Sobre pessoas

Posted: 1st abril 2003 by Vanessa Barbara in Traduções
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Site EmCrise
1 de abril de 2003

por Charles Dickens*
Trad. Vanessa Barbara

É estranho que, com tão pouca atenção – boa, má ou indiferente -, um homem possa viver e morrer em Londres. Ele não desperta o mínimo de simpatia no coração de uma pessoa sequer; sua existência interessa a ninguém, exceto a ele mesmo; não se pode dizer que será esquecido quando morrer, pois dele ninguém se lembrava enquanto vivia. Há uma classe numerosa de pessoas nesta grande metrópole que parece não possuir um único amigo, e com quem ninguém parece se importar. Impulsionados pela necessidade imperativa, em primeiro lugar, eles recorreram a Londres à procura de emprego e de meios de subsistência. É duro, nós sabemos, quebrar os laços que nos ligam aos nossos lares e amigos, e mais duro ainda apagar as centenas de lembranças de dias felizes e velhos tempos que estiveram adormecidos em nosso peito durante anos e se precipitam à mente trazendo consigo associações relacionadas aos amigos que deixamos, às paisagens por nós contempladas provavelmente pela última vez e às esperanças que um dia cultivamos, mas que provavelmente não serão mais cogitadas. Esses homens, entretanto, felizmente para eles, esqueceram há tempos tais pensamentos. Velhos amigos da cidade natal morreram ou emigraram; antigos correspondentes perderam-se, como eles mesmos, na multidão e no caos de alguma cidade atarefada; e eles gradualmente foram se estabelecendo e transformaram-se em meras criaturas passivas de hábito e perseverança.

Certo dia, estávamos sentados nos arredores do St. James Park quando nossa atenção voltou-se para um homem que imediatamente reconhecemos como alguém dessa categoria. Era um sujeito alto, magro e pálido em um casaco preto, calças leves e cinzas, polainas ligeiramente apertadas e luvas marrons de pele de castor. Ele tinha um guarda-chuva na mão – não para utilizá-lo, pois o tempo estava firme – mas, evidentemente, porque sempre o carregava pela manhã, a caminho do escritório. Andava de lá pra cá, próximo ao pequeno trecho de grama onde as cadeiras estavam postas para alugar, não como se estivesse fazendo isso por prazer ou distração, mas como se fosse uma questão compulsiva, como se ele fosse dirigir-se ao escritório toda manhã vindo das longínquas paragens do povoado de Islington. Era segunda-feira; ele havia escapado por 24 horas da escravidão da mesa de trabalho; e estava caminhando por exercício e passatempo – talvez pela primeira vez na vida. Estávamos inclinados a pensar que nunca tinha tido uma folga antes e que não sabia o que fazer consigo mesmo. As crianças brincavam na grama; grupos de pessoas matavam o tempo, papeando e rindo; mas o homem andava no mesmo lugar, pra cima e pra baixo, distraído e ignorado, seu rosto pálido a olhar o mundo como se fosse incapaz de suportar qualquer expressão de curiosidade ou interesse.

