A vida é curta. Fale rápido

Posted: 26th junho 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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A despeito da zombaria generalizada e perda total de reputação entre os meus pares, sempre gostei de “Gilmore Girls” (no Brasil, “Tal mãe, tal filha”, SBT, qua., 3h e Boomerang, ter. a sáb., 2h). É uma série corajosamente tola que durou de 2000 a 2007 e está disponível em 42 DVDs, sempre em liquidação.

A trama fala de uma jovem mãe solteira, Lorelai Gilmore, e de sua filha Rory. Ambas moram no pitoresco vilarejo de Stars Hollow, onde convivem com uma gama de personagens excêntricos – entre eles, um trovador residente, um cachorro chamado Paul Anka, um rapaz que aceita todos os empregos da cidade e um conselheiro municipal dado a longuíssimas e absurdas reuniões comunitárias.

Ao que tudo indica, a criadora Amy Sherman-Palladino (ao lado do marido, Daniel Palladino) parece seguir os preceitos do cineasta Billy Wilder, que mandava os atores refazerem as tomadas numa velocidade duas vezes maior: “Me dê uma alegria, corte uma semana dessa cena”.

Os diálogos de “Gilmore Girls” são torrenciais, ininterruptos e fazem parecer que todos injetaram cafeína no sangue. Os roteiros da série têm quase o dobro do tamanho normal, com uma página de texto por minuto.

Além da prolixidade e do vício por café, as garotas Gilmore dividem um gosto cinematográfico amplo e duvidoso, promovendo sessões comentadas de filmes diante de uma mesa cheia de comida. “Não sei por onde começar”, confessa Rory, ao que a mãe aconselha: “Bem, comece pelo topo e pare quando atingir a mesa.”

Num episódio típico, um maluco local decide protestar na praça, mas ninguém consegue entender sua demanda. “Acho que escutei ‘geleia’…”, alguém arrisca. “Ele é contra ou a favor de geleia?”, perguntam. O doido estende uma faixa com algo que começa com R, e alguém grita: “Ragu!”.

Como diz Lorelai, a realidade não tem chance em Stars Hollow.

Outro ponto alto são os monólogos da personagem ao se sentir constrangida, como num jantar de família em que ela inventa a frase foneticamente mais engraçada do idioma, “Oy with the poodles already”. Ou quando interage com Luke, o dono da cafeteria: “Eu quero um hambúrguer, anéis de cebola e uma lista de gente que matou os pais e saiu impune. Estou em busca de heróis”.

Coluna do Milton Leite

Posted: 23rd junho 2011 by Vanessa Barbara in Clipping
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Folha de S. Paulo
23 de Junho de 2011

Blog do Juca Kfouri

BELÍSSIMA
Digna de nota a coluna de Vanessa Barbara, no domingo, nesta Folha, sobre o narrador da vitória Milton Leite. Um texto leve e justo.


Folha de S. Paulo
20 de Junho de 2011

Painel do Leitor

Narrações de futebol
Até que enfim alguém da imprensa resolveu falar sobre Milton Leite, narrador de esportes do Sportv. Vanessa Barbara, na Ilustrada de ontem, mostra o que um telespectador comum gostaria de falar sobre o narrador.

Agora apareceu alguém diferente para narrar jogos pela televisão, fora da mesmice habitual.

Milton Leite, com seu jeito meio caipira, transmite as emoções que o telespectador está sentindo nas partidas, melhorando até esses jogos “mornos”, de um futebol meio acabado, que temos visto ultimamente. É hora de a Globo pensar em aposentar o Galvão.

TOMAZ DE AQUINO DOS SANTOS (Piracicaba, SP)

Veja você, Milton Leite

Posted: 19th junho 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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“O Osório vai embora com o seu caderninho, com o seu suco de morango, com seu adoçante líquido…”

É assim que o locutor Milton Leite, do SporTV, narra a expulsão do técnico Juan Carlos Osorio, do Once Caldas, em partida contra o Santos no mês passado.

