Creme e castigo

Postado em: 4th julho 2003 por Vanessa Barbara em Reportagens
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Conheça o terrorista Noël Godin, que espalha medo na Europa com seus ataques de torta doce.

Publicado originalmente na revista Rizoma
EmCrise – 4 de julho de 2003*

Por Vanessa Barbara

“Há infinitas formas de subversão. Mas poucas se equiparam, em comodidade e eficiência, à torta de creme”. São palavras de Noël Godin, um distinto senhor de 55 anos, nascido na Bélgica. Desde 1969, ele e sua brigada internacional de entarteurs, como são chamados, melecam os rostos de personalidades poderosas com deliciosos bolos de creme e tortas, direto das melhores confeitarias. [Se o ataque fracassa ou é cancelado, eles simplesmente comem as tortas, com certa satisfação.] Algumas das 22 vítimas foram a romancista Marguerite Duras, o cineasta Jean-Luc Godard, vários políticos europeus e até mesmo Bill Gates.

Só o filósofo Bernard-Henri Levy, conhecido por sua prepotência, já foi alvejado 5 vezes. Certo dia, andava pelo aeroporto de Nice em companhia de sua terceira esposa, a atriz Arielle Dombasle, vestido impecavelmente com uma camisa da Christian Dior. Sorria para as câmeras, com doçura. Enquanto o casal se enfileirava para o check in, sombras esquivavam-se ao fundo, segurando algo intrigante feito de creme. No momento em que o casal apanhava os bilhetes de embarque, três torteadores surgiram do nada, com Noël Godin liderando a turma. O filósofo gritou: “Oh não! Oh não, de novo não” – e foi coberto de recheios, glacê e chantili.

“a torta de creme é um acurado barômetro da natureza humana” (Godin)

As tortadas sempre são delicadíssimas: entre os praticantes da modalidade, é proibido o lançamento à distância. Recomenda-se que o artefato seja pousado suavemente junto ao rosto da vítima — mas, em geral, a reação não é tão sutil. Levy, por exemplo, reagiu por meio de coléricos murros dirigidos a Noël Godin, no mesmo instante em que uma torteadora defendia-se com mais um bocado de creme, e uma segunda entretinha-se em despejar chocolate com cobertura de chantili na cabeça de Arielle Dombasle. “Levanta!”, ordenou o filósofo a um dos torteadores, “Ou eu chuto a tua cabeça!”.

Os membros da brigada estão proibidos de reagir fisicamente aos ataques, mesmo violentos. Na ocasião, a esposa de Bernard-Henri Levy unhou vigorosamente uma das torteadoras; já o filósofo preferiu quebrar a câmera de vídeo e socar o cameraman no nariz. Os “guerrilheiros” tampouco devem tentar fugir após os ataques: a polícia retirou Noël Godin do local apenas quando ele já estava sendo sufocado por Levy e recebia bolsadas histéricas da atriz.

“Os primeiros cinco segundos após um ataque de tortas”, postula Noël, “revelam o caráter real da vítima”. O cineasta Jean-Luc Godard, vejam só, reagiu com bom-humor: retirou o cigarro da boca, lambeu lentamente o creme e ainda declarou que aquilo era “uma verdadeira homenagem ao cinema mudo”. Depois disso, não foi mais incomodado pelos torteadores. “Bem despachada, a torta de creme é um acurado barômetro da natureza humana”, constata Noël.

Cena do filme da diretora tailandesa cega Vivianne Pei

:: A Flor-de-Lótus Não Voltará a Crescer Em Sua Ilha ::

“Sempre disse a mim mesmo que era necessário reagir, sustentar a subversão por meio do humor”, declara o belga, sobre o poder das tortas de creme como armas de guerrilha imaginativa (pois suscitam, ao mesmo tempo, comédia e terror). Antes de ser torteador profissional, o belga já punha em prática tais idéias: quando jovem, fora expulso da Faculdade de Direito por desrespeitar um professor. Sabia-se que o sujeito tinha ajudado a redigir a constituição do ditador Antonio Salazar, e mesmo assim todos continuavam indiferentes. Menos Noël e alguns amigos, que vestiram-se de operários, entraram na sala de conferências e, assoviando a Internacional Comunista, despejaram um tubo de cola direto na cabeça do mestre.

A expulsão da faculdade não calou Noël, que licenciou-se em história do cinema na Universidade de Lieja e logo foi contratado para trabalhar numa revista católica, resenhando filmes. “Comecei a publicar mentiras absurdas – primeiro aos poucos, depois freqüentemente”. Inventava filmes que não existiam e ilustrava-os com fotos de parentes. Escrevia dezenas de entrevistas fictícias com cineastas, sem deixar o próprio quarto. Consciente de sua alta porcentagem de leitores devotos, Noël anunciava uma conversão a cada três meses, inclusive de penitentes tão improváveis quanto Luis Buñuel e Tennessee Williams.

