxista?”, pergunta o delegado, de forma inesperada. Lula: “Serviço de quê?” Delegado: “Táxi, táxi…” Declarante: “Eu não sei, querido.” Delegado: “Não sabe se ele anda de táxi?” Lula: “Não sei.” Delegado: “Sabe se tem algum taxista que é amigo dele?”

Ou este outro diálogo, travado entre o delegado e um advogado de defesa:

Delegado: “Eu só posso fazer perguntas se eu tiver investigando a pessoa sobre quem eu estou perguntando?” Defesa: “Então, eu acredito que sim.” Delegado: “Não.” Defesa: “Porque a partir do momento que o senhor está fazendo uma pergunta em relação ao advogado, o senhor está investigando o advogado.” Delegado: “Não”. Defesa: “Sim.” Delegado: “Não.” Defesa: “Está.”

É quase um esquete do Monty Python.

O Estado de São Paulo – Caderno 2
14 de março de 2016

por Vanessa Barbara

Rumo à total reescrita da música popular brasileira, decidimos dar curso à experimentação semântica que se iniciou na semana passada com o estudo do avô no cancioneiro nacional e seguiu, incólume, na exploração de outras e mais revolucionárias possibilidades. Maravilhado, um leitor escreveu para agradecer pela lição de vida e para informar suas mais recentes descobertas, entre as quais: “Solto a vó nas estradas/ Deixo a velha pra lá” (Milton Nascimento).

Ora, todos os que já se debruçaram sobre o tema sabem que o método-avô leva automaticamente ao Corolário do Umbigo, que prevê a troca de “amigo” por “umbigo”, sem qualquer prejuízo estético.

Vejam: “Umbigo é coisa pra se guardar/ Debaixo de sete chaves” (Milton Nascimento). Este exemplo, embora destituído de sentido, mostra um carinho singular pela referida depressão cutânea.

Há outros mais complexos, que o leitor haverá de encontrar: “Ter um umbigo/ Na vida é tão bom ter umbigos/ A gente precisa de umbigos no peito/ Umbigos no pé” (Balão Mágico). Ou mesmo: “Umbigos para sempre é o que nós iremos ter” (Agnaldo Rayol) e “Eu quero ter um milhão de umbigos/ E bem mais forte poder cantar” (Roberto Carlos).

Elementos não faltam para corroborar nossa teoria, recentemente chamada por Zé Miguel Wisnik de “revolucionária”, “adiposa” e “comprometida com os grandes temas”.

Em uma fase subsequente deste estudo, ainda em busca de financiamento, decidimos trocar “samba” por “panda”, com resultados até que ecológicos, como em “Quem não gosta de panda bom sujeito não é” (Dorival Caymmi) e “Não deixe o panda morrer/ Não deixe o panda acabar” (Alcione). A matéria é polêmica, sobretudo quando dedos são apontados: “Agora eu sei/ Que toda vez que o avô existe/ Há sempre um panda triste” (Baden Powell).

Por fim, há que se trocar “caminho” por “cominho”. Um exemplo: “É pau, é pedra/ É o fim do cominho.” (Tom Jobim)

Com a substituição, mesmo o pop nacional ganha significados poéticos jamais suspeitados: “Meu cominho é cada manhã/ Não procure saber onde estou/ Meu destino não é de ninguém/ E eu não deixo meus passos no chão.” (Capital Inicial)

A poesia moderna também não fica de fora, demonstrando apreço precoce pelo Código de Defesa do Consumidor: “Tinha uma pedra no meio do cominho/ No meio do cominho tinha uma pedra.” (Drummond)

Por fim, na voz do Rei Roberto, descobre-se o hino definitivo desse condimento oleaginoso: “Um dia o ar se encheu de amor/ E em todo o seu esplendor as vozes cantaram/ Seu canto ecoou pelos campos/ Subiu as montanhas e chegou ao universo/ E uma estrela brilhou mostrando o cominho.” (Roberto Carlos)

Em tempos como estes, em que pouca coisa faz sentido, talvez a saída seja apelar para o lirismo botânico: “Você me pergunta/ Aonde eu quero chegar/ Se há tantos cominhos na vida/ E pouca esperança no ar” (Raul Seixas).