Milton Leite é meu locutor preferido. Com seu estilo “Rock & Gol” de se ater às irrelevâncias, ele passa longuíssimos minutos reparando no técnico colombiano, cujo pitoresco método de comunicação com o time é mandar bilhetinhos através do capitão. “Nunca vi nada parecido em 30 anos de profissão”, comenta.

Além de empregar adjetivos com estilo (“foi uma reclamação acintosa”), ele é o mestre do sarcasmo, divertindo-se praticamente o tempo todo. Com o bordão “Que beleza!”, condena os lances mais ridículos, e com “Que fase!” ironiza o desempenho fraco de um clube.

Na partida da Libertadores, afirmou, sem rodeios, que um dos atletas não tinha “nenhuma habilidade”. Outras vezes, aplaude escorregadelas e tropicões, ou declara que alguém apanhou vergonhosamente da bola. “Acho que a esquerda não é muito boa na finalização do Caíque… Olha o câmera. Olha o esforço do câmera para acompanhar essa bola. Meu Deus.”

Durante o jogo de despedida de Ronaldo da Seleção, no dia 7, chegou ao ápice de sua carreira ao apelidar o atacante romeno Zicu de “o galinho de Bucareste”.

Valendo-se da experiência como locutor de rádio, Milton Leite não tem medo de improvisar. Hesitante, um jogador do Vasco recebeu a bola na pequena área e ficou decidindo pra onde chutava, ao que ele narrou: “Jéferson… Dominou… O que que eu faço com a bola? […] Ele bateu pra fora! Inacreditável!”

Não há limites para seu sarcasmo, o que é sempre bom quando se trata de uma partida importante, sisuda, dramática. “Ô, Bruno Octávio… Que beleza, Bruno Octávio… Ele nunca fez um gol na vida de fora da área. Aí, no Palmeiras e Corinthians, aos 39 do segundo tempo, ele pensou: ‘Agora eu se consagro!’ [sic] e pegou de tornozelo na bola. Ela veio parar perto da bandeirinha de escanteio”.

Mesmo quando é ele quem escorrega, Milton Leite não perde a pose: “Gol do Barueri”, ele confessa, logo após anunciar que a bola foi fora. “Veja você.”

Queria escrever

Posted: 16th junho 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Blog do IMS | Instituto Moreira Salles
16.06.2011, 13:50

O Instituto Moreira Salles acaba de lançar uma nova edição dos seus Cadernos de Literatura Brasileira. O número 26 da série, iniciada em 1996, é dedicado a Rubem Braga, o maior criador da moderna crônica brasileira. Em meio às homenagens prestadas pelo IMS ao cronista, o blog do ims convidou os escritores Vanessa Barbara, Antonio PrataChico Mattoso e Cecília Giannetti para criar um texto à maneira de Rubem Braga.

Abaixo, segue a colaboração de Vanessa Barbara.

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Queria escrever

Queria escrever um texto bonito, algo que a moça das verduras pudesse levar consigo no ônibus após um dia sem couves, e que ela fosse reler de mansinho e recortar para as amigas. Um texto sereno, bonito pra burro, que fizesse marejar os olhos de um velho coronel, por um momento arrependido de nunca ter sido jovem e nem trapezista – e de ter dispensado sua primeira namorada, só porque era hippie e não tinha todos os dentes.

Que seja tão inesperado e forte quanto um soluço, que faça despertar as tartarugas e sorrir os banguelas. Que o porteiro, quando ler, pense no seu jardim esquecido, em seus netos adultos e em uma vida só de reprises do Pica-Pau.

