16/06/2008
Blog da CosacNaify

“Chegou! É um bebê tão bonito e amarelo e ele pia…
Gente, ficou lindo. É o livro mais vistoso desde Manual de refrigeração e ar condicionado (ed. Fulton, 1366 pp., com diagramas de câmaras frigoríficas). O papel, o “sujinho”, tudo ficou tão bonito que dá vontade de comer.
Obrigada! Vocês são demais. Vamos comemorar na plataforma de desembarque n. 82 com bala 7Belo e maisena.
Cubram-se de icterícia.
v.”
[E-mail escrito por Vanessa Barbara à equipe Cosac Naify: reação ao receber o bebê]

 

“ELA REALMENTE SÓ VIU O LIVRO QUANDO ESTAVA PRONTO. E ADOROU (UFA!)”

Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio comentam a criação do projeto gráfico de O livro amarelo do Terminal, original em forma e conteúdo

Talvez não fosse de se estranhar o desenho gráfico de O livro amarelo do Terminal, reportagem literária sobre a rodoviária do Tietê escrita por Vanessa Barbara, caso nele estivessem fotos de ônibus, rostos de transeuntes, imagens da época de sua construção, em 1982. Seria normal. Mas em absoluto representaria a singularidade narrativa criada pela autora, que opera com habilidade a mescla de estilos aliada a uma incrível profusão de vozes sensivelmente captadas.

Na entrevista a seguir, a diretora de arte da Cosac Naify Elaine Ramos e a designer Maria Carolina Sampaio detalham o projeto gráfico do livro, que recria em traço o texto de Vanessa Barbara.

 

A cor do nome, o nome da cor e os papéis

“Chegou-se ao título O livro amarelo do Terminal por conta do papel escolhido, que faz referência ao tipo usado em passagens de ônibus e em livros de “páginas amarelas”, em que as pessoas buscam informações.

 

 

Internamente, o livro é composto por três tipos de material: na maior parte do miolo, temos o papel amarelo de gramatura menor (APG); em um trecho mais curto, optamos também por um bloco de páginas de papel auto-copiativo, que leva carbono em sua composição, o que recupera a idéia do papel mimeografado (com o manuseio, ficam nele algumas leves manchinhas); por último, um papel roxo (MF), de maior gramatura. Para a capa, optamos por uma cartolina amarela laminada.”

Polifonia gráfica

“Os originais do livro nos chegaram com algumas indicações de onde o texto ganha novas formas, como por exemplo, a separação em colunas; uma nota musical indicando os trechos de canções; algumas palavras escritas em negrito, ou com letra maior. Buscamos, então, criar diferenciações consistentes que atendessem às especificidades do texto.

Praticamente todas as interferências adotadas no projeto gráfico vêm do universo da rodoviária: viagens, logotipos de empresas de viação, pintura dos ônibus, sinalização etc. Usamos também minha coleção pessoal de tíquetes de viagens [por coincidência, Elaine Ramos coleciona há anos bilhetes de viagens, entradas de museus, de eventos etc] e matérias de jornal coletadas pela autora. Mas é importante dizer que todas essas referências foram traduzidas graficamente, e não mimetizadas: evitamos reproduzir simplesmente as imagens ou informações gráficas. A partir daí, procuramos criar uma linguagem própria para o livro.”

 

 

Harmonia no caos

“O grande desafio foi achar uma visualidade que traduzisse a polifonia e a estranheza encontradas na narrativa. Na diagramação das páginas, optamos por um espaçamento maior entre as linhas, de forma que a frente não coincidisse com o verso: como o papel (amarelo) é muito transparente, vêem-se as linhas do verso, num movimento de trás pra frente.

Já na divisão geral dos capítulos, ou seja, no macro da edição, há uma organização muito clara. Combinamos formas geométricas, abstratas e racionais, com a sujeira e o acaso do xerox e da transparência. A soma das duas coisas resultou num contraste parecido com o da rodoviária: o caos da movimentação das pessoas, transeuntes em um arcabouço muito claro e funcional, próprio da arquitetura e da sinalização da rodoviária. Estas características dialogam com um dos traços mais fortes do livro: a diversidade de vozes narrativas, o choque entre as diferentes perspectivas, a vitalidade deste ambiente, que é a maior rodoviária do país; esta “cidade de coisas perdidas”, como escreve Vanessa. Se criássemos um projeto gráfico apenas organizado e competente, seria como ver a rodoviária vazia, sem ninguém.”

Título do Livro

Autor: Vanessa Barbara
Livro-reportagem
Projeto gráfico: 
Elaine RamosMaria Carolina Sampaio
Lançamento: junho de 2008
Formato: 21 x 14
254 páginas
Preço: R$ 48,00
Editora: Cosac Naify

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A jovem escritora Vanessa Barbara faz sua estreia editorial com um surpreendente livro-reportagem sobre a rodoviária do Tietê, em São Paulo. Primeira obra jornalística no catálogo da Cosac Naify, O livro amarelo do terminal empreende uma viagem singular ao que seria uma “versão condensada do mundo”, como diz João Moreira Salles na orelha da edição. Valendo-se de recursos narrativos variados, que vão da reportagem clássica ao humor nonsense, o olhar arguto da escritora pinça, em meio ao tumulto, os tipos que passam por lá todos os dias – vendedores, crianças, velhinhas, surfistas -, e registra “uma história oral” do lugar a partir dos fragmentos de conversas colhidas ao acaso. Essa polifonia aparece também no projeto gráfico do livro. Suas páginas amarelas, de gramatura mais fina, brincam com a transparência e a sobreposição parcial das letras. Já os capítulos de cunho mais histórico são impressos em papel semelhante ao carbono, como os dos bilhetes de ônibus. O escritor Antonio Prata atesta: “Vanessa Barbara é a melhor escritora que eu conheço.” Agora, é a vez do leitor se surpreender com seu talento.