Havia algo nas maneiras e na aparência do homem que nos revelou, segundo imaginamos, toda a sua vida, ou melhor, todo o seu dia, pois para um homem desse tipo não há variedade de dias. Julgamos que era quase possível vislumbrar seu pequeno e encardido escritório de fundos, no interior do qual ele andava a cada manhã, pendurando seu chapéu no mesmo cabide e posicionando suas pernas sob a mesma mesa: primeiro, tirando seu casaco preto que dura o ano inteiro e vestindo aquele que durou o ano anterior, e que ele usa no escritório para poupar o outro. Lá ele fica sentado até as cinco da tarde, trabalhando o dia todo, tão regularmente quanto o relógio em cima da lareira, cujo escandaloso tique-taque é tão monótono quanto toda sua existência: apenas levanta a cabeça quando alguém entra no escritório de contabilidade ou quando, no meio de algum cálculo complicado, ele olha para o teto como se buscasse inspiração na empoeirada clarabóia com um nó verde no centro de cada lado do vidro. Aproximadamente às cinco, ou meia hora antes, ele vagarosamente desmonta de seu banco costumeiro e, novamente trocando seu casaco, segue ao seu habitual local de jantar, em algum lugar perto de Bucklersbury. O garçom recita o preço da refeição de um jeito bastante reservado – pois ele é um cliente habitual – e, após perguntar: “O que há de mais suculento?” e “O que foi preparado mais recentemente?”, ele pede um pequeno prato de rosbife com salada e um copo de cerveja preta. Opta por um prato pequeno hoje porque a salada de folhas estava um penny mais cara do que as batatas e ele pedira “dois pães” ontem, com o abuso adicional de “um queijo” anteontem. Tendo esclarecido este importante assunto, ele pendura seu chapéu – havia o tirado no momento em que se sentara – e arruma o jornal de acordo com o cavalheiro sentado à sua frente. Se consegue fazê-lo enquanto está jantando, alimenta-se com deleite ainda maior; balançando o jornal contra a garrafa de água, e comendo um pedaço de bife, e lendo uma linha ou duas, alternadamente. A cinco exatos minutos de seu horário acabar, ele saca um shilling, paga a conta, deposita cuidadosamente o troco no bolso de seu colete (deduzindo, antes, um penny para o garçom) e volta ao escritório, de onde, se não é noite de postar cartas ao estrangeiro, ele sai mais uma vez, aproximadamente meia hora depois. Então volta pra casa no seu ritmo habitual, até seu quarto nos fundos em Islington, onde ele toma chá; talvez confortando-se durante a refeição com a conversa do filho pequeno da senhoria, que é geralmente gratificado com um penny por resolver problemas simples de adição. Às vezes, há uma carta ou duas para levar a seu patrão, na praça Russel; e então o saudável homem de negócios, ouvindo sua voz, chama-o da sala de jantar, – “Entre, sr. Smith”, e o sr. Smith, deixando seu chapéu aos pés de uma das cadeiras da sala, entra timidamente, e, sendo convidado com certa arrogância a sentar, dobra com cuidado as pernas sob a cadeira, senta-se a uma considerável distância da mesa onde ele bebe o copo de sherry que lhe é servido pelo filho mais velho, e após beber, ele se afasta e desliza para fora da sala, num estado de agitação nervosa do qual não se recupera perfeitamente até que se encontre novamente na estrada de Islington. Pobres, inofensivas criaturas são os homens como ele; satisfeitos mas não felizes; humildes e com almas despedaçadas, eles podem não sentir dor alguma, mas nunca conhecem o prazer.


Nota da tradutora

Sketches by Boz é uma coletânea de artigos escritos por Charles Dickens ao Morning Chronicle e a outros periódicos, de 1833 a 1836. É considerada por Tom Wolfe uma das obras que impulsionaram o novo jornalismo, por conter descrições do dia-a-dia de figuras londrinas típicas: cocheiros, cobradores de dívidas, velhas damas, casais. O trecho acima pertence ao primeiro capítulo da parte denominada “personagens”, e faz as vezes de introdução a onze instantâneos de tipos londrinos.”Boz” era o pseudônimo então usado pelo autor.

Do sentimento de não estar de todo

Posted: 1st março 2003 by Vanessa Barbara in Traduções
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Site EmCrise
Março de 2003

por Julio Cortázar
Trad. Vanessa Barbara 

Ele não está se divertindo. Definitivamente.

Jamais réel et toujours vrai 
(“Nunca real e sempre verdadeiro”, 
num desenho de Antonin Artaud)

Sempre serei como um menino para tantas coisas, mas um desses guris que desde o começo carregam consigo o adulto, de maneira que quando o monstrinho chega verdadeiramente à idade do adulto ocorre que, por sua vez, carrega consigo o menino, e no meio do caminho se dá uma coexistência poucas vezes pacífica de pelo menos duas aberturas para o mundo.

Isto pode ser entendido metaforicamente, mas indica, em todo caso, um temperamento que não renuncia à visão pueril como preço da visão adulta, e essa justaposição que convém ao poeta e talvez ao criminoso, e também ao cronópio e ao humorista (questão de doses diferentes, de acentuação aguda ou esdrúxula, de escolhas: agora jogo, agora mato), manifesta-se no sentimento de não estar de todo em qualquer das estruturas, em quaisquer das teias que a vida arma e onde somos ao mesmo tempo aranha e mosca.

Muito do que escrevo ordena-se sob o signo da excentricidade, já que entre viver e escrever nunca admiti uma clara diferença; se vivendo consigo dissimular uma participação parcial em minha circunstância, em troca não posso negá-la no que escrevo, já que escrevo precisamente por não estar ou por estar de maneira parcial. Escrevo por falência, por “descolocação”; e como escrevo de uma fenda, estou sempre pedindo para que outros busquem as suas e espiem por dentro delas o jardim onde as árvores têm frutos que são, certamente, pedras preciosas. O monstrinho segue firme.

Esta espécie de constante lúdica explica, se não justifica, muito do que escrevo ou vivo. Reportam-se aos meus romances – este jogo na borda da sacada, este fósforo ao lado da garrafa de gasolina, este revólver carregado na mesa de luz – uma busca intelectual do próprio romance, que seria assim como um contínuo comentário da ação e, muitas vezes, a ação de um comentário.