O avô na MPB

Posted: 14th março 2016 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags:

O Estado de São Paulo – Caderno 2
7 de março de 2016

por Vanessa Barbara

Em seus esforços para a sistematização dos estudos musicológicos no Brasil, pesquisadores de todas as filiações teóricas parecem negligenciar um forte elemento identitário, um fator que perpassa todas as manifestações melódicas nacionais sem distinção: o avô.

Muniz Sodré citou o negro, José Ramos Tinhorão falou em transculturação, Sérgio Cabral mencionou Isaurinha Garcia, mas o avô, coitado, continua esquecido. É hora de reparar essa injustiça. Nesta crônica, falaremos sobre o pai do pai no cancioneiro nacional, conforme seus grandes intérpretes.

Qualquer canção permite a substituição de “amor” por “avô”. Vejam: “Cantarei sozinho imerso em minha dor/ A valsa de quem não tem avô” (João Gilberto)

Ou: “Ah! se ela soubesse que quando ela passa/ O mundo sorrindo se enche de graça / E fica mais lindo por causa do avô.” (Tom Jobim)

Na verdade, com a adoção do método-avô, as canções adquirem novos significados e se abrem para a intertextualidade. As letras, às vezes superficiais, assumem maior complexidade semântica e podem refletir sobre a efemeridade da vida:

“Avô igual ao teu eu nunca mais terei/ Avô que eu nunca vi igual/ Que eu nunca mais verei/ Avô que não se perde/ Avô que não se mede/ Que não se repete.” (Cidade Negra)

Ou: “Eu quero cantar o avô/ Antes que o avô acabe.” (Chico Buarque)

Em inúmeros casos, comprova-se a jocosidade do compositor, que anteviu a interpretação avoenga e se apropriou desta. Mesmo os músicos mais consagrados podem ceder à galhofa, fazendo uma deselegante menção à falta de condicionamento físico do pobre senhor: “Chego a mudar de calçada/ Quando aparece uma flor/ Dou risada do grande avô.” (Chico Buarque)

Ou: “Só não poderá falar assim do meu avô/ Este é o maior que você pode encontrar.” (João Gilberto)

Os exemplos são infinitos e o leitor poderá tirar a prova por si mesmo, bastando apenas um rádio de pilhas e algum pendor investigativo.

No processo, pode inclusive se deparar com evidências criminais, como nos versos: “Permita que o avô/ Invada a sua casa, coração” (Cidade Negra) e “O avô faz a gente enlouquecer/ Faz a gente dizer coisas/ Pra depois se arrepender” (Grupo Raça). E, no exemplo mais assustador de todos, pertencente ao ramo da pirotecnia: “Tá pegando fogo o nosso avô/ Me leva pra onde você for.” (Só Pra Contrariar)

E que ninguém nos acuse de preconceito de gênero, pois é também possível trocar “a voz” por “avós”. Exemplo: “Não me deixe só/ Que eu tenho medo do escuro/ Eu tenho medo do inseguro/ Dos fantasmas da minha avó.” (Vanessa da Mata)

Este exercício pode alçar as mais diversas canções a uma excelência poética jamais imaginada. Arrisco dizer que, com um pouco de esforço, será possível atingir uma sofisticação semântica quase bíblica; afinal, ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem avô eu nada seria.

O Estado de São Paulo – Caderno 2
29 de fevereiro de 2016

por Vanessa Barbara

Sendo a data mais singular do nosso calendário, 29 de fevereiro marca também o Dia Mundial das Doenças Raras, promovido pela ONG Eurordis.