PRÊMIOS

– 51º Prêmio Jabuti 2009
Categoria: Reportagem

– APCA 2008
Categoria: Literatura/Reportagem

– AIGA 2009
Prêmio: 50 Books/50 Covers
Categoria: Projeto gráfico
Premiados: Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio

Entrevista: Vasto mundo num só lugar

Posted: 14th junho 2008 by Vanessa Barbara in Clipping
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Ilustração
O Livro Amarelo do Terminal
Lançado em: junho/2008

Entrevista: Vanessa Barbara

Vanessa Barbara apresenta um vasto mundo num só lugar
Por Lívia Deorsola

No dia em que se tornar Deus, a mais idosa das escritoras, Vanessa Barbara, 25 anos, quer transformar o Atlântico em uma sopa de letrinhas (foi o que ela disse ao amigo Antonio Prata). Enquanto isso não acontece, ela mesma escreve o que lhe dá “na telha”, como nos conta na entrevista a seguir. Os leitores agradecem: em O livro amarelo do Terminal, lançado pela Cosac Naify – estréia da autora no universo editorial -, Vanessa desvendou a rodoviária do Tietê de um jeito há muito conhecido e pouco praticado – ousou ouvir e escrever as histórias mais simples, e por isso as mais surpreendentes. Com pinçadas precisas numa massa aparentemente amorfa, o livro resulta em uma rica engenhosidade polifônica, composta por vozes que em geral ninguém ouve – nem mesmo a de Marcos, “a voz mais bonita do terminal”, que costumava pilotar a mesa de controle e anunciar criancinhas perdidas.

Habilmente costurada por meio de pesquisa histórica, saudades, humor, literatura, sonhos, manchetes de jornal, desilusões e letras de música, esta narrativa inclassificável flui de forma que podemos vê-la passar diante de nós. E ouvi-la. Este efeito cinematográfico é pontuado pela autora – às vezes uma repórter invisível; outras, a protagonista de quem os funcionários “mais graduados” da Socicam (empresa administradora do terminal) têm medo. Por causa da “imagem”, claro.

Quais os motivos que a fizeram se interessar pelo terminal rodoviário do Tietê?
A rodoviária foi escolhida por representar São Paulo quase tão bem quanto a própria rua, por trazer histórias singulares que ilustram algumas contradições da metrópole: a modernização, o movimento repetitivo das pessoas que vão-e-vêm mecanicamente, a inconstância, a idéia de massas; e, por outro lado, a sensação de não-pertencimento, a vontade de retornar ao lugar de partida, o anacronismo dos personagens, a permanência – aquilo que nunca muda. “Tietê” vem do tupi: “té é té”, um rio que se mostra “muito fundo e corrente” e corta a cidade.

Você optou por um tipo de abordagem jornalística que dá voz aos que tradicionalmente não a têm: motoristas de ônibus, faxineiras, migrantes, atendentes, vendedores, camelôs. Quando pensou em escrever sobre o Tietê, estava especialmente preocupada em ressaltar isso?
O livro amarelo foi um projeto experimental de conclusão do curso de jornalismo. De início, era pra ser um livro de crônicas – classificado como livro-reportagem por causa da ausência do campo “Outros” no formulário de inscrição. Aos poucos, foi virando outra coisa e eu fui falando com quem conversava comigo, sem distinção.

Poderia nos contar um pouco sobre as abordagens às pessoas? Como eram feitas? Você imediatamente esclarecia a que viera, ou procurava puxar conversa, e então surgia um fio a ser puxado?
Sempre me apresentava e contava o que estava fazendo – embora algumas pessoas puxassem conversa do nada, sem se importar. Em geral eu me apresentava, puxava uma cadeira e era isso: pergunta daqui, pergunta dali, e no fim elas iam falando o que queriam (sobre frango com quiabo, carrapatinhos, miçangas). No segundo ano da faculdade, fiz uma monografia sobre inclusão digital (!) e aprendi um método de sociologia chamado “história oral”, que busca entrevistas abertas sem questionários prévios e sem tempo de duração, deixando o entrevistado o mais confortável possível. O legal é que as pessoas começam a falar das coisas que lhes são realmente importantes, ou pelo menos do que eles querem, e não do que eu acho que deveriam responder.

No livro estão histórias de vida, pura fruição literária, árdua pesquisa jornalística, dados institucionais e até mesmo letras de música da época em que o terminal foi construído. Como foi orquestrar tantos recortes para que fosse montado um panorama da rodoviária do Tietê?

O mais difícil foi encontrar o material – levei semanas para ter acesso às matérias antigas dos jornais em bibliotecas municipais, arquivo do Estado, arquivos pagos, centros de documentação etc. Parece mais simples do que é. De qualquer forma, a pesquisa é a minha parte preferida, e eu adorei ler as matérias antigas. Deu pra sentir o que acontecia na época, e era uma coisa tão absurda que exigia letras de músicas à altura.

Há diversos trechos em que você apenas descreve o que vê; ou seja, a observação foi um método importante. Tem o costume de olhar muito as pessoas a sua volta? Qual é o truque para que ninguém se incomode com isso? (Durante suas visitas ao terminal, alguém teve medo de você?)
Era para ser um livro de crônicas, ou seja, só as minhas observações. Mas não seria o suficiente… Ninguém teve medo de mim porque eu tenho uma inofensiva cara de 15 anos, mas às vezes as pessoas ficavam desconfiadas e demoravam mais para falar.

