Reportagens, crônicas, traduções, preparações e ficções publicadas nos mais diversos veículos da imprensa mandaquiense, nacional e interplanetária, em troca de exíguas patacas que possam custear os meus vícios.
Era uma madrugada fria de julho quando vi no Facebook a foto recente de um vira-lata caramelo parado na calçada, com as orelhinhas baixas e uma cara de abandono. Ele estava dormindo ao relento a poucas quadras da casa dos meus pais. Os termômetros marcavam menos de 10 graus. A moça que postou a foto pedia ajuda para acolhê-lo. “Parece um Pokémon”, comentou o Gigio. (Mais especificamente o Eevee, que é marrom e tem as orelhas pontudas.)
A foto era de derreter a alma, então ofereci a casa dos meus pais como lar temporário. Eu poderia acolhê-lo por quatro dias e cuidar dele até chegar a data de uma viagem.
A noite do resgate foi ridícula. O cachorro estava desconfiado e fugia quando nos aproximávamos, de modo que eu, Elaine e Silene passamos uma hora dentro de um carrão preto seguindo um vira-lata, feito três espiãs atrapalhadas, tentando pensar num jeito de ganhar a confiança do quadrúpede. A veterinária dra. Thais Toma veio nos ajudar e só então conseguimos.
Pokémon chegou numa sexta-feira com as costelinhas à mostra, desnutrido e assustado. Parecia uma hiena famélica. O rabo estava enfiado no meio das pernas e ele mantinha a cabeça baixa. Fez exames de sangue, ganhou um banho e começou a tomar antibiótico. Sua idade estimada é de 3 anos.
Após uns poucos dias comigo, Pokémon começou a abanar o rabo e brincar de dar lambidas. Gostava de tomar sol e passear na rua – e sobretudo das vezes em que eu lhe oferecia uma certa ração molhada com o rosto enorme de um cachorro na embalagem. Um dia, saí no quintal carregando oito pacotes da tal ração viciante (uma espécie de crack canino) e me deparei inesperadamente com ele no corredor. Diante daquela visão, Pokémon quase teve um ataque cardíaco e deu saltos em parafuso no ar, como se tentasse dizer que era o dia mais feliz da vida dele se eu resolvesse deixá-lo comer tudo de uma vez.
Como as criaturas do desenho animado, Pokémon começou a evoluir. Parou de vomitar, redobrou o apetite e saltitava com frequência. Latia para as minhas tartarugas e depois fugia delas, desconfiado. O pelo ficou mais brilhante, as orelhas para o alto, a pança pedia carinho. Era outro Pokémon: praticamente um Vaporeon.
Fui viajar e deixei-o com a Elaine e a Silene, que se revezaram nos cuidados com o cão. Com a ajuda financeira de uma rede de amigos, ele concluiu uma segunda rodada de antibióticos, foi castrado e colocado para adoção responsável. Minha amiga Denise se interessou pela curiosa criatura e finalmente hoje ele vai para o lar definitivo, depois de três meses de evolução.
Semana passada fiquei sabendo de um poodle idoso, debilitado e meio cego, que foi abandonado em Osasco e resgatado pela ONG Bendita Adoção. Entrou numa depressão profunda.
SÃO PAULO, Brasil — Quando vou cobrir um protesto no Brasil, faço questão de levar um capacete, uma mascara de gás e um par de óculos de proteção contra lacrimogêneo. Uso tênis para poder escapar da polícia, e calças compridas para me proteger de estilhaços de bomba e balas de borracha. Carrego também uma câmera digital e o telefone de um advogado. Minha carteirinha de imprensa sempre fica pendurada no pescoço.
Os protestos de rua têm sido um elemento recorrente da vida política brasileira nos últimos três anos. A onda de manifestações começou em junho de 2013, quando milhões de pessoas tomaram as ruas contra o aumento das tarifas de transporte público. Os atos atingiram novo ápice nos meses anteriores à Copa do Mundo de 2014. E voltaram com força desde agosto, quando Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, de centro-esquerda, foi afastada da presidência após alegações de manipular o orçamento público.
A volta das manifestações trouxe consigo violentas reações policiais, que tendem a ser mais intensas contra protestos de esquerda. (As autoridades pareceram aprovar os protestos anti-Dilma.) Embora a polícia militar, que é subordinada aos governadores dos estados, não esteja necessariamente alinhada à direita, ela segue princípios de ordem e subordinação. E parece enxergar os manifestantes como inimigos e ameaças à ordem social.
Já houve inúmeras vítimas. Apenas em São Paulo, a polícia cegou quatro pessoas em protestos nos últimos anos. A mais recente foi Deborah Fabri, uma estudante de 19 anos que foi atingida no olho por estilhaços de uma bomba durante um protesto em agosto contra Michel Temer, o presidente interino. Outro jovem de 19 anos, Vitor Araújo, perdeu o olho direito em setembro de 2013 durante um protesto contra a corrupção.
Dois fotojornalistas, Sérgio Andrade da Silva e Alex Silveira, perderam a visão após serem atingidos por balas de borracha. Eles processaram o estado de São Paulo, mas em ambos os casos a corte determinou que não tinham direito a indenização, pois teriam se colocado em perigo.