Um texto bonito para um determinado pombo, que, atrapalhado, se enroscou num fio de eletricidade e não saiu mais de lá. Isso foi num cruzamento de avenida; o pombo fez que ia conseguir escapar e não escapou, atraindo em minutos uma turba de curiosos, guardas de trânsito, senhoras palpiteiras, vendedores de mata-moscas. Quando fecharam o trânsito para socorrer a ave, um jovem policial militar ergueu a escada do caminhão de bombeiros, repassou o plano e foi cumprir o seu dever cívico; uma senhora ao meu lado exclamou, plena de gravidade histórica: “Olha só, fiquei toda arrepiada”.

Um texto para esse pombo, resgatado do fio de luz sob os aplausos do povo, ainda trêmulo e um pouco tímido, um pombo que possivelmente não terá maior momento de glória nessa sua vida emplumada. Um texto para os que estavam assistindo a tudo e entenderam, na hora, que havia quem passasse a vida inteira em busca de um momento como este, em que um pombo nervoso sai carregado pelos braços do povo, tendo mobilizado dois batalhões da PM e um destacamento especial do Corpo de Bombeiros. E havia gente nos beirais das lojas e nos meios-fios, e os funcionários do metrô dando uma pausa no trabalho, e alguém rezando em voz baixa.

Um texto bonito para a minha rua, para os meus amigos, para o cobrador do 1744 e para todos aqueles que dormem cedo demais. Algo bem tolo, desnecessário, que lembre poemas rimados, que agrade o vizinho cansado, o professor de astronomia, as verdureiras, os militares e os pombos que se enroscam em fios de luz.

Um texto bonito, mas tão bonito que você não possa deixar de lê-lo, ainda que, numa noite fria, ele precise se revelar misticamente numa sopa de letrinhas, todo arranjado em estrofes e ervilhas de pontuação, e você pense nele como pensa em gorrinhos. Um texto tão bonito que o faça botar uma roupa estranha, vestir o chapéu e se sentir instantaneamente aquecido, saindo à rua com a determinação trêmula de um pombo.

Um texto tão bonito que o faça voltar pra casa, meu amor, sob o triste cochilo da lua.


* Vanessa Barbara nasceu em 1982, em São Paulo. É jornalista, tradutora e editora do blog A Hortaliça. É autora deO livro amarelo do terminal (Prêmio Jabuti 2009 na categoria Reportagem), O verão do Chibo, em parceria com Emilio Fraia.

Histórias românticas

Posted: 12th junho 2011 by Vanessa Barbara in Folha de S. Paulo, TV
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Aos 44 anos, Judith Mawson encontrou o amor da sua vida. Após sair de um casamento traumático marcado por abuso de drogas, violência e traições, ela enfim conheceu um homem carinhoso, simples e correto, com quem passou 14 anos num casamento feliz.

Seu nome era Gary e ele posteriormente confessou ser o “Assassino de Green River”, um serial killer que estrangulou pelo menos 48 mulheres em quase duas décadas de atividade.

Na série “Com Quem *!$)& Me Casei?”, do Discovery Home & Health (ter. às 23h), Judith conta que tinha um relacionamento perfeito. Gary era atencioso e gentil. Levava a esposa para acampar, ensinou-lhe o “pasodoble”, cuidava dos poodles do casal e vivia fazendo passeios de bicicleta. Ela nunca teve motivos para duvidar de sua sinceridade.

“A única coisa que estranhei, quando fui morar com ele, é que não havia tapetes na casa”, ela recorda. Os detetives lhe disseram mais tarde que Gary devia ter usado os tapetes para enrolar os cadáveres.

É esse tipo de coisa que se descobre na bipolar e emocionalmente instável programação do Discovery Home & Health, um canal que, quando não está falando de grandes festas de casamento e de casas espetaculares, trata de infidelidades, brigas e demais atrocidades matrimoniais.

Às terças-feiras, a série conta o drama de pessoas que se casaram com ladrões de banco, espiões, falsários, bígamos ou golpistas, e só foram saber tarde demais. Mildred Muhammad, por exemplo, teve três filhos com John Allen que, após o divórcio, veio a se tornar o atirador de Washington, alvejando 17 pessoas a esmo só para poder matar Mildred sem despertar suspeitas.

