Ulrica

Postado em: 10th fevereiro 2003 por Vanessa Barbara em Traduções
Tags: , , ,

Revista Fraude
10 de fevereiro de 2003

Jorge Luis Borges
trad. Vanessa Barbara

“Hann tekr sverthit Gram ok leggr i methal theira bert.”
[Tomou a espada Gram e estendeu-a, desembainhada, entre os dois]
Völsunga Saga, capítulo 27

Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que dá no mesmo. Os fatos ocorreram há pouco, mas sei que o hábito literário é assim mesmo, o hábito de intercalar detalhes circunstanciais e de enfatizar os pontos altos.

Quero narrar meu encontro com Ulrica [não soube seu sobrenome e talvez não saberei nunca] na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.

Nada me custaria contar que a vi pela primeira vez junto às “Cinco Irmãs de York”, estes vitrais puros de imagem que respeitaram os iconoclastas de Cromwell, mas o fato é que nos conhecemos na saída do Northern Inn, que fica do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém ofereceu-lhe uma taça e ela recusou.

– Sou feminista – disse. – Não quero imitar os homens. Desagrada-me seu tabaco e seu álcool.

A frase pretendia-se engenhosa e supus que não era a primeira vez que a pronunciava. Descobri, posteriormente, que não era do seu feitio, embora o que digamos nem sempre se pareça conosco.

Contou que havia chegado tarde ao museu, mas que a deixaram entrar quando viram que era norueguesa. Um dos presentes comentou:

– Não é a primeira vez que os noruegueses entram em York.
– É verdade – disse ela -, a Inglaterra foi nossa e a perdemos, se é que alguém pode ter algo ou algo pode perder-se.

Foi então que olhei para ela. Um verso de William Blake fala de garotas de suave prata ou furioso ouro, mas em Ulrica estavam o ouro e a suavidade. Era leve e alta, de feições afiladas e de olhos cinzas. Menos que seu rosto, impressionou-me seu ar de tranqüilo mistério. Sorria facilmente e o sorriso parecia distanciá-la. Vestia-se de preto, o que é raro em terras do Norte, que tratam de alegrar com cores o monótono das redondezas. Falava um inglês nítido e preciso, e realçava levemente os erres. Não sou observador; essas coisas fui descobrindo pouco a pouco.

Apresentaram-nos. Disse-lhe que eu era professor da Universidade dos Andes, em Bogotá. Expliquei que era colombiano. Ela perguntou, de modo pensativo:

– O que é ser colombiano?
– Não sei – respondi. – É um ato de fé.
– Como ser norueguesa – assentiu.

Nada mais posso recordar do que foi dito aquela noite. No dia seguinte, desci cedo à sala de jantar. Pela janela vi que havia nevado; os desertos desapareciam com a luz da manhã. Não havia mais ninguém. Ulrica me convidou à sua mesa. Disse-me que gostava de sair a caminhar sozinha.

Lembrei uma brincadeira de Schopenhauer e respondi:
– Também gosto. Podemos sair os dois.

Afastamo-nos da casa, sobre a neve jovem.

Não havia uma alma nos campos. Propus que fôssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a algumas milhas. Sei que já estava apaixonado por Ulrica; não desejava ao meu lado qualquer outra pessoa.

Imediatamente, ouvi o distante uivo de um lobo. Nunca tinha escutado uivar um lobo, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.

Após um tempo ela disse, como se pensasse em voz alta:

– As poucas e pobres espadas que vi ultimamente na Catedral de York comoveram-me mais do que os grandes navios do museu de Oslo.

Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, aquela tarde, seguiria viagem até Londres; eu, até Edimburgo.

– Em Oxford Street – ela disse – repetirei os passos de Quincey, que buscava sua Anna perdida entre as multidões de Londres.
– De Quincey – respondi – deixou de buscá-la. Eu, durante toda a vida, continuo buscando-a.
– Talvez – falou em voz baixa – você a tenha encontrado.

Percebi que uma coisa inesperada não me estava proibida e a beijei na boca e nos olhos.

Afastou-me com suave firmeza e logo declarou:

– Serei tua na pousada de Thorgate. Peço-te que enquanto isso não me toques. É melhor que assim seja.

Para um homem solteiro já avançado em anos, o amor oferecido é um presente que já não se espera. O milagre tem direito de impor condições. Pensei na minha mocidade em Popayán e em uma garota de Tezas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.

Não incorri no erro de perguntar-lhe se ela me amava. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Aquela aventura, talvez minha última, seria uma entre tantas para essa resplandecente e corajosa discípula de Ibsen.

Com as mãos unidas, seguimos.

– Tudo isto é como um sonho – falei -, e eu nunca sonho.
– Como aquele rei – replicou Ulrica – que não sonhou até que um feiticeiro o fez dormir numa pocilga. – Acrescentou depois:
– Escute. Um pássaro está prestes a cantar.

Em pouco tempo ouvimos o canto.

– Nestas terras – falei – dizem que quem está prestes a morrer prevê o futuro.
– E eu estou prestes a morrer – disse ela.

Encarei Ulrica, atônito.

