Mães à solta

Postado em: 15th novembro 2019 por Vanessa Barbara em Crônicas
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Itaú Cultural
Brechas Urbanas, nov. 2019

por Vanessa Barbara

É comum vê-las olhando para o céu sem motivo aparente, enquanto comprimem os olhos por causa da claridade. Elas têm um aspecto físico que oscila entre o anêmico e o dramático, mas sorriem muito e podem parecer eufóricas ao deparar com uma pomba ou um vendedor de jacas.

São mulheres que tiveram um filho recentemente (dias ou meses atrás) e se viram de uma hora para a outra presas dentro de casa, em um looping infinito de amamentação, arroto compulsório e troca de fraldas, quebrado apenas pelas frágeis e ensejadas sonecas do bebê. Durante as 24 horas do dia, é preciso dar banho, gerenciar as cólicas e ninar a pequena criatura que chora. É preciso passar pomada, limpar o vômito, sugar a meleca do nariz. Quando o neném finalmente cochila, essas mulheres precisam ir ao banheiro, comer, tomar banho e pesquisar no Google: “Meu bebê não pisca, é normal?”. Elas vivem privadas de sono. Para piorar, talvez ainda estejam às voltas com o sangramento pós-parto e precisem trocar as próprias fraldas. Escovar os dentes é um luxo. Abotoar a blusa é descabido.

Um dia, porém, elas conseguem sair na rua por um instante – seja para ir ao banco, seja para ir ao médico, logo após a mamada das 2 horas. E mal conseguem conter o entusiasmo de descobrir que o mundo ainda está lá fora. Elas podem ser vistas gargalhando sozinhas e apanhando flores no chão. Fazem questão de encarar a todos, como se estivessem maravilhadas de interagir com outros seres humanos. Puxam assunto com quem for descuidado o suficiente para permitir o contato visual e cumprimentam ardorosamente desconhecidos na fila do banco. Sentem uma conexão quase que imediata com bilheteiros do metrô, porteiros de guarita e pessoas fantasiadas de fruta. Contam coisas que ninguém lhes perguntou. Necessitam de contato humano e de sentir o vento. Sempre se sentam na cadeira mais alta do ônibus, que é para poder abrir bem as janelas. Uma viagem para outro bairro é como ir de barco até a China.

O cidadão comum deve ficar atento, pois, num primeiro momento, elas podem ter perdido o senso de profundidade das coisas. Às vezes trombam com lixeiras e pedem desculpas; falam alto ou baixo demais, ou se esquecem da pronúncia de certas palavras. Convém tratá-las com paciência e não reparar que botaram a blusa ao contrário.

Se não estão com o bebê a tiracolo, vivem apavoradas de tê-lo esquecido em algum canto. Acham inquietante – perturbadora, até – a leveza de não ter de andar por aí carregando uma barriga enorme ou um bebê fora dela. Confundem o toque de um telefone com choro, ficam logo sobressaltadas e apalpam os arredores para ver se de repente não deixaram o bebê escorregar e cair. Suspiram quando se dão conta de que estão sozinhas – é estranho.

Se estão com o filho no colo, saem apontando os helicópteros no céu e tecendo comentários entusiasmados sobre a cor do cabelo dos passantes. Fazem questão de incluir o bebê nas conversas e tentam (em vão) fazê-lo entender que o arroto não é uma resposta válida para o comentário: “Mas que gracinha!”. Nas lojas, aprendem a pegar moedas na bolsa com a mão esquerda enquanto sacodem um chocalho com a boca.

A despeito do deslumbramento e de sua nítida incongruência social, elas sabem que precisam executar 22 tarefas em seis lugares diferentes entre as 3 e as 4 da tarde, que é quando o prazo de validade expira e o bebê precisa mamar novamente. (Daí a importância de garantir o atendimento preferencial para lactantes, segundo a Lei Federal 10.048/2000.) Por isso podem também ser vistas agindo de forma frenética no supermercado, como se pressionadas por uma bomba-relógio, na tentativa de aproveitar ao máximo os poucos minutos de rua que lhes restam. Cumprem missões feito um míssil teleguiado: primeiro a farmácia (algodão, pomada, antitérmico), depois a padaria (pão e leite), então o mercado (desinfetante, cebola, café) e por fim os adesivos de borboleta, as molas de plástico e os livros felpudos para levar ao bebê.

As mães recentes que vemos à solta na cidade são como aquelas ventanias que trazem chuva. É preciso respeitá-las, ou podem sair por aí arrastando as vacas pelos ares.


Vanessa Barbara é escritora, jornalista e tradutora. Autora de O Livro Amarelo do Terminal (2008; reportagem), Operação Impensável (2014; romance) e O Louco de Palestra (2014: crônicas), entre outros, já colaborou com os jornais Folha de S.Paulo O Estado de S. Paulo e com a revista piauí. Compõe o time internacional do New York Times. Mantém o site Hortifruti.