De forma geral, doenças raras são distúrbios que acometem uma a cada 2 mil pessoas, e que, por esse motivo, não são alvo prioritário de investimentos em pesquisas em busca da cura ou tratamento. O diagnóstico também é difícil; estima-se que os pacientes com esses distúrbios só recebam um parecer correto após visitar sete médicos. Apesar disso, há cerca de 7 mil doenças raras em todo o mundo, afetando 560 milhões de pessoas. A maioria é causada por um defeito genético e não tem cura.

Algumas são mais conhecidas, como espinha bífida, fibrose cística e Huntington. Outras, nem tanto, como a ictiose arlequim, na qual há um engrossamento da pele do bebê e a formação de escamas que se racham facilmente, e a fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP), que causa a formação de ossos no interior dos músculos, tendões, ligamentos e tecidos conectivos.

O símbolo de conscientização adotado pelo movimento é uma fita com listras de zebra, por motivos óbvios.

Imagine o que significa ser portador de uma doença que acomete apenas 10 mil pessoas no mundo, e sentir que se foi sorteado numa loteria cruel. Tenho uma amiga que sabe qual é a sensação; anos atrás, foi diagnosticada com polineuropatia amiloidótica familiar (PAF). É uma doença neurodegenerativa com graves implicações sensitivas, motoras e autonômicas, e que se torna fatal cerca de dez anos após o início dos sintomas.

Cíntia Saggio perdeu a mãe, a avó e um tio para a PAF. Aos 27 anos, vieram os primeiros sinais: ela perdeu a sensibilidade à dor nos pés e a sensibilidade à temperatura do joelho para baixo. Fez o teste genético e detectou a mutação no gene da transtirretina, um erro que faz o fígado produzir uma proteína anômala, suscetível à formação de fibras amilóides que se acumulam nos tecidos.

A progressão natural da doença seria atrofia muscular, paralisia, disfunções gastrointestinais e dores incapacitantes, seguidos de insuficiência cardíaca e falência renal.

O principal tratamento disponível no Brasil é o transplante de fígado, que bloqueia a progressão da doença, mas não reverte as lesões já existentes. Cíntia entrou para a lista de espera e em meses ganhou um órgão novo, num transplante todo pago pelo SUS. Como seu fígado era estruturalmente normal, foi doado para outra pessoa.

Hoje ela está bem, toma imunossupressores e faz parte da diretoria da Associação Brasileira de Paramiloidose (ABPAR).

Casos como o de Cíntia reforçam a importância da doação de órgãos e do investimento em pesquisas, ainda que voltadas para doenças raras. Sabe-se, por exemplo, que o estudo de defeitos congênitos pode contribuir para campos mais amplos; a pesquisa do tumor de Wilms serviu para entender a biologia genética e molecular do câncer.

Podem agradecer às zebras.

O Estado de São Paulo – Caderno 2
22 de fevereiro de 2016

por Vanessa Barbara

Recebi esses dias um portentoso envelope contendo a convenção de condomínio e o regimento interno do meu novo prédio. Naturalmente, como todos os cidadãos dignos e cumpridores das leis, peguei uma banana e fui para a rede da varanda ler com afinco todas as cláusulas e entrelinhas desses documentos.

Descobri que a minha simples existência no edifício é uma violação expressa a pelo menos nove itens do regimento e à cláusula quinta da convenção, que adverte contra elementos que comprometam “a segurança, a solidez, a tranquilidade, a categoria e o nível moral do edifício”.

Quem lê sempre estas crônicas sabe que o caso é perdido; solidez e categoria não são meus pontos fortes, ainda que tranquilidade e favorabilidade estejam em alta. Quanto ao nível moral, sou seguidora do imperativo categórico de Kant, mas não há no documento qualquer referência à doutrina ética em vigor no condomínio.