Num dos episódios, você chega a acompanhar o socorro a um funcionário do terminal. Foi um dia de sorte (para você, claro)?
Não! Foi um atendimento comum, nada grave, e foi bem tranqüilo. Talvez um dos méritos do livro seja justamente o de não ter presenciado nenhum acontecimento suntuoso, embora todas as histórias ali sejam impressionantes.

Ao buscar incansavelmente informações sobre a administração do terminal, você se deparou com respostas que contrariam a lógica da “informação pública e transparente”. Esperava por tanta dificuldade em obter dados?
Pensei que seria tão fácil quanto fazer uma reportagem na rua. O engraçado é que os seguranças e os funcionários do terminal (FTs) não davam a menor bola, mas os funcionários mais graduados ficavam apavorados com essa coisa da “imagem” da empresa. Parecia que, se eu fosse de algum veículo imaginário de imprensa, eles me tratariam com um pouco mais de respeito. Aí criei A Hortaliça, que hoje é um dos periódicos mais respeitados da mídia nacional e interplanetária.

O projeto gráfico de O livro amarelo do Terminal é dos mais originais e capta exatamente o espírito polifônico presente na narrativa.
Chegou a dar algum palpite no desenho do livro? Qual foi a sensação de ver seus relatos neste formato?

É tudo mérito dos editores, especialmente da Elaine Ramos e da Maria Carolina Sampaio. Ficou lindo e perfeito para o texto, é exatamente do jeito que eu queria – o mais incrível é que eu não dei nenhum pitaco. E você pode colar seus comprovantes de bagagem na capa! [Conheça detalhes do projeto gráfico]

Se aqui cabem classificações, sua escrita está identificada com o jornalismo literário. Aqui temos Joseph Mitchell [O segredo de Joe Gould], Gay Talese [Honrados Mafiosos], chegando até o escracho do gonzo journalism, com Hunter S. Thompson. Enxerga algo destas experiências literárias no que você escreve?
Gosto muito desses autores e li todos na época de estudante (para o trabalho também li Hemingway, Orwell, Dickens, Capote, John dos Passos, João do Rio, Rubem Braga, Veríssimo e Will Eisner), mas seria muita pretensão me comparar a eles… só achei que era a oportunidade de fazer alguma coisa diferente e escrever como me desse na telha.

Ao saber de sua idade, todos se admiram: “25 anos e já autora de livros de qualidade”. A constatação te ocupa alguma reflexão?
É que eu tenho cara de 15, RG de 25 e espírito de 80. Sou a mais idosa das escritoras.

Livro editado, histórias contadas. Como se sente hoje ao passar pelo terminal rodoviário do Tietê?
Eu lembro de cada linha. Em “O narrador”, Walter Benjamin disse que todo dia recebemos as novidades do universo, mas somos pobres em histórias notáveis. O mais surpreendente de viajar dentro da rodoviária é descobrir que existem pessoas por lá – e não só estatísticas, notícias sobre a movimentação dos passageiros no feriado ou declarações de telejornal. Durante o trabalho, lembrei de um livro do Rubem Braga sobre a Segunda Guerra em que ele diz: “Encontramos no meio do caminho o general Cordeiro de Farias, que está deixando crescer um bigode, e vamos a uma central de tiro”. Ele fala de um soldado que veio de Monte Aprazível e estava terminando o liceu, de outro que é filho do proprietário das Perfumarias Carneiro, do sargento Domingos Leite que é da Rua Goitacases, 1726 e vai se casar no inverno e daquele que mandou uma carta pra casa “fazendo um enorme lero-lero sentimental do começo ao fim, disse que está morrendo de saudades, viver sem ti é uma desgraça, eu não sei como agüento esta separação, é uma agonia medonha, choro pensando em ti, e no fim de tudo isso meteu um P.S. – ‘manda me contar o resultado do jogo do Bangu'”.

Enfim, a rodoviária é feita de pessoas, todas com uma história triste, uma fala solene, uma observação absurda.

O Verão do Chibo (2008, Alfaguara)

Posted: 6th junho 2008 by Vanessa Barbara in Livros
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Emilio Fraia e Vanessa Barbara
Ficção/Romance
ISBN: 9788560281510
Lançamento: 06/06/2008
Formato: 15 x 23,4
120 páginas
Preço: R$ 29,90
Editora: Objetiva || Selo: Alfaguara

Ao falar sobre os ritos de passagem da infância para a adolescência, esses dois jovens autores criaram um dos livros mais originais da nova safra brasileira

O verão do Chibo revela a habilidade narrativa de dois autores que já podem ser incluídos entre os mais originais da nova geração de escritores brasileiros.

Obra sutil, muitas vezes cômica, outras vezes emocionante, trata, sobretudo, dos mistérios que cercam o amadurecimento.

No livro, um menino de cerca de sete anos, mergulhado num universo muito particular, descreve suas aventuras nas férias de verão, embrenhado num milharal ao lado de outros amigos. Mas esse é um verão diferente. Pois Chibo, seu irmão mais velho, some misteriosamente, e os outros garotos parecem seguir o mesmo caminho.

Emilio Fraia e Vanessa Barbara contam que trabalharam de forma exaustiva, nesse seu primeiro romance, para mesclar idéias e estilos e conseguir alcançar uma voz narrativa coesa. “Quando duas pessoas escrevem juntas, e não são vaidosas, o resultado é melhor do que quando trabalham separadas.” A frase, do escritor argentino Adolfo Bioy Casares sobre a famosa parceria com Jorge Luis Borges, é usada pela dupla para ilustrar a motivação que os une.