Portanto, os manifestantes estão tomando a segurança em suas próprias mãos. Em São Paulo, um grupo de socorristas pode ser encontrado em manifestações fazendo curativos em sangramentos na cabeça, cuidando de fraturas expostas e desinfetando ferimentos. Às vezes, esses voluntários não dão conta de tantas pessoas feridas e outros entram para ajudá-los, como a minha mãe de 62 anos, que costuma carregar aos protestos um kit de primeiros socorros contendo luvas de borracha, soro fisiológico, água oxigenada, spray antisséptico, gaze, ataduras e máscaras cirúrgicas para proteger as pessoas do gás lacrimogêneo.
Os manifestantes também criaram suas próprias instituições para defender seus direitos. Grupos de observadores legais e advogados voluntários costumam acompanhar os atos, cuidando para ver se a polícia não viola a lei. Os observadores tomam nota de procedimentos ilegais como a remoção de tarjetas de identificação, o uso de gás lacrimogêneo com validade vencida, o emprego inadequado de armas menos letais e o uso desproporcional da força.
Infelizmente, isso não parece tolher a polícia. Em um protesto contra a Copa do Mundo de 2014, a corporação deteve 262 pessoas, quase 20% do protesto. Os policiais alegaram que a massa foi detida para “averiguação”, mas tal procedimento é extremamente controverso e, muitos dizem, ilegal.
Ao término dos protestos, um grupo denominado Advogados Ativistas faz uma ronda nas delegacias em busca dos detidos, pois os policiais raramente dão a informação sobre o distrito policial para onde os estão levando – ou mesmo qual a causa da detenção.
Além de reprimir duramente ativistas, socorristas e advogados, a polícia também persegue jornalistas, sobretudo fotógrafos. Em outubro de 2013, Yan Boechat viu um grupo de policiais militares agredindo um socorrista durante uma manifestação em São Paulo. Boechat imediatamente começou a registrar a cena. Quando se recusou a obedecer a ordem de parar de fotografar, foi espancado por 13 policiais. Sua câmera foi destruída.
Em uma nota mais surreal, semanas atrás, o fotógrafo Antonio Rodrigues foi acusado de agredir um policial com a câmera e tentar roubar seu cassetete. (Ele alega, de forma mais plausível, que só estava tentando se proteger dos golpes.) Muitos dos meus colegas fotógrafos dizem que, mesmo quando seu equipamento é deixado intacto, alguém na delegacia apaga todos os vídeos e fotos.
Até hoje, nenhum policial foi punido por violência excessiva ou abuso de autoridade em protestos. Eu poderia passar páginas recontando casos de abuso policial em manifestações, mas, se tivesse de escolher apenas um episódio, seria a prisão de 26 estudantes, em sua maioria secundaristas, duas horas antes de um protesto em setembro em São Paulo.
Os estudantes foram acusados de fazer parte de um “black bloc”, nome dado aos adeptos de uma tática anarquista que às vezes vandaliza alvos simbólicos como bancos e prédios do governo. Os estudantes passaram a noite no Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), sem acesso a advogados. A polícia recusou-se inclusive a divulgar seus nomes.
Jornalistas reportaram que a detenção foi provavelmente orquestrada por um capitão do Exército infiltrado que estava posando de ativista no Tinder e em grupos de WhatsApp. De acordo com reportagens, há suspeitas de que ele estaria infiltrado há pelo menos um ano. A polícia militar nega qualquer conhecimento da operação de inteligência, embora no local estivessem de prontidão dezenas de policiais, inúmeras viaturas, ônibus e até um helicóptero sobrevoando o Centro Cultural onde eles estavam reunidos, a 2,5km do local do protesto.
O que a polícia encontrou em poder desses nefastos e pretensos sabotadores? Kits de primeiros socorros, máscaras de gás, garrafas de vinagre, óculos de proteção, aparelhos celulares, folhetos políticos, canetinhas, um extintor de incêndio para automóveis, um estilingue e um chaveiro do Pateta. Nada muito diferente do que eu costumo levar em protestos, tirando o fato de que eu não tenho um chaveiro tão bacana. Eles foram liberados mais de 24 horas depois porque o juiz considerou a detenção irregular.
O Brasil segue em turbulência. Os protestos irão continuar. Gostaria de ter a esperança de que o abuso contra manifestantes irá terminar. Mas nada vai mudar enquanto a polícia continuar tratando os manifestantes como criminosos, e não como cidadãos exercendo seus direitos. Os policiais deviam ser treinados para agir de acordo com as normas democráticas e dentro da lei, assim como os manifestantes são instados a fazê-lo. Acima de tudo, precisam ser responsabilizados quando violam a lei.
E se isso não acontecer, os manifestantes terão que tomar a responsabilidade para si. Já vi isso acontecer uma vez: manifestantes formaram seu próprio grupo de segurança para proteger as pessoas do abuso policial. Isso pode ficar feio.
Vanessa Barbara é cronista do jornal O Estado de São Paulo, editora do site literário A Hortaliça e colunista de opinião do INYT.
Este texto foi publicado em inglês na página A15 do The New York Times do dia 19 de outubro de 2016, com o título: The impunity of Brazil’s riot cops. Tradução da autora.
SÃO PAULO, Brazil — When I cover a street protest in Brazil, I make sure to bring a helmet, a gas mask and a pair of goggles as protection from tear gas. I wear running shoes so I can escape from the police, and long pants as protection from shrapnel and rubber bullets. I carry a digital camera and a lawyer’s phone number. My press card always hangs around my neck.