No regimento interno, os motivos para a minha expulsão sumária são tantos quanto são os erros de vírgula no texto. Este item resume o meu drama: “Não usar […] os apartamentos para fins incompatíveis com a decência e o sossego do edifício, ou permitir sua utilização por pessoa de vida irregular, antissocial, passível de representação penal e política, ou que, de qualquer forma ou modo, possa prejudicar a boa ordem ou afetar a reputação do condomínio ou do edifício”.

Mais uma vez, sou culpada de quase todos os itens: a vida irregular (hábitos de sono absolutamente excêntricos), os modos antissociais (só tiro o pijama para trocar por outro), a probabilidade de sofrer indiciamento político (frequência acima da média em protestos com baderna) e, por fim, o prejuízo total à reputação do condomínio (corintiana, mandaquiense, não tem carro, gosta de pegar coisas do lixo etc.).

Uma das normas proíbe a permanência de pessoas “estranhas” em áreas comuns, e outra diz que nesses locais deve-se evitar “situações de constrangimento”. Sendo o constrangimento uma característica social que me define, posso inferir, sem margem para dúvidas, que é melhor eu não sair do apartamento.

Só que há um porém: o regimento também afirma que o livre direito de fruir da sua unidade autônoma fica restrito “de forma que não seja praticado em seu apartamento qualquer ato que comprometa o bom nome, […] bem como a moral e os bons costumes, dos demais moradores, conforme previsto em lei”. (Que lei é essa que dispõe sobre o grau de decência tolerado dentro de casa?)

Fala-se em “rigorosa disciplina”, “decoro”, “pudor”, “boa ordem” e “comportamentos estritamente familiares”. Há proibições bem específicas, tais como a de dançar no hall social – essa já violei – e fazer lições de escola na saleta comum. (A redação desta crônica foi efetuada em conformidade com o regimento).

Em caso de reincidência, o condômino está sujeito a receber multa conforme o item 17.5, que não existe.

The International New York Times
February 18, 2016

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — Last December, I suddenly found myself in possession of two bottles of the most precious liquid in town: Exposis Extrême, an extra-strong insect repellent. It’s deemed the best protection against the Aedes aegypti mosquito, which transmits dengue, chikungunya and, now, the Zika virus. Its active ingredient is icaridin, which also repels ticks and the mosquitoes that carry malaria. I’d bought the bottles earlier in the year, during an outbreak of dengue fever, in the hope that a high-quality bug spray would keep me safe from the virus. (It didn’t. I came down with dengue, anyway.)

As soon as the Brazilian government confirmed in late November the link between Zika and microcephaly — a rare, incurable neurodevelopmental disorder in newborn babies — pregnant women rushed to drugstores and cleared them out of their supply of the spray. For more than a month, the shelves remained empty. People put their names on waiting lists, tried to bribe drugstore employees and ordered overpriced bottles online. On the black market, a bottle of Exposis Extrême reached two or three times the official price.

My sister-in-law is four months pregnant with a baby girl and she unabashedly took part in the frantic search for Exposis Extrême. Like an undercover narcotics agent, my brother received a tip: A drugstore had received a re-up. He ran out in the hope of getting his wife a fix — only to find that it was just a rumor. So my sister-in-law spent part of the summer wearing long-sleeved shirts and trousers. It was only in the middle of January that they were finally able to buy six small bottles of Exposis Extrême for about $15 each. (Brazil’s monthly minimum wage is $224.)

Health officials from the United States, Canada and other countries have warned pregnant women to postpone trips to Latin America and the Caribbean. But while pregnant women from rich countries are being urged not to travel, women from poor countries are being urged not to become pregnant. The authorities in Ecuador, Colombia and El Salvador have all advised avoiding pregnancy. Here in Brazil, it’s not official policy. But gynecologists — including mine — are strongly discouraging it, at least while it’s summer.

The level of concern Brazilians feel depends on several factors. Of course, pregnant women everywhere are worried. But geography matters: In the richer southeast, where I live, Zika is still no match for dengue fever, which is both more common and more lethal — last year, 1.6 million Brazilians were infected; 863 died. In São Paulo, concern about Zika is still seen as overblown. My sister-in-law recently went to see two different doctors about a rash and both told her that they wouldn’t know how to diagnose a Zika infection because they had never treated anyone with the disease.