 

 Leia um trecho do livro em PDF

Fim de verão

Posted: 4th junho 2008 by Vanessa Barbara in Clipping
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Vanessa Barbara e Emilio Fraia estréiam literariamente com um louvável romance escrito a quatro mãos

Revista Cult n. 125
Junho de 2008

por Eduardo Sterzi

Revista Diálogos&Debates
ed. 32 – Junho de 2008

por Vanessa Barbara

Projetos aparentemente bobos, mas cheios de provocação, as intervenções do grupo Viajou Sem Passaporte fizeram presença no final dos anos 70. Houve muitas, como a Trajetória do Curativo, a do Paletó e o Trem Fantasma no Parque Ibirapuera…

    

 

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Revista Piauí n. 20
Maio de 2008

por Vanessa Barbara

A volta do site Demonoid.com traz esperança à turma dos bucaneiros.

“A profecia foi cumprida: regozijai-vos e semeai, ó fiéis!”, exclamou Clement Kuo, da Califórnia, num fórum especializado. Depois de cinco meses fora do ar, no dia 11 de abril o site Demonoid.com finalmente voltou à ativa. Ele é um indexador e rastreador público de arquivos de filmes, músicas, jogos e softwares em formato BitTorrent – o protocolo de processamento rápido para download. Ou seja: é dor de cabeça para os defensores da propriedade intelectual na internet, já que a maioria dos arquivos compartilhados pela rede BitTorrent é protegida por leis de copyright.

A coisa funciona assim: um belga generoso de codinome “Pandris” decide compartilhar na internet um documentário raro sobre fotografia. Ele transfere o conteúdo do DVD para o computador e cria um arquivo .torrent, um instrumento que fragmenta o original e organiza suas informações: nome do filme, tamanho, dados de cada bloco, seqüências de bits e, finalmente, o endereço do servidor tracker (o rastreador). É aí que entram sites como o Demonoid. Eles hospedam o link para o arquivo do nosso prestativo belga, permitindo que um brasileiro amante de fotografia se conecte a ele e inicie o download do conteúdo em blocos.

Em geral, o usuário demora dias ou semanas para baixar um filme inteiro, embora alguns afortunados consigam receber vasta quantidade de conteúdo em poucas horas. Para esses, o belga faria um alerta mais ou menos assim: “Tenham paciência, pois minha velocidade de upload (envio) é ridícula, e não posso deixar o computador ligado à noite, já que divido o apartamento com um colega e o PC é muito barulhento.” Aos poucos, centenas de curiosos conseguem baixar os blocos do filme e se tornam semeadores simultâneos, de modo que o belga não precisa mais deixar seu computador ligado – para alívio de seu companheiro de quarto. Assim, os arquivos são obtidos aos pedaços de várias fontes diferentes, ao mesmo tempo.

***

O Demonoid é o segundo maior site de trackers do mundo, perdendo apenas para o sueco The Pirate Bay (Baía dos Piratas), que, por não hospedar o conteú-do e ser apenas um indexador, não tinha problemas com a justiça – até maio do ano passado, quando a polícia sueca invadiu sua sede e apreendeu os computadores. O site ficou fora do ar três dias, e voltou à ativa com sarcásticos comentários em resposta às diversas ameaças de processo. Os administradores do Pirate Bay lembraram que as leis dos Estados Unidos não se aplicam à Suécia, “terra dos vikings, das renas, da aurora boreal e das loiras”. Ainda afirmaram que, “ao contrário de outros países, temos leis sensatas de copyright. Mas também temos ursos polares vagando pelas ruas e atacando as pessoas”. Em abril passado, o Pirate Bay ameaçou inverter a lógica: anunciou que processará a Federação Internacional da Indústria Fonográfica por bloquear o site para os usuários da Dinamarca.

O Demonoid é um site mais organizado, que aceita apenas membros indicados e abre novas inscrições periodicamente. Além disso, recomenda uma taxa mínima de upload e se reserva o direito de banir os membros que não colaboram com o compartilhamento. Por hospedar uma quantidade enorme de rastreadores de qualidade, é bastante conceituado. Por exemplo: seu mecanismo de busca registra 47 títulos do selo americano Criterion (que no Brasil está disponível apenas para importação), os três volumes do documentário Contacts, a coleção completa da revista Mad, coleções integrais de gibis de super-heróis, e-books, temporadas de seriados, o software de animação Maya 3D (cuja licença de uso chega a 15 mil reais), o AutoCad 2009 (que custa 5 mil) e muitas outras maravilhas e bobagens.

Por meio de sites como o Demonoid ou de rastreadores como o Mininova, o isoHunt, o EzTv (exclusivo para seriados de televisão) e de softwares como o eMule e o Soulseek, é possível ter acesso tanto à discografia dos Beatles quanto à filmografia completa daquele diretor russo obscuro que gosta de abordar temas eqüinos.

Todas essas formas de compartilhamento usam a tecnologia P2P (peer-to-peer, literalmente par a par). Elas tiveram início com o Napster, em 1999, o primeiro programa de troca intensa de arquivos. Estima-se que, na época, 8 milhões de usuários chegaram a baixar músicas uns dos outros, em trocas diretas mediadas pelo software. O Napster foi fechado em março de 2001, depois de uma batalha judicial travada pela Recording Industry Association of America, Riaa, o sindicato da indústria fonográfica americana, que o acusou de violar as leis do copyright. Imediatamente, dezenas de outros programas surgiram, como o AudioGalaxy e o Kazaa, além do Soulseek, do eMule e do LimeWire.

