Revista Diálogos&Debates
ed. 24 – Junho de 2006

por Vanessa Barbara

Único show de calouros de música erudita da televisão, o Prelúdio, da TV Cultura, retoma uma longa tradição de descoberta de novos talentos

Revista Diálogos&Debates
ed. 23 – Março de 2006

por Vanessa Barbara

Há uma rica discussão sobre reformas no Centro de São Paulo, patrimônio histórico da cidade. Revitalizar é elitizar? O que falta e o que não deve haver no Centro?

 

De olho neles: Vanessa & Emilio

Posted: 16th maio 2005 by Vanessa Barbara in Clipping
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De olho neles | Vanessa Barbara & Emilio Fraia

Portal Literal
16/05/05

por Marcelino Freire

Isso mesmo. Hoje, dois escritores de uma vez. Faz tempo estou de olho neles. Aqui, de uma teclada só: os dois. Overdose dupla, pois.

Vou explicar: queria escrever sobre o Emilio Fraia. E escrever sobre a Vanessa Barbara. Separadamente. Mas eis que de repente fiquei sabendo que a dupla paulistana está escrevendo um livro só. Obra a quatro mãos. Sozinhos não. Estrearão em dueto, eta danado!

Uma versão brasileira – creio que pioneira – da experiência feita pelos argentinos Jorge Luís Borges e Bioy Casares – que juntos dividiram “Seis Problemas para Don Isidro Parodi”, entre outros parágrafos.

Quis saber mais desse projeto e fui tomar uma cerveja, num boteco, com a Vanessa e o Emílio. Esperavam-me, uníssonos.

– Éramos vizinhos e não sabíamos.

Eles se falavam via Internet até que descobriram estarem ali, pertinho, morando no mesmo bairro de Santana. E tantas afinidades tantas. Nasceram no mesmo dia 14, ela de junho, ele de abril do mesmo ano, 1982.

E também que gostavam de alguns escritores semelhantes. E da mesma diversão. Dizem: “escrever é uma curtição”. Eu digo que é um jogo. Os dois concordam. Estão montando um quebra-cabeça. Era uma vez uma partida de xadrez.

A coisa funciona assim: um manda uma linha, uma frase. O outro lê e enfia ali novas frases, costura, corta e reescreve. Até acontece de um inventar um personagem e o outro o matar, sem pestanejar.

– É o jogo ou não é, Vanessa?

– Pô, Emilio, nada de espernear!

Hoje é até difícil saber quem escreveu o quê. Tão misturados que estão. Feito amigos siameses, pode ser. Colados por uma mesma linguagem. O resultado é lírico, bem bonito. Um romance passado numa plantação de milho. Ainda sem editora e sem título.

– Já estão perto do ponto final? Ou dos dois pontos?, pergunto.

Quase. De quando em quando, mostram para alguém um trecho e voltam para consertar, no texto, algumas “incongruências metereólogicas”, por exemplo.

– Foi a mãe de Vanessa quem nos disse que não pode haver poeira onde acabou de chover.

Ou que lagartixa não escorre quando morre. Cai da parede e pronto.

E antes que você, caro leitor, proteste: o que tanto esses dois estão falando? Resolvi eu entrar no jogo e aumentar a confusão. Pedi que um apresentasse o outro. E que, depois, Vanessa e Emílio respondessem, juntos, às perguntas que vão adiante. Você nunca viu nada igual. Pelo menos aqui no Portal.

Vejamos:

ELE POR ELA
[Aqui, Vanessa Barbara apresenta Emilio Fraia]

Emilio Fraia nasceu em 1982 numa folha de papel. Como todos sabem, ele não passa de um cartum pintado a guache num cenário de casinhas tortas. Foi meu vizinho no bairro do Mandaqui até 2002 [se abrisse demais os braços, corria o risco de me acertar a testa], mas rumou para o exílio e hoje mora na Vila Mariana. Desde os 17 anos, Emilio edita um zine chamado Givago, que no começo era de papel e circulava nos corredores da escola. O apelo das massas fez com que o zine fosse para a internet [www.givago.com], onde teve 91 edições e mais de mil assinantes. Ele escreve mensalmente na revista Trip, costuma assistir futebol de palhaços, tem um fígado assaz argentino e é obsessivo com as questões sintáticas. Tivemos uma professora de português que se chamava Nanami; ela ensinou o Emilio a buscar [mesmo aos domingos e nas listas de supermercado] a mais perfeita disposição dos elementos frasais. Hoje ele revisa tudo o que escreve até o olho cair e é parcimonioso na utilização de advérbios de modo. Vez ou outra, o Emilio é soterrado por abóboras.

ELA POR ELE
[Aqui, Emílio Fraia apresenta Vanessa Barbara]

Vanessa Barbara compra paçocas no bar do Seu Firmo. Se não tivesse nascido no ano da graça de 1982, ela estaria hoje com 80 anos pregando para os pássaros e peixes, conversando com os gravetos e culpando o avanço comunista. É dona de um canteiro de almeirão: o zine A Hortaliça [www.damnzine.hpg.ig.com.br] que existe há três outonos e 58 edições. Em abril, a Vanessa me deu um disco de tango de presente de aniversário. Jornalista e preparadora de originais para a Companhia das Letras, ela trabalha quando não está ocupada e cultiva filmes do Billy Wilder, Hitchcock, Truffaut, além de coisas velhas, mudas e com figurantes que abrem os braços para sapatear. Tem medo de palhaços, é exímia jogadora de vôlei, conhece todas as linhas de ônibus de São Paulo e gosta quando a Anna Karina canta que tem uma “p’tit ligne de chance”. Quando éramos vizinhos, chegamos a construir uma ponte de madeira para ligar as nossas cozinhas. A Vanessa tinha uma gata chamada Gata. Nas idas e vindas perdemos um vibrafone, que procuramos até hoje.


EU & ELES
[Leia aqui uma conversa entre mim e os dois]

EU – Contem um pouco como surgiu a idéia do projeto, então. Que projeto de livro é esse? Por que a quatro mãos?

