Anacronismo em família

Postado em: 25th outubro 2019 por Vanessa Barbara em Crônicas
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Itaú Cultural
Brechas Urbanas, out. 2019

por Vanessa Barbara

Em meados da década de 1950, meu avô foi contratado como auxiliar de serviços gerais no recém-inaugurado Parque Ibirapuera. Na função de vigia noturno, uma de suas principais atribuições era percorrer o parque de bicicleta acendendo todas as luzes ­– uma a uma, como eu gosto de imaginar, porém mais provavelmente em blocos. Pela manhã ele refazia o caminho apagando tudo. É curioso pensar que, no passado, já foi necessário que uma alma abnegada saísse por aí acendendo e apagando as luzes de um parque de 1,5 milhão de metros quadrados, coisa que hoje em dia ocorre automaticamente ou, sei lá, apertando um só botão.

Na falta de um diploma pomposo na parede e mesmo sem o ensino fundamental completo – ele parou na quarta série –, meu avô Paulo de Moraes sabia se virar. Começou a trabalhar aos 14 anos em uma oficina de consertos gerais, onde aprendia sobre o funcionamento das máquinas enquanto tirava o pó. (Por isso ganhou o apelido de Vassourinha.) Mais tarde trabalhou com o pai, meu bisavô Marcílio, que não tinha sobrenome e era carpinteiro.

Ao longo da vida, ele fez vários cursos por correspondência e aprendeu a consertar todo tipo de traquitanas, de máquinas de lavar a rádios de pilha, passando por televisões e fones de ouvido. Foi encanador, contínuo e auxiliar administrativo. Também tinha conhecimentos de elétrica, assentava tijolos e remendava telhados. Eu me lembro de ir visitá-lo depois que ele passou por uma cirurgia cardíaca. Ele devia estar em repouso, mas saiu de um enorme buraco no quintal, onde remendava o encanamento. No fim das contas, vô Paulo acabou se tornando técnico de raios X e passou a trabalhar em hospitais. Conta-se que ele ensinava os próprios médicos a examinar chapas de pulmão.

Não é que eu queira me gabar, mas minha família tem vasta experiência em ofícios hoje anacrônicos. Meu bisavô materno, Francisco Maria Lopes, trabalhou na Estrada de Ferro Sorocabana como foguista, ou seja, o encarregado de alimentar a caldeira do trem de ferro a vapor. Ele se acidentou quando duas locomotivas se chocaram e sofreu queimaduras severas em uma das pernas, ficando inválido. Consta que era um exímio tocador de bandolim.

Já minha tia-bisavó, América d’Assumpção Pinto, trabalhou a vida inteira como telefonista na Companhia Telephonica Brasileira. Na época, grande parte das ligações não era automática, o que significa que precisavam da intermediação de uma telefonista. “Número, faz favor?” deve ter sido a frase que ela mais disse na vida, incumbindo-se logo em seguida de estabelecer a ligação com o telefone solicitado.

Tia América foi a primeira mulher da família a estudar e trabalhar fora. Era combativa e participou dos protestos contra a execução dos imigrantes anarquistas Sacco e Vanzetti, em 1927, nos Estados Unidos. Começou como telefonista em 1934 com um ordenado de 120 mil réis; logo se efetivou no cargo e foi alocada para a Estação Sete, que cobria a região da Bela Vista. Depois se estabeleceu no departamento de interurbanos: às vezes, dava plantão na estação da Luz ou na estação Sorocabana, hoje Júlio Prestes.

Naquela época, os números de telefone tinham apenas seis algarismos. O da casa da minha tia era 37-3648, e ela foi uma das primeiras na vizinhança a ter um aparelho. Chegou ao cargo de telefonista-chefe e recebeu o emblema do sino de ouro por 30 anos de serviço. Quando se aposentou, ganhou um aspirador de pó.

Era membro atuante do sindicato da categoria. Uma das únicas recordações em papel que tenho dela é um cartão-postal do St. John’s College, em Annapolis, nos Estados Unidos, enviado por um colega de profissão em 1959. Ele escreve:

“À estimada companheira de lutas sindicais, envio [este cartão-postal] como recordação de meu curso no colégio St. John’s, esperando que a continuidade de seu trabalho arregimente o maior número de companheiras telefonistas em torno do nosso sindicato, para melhoria e defesa das leis de proteção da mulher que trabalha.”

O cartão-postal do St. John’s College

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Hoje sei que não é mais necessário contratar um funcionário para acender postes de luz, que a carreira de foguista ferroviário está em absoluta extinção e que ninguém mais precisa saber “inserir a pega do tronco no jack” para que duas pessoas possam conversar em tempo real a distância.

Mas gosto de pensar que, se estivessem vivos, meus habilidosos antepassados se adaptariam a novos ofícios: imagino meu bisavô Francisco pilotando um Airbus A380 até Dubai, meu avô Paulo desenvolvendo o protótipo de uma bicicleta movida a hidrogênio e minha tia América liderando o Sindicato dos Trabalhadores em Telemarketing rumo à tão esperada revolução.


Vanessa Barbara é escritora, jornalista e tradutora. Autora de O Livro Amarelo do Terminal (2008; reportagem), Operação Impensável (2014; romance) e O Louco de Palestra (2014: crônicas), entre outros, já colaborou com os jornais Folha de S.Paulo O Estado de S. Paulo e com a revista piauí. Compõe o time internacional do New York Times. Mantém o site Hortifruti.