Protests have been a regular feature of Brazilian political life for the last three years. The wave of demonstrations began in June 2013, when millions took to the streets against an increase in public transport fares. Demonstrations peaked again in the months before the 2014 World Cup. And they have been back with a vengeance since August, whenDilma Rousseff of the center-left Workers Party was stripped of the presidency because of allegations that she manipulated the state budget.
The rise in protests has brought with it violent police responses, which tend to be most intense against left-wing demonstrations. (The military police seemed to welcome anti-Rousseff protests.) Although the military police, which are under control of the state governors, are not necessarily aligned with the right, they follow principles of order and subordination. They seem to regard protesters as enemies and threats to the social order.
There have been many casualties. In São Paulo alone, policemen have blinded four people at protests in the past few years. The most recent was Deborah Fabri, a 19-year-old student who was hit in the eye with shrapnel from a stun grenade during a protest in August against Michel Temer, the interim president. Another 19-year-old, Vitor Araujo, lost his right eye during a September 2013 rally against corruption.
Two photojournalists, Sérgio Andrade da Silva and Alex Silveira, were blinded by rubber bullets. They sued the state of São Paulo, but in both cases the court ruled that they were not entitled to compensation because they had put themselves in danger.
Protesters are taking their safety into their own hands. In São Paulo, a first-aid group can be found at demonstrations applying bandages to bleeding foreheads, setting fractures and disinfecting wounds. Sometimes, these volunteers aren’t able to handle the number of injured people and others step in, like my 62-year-old mother, who carries a first-aid kit with rubber gloves, saline solution, peroxide, antiseptics, gauze, bandages and surgical masks to protect people from tear gas.
Protesters have likewise created their own institutions to defend their legal rights. Groups of legal observers and pro bono lawyers attend the rallies, watching to see if the police break the law. These observers take notes on illegal police procedures like the removal of identification tags, the use of expired tear gas, the misuse of nonlethal weapons and the disproportionate use of force.
Unfortunately, that doesn’t stop the police. At one protest against the 2014 World Cup, the military police detained 262 people, nearly 20 percent of the demonstrators. The authorities claimed the mass detention was for “verification purposes,” but the procedure is highly controversial and, some say, illegal.
After rallies, a group called Activist Lawyers checks police precincts for detained people, because police officers rarely provide information about where they are taking them — or, for that matter, the reason for the arrest.
In addition to cracking down on activists, first-aid responders and lawyers, the police also harass journalists, especially photographers. In October 2013, Yan Boechat saw a group of military police assaulting a first-aid worker at a demonstration in São Paulo. Mr. Boechat immediately started to photograph the scene. When he ignored police demands to stop, he was beaten by 13 officers. His camera was also broken.
On a more surreal note, a few weeks ago, the photographer Antonio Rodrigues was accused of assaulting a police officer with his camera and attempting to steal a police baton. (He says, more plausibly, that he was just trying to protect himself from the officer’s blows.) Many of my photographer colleagues tell me that even when their equipment is left intact, someone at the police station will delete their videos and photos.
So far, no officer has been charged with excessive violence or abuse of authority during protests. I could spend pages recounting cases of police abuse at protests. But if I had to choose just one episode to share it would be the arrest of 26 students, mostly from high school, two hours before a demonstration in September in São Paulo.
The students were accused of being part of a “black bloc,” an anarchist group that attends protests and sometimes vandalizes symbolic targets, like government buildings or banks. The students spent the night at the headquarters of the Organized Crime Investigations Department. They were denied access to lawyers and the police refused even to release their names.
Journalists have reported that the arrest was probably arranged by an undercover army captain who had been posing as an activist on Tinder and WhatsApp groups. According to reports, he was suspected of working as an infiltrator for at least a year. The military police deny any knowledge of the intelligence operation, although there were dozens of officers ready at the scene with several cars, buses and even a helicopter flying over the cultural center where the students were assembled.
What did the police find in the possession of these nefarious, would-be saboteurs? First-aid kits, gas masks, bottles of vinegar, protection glasses, cellphones, political pamphlets, markers, a car-fire extinguisher, a slingshot and a Goofy key chain. It was not that different from what I usually carry to protests, except that I don’t have such a nice key chain. They were released more than 24 hours later because the judge considered the detention unlawful.
Brazil is still in turmoil. Protests are going to continue. I’d like to hope that abuse of protesters won’t continue along with them. But nothing will change as long as the military police keep treating protesters as criminals, and not as citizens exercising their rights. These police forces should be trained to act in accordance with democratic norms and within the law, as the protesters are also bound to do. Above all, they need to be held to account when they violate the law.
And if that doesn’t happen, protesters will have to take matters into their own hands. I’ve seen it before: Activists once formed their own volunteer security group to protect people from police abuse. That could get ugly.
Tem sempre aquele momento em que você é criança e descobre que pegou a mão de uma pessoa que não é a sua mãe. Passam-se alguns segundos eletrizantes entre o ato de ficar sem graça, decidir soltar a mão e tentar localizar a sua verdadeira progenitora, com cara de pânico.