ELES – Escrevemos juntos, a Vanessa e o Emilio, há dois anos. Eles têm uma porção de contos a dois, alguns projetos, uma vasta correspondência não-autorizada e rascunham jogos a troco de nada – criamos personagens, teorizam enredos, inventamos lugares. O livro é resultado de uma dessas piadas internas [“além do mais, somos cinco e não queremos ser seis”], uma história ambientada em um campo de milho, cruel, colorida, noturna. Funciona assim: não discutimos o texto, é proibido falar. Escrevem, apenas. Aos domingos, na hora da missa, um de nós rabisca uma frase, um parágrafo e manda para o outro, que muda, sapateia, acrescenta e devolve – com o cuidado de apagar sempre os limites entre o que é do Emilio e o que é da Vanessa. Agora o ritmo aumentou: trocamos trechos a cada três dias. É, ao mesmo tempo, um jogo e um convite para dançar. Às vezes a Vanessa pisa no meu pé, outras vezes o Emilio inventa um passo esquisito. Mudam as regras também e, a todo instante, trocamos os móveis de lugar. Quando chego na sala que deixei em ordem, o Emilio arrastou o sofá, a Vanessa colocou o armário na frente da porta.

EU – Há uma inspiração nos livros em dupla que fizeram Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares? O que vocês acham dos dois, me digam.

ELES – Quando começamos a escrever a quatro mãos, e a perceber que se tratava de um quebra-cabeças divertido, o Emilio e a Vanessa, que já gostávamos de Borges, lembraram do Bustos Domecq. Em 1942, o Borges e o Bioy publicaram, juntos, “Seis Problemas Para Don Isidro Parodi”. O livro era assinado por um personagem criado pelos dois, Bustos Domecq [Bustos era um bisavô de Borges; Domecq, um bisavô de Casares]. Borges o descrevia assim: “É um personagem que nos impõe sua estética e nos faz escrever contos e crônicas de que não gostamos, mas cujo ditado devemos obedecer”. Para Bioy, “Domecq era a celebração da ausência de vaidade. Com ele, a literatura era o que deve ser: um prazer gratuito”. Sem tradução no Brasil [a editora Dantes foi a única a publicar algo da dupla, parece], o Emilio trouxe de Buenos Aires todos os livros “escritos” pelo Bustos Domecq [quatro ao todo]. Mas o importante mesmo é lembrar que a parceria entre o Borges e o Bioy começou com um iogurte. Foi em 1935, quando eles trabalharam em folhetos publicitários para um iogurte búlgaro que estava sendo lançado na Argentina. Para valorizar as qualidades longevas do produto, inventaram uma família búlgara cuja filha mais jovem tinha 90 anos. Do Borges, a Vanessa gosta do “História Universal da Infâmia”, o Emílio mantém o “Livro de Areia” por perto, mas nosso preferido é mesmo o “Ficções”. Bioy puro a gente leu muito pouco: além de “A Invenção de Morel”, a Vanessa traduziu um conto sobre velhinhos que voam. Foi o Bioy quem nos ensinou que todos os planos, por mais bem elaborados, são inúteis na hora de escrever: “Esboço toda a trama. Só assim, com a estrutura pronta, posso me sentar para escrever com a certeza de que não serei enganado pela história. O problema é que quando começo a rabiscar, todas as minhas soluções falham. Esse preparo mental só serve para que eu me engane e assim fique menos tenso para escrever. Na hora, minhas soluções maravilhosas não funcionarão e então serei obrigado a partir do zero”, disse o Adolfito.

EU – Quais escritores vocês lêem? O que pensam da nova literatura brasileira? E do mercado editorial etc. e tal. Eta!

ELES – Em jogral, alternando canto e recitativo, ária e coral. Emilio e Vanessa: Cortázar, Borges, Carroll. Emilio: Perec. Vanessa: Sterne. Emilio e Vanessa: Fitzgerald, Kafka, Drummond. Emilio: Piglia. Vanessa: aquele livro com fotos de macacos. Emilio: Valêncio Xavier, Clarice, Chico Alvim, Pirandello. Vanessa: Campos de Carvalho, Poe, Voltaire, Flaubert, Beckett. Da literatura feita hoje, eles leram bem pouco, mas gostamos do Joca Reiners Terron, do Mirisola, do Pellizzari, do Antonio Prata. Do mercado editorial não sabemos muito também, parece que foi comprar cigarros e não voltou.

EU – E dá, agora, para vocês se desgrudarem e responderem individualmente quais projetos solos vocês têm?

ELES – A Vanessa tem um livro-reportagem sobre a rodoviária Tietê, recusado por setecentas e quinze editoras e duas máquinas de mimeógrafo. Ela também acumulou 400 páginas de Hortaliças [zine que edita], colocou-as em uma cestinha de vime e despachou-as, com fome, para o Paulo Werneck, que tem experiência no ramo [ele faz compras no supermercado Alto do Mandaqui e edita a revista Ácaro, entre outras coisas]. O Emilio está terminando um livro só de orações subordinadas adjetivas e substantivas em que os protagonistas são patos – uma editora do condado de Uruguaiana já está de olho. E tem muitos contos e inícios de livros escritos à espera de um mecenas. Além disso, a “Obra Reunida” da Vanessa e do Emilio foi publicada recentemente pelo Google.

EU – O que esperam da literatura que vocês fazem? Do livro em dueto? Posso perguntar sobre o futudo da dupla? É cedo?

ELES – Escrever tem que divertir quem escreve, ponto e vírgula. Parafraseando o Quiroga, a gente tenta escrever como se a história não interessasse a mais ninguém senão ao mundo do Bruno, do Cabelo, do narrador e do Chibo. O futuro da dupla é o pior possível: daqui a um tempo estaremos na sarjeta, andando em círculos com uma bolsa vazia, depois de tomar uma surra dos nossos personagens.

ELES E O TEXTO DELES
[Leia um trecho do romance, ainda sem título e sem editora, escrito por Vanessa Barbara & Emilio Fraia]

Lá estão os meninos no corredor de milho onde o tiroteio começa; o Bruno escapa na dianteira com a barriga mole de tanto dar risada, atrás vem o Cabelo que cai sempre nos mesmos buracos e abre fogo com munição colorida — posso jurar, mesmo de longe, que o tiroteio de balas de goma tomou o campinho e o ar encheu-se de iguarias em forma de verme, legume e vibrafone. Meu irmão, o Chibo, ia no banco de trás. Eu estava no do passageiro, de joelhos e com a cabeça pra fora.

