A questão das estantes

Postado em: 19th maio 2011 por Vanessa Barbara em Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
3 maio 2011, 10:36 am

Por Vanessa Barbara

Sem querer desmerecer assuntos de interesse mais amplo, como o aquecimento global, a expansão inevitável do Universo, o fato de nascermos e morrermos sozinhos e a falta generalizada de sentido na vida, há que se refletir sobre um problema pouco discutido que atinge dez entre dez leitores destituídos do sobrenome Mindlin: a questão das estantes. É certo que o tópico perdeu parte de sua relevância com a popularização dostablets,* mas não se pode negar que a falta de espaço para os livros continua a aterrorizar os patrícios, moradores de apartamentos com apenas dois dígitos de metros quadrados, e por vezes nem tão quadrados assim — há quinas arredondadas que prejudicam ainda mais a catalogação e organização dos itens domésticos.

É algo que ninguém leva em consideração ao desposar um editor da Companhia das Letras, mas que devia constar do contrato pré-nupcial: como conciliar duas bibliotecas ambiciosas e prever um espaço extra para acomodar cerca de 25 lançamentos por mês, sendo que só em abril tivemos uma biografia do Borges com 672 páginas, um romance de Martin Amis com 528, um estudo sobre Rousseau de 600 e uma brochura sobre matemática de três centímetros de espessura, num total inacreditável de 7.628 páginas impressas. Em termos de espaço, são mais de 45 centímetros a serem liberados nas prateleiras. Isso sem contar as coletâneas do Don Martin e do Sherlock Holmes que chegam pelo correio, como se fôssemos um casal de latifundiários das estantes, sócios acionistas da Tok&Stok, zeladores da Biblioteca Nacional.

Diante desse impasse imemorial, muita gente cai em desespero e toma medidas drásticas. O casal de tradutores-professores Caetano Galindo e Sandra Stroparo deixou de ler o romance 2666, de Roberto Bolaño, simplesmente porque não cabia dentro da casa. Embora eles tenham recorrido a novas prateleiras instaladas no quarto de dormir, bem em cima da cama, ela admite que o esquema não vai durar muito: “Há duas semanas comprei o livro do Huizinga. Veja só. Eu não presto mesmo.”

O também tradutor Alexandre Barbosa de Souza é outra vítima do excesso de livros numa escassez de paredes. Após render-se à incômoda lógica da fila dupla — e até tripla, relegando a maioria dos livros ao ostracismo tátil e visual —, ele encontrou um jeito de se ater à fila única. Decidiu fixar um número médio entre 1.500 e 2 mil volumes (já chegou a ter 4 mil), que mantém através de um espartano sistema de “entra um e sai outro”. Por exemplo: um lançamento do Gay Talese só encontraria lugar na biblioteca se um Lehane ou um Nabokov saísse. “Mas há critérios”, ele expõe, gravemente. “Uma Aguilar ou Pléiade, por exemplo, exclui os volumes avulsos do autor; em suma, uma edição mais completa substitui uma mais singela. Mas, claro, tenho coisas que nunca sairão em novas edições e a maioria dos meus livros vem de sebo mesmo.”

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Talvez com a maturidade venha a coragem de adotar o sistema de exclusão, mas por enquanto o que vigora aqui em casa é o Deus-nos-acuda. Toda vez que chega uma leva de lançamentos — as caixas heroicamente trazidas com a ajuda de gente de fibra como o Arthur, do atendimento ao professor —, há uma operação de estica-e-empurra que demora alguns dias.

Depois de muita deliberação, decidimos adotar um sistema peculiar e duvidoso. Aproveitamos as estantes de ferro que já ocupavam as paredes do escritório para eleger nelas a chamada “Estante A”, só com títulos de autores de estirpe, as obras de que mais gostamos ou que, por algum motivo, consultamos e relemos com mais frequência. Ali se encontra a seção Marx (Groucho e Karl), os ficcionistas de nossa predileção e os dicionários.

Junto ao teto do escritório, nosso intrépido marceneiro Ulisses (não estou inventando) instalou duas compridas prateleiras que dão toda a volta no aposento, tornando viável o sonho da “Estante B”. Nela armazenamos os autores raramente lidos, os livros de que menos gostamos ou que consultamos só de vez em quando. Embora o critério pareça definitivo, é passível de discussões. Não raro, rotulamos uma obra por pura birra e despeito — por exemplo, Saramago um dia foi parar na Estante B. Não que desgostemos de sua escrita, muito pelo contrário — mas é que, na hora da arrumação, julgamos que ele já estava acostumado com honrarias e que sua presença na Estante A poderia torná-lo arrogante. Autores temporariamente de castigo também vão para a estante B, a fim de refletir sobre o que andam fazendo e talvez mudar os rumos de sua produção artística.

Ambas as estantes seguem uma rigorosa, porém sofrida, ordem alfabética por sobrenome do autor, e quando digo “sofrida”, refiro-me à fileira que compreende Schnitzler, Schneiderman, Schwarcz, Schwarz. Outra dificuldade envolve os livros meramente afetivos, como o infantil Tungo-Tungo, consagrado na letra T, entre Tucídides e Turguêniev. E o que dizer de Mario Vargas Llosa? No V ou no L?

Nos últimos tempos, tivemos que retirar os livros de arte das estantes oficiais e encaixotá-los no quarto dos fundos, diante da crise doméstica do fim de ano, quando os editores tradicionalmente fazem uma limpeza de suas mesas e trazem todo tipo de papel para casa. Há que se mencionar que temos uma estante na sala só de quadrinhos, que também já sofreu reveses com a superpopulação.

Isso traz graves implicações no mundo literário. Sinto informá-los, por exemplo, que não temos mais espaço para autores com o sobrenome iniciado pela letra C. É lamentável, mas recomendamos ao sr. Coetzee que mude de nome, adote um pseudônimo diferente de Costello ou desista da literatura. João Paulo Cuenca e André Czarnobai já foram informados. Assim como o dono da casa, que se viu repentinamente impedido de publicar um romance. Na letra C não cabe nem mais um haicai.

Por outro lado, o sobrenome S ainda tem vagas, sobretudo pelo downgrade do Saramago. E atenção, jovens romancistas: ainda não ocupamos a cozinha e a geladeira. Há esperanças.

*Uma ressalva deve ser feita com relação ao menino que tentou imprimir toda a internet — Cody Darnell, de 9 anos, apostou 50 dólares com o primo, dizendo que conseguiria imprimir todo o conteúdo da Rede Mundial de Computadores. Estamos com você, Cody.

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Vanessa Barbara tem 28 anos, é jornalista e escritora, casada com o editor André Conti. Publicou O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem),O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o Escavador de Umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.