Os leitores da revista “Amigos do Cinema”, em pouco tempo, foram apresentados à obra de gênios inteiramente insólitos, como Sergio Rossi, Aristide Beck e Vivianne Pei, a única diretora cega da história do cinema, autora do longa-metragem “A Flor-de-Lótus Não Voltará a Crescer Em Sua Ilha”. O filme da suposta diretora tailandesa foi descrito por Noël tão vivamente que um especialista em cinema asiático chegou a viajar à Tailândia para procurá-la.

Noël pôde continuar publicando matérias desse naipe graças a um editor crédulo, e também porque a revista não era distribuída fora da Bélgica. Além disso, seus leitores não primavam por um senso crítico dos mais aguçados. Era quase um convite para prosseguir: o intrépido repórter cobriu o lançamento do filme “Vegetais de Boa Vontade” (1970, Jean Clabau), no qual Cláudia Cardinale fazia o papel de uma endívia gigante. Resenhou também o desenho animado maoísta “Germinal II”, com Jean-Louis Barrault fazendo a voz de um formão.

Nas páginas da revista, Marlene Dietrich liderou expedições para encontrar o monstro do Lago Ness, Michael Caine pilotou um carro movido a iogurte e Louis Armstrong confessou ter sido canibal (além de ter financiado, também, o filme “Vegetais de Boa Vontade”). Em entrevista exclusiva, o diretor Richard Brooks confessou que seus filmes eram uma porcaria e ainda arrematou: “Eu sou um cretino”.

:: “Quando encontro um novo tom de cinza, sinto-me extasiado” ::

Noël Godin entrou para o negócio das tortas após escrever uma excelente reportagem sobre o dia em que um de seus diretores fictícios, Georges Le Gloupier, atacou Robert Bresson com uma torta de creme. Na edição seguinte, inventou que Marguerite Duras, escritora amiga de Bresson, planejava uma revanche. “Dias depois, fiquei sabendo que Duras estava mesmo vindo para a Bélgica”; foi então que resolveu atacá-la com uma torta de verdade, no momento em que ela dissertava sobre o tema de seu segundo filme, Destroy, She Says. Redigiu uma matéria em que creditava o ataque a Le Gloupier. Em seguida, pegou gosto pelo ofício.

Torta-merengue de limão: perfeita para ataques bruscos

Já são mais de 20 os contemplados com suculentas tortas de creme na região facial. São escolhidas como vítimas as pessoas públicas vazias, fúteis ou simplesmente idiotas, das mais diversas nacionalidades, que compartilhem uma parte do poder. O que têm em comum? Todas se levam a sério demais, acham que são importantes e não possuem o menor senso de humor. “Acredito sinceramente que podemos acertar o Papa”, completa.

As tortas são essenciais para lembrar alguns cidadãos de que eles são apenas humanos. Bill Gates, por exemplo, foi alvejado porque escolheu trabalhar pelo status quo, sem de fato usar sua inteligência e imaginação. Quanto a Bernard-Henri Levy, uma só frase dele poderia justificar as 5 tortadas: “quando encontro um novo tom de cinza, sinto-me extasiado”.

:: Sérios e dogmáticos ::

O ato de lançar tortas na cara é uma espécie de esperanto visual e tem uma linhagem nobre, que pode ser traçada através de Jerry Lewis, Wile E. Coyote, os irmãos Marx e yippies como Abbie Hoffman — todos heróis de Noël, que ainda gosta de Júlio Verne e se considera anarquista. Para ele, o que diferencia os torteadores de muitos revolucionários é que os últimos tendem a ser sérios demais e costumam tornar-se insuportavelmente dogmáticos. Segundo o torteador, é exatamente o que falta no atual movimento “antiglobalização”: são sérios além da conta, e bolcheviques demais. “Muitos deles são escoteiros”, presume.

Desde jovem, Noël Godin disseminou práticas de sabotagem cotidiana, como obstruir fechaduras, provocar erros na contabilidade, espalhar ameaças de bomba, grudar um naco de piche nas câmeras de vigilância. “Nunca curei-me da febre de maio de 1968”, diz. Ele e os colegas entarteurs sempre vestem-se com roupas esdrúxulas (é o uniforme oficial do time): longas barbas falsas, óculos grossos e gravatas-borboleta. Quando um deles foi preso, após cobrir de creme o ministro da Cultura francês, o argumento usado no tribunal foi de que lançar tortas na cara era um velho costume belga. Ganhou a absolvição.

Noël lamenta que os intelectuais sejam tão sérios. Deveriam inspirar-se na guerrilha criativa e nos escândalos públicos de Antonin Artaud — como nas vezes em que ia a restaurantes caros de Paris e usava as mãos para comer, assustando as senhoras respeitáveis. Exemplos assim, conclui Noël, provam definitivamente que “qualquer um pode matar o poderoso através do rídiculo, tendo em mãos uma torta de nada”.

p.s.: Fontes fidedignas asseguram que tortas de creme de ovo são mais eficientes quando o alvo é móvel; já as tortas-merengue de limão resistem melhor durante ataques bruscos. Os anarquistas da brigada de São Francisco, por sua vez, preferem tortas de côco (como as que atiraram no economista Milton Friedman) e de creme de tofu (usada no ataque ao diretor da Monsanto).