Pela janela, avistei o Cabelo que nunca conseguia alcançar ninguém, ainda mais entre os pés de milho, e novamente o espião búlgaro chegaria à fronteira do país neutro sob um tiroteio de masca-masca sabor banana, talvez ferido nas costas por um asquelminto, um rabanete ou um dó maior, subiria a escada de sisal da casa da árvore e gritaria mulherzinha mulherzinha. O Cabelo diria que não valeu porquessim, porque a brincadeira já perdeu a graça e os planos de Sua Majestade estavam criptografados ou a Bulgária não existia de todo (no que decerto teria razão). Seria acometido da mais gorda e suntuosa birra desde os tempos do prezinho e iria bater nos meninos mais novos. No Chibo não, claro. De todos, o meu irmão era o mais velho, tinha acabado de fazer doze anos (pelo retrovisor as palavras dele escapavam como uma estação fora do ar), e ele era forte e sempre me defendia e… Quando o carro parou, eu saltei com um pé só mas o Chibo, cheio de relâmpagos, nem se mexeu. Ele olhava para um ponto que eu não sabia onde era. Na plantação, o Cabelo veio para cima do Bruno, de banda, como desgovernado. O Bruno continuou correndo, disparou uns tocos de planta por cima do ombro — a essa altura eu também corria sem saber direito por quê — e nos cruzamos no ponto médio entre a casa da árvore e a estrada.

Ainda virei o rosto (cada vez menor, o carro sumia), mas o Bruno era rápido demais. Levou poeira e um vento sul de mormaço. O chão estava quente, a plantação começava a queimar e ficaria ainda pior, mas naquele primeiro dia choveu. Sem parar, o Bruno olhava pra cima com a boca aberta, tentando engolir o temporal, e não percebeu que a terra já escorregava: patinou durante uns bons metros e perdeu um sapato. “Maldição.” O Cabelo apanhou o artefato e classificou-o como prova A da Promotoria — mas nem chegou a pedir autorização do juiz para girar o tênis pelo cadarço e arremessá-lo à distância. Plof: uma artilharia de palmilha e cano alto bem na mira do espião búlgaro.

Apesar do ferimento de calibre 35/36 nas costas, o Bruno continuou correndo. Arrastava-se aos tropeços, imaginando sua consagração como herói nacional. A perseguição passaria na tevê em câmera lenta, depois o povo o aclamaria em carro aberto. Ele mostraria aos tataranetos a marca da sola durante um churrasco da família e contaria longas histórias de guerra, talvez até participasse de encontros de veteranos e coisa e tal.

O Bruno chegaria à casa na árvore, de fato, não fosse a intervenção divina da Grande Poça, a mãe de todas as lamas, que aconteceu de repente bem quando ele olhava para trás. O menino pisou em cheio no piscinão e caiu de cara. Emergiu daquela massa de chuva um Bruno caramelado e viu que era inútil continuar fugindo. A dois passos, a silhueta do Cabelo já lembrava seu direito de permanecer calado, citava a primeira emenda de cabeça e mostrava as algemas (que sequer existiam). A dois centímetros, um aro de metal sujo o encarava, talvez um anel. Bruno deu um jeito de guardar o objeto sem que o Cabelo percebesse, em seguida foi detido pelas autoridades e preso na casa da árvore.

2.

O Chibo também não estava quando, no dia seguinte, o Cabelo falou do homem morto — um corpo junto ao laguinho, em um lugar da plantação que, contado daquele jeito, parecia muito distante. Não demorou: no meio do milharal, um furacão vivo de círculos secretos, entradas e saídas, o Bruno propôs um jogo. Ajoelhou-se e distribuiu as folhas do caderno espiral, toda sua cartografia, pelo chão de terra. Calculou distâncias e provisões, pediu pra todo mundo girar em torno do próprio eixo a fim de despistar o inimigo e, finalmente, baseado em estudos preliminares sobre a geografia local e o posicionamento das nuvens, apontou o caminho mais estreito onde as folhas pareciam manchadas de ferrugem. Por ali, disse. Suas orientações vagas e intensas (o oeste correspondia invariavelmente ao norte e o centro estava junto à fronteira leste) passavam ao lado de uma árvore sozinha e muito vermelha, por trás de alguns velhos pés de caqui, entre uma pequena elevação, onde o caminho se bifurcava em um, dois, três outros. O Cabelo apressou-se em ir na frente sem maiores perguntas, abrindo caminho com o braço direito, “vira à direita aqui ou segue em frente porque dá na mesma”, e protegendo o rosto com a outra mão.

[…]

O Bruno estava de cócoras, tragado por um sol imenso, remexendo a palha que cobria o chão. Ele me viu, levantou rápido, despistando. “Cabelo!”, chamou. Com as mãos cheias de pedras, o Cabelo apareceu. A gente brincava de acertar pedras nas lagartixas da árvore. Por medo, nojo ou piedade, o Cabelo só ajudava e assistia ensaiando caretas a cada tiro. Não demorou para que um golpe (o Cabelo apertou os olhos, virou o rosto) dividisse ao meio uma das lagartixas.

As duas partes do bichinho despencaram tronco abaixo. Fiquei observando o vazio que separava a cabeça — os olhos estavam muito vivos ainda — e o rabo. “Será que um homem demora assim pra morrer?”, disse o Bruno.

Pensei no Chibo e que sim, alguém pode começar a morrer muito cedo. E levar dias, horas ou anos para não existir mais. Um vento atravessou o Bruno e rangeu, puxando o corpo dele para baixo. Sentou-se. “Deve ser difícil ver um pedaço nosso fora da gente”, ele cutucou fascinado as patas dianteiras da lagartixa com um pauzinho.

[…]

Não adiantava insistir como o Cabelo fez, gritando que a rainha da Bulgária tinha acabado de chegar e trazia um informe ultrasecreto porque, com porta ou sem porta, o Bruno passou a tarde trancado na casa da árvore e não receberia visitas. Cansado, o Cabelo morreu também, mas na sombra, porque ele era daqueles que ficam cor-de-rosa no verão. Psiu! Abri um pouquinho o olho direito: era impressionante como o Bruno parecia ter todas as coordenadas na cabeça, os próximos passos na forma de gráficos, tintin por tintin, e nada é pior do que quando já está tudo pronto e só falta atacar (a ansiedade). Psiu! O Cabelo, ele gesticulava para mim. Onde o Cabelo estava, bem debaixo da casa da árvore, o Bruno não podia vê-lo. Desenhou um telefone num pedaço de papel e mostrou pra mim. Precisava falar comigo, era isso. Rabiscou uma fruta vermelha, dois bonecos de pauzinho e um relógio marcando quinze para as quatro. Levantou em silêncio, picou os desenhos em pedaços muito pequenos (não queria deixar provas, explicaria depois) e sumiu.

[…]

O Cabelo, mão suada e cara vermelha, tinha colocado a camiseta ao contrário. As roupas dele viviam cheias de bolinhas, o Cabelo cortava a gola porque se sentia sufocado e ninguém nunca reclamou; com o tempo, ele começou a rasgar também a manga. O Cabelo, eu acho, queria mesmo era ganhar uma regata de time de basquete, daquelas furadas tipo coador de café. O sonho dele era dar olé no Bruno, driblar todo mundo no garrafão e autografar a testa dos meninos mais novos, mas de pensar ele se atrapalhava todo, enfiava a cabeça na manga, errava o lado direito da roupa — então eu olhei bem pra ele: “tua camisa tá do avesso”. Atrás de mim, o Chibo respirava forte.