Criado pelo americano Bram Cohen, o protocolo BitTorrent inovou a lógica do compartilhamento de arquivos, e logo angariou 150 milhões de adeptos. Baseado em rastreadores, é colaborativo e descentralizado: não disponibiliza nenhum arquivo diretamente e, portanto, é mais difícil de ser “desativado”. Além disso, possibilita a troca de arquivos pesados e acelera a velocidade do download conforme a popularidade do conteúdo. Um episódio da série Lost, por exemplo, pode ser baixado no Brasil em menos de uma hora, logo depois da sua exibição nos Estados Unidos, e as legendas são produzidas no mesmo dia por equipes de fãs. A vasta maioria dos filmes, softwares e CDs piratas vendidos pelos camelôs é baixada pelo BitTorrent.

Os problemas do site Demonoid, cujo símbolo é um demônio verde, começaram em junho do ano passado. A Brein, organização holandesa antipirataria, entrou com uma ação contra a empresa e a forçou a tirar os seus servidores dos Países Baixos. Segundo a associação, a questão não é se o site hospeda ou deixa de hospedar os arquivos, e sim o fato de divulgá-los, sem zelar pelo pagamento de direitos autorais.

Com isso, o Demonoid mudou seu domínio para o Canadá. Mas não durou muito tempo: em setembro, saiu do ar devido às pressões da Canadian Recording Industry Association, Cria, a associação da indústria fonográfica do país. Os rastreadores voltaram depois de uns dias, mas o tráfego dos usuários canadenses foi bloqueado. Finalmente, em 9 de novembro, o Demonoid fechou as portas para valer, temendo as ações da Cria. Milhares de downloadores ficaram órfãos. Em janeiro, os rastreadores foram brevemente restabelecidos na Malásia, mas tornaram a desaparecer. Para os membros do Demonoid, foi um longo inverno até 11 de abril. A batalha parecia perdida quando, de surpresa, os rastreadores ressuscitaram, desta vez com num novo administrador e uma nova sede: a Ucrânia.

***

A indústria do entretenimento e os defensores do copyright batalham pela dissolução das redes e sites como o Demonoid porque, para eles, o compartilhamento ilegal de arquivos equivale a roubar uma loja de discos e furtar os próprios autores da obra, produtores e demais envolvidos na feitura de um filme, um seriado ou um CD de música. Enquanto uns tratam o assunto como pirataria, outros o vêem como acesso ao conhecimento.

A batalha é acirrada e os piratas estão vencendo. E fazem barulho: em agosto passado, no retorno do site Suprnova.org, promovido pelos administradores do Pirate Bay, surgiu um manifesto que encheria de orgulho o próprio Capitão Gancho. O texto dizia: “O que quer que vocês afundem, nós construiremos de novo. Quem quer que vocês processem, dez novos piratas serão recrutados. Aonde quer que vocês forem, estaremos na frente. Vocês são o passado e os esquecidos, nós somos a internet e o futuro.”

AH1294157733x56831Piauí n. 19
Abril de 2008

por Vanessa Barbara

De maneira trôpega, claudicante e bocó de tudo

Não se sabe ao certo quem deu o primeiro passo tolo da história. Sabe-se, no entanto, que em 1970 o grupo britânico Monty Python apresentou um esquete sobre o Ministério das Caminhadas Tolas, no qual o comediante John Cleese, de terno e chapéu, estendia a perna em 90 graus e ia saltitando rumo ao trabalho, onde recebia em seu gabinete um cidadão que buscava apoio da Coroa para desenvolver uma silly walk – ou seja, uma andada bocó – de sua própria autoria. Há quem diga que a gênese da silly walk (em francês, marche futile; em alemão, sinnlos Gehen; em italiano, passeggiata cretina; em espanhol, paseo estúpido; em latim, passus stultus) remonta a Ricardo III, rei coxo e corcunda que fazia os cães latirem quando passava. Ou ao Corcunda de Notre-Dame, a Chaplin e a Groucho Marx, notáveis criadores de passadas ridículas.

Se a origem é controversa, uma coisa é certa: o Brasil sempre esteve na vanguarda da história. Desde há muito, tem se destacado no setor, com Curupira, Saci-Pererê, Jânio Quadros e Garrincha, entre muitos silly walkers proeminentes. Uma nova prova da expertise pátria foi dada depois do último Carnaval. Quando todos já andavam em linha reta, a nação escreveu em São Paulo um capítulo inovador sobre o tema: promoveu uma caminhada tola organizada – a primeira do mundo.

Foi num domingo, às quatro da tarde, no vão livre do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, na avenida Paulista, que os militantes se concentraram para o aquecimento idiota. Inspirados no comediante do Monty Python, os participantes da 1a Silly Walk Brasil usavam chapéus e traziam guarda-chuvas exagerados. Alguns pretendiam apenas imitar John Cleese, embora aperfeiçoando o giro aéreo da perna esquerda, que, para os mais críticos, não parecia suficientemente tolo. Outros apresentariam criações particulares, como o Homem Descendo a Escada, que exige muito das coxas, e a Cavalgada sem Cavalo, inspirada no filme Monty Python em Busca do Cálice Sagrado, de 1975. A estudante Elisa Mafra, de 20 anos, declarou que iria fazer um medley de estilos, sem, no entanto, desprezar os grandes clássicos. Pensou numa silly walk lateral, mas “com certeza eu iria cair”.