Terça-feira também é dia de “Traidores”, no mesmo canal (às 22h), que exibe contos de fadas como o de uma chinesa, esposa de um chinês, que misteriosamente dá à luz um filho afro-descendente. Na série, pessoas comuns tentam juntar as peças de uma história mal contada e acabam descobrindo infidelidades e segredos dolorosos de seus cônjuges.

Tudo isso para comemorar o Dia dos Namorados com estilo e alegria. E só pra não dizer que sou catastrófica, o próprio Discovery dá a solução: “Carpinteiro a Domicílio”, todas as quartas às 20h30.

As formigas de Morgan Freeman

Posted: 5th junho 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Se há um papel que o ator Morgan Freeman sabe fazer é o de velho sábio com voz firme e comportamento sereno, bússola moral da sociedade, “voice over” da existência.

Em “Conduzindo Miss Daisy”, ele fez um motorista do tipo humilde que tira valorosas lições de vida de seu passado criando porcos. Em “Um Sonho de Liberdade”, fez um condenado endurecido pelo sistema, porém capaz de se entregar a uma amizade verdadeira.

No cinema, já aconselhou Robin Hood, Batman e Clint Eastwood, foi o presidente americano em “Impacto Profundo”, Nelson Mandela em “Invictus” e o próprio Deus em “Todo-Poderoso”.

Morgan Freeman, que aparentemente nunca foi jovem, instila uma esperança profunda advinda da experiência. Nada mais natural, portanto, que ele fosse o escolhido para apresentar o programa “Grandes Mistérios do Universo”, do Discovery Science (seg. às 21h), considerando-se que ele já entendeu tudo, há muito tempo.

Nesta série inédita de documentários, ele aborda as grandes incógnitas da existência, sob a ótica de novas teorias em astrobiologia, astrofísica e mecânica quântica. Tudo isso num tom duro, porém paternal, como nesta consideração sobre o Big Bang: “Como vamos saber se foi assim mesmo? Afinal, ninguém estava lá para ver”. As explicações científicas se alternam com lembranças de sua infância, com destaque para uma adorada fazendinha de formigas que ele criava no quarto.

Amanhã, serão abordados os buracos negros, que, segundo novas hipóteses, podem não passar de hologramas em duas dimensões na borda do universo. Nos programas anteriores, nosso velho sábio já discutiu a possibilidade de viagens no tempo, a existência de Deus e a criação da vida, destilando um farto número de hipóteses sobre quem somos, de onde viemos e o que existe para além da Terra.

A segunda temporada, que começa dia 8 nos EUA, terá um episódio de estreia sobre vida após a morte, seguido de discussões sobre a aparência dos aliens e a imortalidade.

Por algum motivo, a série não me convence – talvez porque, ao deixar inúmeras questões em aberto, ela tenta desviar o espectador de uma única certeza: Morgan Freeman já sabe tudo, e não há mais espaço para dúvidas. Nós somos as suas formigas.

O feijão necessário

Posted: 31st maio 2011 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
31 maio 2011, 10:45 am

Por Vanessa Barbara

 

Por muito tempo, houve no meu armário um saco de feijão de 1kg, intocável, que só podia ser devidamente cozido quando o responsável se comprometesse a substituí-lo por um de igual tamanho e conteúdo. De preferência, antes do dito cozimento.