Meu irmão não conseguia falar (as palavras desistiam), suas rodas giravam no vazio, os cabos interrompidos, as asas se soltariam da fuselagem e cairíamos os dois. Disse a ele que havíamos perdido o contato com a base, mas não avisei o Cabelo, queria poupá-lo. Àquela altura, mais de quatro mil pés, o Cabelo enfiou as três cápsulas dentro do bolso, no pacote das balas de goma. Fez aquilo para se salvar, acho. Eu escutava, com interferências, o Bruno repetir: “ninguém fala com ninguém. Quem for capturado deve”, e foi cortado por um ruído, um chiado, uma respiração forte. Então caminhamos eu e o Cabelo, e era um dia ímpar, até nos separar. Ele acenou de volta, seguiu. Cantarolava baixinho: “O braço não é o braço, o braço é a cabeça”, eu continuei na direção oposta, a da árvore toda vermelha, “a boca não é a boca, a boca é o umbigo”, e ouvia cada vez menos.

Vovós punks

Posted: 4th setembro 2004 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista TPM
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Desde 86, centenas de velhinhas canadenses muito politizadas revoltam-se regularmente e saem às ruas jogando chá em autoridades, envolvendo tanques com tricô e cantando músicas de protesto

Revista TPM n. 36
Setembro de 2004

por Vanessa Barbara

Revista Diálogos & Debates
ed. 16 – Junho de 2004

por Vanessa Barbara

Desde que o Tribunal de Justiça criou o atendimento itinerante, em 1998, mais de 10.500 processos foram solucionados, 80% deles por conciliação

Cidade dos Exilados

Posted: 1st dezembro 2003 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista Diálogos&Debates
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Excerto de O Livro Amarelo do Terminal (CosacNaify, 2008)
Publicado na revista Diálogos & Debates
Dezembro de 2003

por Vanessa Barbara

Às vésperas dos 450 anos de São Paulo, relatos e histórias de gente que veio até a cidade em busca de um sonho
Baixar: Dialogos14_Rodov.pdf

 

Das revoluções de quitina

Posted: 4th julho 2003 by Vanessa Barbara in Traduções
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Site EmCrise
4 de julho de 2003

Contra as revoluções de quitina,nada melhor do que a incoerência.

por Julio Cortázar*
Trad. Vanessa Barbara

(…) Desgraçadamente, as revoluções parecem tolerar uma tendência à estratificação (ou quitinosidade, para prosseguir com a metáfora). Em suas formas iniciais, essas revoluções adotaram formas dinâmicas, formas lúdicas, formas nas quais o passo adiante, o salto adiante, essa inversão de todos os valores que implica uma revolução, aconteciam num campo móvel, fluido e aberto à imaginação, à invenção e a seus desdobramentos naturais, a poesia, o teatro, o cinema e a literatura. Mas, com uma freqüência bastante desesperadora, depois dessa primeira etapa as revoluções se institucionalizam, começam a encher-se de quitina, vão passando à condição de coleópteros.

Bom, eu trato de lutar contra isso, esse é o meu compromisso com as revoluções, com a Revolução, para dizê-lo em geral. Trato de lutar por todos os meios, e sobretudo com meios lúdicos, contra o quitinoso. O Livro de Manuel foi uma tentativa de desquitinizar esses preâmbulos revolucionários que vagamente apareciam na Argentina e que não chegavam a coalhar. Esse livro foi escrito quando os grupos guerrilheiros estavam em plena ação. Eu havia conhecido pessoalmente alguns de seus protagonistas aqui em Paris, e ficara aterrado com o sentido dramático, trágico, de suas ações, nas quais não havia o menor resquício para que entrasse sequer um sorriso, e muito menos um raio de sol.

Me dei conta de que essa gente, com todos os seus méritos, com toda sua coragem e com toda a razão que tinham de levar adiante a ação, ainda que chegassem a cumpri-la e que fossem até o final, a revolução que produziriam não seria a minha Revolução. Seria uma revolução quitinizada e estratificada desde o começo. O Livro de Manuel é um desafio, mas não um desafio insolente ou negativo. É um desafio muito cordial: os personagens são vistos com toda a simpatia possível. Por exemplo: Marcos, o chefe desse grupo de guerrilha urbana, que estava um pouco de férias pela Europa no momento. Ele mesmo discute com seus amigos, se não esse problema, problemas paralelos. Eu não os agredia, muito pelo contrário. Se tivesse vontade de agredi-los, não teria escrito a novela. Não só não era um ataque, mas sim uma tentativa de colocar no bolso deles um livro que talvez os tivesse ajudado um pouco.

*[Fragmento de uma conversa entre Omar Prego e Julio Cortázar, tirada de “La fascinación de las palabras” de Omar Prego y Julio Cortázar (1985). ©1997 Alfaguara]

Creme e castigo

Posted: 4th julho 2003 by Vanessa Barbara in Reportagens
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Conheça o terrorista Noël Godin, que espalha medo na Europa com seus ataques de torta doce.

Publicado originalmente na revista Rizoma
EmCrise – 4 de julho de 2003*

Por Vanessa Barbara

“Há infinitas formas de subversão. Mas poucas se equiparam, em comodidade e eficiência, à torta de creme”. São palavras de Noël Godin, um distinto senhor de 55 anos, nascido na Bélgica. Desde 1969, ele e sua brigada internacional de entarteurs, como são chamados, melecam os rostos de personalidades poderosas com deliciosos bolos de creme e tortas, direto das melhores confeitarias. [Se o ataque fracassa ou é cancelado, eles simplesmente comem as tortas, com certa satisfação.] Algumas das 22 vítimas foram a romancista Marguerite Duras, o cineasta Jean-Luc Godard, vários políticos europeus e até mesmo Bill Gates.

Só o filósofo Bernard-Henri Levy, conhecido por sua prepotência, já foi alvejado 5 vezes. Certo dia, andava pelo aeroporto de Nice em companhia de sua terceira esposa, a atriz Arielle Dombasle, vestido impecavelmente com uma camisa da Christian Dior. Sorria para as câmeras, com doçura. Enquanto o casal se enfileirava para o check in, sombras esquivavam-se ao fundo, segurando algo intrigante feito de creme. No momento em que o casal apanhava os bilhetes de embarque, três torteadores surgiram do nada, com Noël Godin liderando a turma. O filósofo gritou: “Oh não! Oh não, de novo não” – e foi coberto de recheios, glacê e chantili.