Money also matters. Wealthier women can afford as many bottles of insect repellent as they can get their hands on (not to mention ultrasound exams to find out if their unborn children are showing signs of microcephaly); the poorest can count only on chance. And not many women can follow the example of a pregnant middle-class woman from Rio de Janeiro who recently packed her bags and left for Europe, planning to stay abroad at least through the end of her first trimester.

It seems that money can even buy the illusion of safety. My gynecologist told me about one of her pregnant patients, who, despite doctor’s orders, recently traveled three times to northeast Brazil, where most of the Zika infections have been reported. When my doctor asked the woman why she kept going to the area despite the risks of contracting the virus, she explained that she didn’t worry because she always stays in upscale resorts.

The idea that mosquitoes can’t make their way into four-star hotel rooms is absurd, but so is much of the thinking here these days when it comes to the Zika virus. More than fear, confusion has been the dominant response: In WhatsApp groups and on social networks, people have spread rumors that Zika can cause serious neurological complications in infected children or that the government has been hiding the real number of victims or that the outbreak was caused by genetically modified mosquitoes. These claims have been debunked, but Brazilians are still lacking strong, categorical truths. The number of cases is still being disputed and a causal relationship between the virus and microcephaly has not been scientifically established.

There are even fears that foreign athletes will pull out of the 2016 Olympic Games in Rio in August. That’s not an unfounded concern. Some governments have told their teams that they can stay home if they’re worried about diseases. I prefer a more amusing possibility: that the Brazilian committee is lobbying to include a new sport in this year’s Games, a kind of tennis to be played with electric mosquito swatters. There could be three categories: dengue, chikungunya and Zika.

Rumors aside, there’s not much that we in Brazil can do now but wait for more studies and, maybe a few years down the line, a vaccine. For the moment, there’s no alternative plan for most Brazilian women but to spend another season wearing long sleeves, avoiding pregnancy and getting as much Exposis Extrême as they can find and afford.


Vanessa Barbara is a columnist for the Brazilian newspaper O Estado de São Paulo, the editor of the literary website A Hortaliça and a contributing opinion writer.

O Estado de São Paulo – Caderno 2
15 de fevereiro de 2016

por Vanessa Barbara

Quando eu era pequena, a ideia de me machucar e ter de tomar pontos era seguramente mais temível que a morte. Lembro de um menino da minha rua que cortou o pé durante um baile de Carnaval e foi para o hospital ser costurado – a visão de um médico malévolo passando a máquina Singer no torso de um ser humano consciente me perseguiu durante noites a fio, e até hoje eu não quis ficar sabendo se ele sobreviveu.

Conheço um rapaz que, aos 10 anos de idade, quebrou o braço descendo a rua de bicicleta, mas só começou a chorar quando lhe informaram que iria para o hospital, onde, na cabeça dele, a amputação seria uma forte possibilidade. Quanto a mim, lembro de ter caído de testa no chão da escola e ouvir uma professora dizer: “Vai formar um galo. Alguém traga uma faca, rápido.”

A noção de dor entre as crianças é um troço curioso. Em debates exaltados, elas compartilham histórias de suas cicatrizes feito veteranas de guerra: “Doeu muito quando você caiu de cabeça?”, ouvi um menino perguntar para o outro. Este apenas fez que sim, circunspecto. “Você chorou?”, questionou um terceiro, para indignação do mártir, que respondeu com um sonoro: “Não!”, e mudou de assunto. “Alguém aqui já levou picada de vespa? Parece que é muito pior do que de abelha.”

Tem sempre alguém que sabe de um vizinho que tem um primo que conhece um moleque que engessou o corpo inteiro depois de cair do gira-gira; confrontada com uma miríade de boatos sangrentos, nunca fui capaz de lidar com aqueles que envolviam pinos, torniquetes, cauterizações e pazinhas de mertiolate.

