O Estado de São Paulo – Caderno 2
15 de fevereiro de 2016

por Vanessa Barbara

Quando eu era pequena, a ideia de me machucar e ter de tomar pontos era seguramente mais temível que a morte. Lembro de um menino da minha rua que cortou o pé durante um baile de Carnaval e foi para o hospital ser costurado – a visão de um médico malévolo passando a máquina Singer no torso de um ser humano consciente me perseguiu durante noites a fio, e até hoje eu não quis ficar sabendo se ele sobreviveu.

Conheço um rapaz que, aos 10 anos de idade, quebrou o braço descendo a rua de bicicleta, mas só começou a chorar quando lhe informaram que iria para o hospital, onde, na cabeça dele, a amputação seria uma forte possibilidade. Quanto a mim, lembro de ter caído de testa no chão da escola e ouvir uma professora dizer: “Vai formar um galo. Alguém traga uma faca, rápido.”

A noção de dor entre as crianças é um troço curioso. Em debates exaltados, elas compartilham histórias de suas cicatrizes feito veteranas de guerra: “Doeu muito quando você caiu de cabeça?”, ouvi um menino perguntar para o outro. Este apenas fez que sim, circunspecto. “Você chorou?”, questionou um terceiro, para indignação do mártir, que respondeu com um sonoro: “Não!”, e mudou de assunto. “Alguém aqui já levou picada de vespa? Parece que é muito pior do que de abelha.”

Tem sempre alguém que sabe de um vizinho que tem um primo que conhece um moleque que engessou o corpo inteiro depois de cair do gira-gira; confrontada com uma miríade de boatos sangrentos, nunca fui capaz de lidar com aqueles que envolviam pinos, torniquetes, cauterizações e pazinhas de mertiolate.

Meses atrás, narrei aqui um grande tombo que, já adulta, tomei andando de bicicleta, e a reação de uma menina solícita que testemunhou a queda e decidiu abrir o berreiro por pura solidariedade. (“Você chorou?”, perguntaria o leitor. “Não!”, eu respondo, e vamos mudar de assunto: alguém aí já foi picado por um marimbondo? Parece que é pior do que vespa.)

Todos os que convivem com crianças sabem que, após uma queda, a estridência e a duração do choro é diretamente proporcional à cara de preocupação dos adultos presentes. Por isso, em caso de emergência, convém manter a calma para não impressionar a criança em excesso. (As palavras “botar o braço no lugar” e “sem anestesia” definitivamente não são recomendadas.)

Outro dia, meu sobrinho de 5 anos mordeu o próprio dedo enquanto comia uma esfiha de calabresa. Ainda que ele tenha anunciado o incidente aos risos, mostrando a marca da dentada, poucos segundos bastaram para que ele virasse para o pai e perguntasse se aquela dor era “tão grande quanto a do filme”.

O filme em questão, que ele teve o azar de entrever justamente no pior momento, era 127 Horas, no qual um alpinista fica preso entre duas rochas e é obrigado a decepar o próprio braço com um canivete.

“Acho que a do filme é um pouco pior”, respondeu o pai. E mudou de assunto.