“a torta de creme é um acurado barômetro da natureza humana” (Godin)

As tortadas sempre são delicadíssimas: entre os praticantes da modalidade, é proibido o lançamento à distância. Recomenda-se que o artefato seja pousado suavemente junto ao rosto da vítima — mas, em geral, a reação não é tão sutil. Levy, por exemplo, reagiu por meio de coléricos murros dirigidos a Noël Godin, no mesmo instante em que uma torteadora defendia-se com mais um bocado de creme, e uma segunda entretinha-se em despejar chocolate com cobertura de chantili na cabeça de Arielle Dombasle. “Levanta!”, ordenou o filósofo a um dos torteadores, “Ou eu chuto a tua cabeça!”.

Os membros da brigada estão proibidos de reagir fisicamente aos ataques, mesmo violentos. Na ocasião, a esposa de Bernard-Henri Levy unhou vigorosamente uma das torteadoras; já o filósofo preferiu quebrar a câmera de vídeo e socar o cameraman no nariz. Os “guerrilheiros” tampouco devem tentar fugir após os ataques: a polícia retirou Noël Godin do local apenas quando ele já estava sendo sufocado por Levy e recebia bolsadas histéricas da atriz.

“Os primeiros cinco segundos após um ataque de tortas”, postula Noël, “revelam o caráter real da vítima”. O cineasta Jean-Luc Godard, vejam só, reagiu com bom-humor: retirou o cigarro da boca, lambeu lentamente o creme e ainda declarou que aquilo era “uma verdadeira homenagem ao cinema mudo”. Depois disso, não foi mais incomodado pelos torteadores. “Bem despachada, a torta de creme é um acurado barômetro da natureza humana”, constata Noël.

Cena do filme da diretora tailandesa cega Vivianne Pei

:: A Flor-de-Lótus Não Voltará a Crescer Em Sua Ilha ::

“Sempre disse a mim mesmo que era necessário reagir, sustentar a subversão por meio do humor”, declara o belga, sobre o poder das tortas de creme como armas de guerrilha imaginativa (pois suscitam, ao mesmo tempo, comédia e terror). Antes de ser torteador profissional, o belga já punha em prática tais idéias: quando jovem, fora expulso da Faculdade de Direito por desrespeitar um professor. Sabia-se que o sujeito tinha ajudado a redigir a constituição do ditador Antonio Salazar, e mesmo assim todos continuavam indiferentes. Menos Noël e alguns amigos, que vestiram-se de operários, entraram na sala de conferências e, assoviando a Internacional Comunista, despejaram um tubo de cola direto na cabeça do mestre.

A expulsão da faculdade não calou Noël, que licenciou-se em história do cinema na Universidade de Lieja e logo foi contratado para trabalhar numa revista católica, resenhando filmes. “Comecei a publicar mentiras absurdas – primeiro aos poucos, depois freqüentemente”. Inventava filmes que não existiam e ilustrava-os com fotos de parentes. Escrevia dezenas de entrevistas fictícias com cineastas, sem deixar o próprio quarto. Consciente de sua alta porcentagem de leitores devotos, Noël anunciava uma conversão a cada três meses, inclusive de penitentes tão improváveis quanto Luis Buñuel e Tennessee Williams.

Os leitores da revista “Amigos do Cinema”, em pouco tempo, foram apresentados à obra de gênios inteiramente insólitos, como Sergio Rossi, Aristide Beck e Vivianne Pei, a única diretora cega da história do cinema, autora do longa-metragem “A Flor-de-Lótus Não Voltará a Crescer Em Sua Ilha”. O filme da suposta diretora tailandesa foi descrito por Noël tão vivamente que um especialista em cinema asiático chegou a viajar à Tailândia para procurá-la.

Noël pôde continuar publicando matérias desse naipe graças a um editor crédulo, e também porque a revista não era distribuída fora da Bélgica. Além disso, seus leitores não primavam por um senso crítico dos mais aguçados. Era quase um convite para prosseguir: o intrépido repórter cobriu o lançamento do filme “Vegetais de Boa Vontade” (1970, Jean Clabau), no qual Cláudia Cardinale fazia o papel de uma endívia gigante. Resenhou também o desenho animado maoísta “Germinal II”, com Jean-Louis Barrault fazendo a voz de um formão.

Nas páginas da revista, Marlene Dietrich liderou expedições para encontrar o monstro do Lago Ness, Michael Caine pilotou um carro movido a iogurte e Louis Armstrong confessou ter sido canibal (além de ter financiado, também, o filme “Vegetais de Boa Vontade”). Em entrevista exclusiva, o diretor Richard Brooks confessou que seus filmes eram uma porcaria e ainda arrematou: “Eu sou um cretino”.

:: “Quando encontro um novo tom de cinza, sinto-me extasiado” ::

Noël Godin entrou para o negócio das tortas após escrever uma excelente reportagem sobre o dia em que um de seus diretores fictícios, Georges Le Gloupier, atacou Robert Bresson com uma torta de creme. Na edição seguinte, inventou que Marguerite Duras, escritora amiga de Bresson, planejava uma revanche. “Dias depois, fiquei sabendo que Duras estava mesmo vindo para a Bélgica”; foi então que resolveu atacá-la com uma torta de verdade, no momento em que ela dissertava sobre o tema de seu segundo filme, Destroy, She Says. Redigiu uma matéria em que creditava o ataque a Le Gloupier. Em seguida, pegou gosto pelo ofício.

Torta-merengue de limão: perfeita para ataques bruscos

Já são mais de 20 os contemplados com suculentas tortas de creme na região facial. São escolhidas como vítimas as pessoas públicas vazias, fúteis ou simplesmente idiotas, das mais diversas nacionalidades, que compartilhem uma parte do poder. O que têm em comum? Todas se levam a sério demais, acham que são importantes e não possuem o menor senso de humor. “Acredito sinceramente que podemos acertar o Papa”, completa.

As tortas são essenciais para lembrar alguns cidadãos de que eles são apenas humanos. Bill Gates, por exemplo, foi alvejado porque escolheu trabalhar pelo status quo, sem de fato usar sua inteligência e imaginação. Quanto a Bernard-Henri Levy, uma só frase dele poderia justificar as 5 tortadas: “quando encontro um novo tom de cinza, sinto-me extasiado”.

