Credit: Joel Saget/Agence France-Presse — Getty Images

The New York Times
16 de janeiro de 2019

por Vanessa Barbara
Tradução: Uol Notícias

“É uma nova era no Brasil: menino veste azul, menina veste rosa”, declarou este mês em um vídeo a nova ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. E não parou por aí: no novo governo do presidente Jair Bolsonaro, ela declarou em seu primeiro pronunciamento oficial, “menina será princesa e menino será príncipe”.

A mensagem de Damares pretendia ser um ataque contra a “ideologia de gênero”, conceito criado por conservadores para depreciar a retórica da igualdade de direitos para as mulheres e os LGBT. A luta pela igualdade de gênero e por direitos sexuais e reprodutivos levará ao colapso da família tradicional, pensa Damares e outras pessoas como ela. Isso irá estimular a homossexualidade e ameaçar os valores cristãos. Então a resposta correta é um pânico moral: “Ninguém vai nos impedir de chamar as meninas de princesa e os meninos de príncipe”, proclama Damares com veemência.

Só que os conservadores entenderam errado: não somente não há ninguém os impedindo de transformarem seus filhos em membros da realeza, como na verdade sua visão sobre crianças e gênero já é na prática uma obsessão nacional, se não mundial.

Vivi isso pela primeira vez bem no comecinho da gravidez, quando fui comprar um kit de manicure para bebês. “É menino ou menina?”, perguntou a vendedora. Eu não conseguia imaginar o que unhas poderiam ter a ver com genitais, mas optei por ser educada e disse que ainda não sabia. A vendedora pareceu intrigada. Ela remexeu em uma pilha de estojos azuis e rosa, mas por fim anunciou que não tinha nada neutro. Quando decidi ir em frente e comprar um par de tesouras azuis assim mesmo, ela me lançou um olhar de reprovação. Por pouco não me chamou de anarquista.

Contudo, nos meses seguintes, descobri como era importante o sexo biológico do meu bebê para o mundo em geral. Minha primeira obstetra, por exemplo, contestou veementemente minha decisão de não saber o sexo do bebê antes do nascimento. É difícil encontrar artigos para bebê em cor neutra, protestou. O que o bebê vestiria quando nascesse? Muitos pareciam concordar com ela. “Mas e se for menina?”, perguntou uma vendedora em um brechó quando comprei um macacão de dinossauro. (Uma futura paleontóloga, quem sabe?)

Quando finalmente a curiosidade me venceu e descobri que o bebê era menina, precisei continuar respondendo “tanto faz” em todas as lojas. Nenhum item escapava da pergunta menino-ou-menina: ouvi enquanto comprava meias, chapéus, calças, livros, paninhos, mordedores, sacolas para fraldas, tigelas de plástico. Até mesmo os aspiradores nasais muitas vezes vinham em azul e rosa.

Era muito desgastante. E agora que corto as unhas da minha filha com uma tesoura azul e a visto com um macacão de dinossauro, fico pensando se o fim está próximo.

A comediante australiana Hannah Gadsby, em seu stand-up “Nanette”, já comentou que uma das formas de se perceber que há muita histeria de gênero por parte dos “gênero-normativos” desse mundo é o hábito de botar faixas cor-de-rosa de cabelo em bebês carecas. “É estranho”, diz a comediante. “Falando sério, você colocaria uma pulseira em uma batata?”

No entanto, desconhecidos que encontro na rua acham apropriado perguntar por que minha filha — que é adorável, mas, vamos admitir, não muito diferente de uma batata neste estágio — não usa brincos delicados, lacinho no cabelo ou sainha de tule cor-de-rosa. A coisa só piora quando se tenta entender o raciocínio por trás disso: como diz Gadsby, os pais fazem isso porque estão cansados de ver sua linda menina sendo confundida com um menino por não ter cabelo. Nem é necessário explicar por que isso é tão ruim: entende-se que seria uma calamidade. (“A questão é: eu não presumo que bebês carecas sejam meninos. Eu presumo que sejam feministas raivosas, e as trato com respeito”, brinca Gadsby.)

Já seria ruim o suficiente se a histeria em torno do gênero se limitasse à cor de carrinhos de bebê e de joelheiras. Mas o sexismo muitas vezes está impresso nas próprias roupas, e é aí que ele se torna excepcionalmente insidioso, por causa da mensagem que passa. Meninos podem ser vestidos com bodies que dizem: “Chegou o terror da mulherada!”. Ou ainda: “Escondam suas filhas”; “Não se preocupem, mulheres, ainda sou solteiro”; “Futuro médico bonitão”; “Futuro piloto de Ferrari”. Um dos favoritos no Brasil é um body que diz: “Meninas: hoje sou careca e banguela, mas um dia eu vou ser rico”.

Se os bebês meninos do Brasil são arrogantes e mulherengos, nossas meninas são fúteis e bonitas. “Desde pequena já sei o que quero: sapatos lindos como os da mamãe”, diz um body. (Gostaria de estar brincando.) Outros ainda: “Futura Miss Brasil”, “Futura noiva” e “Princesa em treinamento”. E como se esses estereótipos não bastassem, há opções que investem em um body shaming precoce: “Esta fralda deixa minha bunda enorme?”

Mas esse problema não é exclusivo do Brasil. Em 2015, a rede espanhola Zara lançou um body para meninas com a frase: “Bonita e perfeita: foi o papai que disse”, enquanto a versão para os meninos dizia: “Legal e inteligente: foi a mamãe que disse”. Um ano antes, uma rede de supermercados da Espanha teve de pedir desculpas e recolher roupas de bebês que diziam: “Inteligente como o papai” (para meninos) e “Bonita como a mamãe” (para meninas). Que a América do Norte não se sinta superior: nesse mesmo ano, a rede Target teve problemas ao vender, em suas lojas canadenses, um conjunto de pijamas para meninos com as palavras: “Futuro Homem de Aço”. A versão para meninas dizia: “Só namoro heróis”.

Então veja só, Damares, nós já estamos mergulhados em um mundo de meninas que devem virar lindas princesas e esposas quando crescerem, enquanto meninos vestidos de azul devem ter o objetivo de namorar o maior número possível dessas princesas. Esses príncipes e princesas têm pela frente um futuro de disparidade salarial, violência doméstica, abuso sexual, estupro, feminicídio, homofobia e transfobia.

Então, por favor, chame a sua filha de princesa. Sério, ninguém irá impedi-la. Mas é triste que, enquanto você se ocupa em dizer às crianças quem e o quê elas deveriam ser, tantas forças reais estejam conspirando em nosso país para impedi-las de crescerem em segurança e serem quem elas realmente são, e que você pareça tão desinteressada em fazer qualquer coisa a respeito disso.


Vanessa Barbara é autora de dois romances e dois livros de não-ficção em português. É colunista de opinião do New York Times – Internacional. Tradução: Lana, Uol Notícias.


Extra:

Galeria de bodies sexistas