Vejam: eu gosto de feijão. E a recíproca é verdadeira. Mas preciso do feijão ensacado (e portanto não comido) para poder ler meus livros, sobretudo os mais extensos e difíceis de manejar — dia desses, descobri que o saco de tal leguminosa é o melhor suporte de livro aberto que se pode ter em casa. Por exemplo: gosto de ler durante as refeições. Mas é preciso ter as duas mãos livres para o garfo e a faca, ou mesmo para segurar o pão e se sujar de manteiga, e nada disso é possível quando se decide ler a biografia do Hitler recém-lançada pela Companhia das Letras (Ian Kershaw, 1060 pp.), que não fica aberta sozinha nem se você ficar incansavelmente soprando a folha de seu interesse. Ou ligar um ventilador cenográfico.

A questão toda é manter o livro aberto enquanto se manuseia outra coisa, e isso só é possível obter no caso daqueles livros dos anos 70, amarelados e mal costurados, que se pode inclusive levar na bolsa em fascículos e escancará-los a cada página virada — embora nunca mais voltem ao normal por si mesmos.

Pois bem: aos que ainda não sabem, o feijão é uma vagem das mais literárias. Arranjados confortavelmente dentro da embalagem fechada, seus grãos se prestam à moldagem generosa sobre o manuscrito, sem serem lenientes às páginas — quando ainda estamos iniciando uma leitura, convém transferir a maior parte dos grãos para a metade direita do volume, ainda inédita, mantendo um aglomerado modesto sobre as páginas recém lidas, suficiente apenas para não fechar o livro. E vice-versa. Os feijões ganham o direito de se espalhar de maneira uniforme quando chegamos ao miolo da trama, como na foto acima, na qual utilizei um pujante exemplar da marca Kicaldo.

Já tentei sacos de arroz (material pouco robusto), café (inútil), vasos (nada moldáveis), pesos de porta (alguns são bons), a quina do próprio prato (não serve para livros grandes e só funciona mediante o peso da comida) e o meu próprio cotovelo, o que evidentemente gerou uma série de acidentes envolvendo molho de tomate e gordura.

* * * * *

Um dilema parecido pode acometer aqueles que leem com calma, sentados ou deitados, e decidem reservar um momento exclusivo só para a apreciação do volume impresso. É tão difícil quanto. Primeiro: ler deitado é aviltante à coluna cervical (e lombar), não bastando trocar de lado a cada dez minutos ou tentar se concentrar só nas páginas ímpares (quando se deita sobre o lado esquerdo), ou sustentar os braços com o livro acima da cabeça, ou botar um apoio para erguer levemente o tronco, ou ler de barriga pra baixo com uma almofada no queixo.

Já pensei em confeccionar um dispositivo transparente que servisse como capacete de sustentação de livros abertos a uma distância média de 20 centímetros, com um clipe móvel, talvez de aço inox, talvez de plástico, permitindo ao leitor deitar, levantar e andar, sem perder o fio da meada. Seria um andaime móvel de leitura (a sigla, AMOLE, traria embutida a mensagem de não perturbar o usuário).

Em geral, ler sentado também pode ser sinônimo de cervicalgia, dependendo da altura da mesa, do design da cadeira e do grau de proficiência ocular do leitor. É preciso ter coragem e um bom alongamento prévio. Lembrando sempre que cochilar durante o ato numa poltrona macia demais é o mesmo que ir de encontro a um poste numa corrida de patins — ou seja, meses de fisioterapia, torcicolo e Salompas.

Há também a opção menos mambembe de adquirir um leitoril — em madeira ou plástico translúcido, pronto ou feito sob medida, é um objeto que dá suporte vertical ao livro aberto e prende suas páginas no lugar. É ótimo para tradutores, copistas e usuários de colar cervical que só podem olhar para a frente. Um exemplo intrincado de leitoril lusitano pode ser visto neste link. Tal objeto também pode ser chamado de “atril”, embora esse termo seja mais específico para um móvel do tipo púlpito onde se pode ler de pé, como nas igrejas.

Outra opção para evitar o lumbago é trazer sempre consigo os livros de cor, sobretudo os poemas, de modo que podem furar nossos olhos e nos condenar à eterna fisioterapia que continuaremos relendo. Fica uma sugestão:

When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim Soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.