:: Sérios e dogmáticos ::

O ato de lançar tortas na cara é uma espécie de esperanto visual e tem uma linhagem nobre, que pode ser traçada através de Jerry Lewis, Wile E. Coyote, os irmãos Marx e yippies como Abbie Hoffman — todos heróis de Noël, que ainda gosta de Júlio Verne e se considera anarquista. Para ele, o que diferencia os torteadores de muitos revolucionários é que os últimos tendem a ser sérios demais e costumam tornar-se insuportavelmente dogmáticos. Segundo o torteador, é exatamente o que falta no atual movimento “antiglobalização”: são sérios além da conta, e bolcheviques demais. “Muitos deles são escoteiros”, presume.

Desde jovem, Noël Godin disseminou práticas de sabotagem cotidiana, como obstruir fechaduras, provocar erros na contabilidade, espalhar ameaças de bomba, grudar um naco de piche nas câmeras de vigilância. “Nunca curei-me da febre de maio de 1968”, diz. Ele e os colegas entarteurs sempre vestem-se com roupas esdrúxulas (é o uniforme oficial do time): longas barbas falsas, óculos grossos e gravatas-borboleta. Quando um deles foi preso, após cobrir de creme o ministro da Cultura francês, o argumento usado no tribunal foi de que lançar tortas na cara era um velho costume belga. Ganhou a absolvição.

Noël lamenta que os intelectuais sejam tão sérios. Deveriam inspirar-se na guerrilha criativa e nos escândalos públicos de Antonin Artaud — como nas vezes em que ia a restaurantes caros de Paris e usava as mãos para comer, assustando as senhoras respeitáveis. Exemplos assim, conclui Noël, provam definitivamente que “qualquer um pode matar o poderoso através do rídiculo, tendo em mãos uma torta de nada”.

p.s.: Fontes fidedignas asseguram que tortas de creme de ovo são mais eficientes quando o alvo é móvel; já as tortas-merengue de limão resistem melhor durante ataques bruscos. Os anarquistas da brigada de São Francisco, por sua vez, preferem tortas de côco (como as que atiraram no economista Milton Friedman) e de creme de tofu (usada no ataque ao diretor da Monsanto).

701-U

Posted: 1st maio 2003 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Site EmCrise
1 de maio de 2003

Por Vanessa Barbara 

Era uma habitual tarde de inverno. Seis e meia da tarde, o sol já tinha ido embora há um bom tempo e o Jaçanã 701-U seguia, com satisfação, seu bucólico caminho, para frente e além.

Não fosse, claro, o trânsito decididamente parado, o calor terrível a entrar e sair pelas janelas e a disposição amontoada de humanos pelos corredores: se alguém erguesse o cotovelo, doze pessoas ficariam feridas ou seriam lançadas para fora das janelas, sem chances para o rebatedor. Um suspiro, e o encaixe milimétrico dos passageiros iria para os ares, resultando em gemidos e irritação nervosa. A senhora ao lado olhava para o horizonte, estática como um abajur.

Percorríamos a Avenida Tiradentes, ou algo remotamente similar – era impossível enxergar algo além de perucas, carecas, pescoços e chapéus-panamá.

De súbito, ouve-se um murmúrio abafado vindo de um homem, em meio à multidão amorfa do pessoal que ainda não passara a catraca. O moço dizia alguma coisa sobre a cidade de Santos – mas ninguém ouviu, pois o garoto esmagado entre o assento de cor cinza e o balaústre tinha um walkman suficientemente potente para anular qualquer ruído externo, no raio de uns 5 metros. Além do mais, o bebê da fileira esquerda chorava, um casal discutia sobre a hérnia da tia Marilda, e um celular insistia em repetir a mesma melodia sem fim, tentando comunicar-se com o bebê ou com os golfinhos do Pacífico.

Aparentemente, ninguém ouviu o resmungo do homem de Santos. Ninguém, exceto o cobrador. Por algum motivo que escapa à coerência das coisas, ele se levantou de seu posto e esbravejou:

– … Mas você não está em Santos, senhor!

Outro resmungo, inaudível para os humanos. Apenas os golfinhos e o cobrador entenderam. Este último, com as veias da testa saltando, pulou da cadeira, apontou o dedo para cima e berrou, mandando o ônibus parar:

– Desce já! Não vou ficar agüentando desaforo dessa gente. Desce, maldito!

Os passageiros, já moldados na forma de um ônibus como massas de risole, soltaram um gigantesco suspiro. Estavam de pé há mais de uma hora, tenham paciência, meus senhores. Deu-se uma movimentação meio sincronizada, alguns aproveitaram para coçar os narizes e atender telefones. O ônibus brecou de repente, e todos os homens, bebês e balaústres ficaram indignados. O moço do walkman dançava, como um mosquito bobo.

Alguns mandaram o homem descer pela porta da frente. Outros, engravatados, pouco se importavam qual fosse a saída do impasse, contanto que chegassem logo em casa, inferno, olha a hora, ô motorista.

O senhor de Santos, já assustado, fez que ia descer, ensaiou uma ginga marota e arrancou do ônibus uma placa de ferro, anexada na parte de dentro do pára-brisas, que dizia: “701-U – Via Armênia, Tietê, Santana”. Com a placa nas mãos, golpeou as janelas da frente munido de uma força incrível, quebrando não se sabe o quê (eu só vi cabelos), e causando um estrondo horrível.

Metade dos passageiros ficou encolhida, como cãezinhos molhados. A outra metade gritou e tentou descer, pela porta de trás. A metade restante (era gente demais, pôxa) arregalou o pescoço e pôs-se a especular sobre o saldo de feridos, a natureza do estrondo e uma hipótese corrente (veiculada pela moça de cinza) de que o senhor encrenqueiro era, na verdade, o Elvis.

O cobrador quis socar ou torturar o homem, bem aos pouquinhos, cravando longuíssimas agulhas enferrujadas no branco de sua pupila, uma a uma. O motorista, tranqüilamente, pediu calma e mandou-o descer naquele exato momento. Suspiros.

O ônibus seguiu. Dois celulares já tocavam, o bebê voltava a se espernear, a Marilda já voltara ao tópico da discussão quando a velhinha de blusa rosa gritou, no ápice do desespero:

– Ele não desceu!!! Gente, socorro: Ele não desceu!

Ressurgido das cinzas, “ELE” – elevado à categoria de monstro psicopata – pendurava-se na parte de fora da porta, como nos filmes em que o ladrão é atropelado (aparentemente), mas sempre volta a escalar o capô do carro, nos momentos mais tranqüilos, quando a música incidental sobe de repente e o pipoqueiro do cinema se assusta.