Meses atrás, narrei aqui um grande tombo que, já adulta, tomei andando de bicicleta, e a reação de uma menina solícita que testemunhou a queda e decidiu abrir o berreiro por pura solidariedade. (“Você chorou?”, perguntaria o leitor. “Não!”, eu respondo, e vamos mudar de assunto: alguém aí já foi picado por um marimbondo? Parece que é pior do que vespa.)

Todos os que convivem com crianças sabem que, após uma queda, a estridência e a duração do choro é diretamente proporcional à cara de preocupação dos adultos presentes. Por isso, em caso de emergência, convém manter a calma para não impressionar a criança em excesso. (As palavras “botar o braço no lugar” e “sem anestesia” definitivamente não são recomendadas.)

Outro dia, meu sobrinho de 5 anos mordeu o próprio dedo enquanto comia uma esfiha de calabresa. Ainda que ele tenha anunciado o incidente aos risos, mostrando a marca da dentada, poucos segundos bastaram para que ele virasse para o pai e perguntasse se aquela dor era “tão grande quanto a do filme”.

O filme em questão, que ele teve o azar de entrever justamente no pior momento, era 127 Horas, no qual um alpinista fica preso entre duas rochas e é obrigado a decepar o próprio braço com um canivete.

“Acho que a do filme é um pouco pior”, respondeu o pai. E mudou de assunto.

hqdefault

O Estado de São Paulo – Caderno 2
8 de fevereiro de 2016

por Vanessa Barbara

A ideia desta crônica era escrever sobre o MC Bin Laden, expoente do funk paulistano nascido em Vila Progresso, na zona leste, e que tem causado comoção com um videoclipe filmado na laje, de nome “Tá Tranquilo, Tá Favorável (Part 2)”. Só que um leitor mais ríspido poderia parar de ler por aqui e fazer o comentário: “… Lixo cultural. Esse tipo de porcaria musical é a prova de que a civilização se encontra em iminente derrocada, conforme comprovado semana após semana por esta adiposa cronista.”

Pensei em descrever como é engraçado quando, no clipe, MC Bin Laden sai teatralmente de dentro de uma caixa d’água, juntando-se a um rapaz de moletom, outro com um braço pra fora da camiseta e mais figuras notáveis, e começa a cantar: “Tá tranquilo, tá favorável” com a ajuda de uma percussão unicamente vocal. Ao mesmo tempo, eles dançam ritmos desencontrados e fazem um passinho assaz incongruente. (Alguns leitores não acharão graça nenhuma, aproveitando para observar que Heitor Villa-Lobos jamais filmaria um clipe na laje.)

Caso todas as fibras do meu ser não estivessem trabalhando para me demover dessa ideia de crônica, eu diria também que há pouco saiu uma versão axé do vídeo, tão surreal quanto a outra, com destaque para um camarada que batuca num cano de plástico com uma minivassoura, enquanto – vocês estão preparados? – enquanto ostenta um tênis branco amarrado em torno do pescoço. (“Tanta coisa importante neste mundo e ela escrevendo sobre isso.”)

Eu sei: é Carnaval e muitos de nós resolveram abrir mão do sentido. Mas isso também já é demais. Então talvez seja melhor nem mencionar uma foto de MC Bin Laden posando tranquila e favoravelmente ao lado da estátua de Drummond, e o comentário de um amigo meu: “Esse cara é um gênio. Quer dizer, os dois são. É preciso reconhecer que Drummond também fez coisas fantásticas.”

É Carnaval, e o quanto já me diverti com essa besteira nos últimos dias só perde para um vídeo do YouTube com o título: “Hoje é segunda-feira? Não, é sábado!”.