*[Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;

Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;

Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.]

W. B. Yeats, tradução de José Agostinho Baptista

* * * * *

Vanessa Barbara tem 28 anos, é jornalista e escritora. Publicou O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o Escavador de Umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Retratação

Posted: 29th maio 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Vários leitores escreveram com tochas e tridentes em repúdio à coluna de 22/5/11 sobre o “Profissão Repórter”, um programa tão útil quanto um bolso de pijama.

“Como um assíduo usuário de pijamas, achei um pouco ofensiva a comparação. No frio de Florianópolis, o bolso de pijama serve para esquentar a mão que não está segurando o controle remoto. O mesmo não pode ser dito deste programa ‘jornalístico’”, afirma o leitor Ricardo Selke, soltando fúria pelas ventas.

Meu próprio avô me censurou duramente. Ora, todos sabem que o bolso do pijama serve para abrigar o rádio de pilha, o IPod ou o próprio controle remoto, numa incursão emergencial à cozinha.

Resumindo, ele é necessário “pra você ter onde guardar suas coisas quando passa o dia inteiro de pijama”, defende a inflamada Diana Passy. “Seria muito mais fácil se eu pudesse guardar meu IPhone no bolso, em vez de ter que equilibrá-lo entre um copo de suco e um prato com caqui, enquanto eu subo as escadas.”

O bolso de pijama supre parcialmente uma demanda ainda premente, que dispõe sobre o pouso temporário de controles remotos durante um filme de mais de 3 horas, digamos, Ben-Hur (1959, William Wyler).

Aqui em casa, temos o controle da TV, o dos canais a cabo, o do Blu-Ray, o do VHS e o do DVD. Dependendo do que estamos assistindo, é preciso deixar à mão dois ou três controles, que fatalmente serão engolfados pelas dobras do sofá, pelas almofadas ou por um vórtice paralelo localizado em algum canto da sala, para onde convergem os isqueiros e as tartarugas.

Existem caixas do tipo “porta-controles”, que são de pouquíssima ou nenhuma valia. O ideal mesmo seria ter um sistema de fios presos ao teto por ventosas, de onde penderiam os controles, na altura do ocupante do sofá. Quando em desuso, grudaríamos os aparelhos à parede com velcro.

Assim eles ficariam ao alcance e não haveria chance de sentarmos em cima, mudando de canal bem na hora em que o Charlton Heston baba na túnica ou quando surge em cena uma gloriosa plataforma de aço galvanizado, pouco antes do momento das corridas.

De modo que peço desculpas publicamente se ofendi os designers de pijama e os bolsos em si. Prometo ser menos leviana.

Bolso de pijama

Posted: 22nd maio 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou uma liminar ao advogado Marcelo Delmanto Bouchabki, que pretendia vetar a exibição de um episódio do programa “Profissão Repórter” (Globo, ter., 23h30) sobre o chamado “Crime da Rua Cuba”.

A matéria gerou expectativa até finalmente ser veiculada, no dia 17.

O programa inteiro durou uns 25 minutos. Os temas foram o Crime da Rua Cuba e o trabalho da perícia forense no Recife e em São Paulo, numa colagem de três assuntos supostamente complementares que, na verdade, se sucediam em flashes, sem que nada fosse abordado de fato.

Ainda que a atração seja produzida por jovens aspirantes, o problema é o esforço em parecer gente grande – repetindo uma fórmula batida sem nem sequer disfarçar.

A receita começa com uma afirmação bombástica e a promessa de que muitos segredos serão revelados, em tempo real, com a ajuda de câmeras escondidas e intrépidos estagiários correndo atrás de gente com fotofobia.
Alguém comenta sobre a importância do trabalho do jornalista, desfia uns adjetivos e corta para um caso real, como o homicídio de um jovem na capital pernambucana. A repórter, imbuída de boas intenções, espeta o microfone no rosto do pai da vítima, que chora junto ao cadáver e ainda tem que fazer uma declaração qualquer.