A senhora ao lado piscava sem parar e se agarrava ao meu braço, rezando uma Salve Rainha Mãe de Misericórdia. O motorista tentou realizar manobras bruscas para derrubar o homem; quem sabe esmagá-lo, dar a ré e passar por cima novamente, como nos desenhos. O moço não caiu, nem virou papel.

A vós bradamos, os degredados filhos de Eva, a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas (ela dizia). Paramos mais uma vez e o cobrador desceu, correndo, a perseguir o homem para matá-lo a dentadas. Alguns passageiros fizeram o mesmo, e, no meio da avenida Tiradentes, entre a cavalaria da Polícia Militar e o Museu de Arte Sacra, um homem golpeava os carros, às cegas, com uma grande placa 701-U, perseguido de maneira igualmente insana por meia dúzia de homens, um cobrador e duas crianças.

Foi então que o moço do walkman decidiu tirar os fones, desconfiado de que alguma coisa anormal estava acontecendo.

Site EmCrise
abril de 2003

Por Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares
In: Nuevos Cuentos de Bustos Domecq
Trad. Vanessa Barbara

Sobrepondo-me ao sentimento que o coração me dita, escrevo com a Remington este perfil de Ernesto Gomensoro, para fazer as vezes de prólogo à sua Antologia. Por um lado, perturba-me o desgosto de não poder executar de modo completo o desejo de um defunto; por outro, tenho a satisfação nostálgica de descrever esse homem de prestígio que os pacíficos vizinhos de Maschwitz ainda hoje recordam sob o nome de Ernesto Gomensoro. Não esquecerei facilmente daquela tarde em que me acolhera, com mate e biscoitinhos, sob a varanda de sua quinta, não longe do caminho do trem. A causa que me levou a esse fim-de-mundo foi a natural comoção de ter sido objeto de um cartão, dirigido à minha casa, convidando-me para figurar na Antologia que estava então por nascer. O fino olfato de tão notável mecenas despertou meu sempre aguçado interesse. Além do mais, quis pegar sua palavra no pulo, sem que se pudesse se arrepender, e decidi levar em mãos a colaboração, para evitar as clássicas demoras que são geralmente imputadas aos nossos Correios.

A cabeça calva, o olhar perdido no horizonte rural, as largas bochechas de pelugem cinza, a boca em geral provida de bombilla e mate, um estreito lenço de mão embaixo do queixo, o peito de touro e um leve traje de fibra amassado pela metade, constituíram meu primeiro instantâneo. Desde a cadeira de vime, o conjunto atrativo de nosso anfitrião complementou-se rapidamente com a voz afável que me indicou o banquinho da cozinha para que me sentasse. A fim de pisar em terreno firme, agitei à sua vista, vaidoso e firme, o cartão-convite.

– Sim – disse com displicência -. Mandei a circular por toda a parte.

Semelhante sinceridade me envaideceu.

Em tais casos, a melhor política é congraçar-se com o homem que tem nosso destino nas mãos. Declarei, com extrema franqueza, que eu era repórter de artes e letras da Última Hora e que meu verdadeiro propósito era o de dedicar-lhe uma reportagem. Não se fez de rogado. Cuspiu algo verde para limpar a garganta e disse, com a naturalidade que adorna as figuras eminentes:

– Avalio seu propósito de coração. Previno-lhe que não vou falar da censura, porque já mais de uma pessoa anda repetindo que sou temático e que a guerra contra a censura tornou-se minha única idéia fixa. Você me rebaterá com a objeção de que atualmente são poucos os temas apaixonantes como este. Não é pra menos.
– E como sei – suspirei -. O pornógrafo mais despreocupado observa, a cada dia, um novo impedimento em seu campo de batalha.

Sua resposta me deixou sem outro recurso senão o de abrir a boca.

– Já suspeitava que você se agarraria para esse lado. Reconheço prontamente que impôr restrições ao pornógrafo não tem muito de simpático. Mas esse caso tão repetido não é mais que, como açúcar e canela, uma faceta do assunto. Tanta saliva gastamos contra a censura moral e contra a censura política, que passamos por alto a outras variedades que são, de longe, mais ultrajantes. Minha vida, se você me permite chamá-la assim, é um exemplo instrutivo. Filho e neto de progenitores que foram invariavelmente deslocados na mesa de exames, vi-me levado desde pequeno às mais diversas tarefas. Foi assim que me arrastou o vórtice da escola primária, da corretagem de valises de couro e, em instantes roubados durante o trabalho, da composição de um ou outro verso. Este último fato, em si carente de interesse, alvoroçou a curiosidade dos espíritos inquietos de Maschwitz e não tardou em correr por aí e aumentar-se de boca em boca. Senti, como quem vê subir a maré, que o consenso do povo, sem distinção de sexo nem idade, receberia com alívio que eu começasse a publicar em jornais. Apoio semelhante impeliu-me a mandar pelo correio, a revistas especializadas, a ode “A caminho!”. Uma conspiração de silêncio foi a resposta, com a honrosa exceção de um suplemento que devolveu-me o texto sem nada dizer.

Lá ele pode ser visto, em um quadro.

Não me deixei desanimar. Minha segunda carga assumiu uma natureza massiva; remeti a não menos de quarenta órgãos simultâneos o soneto “Em Belém” e depois, continuando o bombardeio, as décimas “Eu ensino”. A “O tapete de esmeralda” e “Pão de centeio” coube, você não vai acreditar, idêntica sorte. Tão estranha aventura foi acompanhada, em suspense simpático, pelas autoridades e pelo pessoal de nosso correio, que se apressaram em divulgá-la. O resultado foi previsível; o doutor Palau nomeou-me diretor do diretor do suplemento literário das quintas-feiras do diário La Opinión.

Desempenhei essa magistratura civil durante quase um ano, quando me botaram no olho da rua. Fui, sobretudo, imparcial. Nada, admirável Bustos, vem incomodar minha consciência pela madrugada. Se uma só vez dei entrada a um filho de minha musa – o poema “Pão de Centeio”, que deu origem a uma persistente campanha de solicitadas e anônimas – o fiz sob o seguro pseudônimo de Alferes Nemo, com alusão, que nem todos captaram, a Julio Verne. Não foi só por isso que me ensinaram o caminho da rua; não havia animal vivente que não me creditasse a culpa de que a folha das quintas era antes o cesto de lixo ou, se você preferir, a pior sujeira. Aludiam, quando muito, à ínfima qualidade das colaborações expostas. A acusação, sem dúvida, era justa; não era assim que se compreendia o critério que me ministrara de bússola. Mais náusea que aos piores aristarcos me segue dando a retrospectiva leitura daqueles papéis sem ritmo nem razão, que eu, sem mesmo folheá-los, confiava ao senhor que manipulava a gráfica. Conto-lhe, como você vê, com o coração na mão: passar direto ao linotipo era tudo e eu não me dava ao trabalho de averiguar se eram em prosa ou verso. Peço-lhe que acredite em mim: meu arquivo guarda um exemplar em que se repete duas ou três vezes a mesma fábula, copiada de Iriartre e assinada de maneira contraditória. Propagandas de Chá Sol e de Erva Gato alternavam-se gratuitamente com o resto das colaborações, sem que faltasse algum desses versinhos que os desocupados deixam no banheiro. Figuravam também nomes femininos da maior popularidade, com o número de telefone.