Como tudo ali era de uma rematada tolice, o percurso da passeata foi entregue, deliberadamente, ao deus-dará. “Para onde a gente for, a gente vai”, declarou o organizador, Tiago Lima de Andrade, de 21 anos. “Vai ter sempre um andarilho mané caminhando em círculo”, previu um participante, justificando a impossibilidade de predefinir trajetos.

O aquecimento demorou mais de vinte minutos. O atleta bobo mais promissor é Marcelo Montserrat Silva, o “Sunshine”, de 15 anos. Ele deu piques extremamente imbecis no meio da multidão, indo e vindo feito um pateta pela calçada, tropeçando de vez em quando e, de súbito, se escondendo atrás do guarda-chuva, em pose misteriosa. Marcelo tem os cabelos compridos, encaracolados, e usa uma cartola por cima do capuz. Para ele, o evento é uma oportunidade de exibir a cartola sem que o fato configure um “insulto à moralidade pública”.

Um dos participantes sugeriu uma silly walk dentro do próprio museu. “Dependendo da sala, a gente grita: ‘Todo mundo fazendo silly walk cubista! Agora, expressionista!'” Com erudição invejável, arrematou: “Natureza morta é tipo zombie walk”, referindo-se ao evento fúnebre-peripatético de origem canadense e várias edições no Brasil, no qual centenas de mortos-vivos se fantasiam de zumbis e avançam pelas ruas aos gritos de Cérebro!, Miolos!.

***

A instantes da largada, um tocador de realejo arregalou os olhos e apurou os ouvidos. O organizador Tiago abriu o guarda-chuva e gritou: “É chegado o momento!” – e disparou na frente. Atrás dele, a massa de aproximadamente vinte silly walkers vai atrás, a andar tolamente pelas calçadas da avenida Paulista. Os destaques foram a revolucionária caminhada lateral (ou de banda) de Elisa Mafra, que optou pela glória e pelo reconhecimento de seus pares em detrimento da própria segurança, e a silly walk altamente flexível (abaixa, levanta, acelera, pára, se esconde com grande mistério) de Marcelo Sunshine, um verdadeiro fundista que liderou a marcha do início ao fim.

Na avenida, os transeuntes andavam de forma pouco tola e fingiam ignorar a massa de gente saltitando, trotando e fazendo força para se comportar como rematados basbaques. Já no primeiro quarteirão, a turma mais militante parou para se abanar, pois, segundo a opinião geral, andar tolamente é muito cansativo. Ainda mais para os seguidores do movimento nerd, cujo único movimento real costuma ser da geladeira para o computador, do computador para a geladeira, conforme os próprios. “Eu às vezes vou para a sala também”, comentou Tiago, ao que Elisa, aventureira, acrescentou: “A sala entra nos meus planos porque o DVD está lá.”

O cansaço foi maior para Joel Dias, de 16 anos, criador da pitoresca silly running (corrida tola), que, embora tenha lhe servido apenas para atravessar o sinal, arrancou aplausos dos que corriam atrás. Mais dois quarteirões e os adeptos da bobajada ambulante estavam acabados. A turma enfim se concentrou em frente ao prédio da Gazeta, onde uma fileira de guardas sérios recusou-se a lhes dar um mínimo de atenção, mantendo o olhar fixo no horizonte. Nos últimos instantes da passeata, Vinícius Schiavini, de 24 anos, também repórter do site Jovem Nerd, ainda inventou o caminhar Silvio Santos, enquanto uma colega sua, praticante do jornalismo participativo, alcançou a consagração com seu passo Sidney Magal. “É totalmente tolo”, admite Vinícius. “E ela usa a mão, o que é raro entre os contemporâneos”, comenta outro paspalho.

Embora os organizadores neguem, a 1a Silly Walk Brasil teve um fundo político. Entre os participantes, todos lamentam o descaso do governo com os silly walkers, principalmente diante do fato de que, na Inglaterra, há um ministério específico para cuidar do assunto. Por que no Brasil não temos um igual? Vinícius Schiavini explica que seria redundância. “Todos já cumprem essa função”, diz, referindo-se à governança cretina e à legislatura descerebrada. “O governo negligencia as silly walks”, protestou Vinícius, que ainda não conseguiu verba da Lei Rouanet. “A gente tentou, mas não é fácil”, completou Yule Barbosa, de 21 anos, estudante de artes plásticas na USP. “Tudo aqui é burocracia. Como é que o país vai pra frente sem uma boa silly walk?”

 

Primeiro livro da parceria dos dois escritores, Seis Problemas para Dom Isidro Parodi ganha nova edição em português

O Estado de São Paulo / Cultura
15 de março de 2008

por Vanessa Barbara e Emilio Fraia

Em uma noite de 1936, na sala de jantar da fazenda dos Bioy, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares inventaram, juntos, uma família búlgara. A história integraria um folheto publicitário, A Coalhada La Martona: Estudo Dietético Sobre Os Leites Ácidos, encomendado por um tio de Casares. Dono da próspera companhia leiteira La Martona, ele prometera à dupla um pagamento vultoso por página. Bioy e Borges se animaram. Passaram a escrever um texto empolado e divertido sobre as vantagens do produto, com frases do tipo: ”Quem tem saúde tem esperança, e quem tem esperança tem tudo – dizem os árabes, esses musculosos falcões do deserto, mas eles têm por trás da esperança algo que luta por sua saúde: a coalhada.” No folheto, aprendemos que o iogurte aproxima o homem da imortalidade e que, na Bulgária, onde é um alimento apreciado, abundam os centenários. ”O exemplo clássico é dos onze irmãos Petkof”, garantem os autores, ”que chegaram todos aos cem anos, com exceção de María Petkof, morta aos 91”.

