O sol e a cidade

Postado em: 22nd janeiro 2020 por Vanessa Barbara em Crônicas
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(imagem: Anna Carolina Bueno)

Itaú Cultural
Brechas Urbanas, jan. 2020

por Vanessa Barbara

Reza a lenda que existe uma brincadeira popular no Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo (SP), que consiste em se aproximar das beiradas do edifício, espiar para fora e ficar se perguntando: “É pedaço de céu ou pedaço de prédio? É céu ou pedaço de prédio?”. Aparentemente na região há muitas fachadas cegas de edifícios (face externa sem janelas) que podem ser erroneamente confundidas com lacunas de céu, e a graça estaria em tentar adivinhar o que é concreto e o que é troposfera.

É fato que, na cidade grande, se encontram facilmente lojas que vendem bigodes postiços, sorvetes de gorgonzola e roupas blindadas, além de restaurantes búlgaros, dentistas especializados em coelhos e cursos de sumô – mas difícil mesmo é encontrar o horizonte. Para onde quer que se olhe, edificações dos mais diversos formatos e alturas se sobrepõem em uma desordem encardida, fazendo com que os raios de sol tenham de se espremer por frestas e se esquivar de obstáculos variados em sua incansável trajetória pelo céu.

Tomar sol em São Paulo é um trabalho laborioso. Há pouquíssimos parques suficientemente amplos. A maioria de nossas praças parece uma irredutível aldeia gaulesa em meio à invasão do Império Romano: são diminutos baluartes de resistência verde cercados por torres de 20 andares e monumentais shopping centers. Sustentadas pelo furor inabalável do mercado imobiliário, tais obstruções se multiplicam a cada dia e interferem nessa atividade tão nobremente praticada pelos gatos.

Lembro de, anos atrás, tentar tomar sol no parque Buenos Aires com um livro na mão. Tive de mudar de lugar a cada quinze minutos, sempre que o astro rei era bloqueado por um prédio, um poste ou um ponto de ônibus, e terminei a leitura do lado de fora do parque, em cima de uma amurada na calçada da Rua Piauí. Era o último lugar vagamente banhado pelo sol. Pensando bem, é estranho constatar que passei um tempo lendo um livro sentada em plena calçada, enquanto transeuntes se dedicavam a seus afazeres e os carros passavam ruidosamente – aposto que, se deixasse uma caneca vazia ao meu lado, era capaz de alguém jogar uns trocados.

Se os parques e praças são poucos, piscinas públicas há menos ainda. Gosto de “passear” pelo bairro usando o modo satélite do Google Maps só para ver como estamos carentes de parques e piscinas – dá para contar nos dedos os retângulos verdes e azuis, que muitas vezes se encontram dentro de clubes particulares ou condomínios residenciais. Se tivéssemos uma quantidade maior desses espaços, o sol ficaria mais livre para distribuir democraticamente seus raios a todos os cidadãos que os desejassem.

Não somos poucos. São clássicas as imagens de operários sentados no meio-fio, cochilando ou tentando tomar sol em horário de almoço. Há os velhinhos em cadeiras de rodas que saem no fim da tarde em busca de uma dose de quentinho – com ou sem manta de lã nos joelhos –, os bebês recém-nascidos de chapéu colorido, os cachorros com frio, os deprimidos em geral.

Sabe-se que a exposição diminuída ao sol pode levar à deficiência de vitamina D, o que por sua vez aumenta os riscos de osteoporose e doenças cardiovasculares. A falta de sol também pode prejudicar o ritmo circadiano e piorar a depressão sazonal. Não é só um problema de bronzeado, mas de saúde pública. Quando os donos da casa ao lado decidem erguer um sobrado irregular e tapar seu sol – coisa que já aconteceu comigo –, seria preciso reagir como se direitos humanos fundamentais estivessem sendo violados. Caberiam aí uma passeata de trancar as ruas (só que durante o dia, que é para aproveitar o sol) e a instauração imediata de um núcleo jurídico de defesa do direito do cidadão à claridade.

Na época em que eu amamentava, uma das indicações da pediatra e da consultora de aleitamento era tomar sol nos peitos, o que deixaria os bicos mais resistentes a rachaduras e fissuras. Mas como garantir a integridade do nosso instrumento de trabalho em uma cidade como São Paulo? Embora o topless não seja proibido por lei no Brasil, é muito provável que, assim que a mulher ameace tirar a blusa em praça pública, a polícia apareça com três viaturas e uma tropa especial de operações táticas só para detê-la por atentado ao pudor (artigo 233 do Código Penal, que dispõe sobre atos obscenos). Nesse caso, como a cidadã de bem pode garantir o leite das crianças?

Dentro de casa muita gente não consegue obter nem uns poucos minutos de sol. Às vezes de manhã só bate sol na cozinha, acima do fogão, para bronzear a coifa. Ou numa fresta do vitrô do banheiro. Imagino uma mãe recente tendo de segurar o bebê para fora da janela, à la Rei Leão, só para garantir à cria a dose mínima diária de vitamina D. (Nada de aproveitar para fortalecer a pele dos mamilos: ok, já entendemos. Os vizinhos conservadores podem se escandalizar.)

Depois de me mudar de uma casa que foi sufocada pelo puxadinho do vizinho, aluguei um apartamento. Escolhi um prédio específico porque, andando pela rua numa tarde particularmente bonita, vi que o sol vespertino batia nos apartamentos acima do 11º andar. Fiquei bem satisfeita. Mas em questão de meses um novo prédio foi erguido na frente e tapou várias horas de sol nas áreas comuns do meu edifício. Há pouco começaram a construir outro prédio ao lado e passei a temer pela nossa resistência óssea.

Às vezes nem o sol é para todos.


Vanessa Barbara é escritora, jornalista e tradutora. Autora de O Livro Amarelo do Terminal (2008; reportagem), Operação Impensável (2014; romance) e O Louco de Palestra (2014: crônicas), entre outros, já colaborou com os jornais Folha de S.Paulo O Estado de S. Paulo e com a revista piauí. Compõe o time internacional do New York Times. Mantém o site Hortifruti.