Como já tinha farejado minha senhora, o doutor Palau acabou por montar o cavalo e disse-me na cara que a folha literária acabou-se e que não podia dizer que me agradecia os serviços prestados, porque não estava pra brincadeiras e que eu fosse embora no trote.

Sou sincero com você: para mim a demissão deve atribuir-se, por incrível que pareça, à publicação fortuita do notável poema “El malón”, que revive um episódio muito querido na região, a devastadora incursão dos índios pampas, que não deixaram nem boneco com cabeça. A veracidade do flagelo foi posta em dúvida por mais de um iconoclasta de Zárate; o indiscutível é que insuflou os elegantes versos de Lucas Palau, leiloeiro e sobrinho do nosso diretor. Quando você, jovem, estiver para tomar o trem, que faltar pouco, mostrarei o poema aludido, que tenho em um quadro. Publicara-o, segundo a minha norma, sem prestar atenção na assinatura nem no texto. O bardo, disseram-me, arremeteu com outros versos que esperaram sua vez e que não saíram, porque nunca deixei de respeitar a ordem de chegada. Despropósito por despropósito, ia postergando a publicação; o nepotismo e a impaciência transbordaram no copo e foi então que tive que encontrar a porta da saída. Retirei-me.

No decorrer deste discurso, Gomensoro falou-me sem amargura e com evidente sinceridade. No meu rosto pintava-se a concentração de quem contempla um porco voando e fui rápido em dizer:

– Serei burro, mas não capto completamente. Quero entender, quero entender.

– Todavia não lhe soou a hora – foi a resposta -. Pelo que vejo, você não é desta região penetrável de todos os meus amores, mas burro – para repetir sua opinião, não menos objetiva que severa – bem poderia sê-lo, por não haver entendido nem um “jota” do que estou reforçando. Um testemunho mais dessa incompreensão difundida foi que a Comissão de Honra dos Jogos Florais, que tanto brilho deram à nossa pujante localidade, ofereceu-me a honra de ser jurado dos mesmos. Não haviam entendido nem um “jota”! Como era meu dever, declinei. A ameaça e o suborno estilhaçaram-se contra minha decisão de homem livre.

Neste ponto, como se tivesse fornecido a chave do enigma, sugou de novo a bombilla e encastelou-se em seu foro interior.

Quando esgotou-se o conteúdo da chaleira, atrevi-me a sussurrar com voz de flauta:

– Meu senhor, ainda não consigo compreendê-lo.
– Bom, explicarei em palavras do seu nível. Aqueles que socavam com a pena as bases dos bons costumes ou do Estado não desconhecem, quero acreditar, que expõem-se a depenar o rosto ao rigor da censura. O feito é inqualificável, mas comporta certas regras de jogo e aquele que as infringe sabe o que faz. Entretanto, vejamos o que acontece quando você aparece na redação com um original que é, por onde quer que se olhe, um caos. Lêem o texto, devolvem-no e dizem para que o coloque onde quiser. Aposto que você sai com a certeza de que foi vítima da censura mais impiedosa. Suponhamos agora o inverossímil. O texto por você submetido não é uma cretinice e o editor o toma em consideração e manda-o à gráfica. Bancas e livrarias o colocarão ao alcance dos incautos. Para você, é um êxito, mas a verdade inescapável, meu estimado jovem, é que o seu original, confuso ou não, passou pelas humilhações da censura. Alguém o analisou, ao menos por cima, alguém o julgou, alguém o descartou ao cesto ou mandou-o à gráfica. Por mais infame que pareça, o acontecimento repete-se continuamente, em todo o jornal, em toda a revista. Sempre nos deparamos com um censor que elege ou descarta. Isso é o que não agüento nem agüentarei. Começa a entender meu critério quando dirigia a folha das quintas-feiras? Nada revisei nem julguei; tudo encontrou lugar no Suplemento. Nestes dias o acaso, na forma de uma súbita herança, permitiram-me finalmente a confecção da Primeira Antologia Aberta da Literatura Nacional. Assessorado pela lista telefônica e outras, dirigi-me a todo animal vivente, inclusive a você, solicitando-lhe que me mande o que der vontade. Observarei, com a maior eqüidade, a ordem alfabética. Fique tranqüilo: tudo sairá em letras de forma, por mais imundo que seja. Não quero retê-lo. Já estou ouvindo, me parece, os apitos do trem que o reintegrará à labuta diária.

Saí talvez pensando que quem diria que essa primeira visita a Gomensoro seria a última. O diálogo cordial com o amigo e mestre não se repetiria noutra ocasião, pelo menos nesta margem do lago Estige. Meses depois o arrebatou a Morte em sua quinta de Maschwitz.

Incompatível com todo ato que envolve um mínimo de escolha, Gomensoro, dizem, embaralhou num tonel os nomes dos colaboradores e nessa rifa saí-me como o agraciado. Pertenceu-me uma fortuna cujo montante superava meus mais brilhantes sonhos de cobiça, sob a única obrigação de publicar com rapidez a antologia completa. Aceitei com a aflição que era de se esperar, e transferi-me para a quinta, que outrora me acolhera, onde cansei de contar espaços cheios de manuscritos que já concluíam a letra C.

Foi como se tivesse sido atingido por um raio, quando conversei com o tipógrafo. A fortuna não bastava para ir, nem em papel de serpentina e letra de lupa, mais além de Añañ!

Já está publicado em brochura todo esse monte de volumes. Os excluídos, de Añañ em diante, têm me enlouquecido com reclamações e protestos. Meu advgoado, o doutor González Baralt, alega em vão, como prova de retidão, que eu também, que começo com B, fiquei de fora, para não dizer nada da impossibilidade material de incluir outras letras. Aconselha-me, neste ínterim, que eu busque refúgio no hotel O Novo Imparcial, com um nome falso.