Ser cronista é um pouco isso: permanecer num eterno momento de pavor ao constatar que você não vai mais localizar a sua mãe. Que o mundo está ali, hostil e aborrecido, e você vai ter de continuar pegando na mão dele e ficar sem graça e sair correndo, toda semana.
Ser cronista é como estar andando e conversando com o seu melhor amigo e essa pessoa parar de repente para amarrar os sapatos, sem que você perceba. É começar a contar algumas coisas muito íntimas sendo que o amigo já não está mais do seu lado há, digamos, três quarteirões. Junto a você há um camarada de chapéu que ficou com pena e agora escuta as suas confidências – de vez em quando chacoalha a cabeça em um gesto de compreensão, e sabe-se lá há quanto tempo ele está ali e você não reparou.
Um dia, meu amigo Alexandre estava num show olhando para o palco e pegou na mão da garota errada. E ficou assim nessa confusão “com as mãos dadas por ainda uns três segundos”, contou. “Foi um show de olhares estranhos. O da garota. O do namorado dela. O da minha namorada.”
Esses três segundos são a crônica: no meu caso, 2.800 caracteres com espaços, durante os quais você não sabe se solta a mão ou se aproveita o show na companhia da mãe dos outros.
Ainda não fiz essa experiência, mas sempre quis: você está andando de metrô com o seu consorte, no horário do rush, e de repente solta a mão dele. Quase que imediatamente, você encaixa a mão de outra pessoa ali: de um velhinho de 90 anos, digamos, e deixa que eles caminhem juntos por um tempo até que um dos dois perceba o mal-entendido. Essa sensação exasperante que se produz, vinda da vulnerabilidade de caminhar por um tempo na companhia de alguém que você nunca viu, é um incômodo obrigatório para qualquer cronista que se preze.
É o constrangimento de quem atende ao telefone dizendo: “Alôncio!” porque tem certeza de que é o seu pai do outro lado da linha. E aí faz-se um silêncio e o interlocutor diz: “Boa tarde, aqui é o Fulano de Tal, da Empresa Muito Séria e Importante Com Uma Proposta Milionária de Trabalho. É a Vanessa que está falando?”
E você finge que entrou num túnel e caiu a linha.
Tenho outro amigo que, numa conversa com um potencial cliente, confundiu-o consigo mesmo. Paulo foi mostrar a lista de produtos para um possível comprador e o chamou de Paulo; imediatamente pediu desculpas e se corrigiu dizendo o nome correto, que era algo bem diferente, tipo Rubens. O cliente lançou um olhar capcioso e comentou: “Porque Paulo é você, né?”.
Negarei até a morte, mas há certo cabimento na acusação de que só vim morar em Santana por causa da abastança de lojinhas de 1,99 na região.
Entende-se aqui por “1,99” aquele tipo de estabelecimento comercial em que há enorme variedade de tranqueiras dispostas em prateleiras a preços diversos. Numa boa loja de 1,99, o cliente mais esclarecido encontra raquetes para matar mosquito, papas-bolinhas, tábuas de passar, flanelas, cabides, vasos, escovas de dente, cuecas e pipoca-doce, às vezes tudo amontoado na mesma seção e com a plaquinha “quebrou, pagou”.
Depois de um ano de intensa peregrinação pelos 1,99 do bairro, posso dizer com propriedade jornalística que o meu preferido é o Pais & Filhas (Rua Voluntários da Pátria, 1860), uma verdadeira butique do gênero, especializada em utensílios de cozinha. É uma loja de dimensões modestas, mas há certa sabedoria na escolha dos produtos em exposição. Eu diria que, em termos de estilo, o Pais & Filhas alcançou o estado da arte.
Já o Toda Casa (Voluntários, 2287) flerta com o lado chique das lojas de variedades – tem espelhos de corpo inteiro, fruteiras suntuosas de vidro e panelas de 300 reais –, mas já comprei tigelas ótimas lá e recomendo vivamente o setor de coadores.
No mesmo alto nível se encontra a Charles (Voluntários, 2129), onde há panelinhas esmaltadas muito graciosas e uma seção com taças de vinho de tamanhos indecentes. O ponto fraco fica por conta do setor de lixeiras, mas há certa compensação no âmbito das frigideiras de teflon.
Entre as lojas de grande porte destaco a Renascer (Voluntários, 1910), que tem um anexo só para brinquedos baratos, além de fileiras intermináveis de cestos para roupa suja, caixas de arrumação, carrinhos de compras com estampa de coruja, uma variedade exaustiva de relógios de parede, molduras e enfeites de resina.
O ponto ato da JC Marrach (Voluntários, 1998) é o sortimento de panos de chão; já o Real Santana (Voluntários, 1774) se destaca pela seção de fantasias e materiais para festas. É o 1,99 preferido da minha mãe. Eles possuem doze tipos diferentes de ralinhos e foi lá que conheci um perfeito para o meu tanque.
Tenho afeição pela ZW Presentes e Bijuterias (Voluntários, 1936), mas às vezes sou seguida por um funcionário que acha que vou enfiar tranqueiras nos bolsos e sair sem pagar – francamente, ninguém se interessa tanto por escorredores de macarrão. Costumo passar um tempo obsceno refletindo sobre os atributos de um produto, digamos, uma fruteira de R$ 10,49, e não raro sou obrigada a fazer nova peregrinação pelas lojas, ponderar as opções e por fim mudar de ideia, decidindo no meu coração que eu não preciso mesmo de uma fruteira.
