7.jun.2013 – Manifestantes se aglomeram na avenida Paulista em protesto contra tarifas. Créditos: Leandro Moraes/UOL

The New York Times
21 de março de 2018

por Vanessa Barbara
trad. Luiz Roberto Mendes Gonçalves / Uol Notícias

É assim: o governo anuncia mais um aumento nas tarifas de ônibus, então alguns brasileiros vão às ruas, marcham por alguns quilômetros e depois a polícia decide que já foi suficiente. Segue-se uma espécie de exibição pirotécnica, com gás e explosões. Todo mundo vai para casa, alguns depois de uma curta estada em uma delegacia, outros com hematomas como lembranças.

Alguns dias depois, há outra manifestação. E depois mais uma. Enxágue e repita até que todo mundo fique cansado, demonizado, traumatizado ou suficientemente intimidado. A tarifa de ônibus continua absurda e aumentará de novo no ano que vem.

A trama é a mesma para muitos outros problemas nos últimos anos: as reformas trabalhistas; a reorganização do ensino público; uma Presidência ilegítima e impopular; uma Copa do Mundo cara e idiota; uma Olimpíada catastrófica. Afinal, todas essas coisas seguiram em frente, como se ninguém tivesse perdido os dentes protestando contra elas.

Essa rotina começou em junho de 2013, no que hoje é conhecido como Jornadas de Junho. Os eventos foram provocados por manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público. Quando a polícia reprimiu violentamente, os protestos cresceram. Mais de um milhão de pessoas foram às ruas em todo o país.

Essas manifestações deram origem a uma pequena geração de militantes antiautoritários, de esquerda e apartidários, que continuaram protestando durante vários anos por todo tipo de questão. Eles foram chamados de vândalos, bandidos, peões políticos ou simplesmente ineficazes. (Essa última acusação talvez não seja totalmente imprecisa.) Mas hoje eles também estão sendo responsabilizados pelo avanço da direita na política brasileira e pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

“Nós nos precipitamos ao achar que 2013 foi uma coisa democrática”, disse no ano passado o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um popular ícone da esquerda brasileira. “Tenho para mim que o impeachment de Dilma não ocorreria não fossem as Jornadas de Junho”, escreveu Fernando Haddad, o ex-prefeito de São Paulo e uma figura importante no Partido dos Trabalhadores, de Lula. “Na minha opinião, ali começava o golpe nesse país”, tuitou Lula em janeiro.

Por que esses políticos de esquerda veem os manifestantes decididamente de esquerda como agentes da direita? Bem, em parte porque é fácil se sentir ansioso sobre um movimento incontrolável, sem liderança, com demandas pluralistas. Mas há outro motivo. Depois de junho de 2013, algumas pessoas protestaram contra a corrupção política em geral, incluindo o Partido dos Trabalhadores (PT), que estava no poder na época. Isso acabou resultando em cinco grandes protestos de rua de direita que pediam a demissão de Dilma, a presidente eleita, do PT. Os manifestantes de direita tiveram o que desejavam em agosto de 2016.

Mas não há uma linha reta entre os protestos de 2013 e o impeachment em 2016. As manifestações não foram a oportunidade de ouro que todos eles esperavam para derrubar Dilma, nem foram o principal fator que finalmente permitiu que tomassem o poder. Afinal, muitos na direita trabalhavam no governo Dilma. (Lembre que o presidente Michel Temer era o vice-presidente.) A direita também não “sequestrou” um movimento intrinsicamente anárquico, considerando o fato de que muitas outras pessoas continuaram realizando suas manifestações progressistas, pequenas mas muito inconvenientes. (Veja, por exemplo, as demonstrações contra a Copa do Mundo de 2014. Na época, criticar o evento por qualquer motivo era considerado uma afronta à esquerda governante.)

Essa visão é simplista e só serve para se evadir do peso da responsabilidade. Em 13 anos de governo do PT, a esquerda tradicional perdeu muitas oportunidades cruciais de efetivamente mudar o Brasil. Agora eles precisam de alguém para culpar por suas perdas. E o bode expiatório atual parecem ser os manifestantes de extrema-esquerda. Os mesmos que antes ousavam criticar as decisões do Partido dos Trabalhadores.

Esses manifestantes não se alinham necessariamente com outros movimentos sociais tradicionais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ou os sem teto, sindicatos ou organizações estudantis. Eles recusam a autoridade hierárquica e são impossíveis de controlar. E eles levantam questões importantes, às vezes muito antes dos outros.

Por exemplo: o Movimento Passe Livre, o principal grupo por trás dos protestos de 2013, não reduziu as tarifas de transporte, mas obrigou os políticos e os cidadãos da classe média a pensar seriamente, pela primeira vez, na necessidade de parar de dar prioridade aos carros e começar a investir em transporte público. Outro exemplo: pouco a pouco, as pessoas começam a compreender que os eventos esportivos globais nem sempre são uma boa ideia afinal, especialmente para os pobres. Os ativistas foram os primeiros a discutir publicamente a questão em termos concretos dos que estavam sendo prejudicados e os eventos provaram que estavam certos. Apesar das acusações do PT e seus apoiadores, foram afirmações progressistas.

Às vezes nada concreto é alcançado imediatamente, mas novas ideias são colocadas no reino do plausível. Talvez mais tarde elas sejam promovidas ao reino do necessário e, então, do inevitável. Por enquanto, o transporte público gratuito ainda é considerado utópico, mas a saúde universal e as escolas públicas gratuitas, não. Protestar também pode ser uma forma de provocar uma nova consciência coletiva e promover a solidariedade em uma escala mais ampla. Da perspectiva de um partido governante, nada é mais democrático que aceitar isso.

Os protestos também podem ter uma espécie de beleza kantiana, independentemente de seus resultados. Como escreveu Daniel Cohn-Bendit, um líder estudantil dos protestos de 1968 em Paris, “Vemos algo de relance, e ele desaparece. Mas isso basta para provar que essa coisa pode existir”. Passou da hora para que o principal partido de esquerda do Brasil pare de culpar as ruas e faça as pazes com 2013. Talvez então ele possa encontrar diferentes caminhos para agir, um vislumbre de possibilidade, novas utopias plausíveis e uma alternativa viável para as próximas eleições presidenciais.


Vanessa Barbara é editora do site literário A Hortaliça e colunista de opinião do INYT.

Este texto foi publicado em inglês na página A15 da edição nacional do The New York Times de 21 de março de 2018, com o título: Why bother protesting?