A matéria da rua Cuba teve início, claro, na rua Cuba, com a dupla de jornalistas tocando a campainha da atual proprietária da casa onde ocorreu o crime e tentando convencê-la a abrir a porta. À guisa de justificativa, alegam que é importante insistir, como se estivéssemos falando de uma arriscada cirurgia cardíaca – e não de repórteres alvoroçados em busca de revelações estrondosas e tão necessárias quanto um bolso de pijama.

Permeado por cenas fortuitas de crimes em Recife e São Paulo, o miolo da edição consistiu em conversas telefônicas com o principal suspeito – 22 anos depois –, sob o pretexto de dar a ele uma oportunidade de se expressar.

E terminou com closes do documento da Justiça em favor do programa (as partes mais buliçosas realçadas e ampliadas), a fim de mostrar como eles são importantes, temidos e sérios. Olha, mãe, sou eu na tevê.

A questão das estantes

Posted: 19th maio 2011 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
3 maio 2011, 10:36 am

Por Vanessa Barbara

Sem querer desmerecer assuntos de interesse mais amplo, como o aquecimento global, a expansão inevitável do Universo, o fato de nascermos e morrermos sozinhos e a falta generalizada de sentido na vida, há que se refletir sobre um problema pouco discutido que atinge dez entre dez leitores destituídos do sobrenome Mindlin: a questão das estantes. É certo que o tópico perdeu parte de sua relevância com a popularização dostablets,* mas não se pode negar que a falta de espaço para os livros continua a aterrorizar os patrícios, moradores de apartamentos com apenas dois dígitos de metros quadrados, e por vezes nem tão quadrados assim — há quinas arredondadas que prejudicam ainda mais a catalogação e organização dos itens domésticos.

É algo que ninguém leva em consideração ao desposar um editor da Companhia das Letras, mas que devia constar do contrato pré-nupcial: como conciliar duas bibliotecas ambiciosas e prever um espaço extra para acomodar cerca de 25 lançamentos por mês, sendo que só em abril tivemos uma biografia do Borges com 672 páginas, um romance de Martin Amis com 528, um estudo sobre Rousseau de 600 e uma brochura sobre matemática de três centímetros de espessura, num total inacreditável de 7.628 páginas impressas. Em termos de espaço, são mais de 45 centímetros a serem liberados nas prateleiras. Isso sem contar as coletâneas do Don Martin e do Sherlock Holmes que chegam pelo correio, como se fôssemos um casal de latifundiários das estantes, sócios acionistas da Tok&Stok, zeladores da Biblioteca Nacional.

Diante desse impasse imemorial, muita gente cai em desespero e toma medidas drásticas. O casal de tradutores-professores Caetano Galindo e Sandra Stroparo deixou de ler o romance 2666, de Roberto Bolaño, simplesmente porque não cabia dentro da casa. Embora eles tenham recorrido a novas prateleiras instaladas no quarto de dormir, bem em cima da cama, ela admite que o esquema não vai durar muito: “Há duas semanas comprei o livro do Huizinga. Veja só. Eu não presto mesmo.”

O também tradutor Alexandre Barbosa de Souza é outra vítima do excesso de livros numa escassez de paredes. Após render-se à incômoda lógica da fila dupla — e até tripla, relegando a maioria dos livros ao ostracismo tátil e visual —, ele encontrou um jeito de se ater à fila única. Decidiu fixar um número médio entre 1.500 e 2 mil volumes (já chegou a ter 4 mil), que mantém através de um espartano sistema de “entra um e sai outro”. Por exemplo: um lançamento do Gay Talese só encontraria lugar na biblioteca se um Lehane ou um Nabokov saísse. “Mas há critérios”, ele expõe, gravemente. “Uma Aguilar ou Pléiade, por exemplo, exclui os volumes avulsos do autor; em suma, uma edição mais completa substitui uma mais singela. Mas, claro, tenho coisas que nunca sairão em novas edições e a maioria dos meus livros vem de sebo mesmo.”