Pode ocorrer de, sei lá, você comprar uma cobrinha menor do que a sua porta, o que aconteceu comigo uma vez, mas o pessoal do 1,99 respeita o Código de Defesa do Consumidor: eles fazem trocas.
Na semana passada contei umas anedotas psiquiátricas de minha lavra, mas esqueci daquela que mais me deixa orgulhosa: uma vez fui a uma consulta médica usando um tênis no pé esquerdo diferente do direito. Eles eram até que parecidos, mas de modelos distintos. Fiz questão de chamar a atenção para o fato e pedir que o psiquiatra tomasse nota.
No texto, falei rapidamente da tristeza de saber que, ainda hoje, existem pessoas que acham que só gente louca vai ao psiquiatra/ psicólogo/ psicanalista. Desta vez vou dar um passo adiante: inúmeras pesquisas recentes procuram provar a hipótese de que os delirantes são vocês; nós, os deprimidos, somos bastante precisos em nossos julgamentos da realidade, um fenômeno que é chamado de “realismo depressivo”.
Numa série de experimentos efetuados a partir do final da década de 70, psicólogos mostraram que pacientes depressivos conseguem evitar uma série de vieses autoprotetores na hora de atribuir as causas tanto de eventos positivos quanto de negativos. Nós, os deprimidos, somos menos propensos a achar que o mundo está sob o nosso controle e a minimizar a probabilidade da ocorrência de resultados negativos, bem como a superestimar as chances de coisas boas ocorrerem. Somos menos otimistas, e a má notícia é que em geral temos razão. “Em praticamente todos os pontos em que as pessoas normais apresentam autoestima aumentada, ilusões de controle e visões irreais dos futuro, as pessoas deprimidas não apresentam os mesmos vieses. ‘Mais tristes, porém mais sábios’ na verdade parece se aplicar à depressão”, escreveu a psicóloga social Shelley Taylor.
Certos pesquisadores vão além: dizem que pessoas que estão de bom humor ficam menos propensas a reconhecer mensagens de propaganda de baixa qualidade e mais passíveis de confiar no carisma da fonte, em relação às de humor neutro ou às francamente ranzinzas. Pode-se alegar, portanto, que o bom humor reduz a capacidade individual de processar a informação ou inibe a motivação necessária para ir além do processamento simples.
Nos anos posteriores aos primeiros estudos sobre realismo depressivo, executados pelas psicólogas Lauren Alloy e Lyn Abramson, ficou claro que esse fenômeno de aguda percepção do real também se produziria a partir do cinismo e do pessimismo generalizado.
Em 1992, a mesma dupla de pesquisadoras constatou que a própria ilusão de controle das pessoas “normais” estava provavelmente as defendendo de ficarem deprimidas. A depressão levaria à objetividade, mas os óculos cor-de-rosa produziriam uma mente mais saudável, resiliente e adaptável.
Tudo isso para dizer que, antes de acusar um paciente psiquiátrico de ter perdido um parafuso, talvez você deva fazer uma pausa e considerar que, nessa equação, o delirante é provavelmente você. Nós é que carregamos a realidade do mundo nas costas.
Certa vez, telefonei a um psiquiatra para marcar uma consulta. O telefone tocou algumas vezes e eu já ia desligar quando atendeu um homem de voz grossa, meio ofegante: “Alô?! Alô?!”.
Eu perguntei se era do consultório médico, o homem disse que sim. Pedi para marcar um horário e ele mandou que eu ligasse outra hora. É claro que fiquei imaginando uma gangue de pacientes descabelados mantendo o médico como refém, saqueando o seu estoque de Rivotril e uivando à luz da lua.
Ironias à parte, é triste perceber que ainda há gente que pensa que ir ao psiquiatra é coisa de louco. Em represália a esse tipo de pessoas, faço o máximo para, sempre que possível, deixá-las ainda mais assustadas, como uma forma de vingança silenciosa em nome daqueles que sofrem de transtornos mentais, seja depressão, ansiedade, TOC, esquizofrenia etc.
Minha história preferida de psiquiatra aconteceu numa consulta com o dr. André. Ele se sentou na minha frente e ligou o computador para consultar o meu histórico médico. Ficou olhando a tela por um tempo, chacoalhou a cabeça com preocupação, suspirou e por fim exclamou, derrotado: “É, a coisa tá feia. Não vai ter jeito”. Diante do meu olhar atônito, ele explicou que não estava se referindo ao meu prognóstico, mas ao computador dele, que deu para demorar na hora de fazer o boot. Nunca fiquei tão feliz em ajudar a limpar programas da inicialização de um computador.
Outro grande momento da minha carreira de transtornos se deu no consultório do dr. Marcos, onde fiz terapia cognitivo-comportamental. Aliás, muita coisa surreal acontecia por lá: para começar, todas as quartas-feiras às 16h um vizinho botava bem alto o “Tema da Vitória”, aquela música do Ayrton Senna, e nesse momento nós tínhamos de interromper a sessão e ficar só contemplando aquele acontecimento inexplicável. Confesso que perdi preciosos minutos da terapia tentando especular como seria esse vizinho, qual motivo estaria por trás do ritual e principalmente o que faríamos caso um dia ele falhasse em tocar a música.