Nele, quatro crianças com bermudas de cores diferentes dançam loucamente ao som de um forró em velocidade ultrarrápida. Um deles planta bananeira e quase cai em um buraco. O vídeo tem pouco mais de meio minuto, mas tem a duração filosófica de toda uma vida. Aos onze segundos, o mesmo menino (de bermuda azul) tira um cachorro para dançar – e o animal reage de forma extasiada. Tanto que, logo depois, quando ele larga o cão, este parece se ressentir do abandono e tenta a todo custo ser tirado de novo para o baile.

Nos segundos finais, o menino de bermuda verde passa dançando com uma cuia sobre a cabeça, sem nenhum motivo plausível.

Mesmo para quem odeia samba, acha o funk deplorável, o axé um gênero sem valor e o forró a prova viva da mediocridade humana, a ideia de dançar com um cachorro tem lá os seus atrativos.

Talvez porque hoje seja segunda-feira, mas pareça mais ser sábado.

A arte de lamber o nariz

Posted: 7th fevereiro 2016 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags: ,

O Estado de São Paulo – Caderno 2
1 de fevereiro de 2016

por Vanessa Barbara

Quando somos crianças, é muito fácil saber o que a sociedade exige de nós enquanto seres humanos. Os atributos básicos que uma pessoa precisa ter para se destacar na vida são claros, específicos e até sensatos – por exemplo: tem aquele menino que consegue encostar a língua no nariz. Desde seu ingresso na escola, ele tem o respeito absoluto de todo o corpo discente, ao qual não se furta de fazer exibições periódicas de sua extraordinária habilidade. Seu objetivo a longo prazo é treinar até conseguir encostar a língua no olho, no que encontra o entusiástico apoio dos colegas.

Tem sempre alguém que ganha notoriedade por projetar espessas quantidades de suco salivar a grandes distâncias. O menino que cospe longe é ladeado em fama pelo menino que consegue cuspir de lado, por outro que sopra bolhinhas de saliva e por aquele que acerta praticamente todos os arremessos de amendoins na boca. Eles são temidos e reverenciados como se fossem membros de uma liga de super-heróis, verdadeiras celebridades da nossa infância que só não ganharam bustos comemorativos porque é muito difícil esculpir rostos humanos em massinha.

Uma das primeiras provações que encontramos na vida acontece ao entrar numa escola nova e ser indagado por um colega: “Você consegue erguer uma sobrancelha só? E dobrar a língua? Você consegue abanar as orelhas? Mexer o couro cabeludo? Afinal, você sabe fazer qualquer coisa de interessante?”

Eu nunca consegui. Não era capaz de mover os dedinhos de forma independente, nem de lamber o cotovelo. Conheci crianças que dobravam o indicador de forma anormal, que conseguiam inflar a barriga como se estivessem grávidas e mexiam a ponta do nariz feito coelhos. Houve uma vez um menino que soprava ar pelos olhos. (É possível que você não o tenha conhecido, mas só ouvido falar dele, como uma narrativa folclórica passada de geração em geração.)

Mas afinal, o que aconteceu com esses mitos da nossa infância? O que foi feito deles? Fico imaginando essas figuras épicas adentrando um escritório no primeiro dia de trabalho e tentando impressionar os colegas tocando “House of The Rising Sun” com as axilas. Ou respondendo a perguntas de uma entrevista de emprego com a voz do Pato Donald, só para causar boa figura.

Tive uma amiga que conseguia arrotar frases inteiras. Ela entoava versos do Hino Nacional com arrotos, e por isso foi a menina mais popular da turma até mais ou menos os 12 anos. Então as regras mudaram. Da noite para o dia, ter o cabelo liso, um moletom de marca ou, atualmente, um Samsung Galaxy S6 Edge tornou-se mais importante do que ser capaz de lamber o dedão do pé. De repente minha amiga não era mais tão popular assim. E esses nossos verdadeiros mitos da infância se perderam no vestibular, em cursos de gerenciamento financeiro e departamentos de marketing.

Nos coquetéis da firma e nas conversas de bebedouro, ninguém se lembra de que um dia foram heróis.