Bioy e Borges redigem capítulos sobre os méritos do iogurte entre os bretões, os franceses, os tártaros e os calmucos; inventam receitas para preparar bolos e pães de milho. Ao longo das páginas, vão amontoando dados de forma desconexa, afirmações vazias de conteúdo e tiradas repentinas, sem um contexto que as explique ou justifique. Para simular o discurso científico, incluem citações de supostas autoridades, além de frases bíblicas. O resultado é um texto pouquíssimo comercial e de linguagem rebuscada, que, entre elogios ao leite balcânico e ponderações sobre os benefícios de bacilos e outros micróbios, revela o estilo inconfundível de H. Bustos Domecq: o pedantismo, o humor irônico, a mistura de referências absurdas com citações verdadeiras. Começava assim, em uma noite de 1936, com uma família búlgara numa sala de jantar, uma das mais intensas parcerias da história da literatura.

PÓS-IOGURTE

Honorio Bustos Domecq, o ”terceiro homem” que assinou grande parte das narrativas em colaboração de Bioy e Borges, nasce em 1941, cinco anos depois da experiência com o iogurte. Bustos era o sobrenome de um bisavô de Borges; Domecq, de um bisavô de Bioy. Segundo Borges, ”Domecq não tardou a nos governar com mão de ferro e, para nossa grande alegria, e depois consternação, veio a ser muito diferente de nós, com seus próprios caprichos e chistes”. Para os críticos Michel Lafon e Benoit Peeters, que juntos publicaram Nous est un Autre, uma espécie de investigação sobre a escrita colaborativa, ”a voz de Bustos Domecq era grandiloqüente e extravagante, e não a mera superposição da voz dos autores, mas sua transcendência, nascida de um elo misterioso que só existia no ato da colaboração”. Quatro livros foram escritos sob a alcunha do autor-personagem: Seis Problemas para Dom Isidro Parodi (1942), Duas Fantasias Memoráveis (1946), Crônicas de Bustos Domecq (1967) e Novos Contos de Bustos Domecq (1977).

Esta parceria – que se desdobrou em traduções, organização de antologias, escrita de artigos, prefácios e roteiros de cinema – é a história de uma profunda amizade e, também, de intercâmbios e contaminações mútuas, em um diálogo literário vigoroso. Quando se conheceram, no início da década de 30, Bioy tinha 17 anos e Borges, pouco mais de 30. A partir de então, e por muito tempo, passaram a se encontrar com freqüência para discutir textos, inventar e aperfeiçoar personagens e tramas. Em seu ensaio autobiográfico, Borges escreve que um dos principais acontecimentos de sua vida foi o início desta relação. ”Ao se opor a meu gosto pelo patético, pelo sentencioso e pelo barroco, Bioy fez-me sentir que a discrição e o comedimento são mais convenientes”, anota Borges. ”Eu diria que Bioy foi me levando aos poucos ao classicismo.” Para Bioy, ”toda colaboração com Borges equivalia a anos de trabalho”. O autor de A Invenção de Morel diz que aprendia com o amigo sem nenhum pudor ou restrição: ”Quando duas pessoas escrevem juntas, e não são vaidosas, o resultado é melhor do que quando trabalham separadas”.

ECOS DE ECOS

Em Seis Problemas para Dom Isidro Parodi, que a Globo lança este mês em uma edição que inclui Duas Fantasias Memoráveis (tradução de Maria Paula Gurgel Pinheiro), pode-se dizer que Borges e Bioy (ou seja, Bustos Domecq) criam relatos policiais clássicos, nada de narrativas realistas ou psicológicas – ”mera verossimilhança sem invenção”. Nesse esquema de colaboração, Bioy e Borges discutiam a trama, norteados por uma série de regras: oralidade triunfante, propostas alternadas, exigência mútua, direito permanente de veto, prioridade ao jogo e ao prazer. Isidro Parodi, ”um quarentão, sentencioso, obeso e de olhos singularmente sábios”, encarna o limite e a paródia da idéia clássica do detetive imóvel, representação pura da inteligência analítica. No livro, tudo é resolvido a partir de uma seqüência lógica de hipóteses e deduções. A estrutura é simples: os envolvidos no crime acorrem à cela de Parodi, preso por um crime que não cometeu, e se põem a relatar os acontecimentos. Esses discursos escondem os indícios necessários para a resolução do caso, e não é raro que a reescritura, a paródia, o plágio e a tradução estejam entre os motivos ocultos do crime. Nada mais conveniente em uma escrita em dupla, observa Lafon, do que falar de si mesma.

As obras individuais de Bioy e Borges também estão repletas de temas que tangenciam e fazem ecoar a idéia do duo literário. Relatos como O Outro e Tema do Traidor e do Herói (Borges) ou A Trama Celeste e A Invenção de Morel (Casares) amplificam as questões do ”duplo” e das ”realidades paralelas”. No epílogo de suas obras em colaboração, depois de citar The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Stevenson, Borges diz: ”A arte da colaboração literária é a de executar o milagre inverso: fazer com que dois sejam um.” Um outro texto, Pierre Menard, a história do homem que reescreveu de maneira idêntica, linha por linha, o Quixote, encabeça o ataque à idéia de criação literária original, considerada por Borges um dos mais graves enganos. A reescritura, a paródia e o plágio são parte das estratégias de Borges para dissolver a idéia de autoria. O crítico Daniel Balderston escreve que Borges formulou em várias ocasiões sua idéia de que a criação literária é em grande parte algo impessoal, por ser cada escritor arquétipo de todos os escritores. ”Talvez, para Borges, a colaboração seja uma forma de superar o ”eu” e a idéia ególatra de que uma obra está possuída por seu autor”, argumenta Balderston. ”Para ele, somos todo o passado, somos nosso sangue, somos a gente que vimos morrer, os livros, somos gratamente os outros.”