Numa das minhas primeiras sessões com o dr. Marcos, levei um tempo antes de respirar fundo e desabafar: “Cara, tem um pelo aqui na frente. Um pelo flutuando no ar. Desculpa, mas é de verdade e está incomodando muito, não consigo parar de prestar atenção”. Não sei se foi só por gentileza, mas ele passou um tempo olhando para onde eu apontava, no vazio onde batia uma luz oblíqua do sol da tarde, e confirmou que eu não estava alucinando. “Sim, acho que estou vendo”, ele falou com delicadeza.
(Obrigada.)
Lembro também de uma psicanalista para quem contei o sonho de que eu era um asiático baixinho que batia na esposa. Ela fez anotações furiosas e pareceu entusiasmada, mas fora isso nunca consegui entretê-la.
Só depois é que aprendi a lição: jamais frequente um terapeuta que não ri das suas piadas.
Tenho acompanhado com curiosidade e alarme a notícia de que um capitão do Exército teria se infiltrado num grupo de manifestantes que foi preso em São Paulo no dia 4, pouco antes de um protesto contra o presidente Temer. As informações foram divulgadas pelo El País Brasil e pela Ponte Jornalismo, e estão sendo investigadas pelo Ministério Público. A prisão dos ativistas, que passaram mais de sete horas incomunicáveis no DEIC, foi considerada irregular pela Justiça, e questionam-se também as circunstâncias da abordagem realizada pela Polícia Militar.
Na mochila dos jovens foi encontrado material de primeiros-socorros, máscaras de gás, frascos de vinagre, um extintor de incêndio, câmeras, panfletos e um chaveiro do Pateta. A Secretaria de Segurança Pública diz que desconhece qualquer ação de inteligência realizada por outros órgãos de segurança, e o Exército afirma que está apurando as circunstâncias da operação.
Nos últimos dias, várias notícias circularam pelas redes: de que o capitão Willian Pina Botelho, de codinome Balta Nunes, tentou se infiltrar em diversos grupos de ativistas desde 2015, no mínimo. Eu mesma o teria cumprimentado ao menos duas vezes em ocasiões diferentes – num ato do Movimento Passe Livre e em um evento da Auditoria Cidadã da Dívida, associação sem fins lucrativos que pretende revisar os cálculos da dívida pública brasileira, nos âmbitos federal, estadual e municipal.
Não é de hoje que sabemos da presença de policiais infiltrados nas manifestações de rua, mas é a primeira vez que se trataria de um membro do Exército. Se ficar confirmado que ele tentou se infiltrar na Auditoria Cidadã da Dívida, um grupo de pacatos ativistas contábeis, creio que em breve outras operações de inteligência do agente serão reveladas. Entre elas:
Balta Nunes se infiltrou no chá de bebê da minha sobrinha, onde coletou informações sensíveis sobre a minha viagem a Galápagos e o meu hábito de roubar restos de bolo do prato dos outros, conforme relatório em anexo (Furto qualificado? Receptação?). O agente também foi fotografado tentando se misturar numa reunião de Ciranda do Núcleo Bandeirante Acauã, uma organização destinada a aliciar crianças de 7 anos para fins claramente subversivos.
Balta, que segundo o El País tentava atrair militantes com uma frase de Marx em seu perfil no Tinder, frequentava bailes vespertinos da terceira idade no Clube Piratininga, onde esperava ganhar a confiança de idosas detentoras de informações privilegiadas sobre bingos beneficentes. Lá, obteve o endereço de um sopão fornecido a moradores de rua pela Paróquia São Judas Tadeu, com datas e principais envolvidos.
O agente agora recorta meticulosamente as minhas colunas de jornal para comprovar que faço parte de uma organização que pendura sacolinhas de supermercado na varanda e lava o cabelo na pia da cozinha.
A princípio, era apenas levemente incômodo e um tanto engraçado. Quer dizer, não era como se tivéssemos um vizinho com uma suástica na piscina, nem como se morássemos no andar de baixo de um estúdio de sapateado. Não tínhamos nenhum baterista nas redondezas, nem um ponto de tráfico, nem um dono de papagaio. Nada de gente andando com salto alto de madrugada ou jogando Call Of Duty no volume 44.
Outro dia li sobre um vizinho que perseguia seus desafetos com uma serra elétrica, passava o dia xingando em voz alta e chegou a golpear um outro vizinho – paraplégico – com um peixe. Ele foi preso 34 vezes. Nós não tínhamos nada disso. Éramos jovens, recém-casados e felizes proprietários do apartamento 103, que compramos com a ajuda dos nossos pais e de uma poupança conjunta, e para onde nos mudamos assim que a pintura ficou pronta. Era um imóvel de “72 metros quadrados de área útil, dois dormitórios espaçosos com armários embutidos, banheiro social com box de acrílico, sala ampla, cozinha, área de serviço, uma vaga, nada para fazer, ótima localização”. É bem provável que tenhamos nos decidido a comprar esse apartamento em específico por causa da descrição “nada para fazer”, o que era, aliás, uma das nossas atividades prediletas. Nós também não sapateávamos, não tínhamos animais de estimação, não dávamos festas barulhentas, não tínhamos filhos; gostávamos, enfim, de passar os fins de semana montando quebra-cabeças e tomando chá. Conversávamos em voz baixa e não tínhamos o costume de convidar amigos para jantar.