* * * * *

Talvez com a maturidade venha a coragem de adotar o sistema de exclusão, mas por enquanto o que vigora aqui em casa é o Deus-nos-acuda. Toda vez que chega uma leva de lançamentos — as caixas heroicamente trazidas com a ajuda de gente de fibra como o Arthur, do atendimento ao professor —, há uma operação de estica-e-empurra que demora alguns dias.

Depois de muita deliberação, decidimos adotar um sistema peculiar e duvidoso. Aproveitamos as estantes de ferro que já ocupavam as paredes do escritório para eleger nelas a chamada “Estante A”, só com títulos de autores de estirpe, as obras de que mais gostamos ou que, por algum motivo, consultamos e relemos com mais frequência. Ali se encontra a seção Marx (Groucho e Karl), os ficcionistas de nossa predileção e os dicionários.

Junto ao teto do escritório, nosso intrépido marceneiro Ulisses (não estou inventando) instalou duas compridas prateleiras que dão toda a volta no aposento, tornando viável o sonho da “Estante B”. Nela armazenamos os autores raramente lidos, os livros de que menos gostamos ou que consultamos só de vez em quando. Embora o critério pareça definitivo, é passível de discussões. Não raro, rotulamos uma obra por pura birra e despeito — por exemplo, Saramago um dia foi parar na Estante B. Não que desgostemos de sua escrita, muito pelo contrário — mas é que, na hora da arrumação, julgamos que ele já estava acostumado com honrarias e que sua presença na Estante A poderia torná-lo arrogante. Autores temporariamente de castigo também vão para a estante B, a fim de refletir sobre o que andam fazendo e talvez mudar os rumos de sua produção artística.

Ambas as estantes seguem uma rigorosa, porém sofrida, ordem alfabética por sobrenome do autor, e quando digo “sofrida”, refiro-me à fileira que compreende Schnitzler, Schneiderman, Schwarcz, Schwarz. Outra dificuldade envolve os livros meramente afetivos, como o infantil Tungo-Tungo, consagrado na letra T, entre Tucídides e Turguêniev. E o que dizer de Mario Vargas Llosa? No V ou no L?

Nos últimos tempos, tivemos que retirar os livros de arte das estantes oficiais e encaixotá-los no quarto dos fundos, diante da crise doméstica do fim de ano, quando os editores tradicionalmente fazem uma limpeza de suas mesas e trazem todo tipo de papel para casa. Há que se mencionar que temos uma estante na sala só de quadrinhos, que também já sofreu reveses com a superpopulação.

Isso traz graves implicações no mundo literário. Sinto informá-los, por exemplo, que não temos mais espaço para autores com o sobrenome iniciado pela letra C. É lamentável, mas recomendamos ao sr. Coetzee que mude de nome, adote um pseudônimo diferente de Costello ou desista da literatura. João Paulo Cuenca e André Czarnobai já foram informados. Assim como o dono da casa, que se viu repentinamente impedido de publicar um romance. Na letra C não cabe nem mais um haicai.

Por outro lado, o sobrenome S ainda tem vagas, sobretudo pelo downgrade do Saramago. E atenção, jovens romancistas: ainda não ocupamos a cozinha e a geladeira. Há esperanças.

*Uma ressalva deve ser feita com relação ao menino que tentou imprimir toda a internet — Cody Darnell, de 9 anos, apostou 50 dólares com o primo, dizendo que conseguiria imprimir todo o conteúdo da Rede Mundial de Computadores. Estamos com você, Cody.

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Vanessa Barbara tem 28 anos, é jornalista e escritora, casada com o editor André Conti. Publicou O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem),O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o Escavador de Umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.