– Cortemos pelo bosque – apressei-a. – Chegaremos mais rápido a Thorgate.
– O bosque é perigoso – replicou.

Seguimos pelo deserto.

– Queria que este momento durasse pra sempre – murmurei.
– “Sempre”é uma palavra proibida aos homens – afirmou Ulrica e, para diminuir a força daquilo, pediu-me que repetisse o meu nome, que não tinha entendido direito.
– Javier Otálora – disse-lhe.

Ela quis repeti-lo e não conseguiu. Fracassei, igualmente, com o nome Ulrikke.

– Chamarei-te Sigurd – declarou, com um sorriso.
– Se sou Sigurd – repliquei -, tu serás Brynhild.

Ela havia retardado o passo.

– Conhece a saga? – perguntei-lhe.
– Claro que sim – respondeu. – A trágica história que os alemães estragaram com seus recentes Nibelungos.
Não quis discutir e respondi:
– Brynhild, caminhas como se desejasse que entre nós dois houvesse uma espada na cama.

Paramos de repente, diante da pousada. Não me surpreendi que se chamasse, como a outra, Northern Inn. Do alto da escada, Ulrica gritou:

– Ouviste o lobo? Já não restam lobos na Inglaterra. Apressa-te.

Subindo ao andar superior, notei que as paredes estavam forradas à maneira de William Morris, um vermelho muito profundo, com desenhos entrelaçados de frutos e pássaros. Ulrica entrou primeiro. O quarto escuro era baixo, de teto inclinado. A esperada cama estava duplicada em um turvo espelho e o mogno lustroso lembrou-me o espelho da Escritura. Ulrica já tinha se despido. Chamou-me pelo meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. Já não restavam mais móveis ou espelhos. Não havia espada entre nós dois. Como a areia, ia-se embora o tempo. Profano na sombra, o amor avançou e possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.



Notas

1. Jorge Luis Borges, mestre das piadas internas obscuras, refere-se neste conto à Völsunga Saga [Epopéia dos Volsungs]. Trata-se de uma antiga lenda nórdica de autoria desconhecida, cuja origem remonta à Islândia do século XIII. O trecho citado no conto faz parte dos capítulos finais da epopéia, que narram a história de amor entre Brynhild e o herói Sigurd. De maneira resumida: Brynhild está presa em um castelo envolto por um muro de fogo, e uma maldição diz que se casará apenas com o homem que passar pelo obstáculo. Sigurd a liberta, eles se apaixonam, juram amor eterno, essas coisas. Ele sai pra comprar cigarros, digo, para resolver umas tarefas na cidade. Tempos depois, a feiticeira Grimhild e o marido decidem que o herói Sigurd seria uma boa aquisição para a família [jovem, rico, corajoso], e que a filha deles, Gudrun, seria perfeita pra desposá-lo. Rapidinho, a bruxa enfeitiça-o para que esqueça a antiga amada, e assim ele acaba se casando com Gudrun.

Enquanto isso, o outro filho da feiticeira, de nome Gunnar, também resolve que já era hora de se casar com alguém. Escolhe Brynhild, que ainda está esperando no castelo da muralha de fogo. Como Gunnar não conseguia passar pelas chamas de jeito nenhum, nem com os melhores cavalos, o herói Sigurd decide ajudá-lo e ambos trocam de feições, sabe-se lá como. Facilmente, o intrépido Sigurd entra no castelo no lugar de Gunnar, dotado da aparência deste, e corteja a pobre Brynhild. Ela vê-se obrigada a cumprir a sina e desposar aquele rapaz estranho que atravessara o fogo, apesar de ainda estar apaixonada por Sigurd. Convida-o, então, a dormir com ela. Neste momento, ocorre o incidente de que fala Borges: Sigurd [sempre sob a forma de Gunnar] desembainha a espada e coloca-a entre os dois, sobre a cama, como se fosse uma barra para separá-los. Quando ela indaga sobre o motivo daquele ato, Sigurd responde que lhe fora ordenado para apenas tocar na noiva após o casamento, sob pena de morte.

Finalmente, ela sai do castelo e se casa com Gunnar [o verdadeiro], enquanto Sigurd continua com a tal Gudrun. Trata-se de uma história trágica, senhores. Até a morte de Brynhild e Sigurd [leia a saga para descobrir o que aconteceu], sempre haveria uma espada entre eles.

2. A Völsunga Saga foi uma das fontes usadas por Richard Wagner em Der Ring des Nibelungen [O anel dos Nibelungos]. Os alemães têm suas versões para a saga, também.

3. No túmulo de Jorge Luis Borges, há a frase “…And ne forthedon nã” [“…e não tenha medo”, em inglês arcaico], tirada do poema anglo-saxão “La Bataille de Maldon”. Na outra face do túmulo, há a epígrafe de Ulrica: “Hann tekr sverthit Gram ok leggr i methal theira bert”, que conta o episódio da espada acima descrito. Na parte inferior do túmulo, há a dedicatória: “De Ulrica a Javier Otárola”, sendo Ulrica a ex-esposa de Borges, Maria Kodama.

4. O original Ulrica, em espanhol, pode ser lido aqui. Você também pode ler a Völsunga Saga na língua lá deles.