Por isso achamos estranho quando a vizinha do 93, uma professora aposentada, começou a reclamar do nosso barulho. Na primeira vez, foi numa noite chuvosa de domingo – eu já dormia no quarto enquanto, na sala, Alan estava lendo uma coletânea de contos de horror. A vizinha interfonou para se queixar do rangido da cama que não a deixava dormir, um barulho irritante que já durava quase meia hora, e ele respondeu que a reclamação não fazia sentido, pois estávamos no mais absoluto silêncio e, até onde ele sabia, eu não era sonâmbula. Ela desligou, incrédula.
Levantei para saber o que havia ocorrido, e acabei perdendo o sono. Naquela época ainda éramos felizes.
Na segunda vez, a vizinha interfonou para pedir que parássemos com “essa loucura de ficar batendo prego na parede”. Estávamos jantando na cozinha, quase sem conversar, e Alan mais uma vez informou a vizinha de que não havia um único martelo no apartamento. Ela resmungou um pouco, soltou um suspiro sentido e desligou.
Como eu disse, era apenas levemente incômodo e um tanto engraçado. Não era como ter um vizinho assassino que esconde o corpo da mulher no jardim – ao estilo de Lars Thorwald, de Janela Indiscreta – ou um casal de satânicos cujo único objetivo seria nos fazer parir o Anticristo em troca de êxito profissional – como Minnie e Roman Castevet em O bebê de Rosemary. Tratava-se apenas de uma vizinha excêntrica com alucinações auditivas, que ouvia camas rangendo e pregos sendo vigorosamente afixados à parede. Naquelas primeiras semanas, achamos graça nas reclamações e ficamos apostando sobre o que viria em seguida, quase que torcendo para que o interfone tocasse e fosse a vizinha de baixo com algum aparte ilusório. A reclamação do prego inclusive nos fez pensar em nossas paredes lisas, tediosas, e decidimos que já era hora de pregar alguns quadros com fotos nossas. (Compramos um martelo.)
A reclamação seguinte envolveu um aspirador de pó excessivamente barulhento, numa manhã de sábado em que estávamos lendo o jornal e cortando as unhas do pé (Alan e eu, respectivamente), e, mais tarde, no mesmo dia, móveis imaginários sendo arrastados com escândalo. Essa queixa foi registrada por um Alan sonolento que teve de se levantar para atender o interfone – eu não estava em casa e ele já se deitara fazia um tempo.
“Como assim, ‘qual barulho’?”, ela repetia, quase gritando. “Estou ouvindo vocês arrastando o sofá para o outro lado da sala, isso não é hora de arrastar o sofá”, exclamou, enquanto Alan tentava convencê-la de que ninguém estava fazendo nada àquela hora da noite, que o prédio estava em silêncio, que eu tinha ido dormir fora, que ela estava ouvindo coisas. No dia seguinte, quando foi me contar o que havia ocorrido, ele observou que até seria uma boa ideia empurrar o sofá para o lado direito da sala, assim poderíamos encaixar no espaço vago um pedestal de mármore com anjinhos esculpidos que a mãe dele nos dera de presente de casamento e ainda estava encaixotado por puro lobby da oposição (eu). Assim fizemos. O ruído dos móveis sendo arrastados ecoou pelo prédio, mas a vizinha não interfonou para reclamar, talvez porque já o tivesse feito.
A história toda ficou ainda mais estranha quando, dias depois, ela interfonou pedindo que desligássemos o ar-condicionado – e nós percebemos que realmente seria interessante se tivéssemos um ar-condicionado, pois o clima ali andava muito sufocante. Encomendamos o aparelho logo em seguida, que foi instalado na janela bem acima do apartamento dela. Ficamos depois imaginando que ela podia ser uma vizinha com poderes paranormais que se antecipava aos nossos gostos e necessidades, e ficamos na expectativa das próximas chamadas.
Certa vez, ela serviu de juíza (involuntária) para uma de nossas brigas mais acirradas: na mudança, eu desistira de trazer um enorme aquário de peixes, que ficou na casa dos meus pais, pois Alan dizia que não havia espaço no apartamento. Mas, conforme o tempo passava, comecei a ter saudade dos meus acarás e a insistir para que trouxéssemos o aquário, instalando-o na área de serviço, onde não incomodaria tanto assim – era só botar a secadora num suporte alto e montar uma bancada junto à janela. Um dia, a vizinha interfonou perguntando se tínhamos um aquário em casa, pois ela ouvia todas as noites o barulho do filtro de água em funcionamento, o que era realmente incômodo para uma senhora de idade com problemas de insônia. Fui eu que atendi o interfone naquele dia, e foi com grande alegria que ouvi a reclamação. Nem me dignei a responder, bati o fone no gancho e anunciei, exultante: “Vamos trazer o aquário!”. Alan assentiu, como se fosse um desígnio do destino. (O aquário não mitigou a minha melancolia.)
Ela também pediu que abaixássemos o som de algo que parecia “Bamboleo”, dos Gipsy Kings, em looping, que é realmente uma música contagiante e que decidimos escutar com mais frequência para ver se o clima lá em casa ficava menos pesado, e reclamou dos latidos do nosso cachorro inexistente – que demorou poucos dias para de fato existir, e materializou-se na forma de um filhote de labrador adotado em uma feirinha perto de casa. Gipsy Kings e o cachorro foram breves alegrias matrimoniais que não demoraram a se extinguir, como tudo lá em casa, e os dias foram ficando cada vez mais tristes, e os toques do interfone mais enervantes.