TOM E JERRY DO THRILLER

É muito freqüente, no entanto, que os duos literários sejam ignorados ou menosprezados pela crítica, que costuma reduzi-los a circunstâncias determinadas: anos de aprendizagem, exercícios de estilo ou tarefas sob encomenda. Em muitas entrevistas, Bioy e Borges chegaram a considerar ”menores” as obras de Domecq. Em seu ensaio autobiográfico, no entanto, Borges afirma que alguns textos de Bustos Domecq são melhores do que tudo o que ele publicou sob o próprio nome e quase tão bons quanto aquilo que Bioy escreveu sozinho. Sobre The Wrecker, livro cuja autoria Stevenson dividiu com seu enteado, Borges diz: ”Esta novela é a melhor de Stevenson, mas permaneceu ignorada. Ninguém se aventura a elogiar páginas de duvidosa paternidade”.

Para Lafon e Peeters, os críticos costumam nivelar as obras em colaboração, atribuindo a verve literária às piruetas de dois acrobatas. Bioy e Borges suscitam, assim, as mesmas comparações que outros duos literários: são o Tom e Jerry do thriller, o Bouvard e Pécuchet do suspense, o Batman e Robin do crime, quando não o Fred Astaire e Ginger Rogers do romance. Como se essas comparações acabassem por alimentar uma condescendência divertida e dispensassem a análise verdadeira dos textos.

É MEU!, É MEU!

Os casos de parceria na literatura obedecem aos mais diversos princípios. Os inseparáveis irmãos Goncourt, por exemplo, escreviam um diário juntos e encarnaram o máximo da fusão literária, estética, afetiva e psicológica, muito além da escrita em dupla. Jules e Edmond inclusive dividiam as amantes. Já Alexandre Dumas e Auguste Maquet foram parceiros durante sete anos e produziram, juntos, 17 romances. Não haveria nenhum problema na colaboração, se Dumas não assinasse sozinho todos os livros. Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo e A Rainha Margot foram alguns dos romances dessa parceria.

Outro tipo de colaboração foi encarnado por Jules Verne e seu editor, Jules Hetzel. Verne era um autor inexperiente e fazia um papel quase submisso diante das exigências do chefe. O escritor chegava a implorar pela atenção do editor, dizendo que não poderia terminar o livro sem a presença dele. Também Colette e seu marido Willy mantiveram uma parceria literária. Durante dez anos, ela escreveu e ele assinou. Willy mantinha a esposa no anonimato e embolsava seus direitos autorais pela série da personagem Claudine, que fez muito sucesso na época. Mais feliz foi a parceria conjugal entre Julio Cortázar e Carol Dunlop, que escreveram juntos Os Autonautas da Cosmopista. O livro, um relato de uma viagem de carro pela auto-estrada Paris-Marselha, é uma mistura de fragmentos de manuais, diálogos, desenhos e fotografias, sem distinção de autoria. Para eles, a colaboração era uma maneira de lutar contra a morte e de celebrar o amor, a alegria compartilhada e a cumplicidade do instante. Mesmo Gustave Flaubert, o anti-colaborador por excelência, chegou a escrever um livro (nunca publicado) em parceria com o amigo Maxime Du Camp. Era o diário de uma viagem ao oeste da França, que inicialmente seria escrito ao longo da jornada – o que não deu certo, pois estamos falando do preciosista Flaubert. O livro teria doze capítulos: a Flaubert cabiam os ímpares e a Du Camp, os pares. O curioso é que algumas das passagens mais flaubertianas são da autoria de Du Camp. Misturas assim também aconteciam com Borges e Bioy. ”Quando alguém quer saber se essa ou aquela brincadeira ou epíteto saiu de meu lado da mesa ou do lado de Bioy, sinceramente não sei dizer”, confessa Borges. ”Toda colaboração é misteriosa.”

A parceria entre Borges e Bioy é, sobretudo, uma história de amizade. Na página que abre Ficções, dividem a cena um espelho e Bioy Casares. O conto é Tlõn, Uqbar, Orbis Tertius e nele Borges escreve: ”Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. (…) Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens.” Eles descobrem, juntos, que os espelhos têm algo de monstruoso. Nenhuma trama de Borges e Bioy é tão fantástica quanto Borges e Bioy.


Emilio Fraia e Vanessa Barbara são jornalistas, escrevem para a revista Piauí e, juntos, lançam este semestre seu primeiro livro, O Verão do Chibo (Alfaguara)

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,borges-e-bioy-ficcao-de-cano-duplo,140977,0.htm

História bem triste

Posted: 13th janeiro 2008 by Vanessa Barbara in Ficção
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Revista da Folha n. 800
13 de Janeiro de 2008

O palhaço subiu no Lauzane/178L e apareceu no corredor do ônibus com aqueles sapatões, jogou a pasta de couro no banco dos idosos e remexeu os bolsos em busca de uns trocados. Achou apenas uma interminável fila de lenços coloridos. O palhaço, que se recusara a pegar carona num fusca com outros doze colegas, teve que passar por baixo. Praguejou alguma coisa, cansado, e encostou a cabeça no vidro. O dia no escritório tinha sido difícil. O palhaço olhava pela janela e pensava no encarregado do trem-fantasma, que se afogara na tina dos elefantes porque não conseguia assustar ninguém.


VANESSA BARBARA, 25, é repórter da revista “Piauí” e editora do periódico “A Hortaliça”