Ainda assim, não era como se tivéssemos problemas de verdade com os vizinhos – nada como a história de um certo Michael Carroll, que construiu uma pista de corrida para carros no próprio quintal e passava as madrugadas promovendo rachas de automóveis, com direito a batidas e incêndios ocasionais. Ou como Paula Bolli, que despejou no jardim 30 metros cúbicos de esterco fresco de cavalo para adubar as plantas, atraindo fedor e ratos para as propriedades vizinhas. (O esterco nem estava sendo utilizado como adubo, pois a quantidade era tanta que Bolli não conseguia mais enxergar o solo. Em todo caso, ninguém sabia se aquilo poderia ser considerado ilegal sob qualquer ponto de vista.)
Em suma, o nosso caso não era extremo, apenas envolvia uma vizinha idosa com problemas insólitos de audição. E um jovem casal em crise de relacionamento.
Dia após dia, semana após semana, ela reclamava de tudo, menos do choro de um bebê – e foi por esse motivo, acima de tudo, que a vizinha logo começou a pedir que parássemos de brigar. Repetidas vezes. Ainda assim, passei a correr para atender os toques do interfone na expectativa de que logo viesse uma boa notícia, mas nada: só passos nervosos, portas batendo e brigas que se arrastavam pela madrugada, todos minuciosamente previstos pela vizinha de baixo com algumas horas de antecedência.
Foi quando entendemos uma coisa: não era que ela estivesse se antecipando às nossas necessidades, era como se não tivéssemos chance. Ela previa o futuro – ou melhor: ouvia o futuro. Depois que nos demos conta disso, ainda tentamos resistir, mas tudo o que ela dizia se tornava real; tentativas de reconciliação terminavam em crises de choro, jantares românticos viravam brigas com pratos sendo arremessados, conversas em voz baixa eram concluídas aos gritos, então paramos de tentar.
Não era como se tivéssemos um vizinho que ria alto demais, que acordava cedo para bater vitamina no liquidificador, ou que nunca segurava o elevador quando estávamos cheios de sacolas.
Então, certo dia, ela interfonou apavorada perguntando o que foi aquele barulho horrível, se alguém havia se machucado, se queríamos que ela chamasse a polícia, e eu decidi que, se alguém ali fosse sair vivo, que fosse eu.
Hoje é dia de escrever crônica bizarra, de estourar os caracteres, de errar na concordância, usar gíria e dar a louca, hoje é dia de maldade. Hoje é segunda-feira. Dia de comprar briga no jornal, de usar palavra comprida só para zoar a diagramação, de perder a compostura em fonte com serifa, de travar o LibreOffice e reiniciar o computador no botão.
Hoje é dia de fazer mesóclise logo no início do texto, de apavorar no dicionário de sinônimo, usar “sequer” sem a partícula de negação, separar sujeito de predicado, confundir adjetivo com advérbio, exagerar no ponto e vírgula, abraçar a privada e vomitar crase enquanto a polícia bate na sua porta de madrugada com um dicionário prático de regência nominal. Hoje é dia de usar trema.
Hoje é dia de escrever crônica sobre a infância, de falar sobre falta de assunto, de compor um parágrafo muito brega, de errar feio na metáfora, de fazer menção a um filme que ninguém viu e de achar graça em besteira. Dia de relembrar um episódio muito louco que aconteceu com você no passado e então descobrir que não foi com você, foi com o Sting nos anos 70 e estava num livro que você revisou. Hoje é dia de bagunçar o cabelo de um jornal centenário, de comprometer a reputação falando de assunto polêmico, de ser processada em todas as instâncias na Comarca de Belo Horizonte e emoldurar cartinha malcriada de leitor perguntando se você comeu cocô.
É dia de escrever de economia no caderno de cultura, de servir a interesses escusos, de fazer o jogo da direita, de incorrer em calúnia, injúria, difamação, de incorrer em todo tipo de contravenção contra o acordo ortográfico e perder o MTb por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal. Hoje é dia de usar Arial Black tamanho 18 cor fúcsia e enviar arquivo com terminação .odt só pela farra, dia de mandar indireta para a revisora e de mudar de assunto no meio do texto só para ver se tem alguém lendo.
Hoje é dia de escrever imitando o Rubem Braga, dia de comer sujeira de umbigo para ver se dá inspiração, dia de sair na rua e arrumar confusão só para ter assunto, depois voltar para casa com umas manchas roxas e uma ordem de restrição, ou um vídeo que você não se lembra de ter gravado, ou uma tartaruga a mais no aquário, hoje é dia de loucura.
É dia de escrever crônica bizarra e figurar ao mesmo tempo nas seções Errata, Horóscopo, São Paulo Reclama, Fórum dos Leitores e Obituário. É dia de ser citada nominalmente em um escândalo de proporções diplomáticas e alegar que tem um álibi. Dia de acionar a Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB e passar a noite na porta da delegacia comendo azeitona e pegando Pokémon, enquanto coleta informações desencontradas e aguarda o Suplicy chegar.