Aborrece-me argumentar, a posteriori, que ao largo dessa dialética mágica um homem-menino está lutando para concluir o jogo de sua vida: que sim, que não, que onde está está. Porque um jogo, bem observado, não seria um processo que parte de uma descolocação para chegar a uma colocação, a um arranjo – gol, xeque-mate, pedra livre? Não é o cumprimento de um ritual que leva à fixação final que o coroa?

Realismo ingênuo

O homem do nosso tempo acredita francamente que sua informação filosófica e histórica o salva do realismo ingênuo. Em conferências universitárias e em conversas nos cafés, chega a admitir que a realidade não é o que parece, e está sempre disposto a reconhecer que seus sentidos o enganam e que sua inteligência constrói uma visão tolerável porém incompleta do mundo. Cada vez que pensa metafisicamente, sente-se “mais triste e mais sábio”, mas sua confissão é momentânea e excepcional, enquanto o contínuo da vida o instala de cheio na aparência, concretiza-a em torno dele, veste-a de definições, funções e valores.

Esse homem é um ingênuo realista, mais que um realista ingênuo. Basta observar seu comportamento frente ao excepcional, o insólito: ou o reduz a fenômeno estético ou poético (“era algo realmente surrealista, te juro”) ou desiste, em seguida, de buscar na entrevisão um sonho, um ato frustrado, uma associação verbal ou causal fora do comum, uma coincidência perturbadora, qualquer das fraturas instantâneas do contínuo.

Se o interrogam, diz que não crê plenamente na realidade cotidiana e que somente a aceita de maneira pragmática. Mas lógico que crê, é só nisso que crê. O sentido de sua vida assemelha-se ao mecanismo de seu olhar.

Às vezes tem uma efêmera consciência de que a cada tantos segundos as pálpebras interrompem a visão que sua consciência preferiu entender como permanente e contínua; mas quase de imediato o pestanejar volta a ser inconsciente, o livro ou a maçã firmam-se em sua obstinada aparência.

Há como um acordo de cavalheiros entre a circunstância e os circunstantes: você não me tira dos meus costumes e eu não fico cutucando o senhor com um palito. Mas o problema agora é que o homem-menino não é um cavalheiro, mas um cronópio que não entende bem o sistema de linhas de fuga graças às quais cria-se uma perspectiva satisfatória dessa circunstância, ou, como sucede nos collages mal feitos, sente-se em uma escala diferente com relação à da circunstância, uma formiga que não cabe num palácio ou um número quatro em que não cabem mais que três ou cinco unidades.

A mim isto ocorre claramente, às vezes sou maior que o cavalo que monto, e outros dias caio dentro de um dos meus sapatos e sofro um golpe terrível, sem contar o trabalho pra sair, as escadas fabricadas nó a nó com os cordões e a terrível descoberta, já na ponta, de que alguém guardou o sapato dentro de um armário e que estou pior que Edmundo Dantés em um castelo de If, porque nem sequer há um padre à mão nos armários da minha casa.

E eu gosto, e sou terrivelmente feliz em meu inferno, e escrevo. Vivo e escrevo ameaçado por essa lateralidade, por esse paralaxe verdadeiro, por esse estar sempre um pouco mais à esquerda ou mais ao fundo do lugar onde se deveria estar para que tudo se materializasse satisfatoriamente num dia a mais de vida sem conflitos.

Dedo no ventilador

Desde muito pequeno assumi, com os dentes cerrados, esta condição que me dividia de meus amigos e ao mesmo tempo os atraía em direção ao raro, ao diferente, ao que metia o dedo no ventilador.

Não estava privado de felicidade; a única condição era que coincidisse às vezes com a de outro (o camarada, o tio excêntrico, a velha louca) que tampouco calçava plenamente o seu número, o que naturalmente não era fácil; mas logo descobri os gatos, nos quais podia imaginar minha própria condição, e os livros, onde a encontrava de cheio. Nesses anos li os versos possivelmente apócrifos de Poe:

From childhood’s hour I have not been
As others were; I have not seen
As others saw; I could not bring
My passions from a common spring –

Mas o que para o virginiano era um estigma (luciferino, mas por isso mesmo monstruoso) que o ilhava e condenava,

And all I loved, I loved alone

isso não me apartou daqueles cujo redondo universo eu só tangencialmente partilhava. Hipócrita sutil, atitude para todos os mimetismos, ternura que ultrapassava os limites e os dissimulava; as surpresas e as aflições da primeira idade tinham para mim uma ironia amável.

Lembro-me bem: aos onze anos emprestei a um amigo O segredo de Wilhelm Storitz, no qual Julio Verne me propunha como sempre um comércio natural e íntimo com uma realidade nada diferente da cotidiana. Meu amigo devolveu-me o livro: “Não terminei de ler, é demasiadamente fantástico”. Jamais renunciarei à surpresa escandalizada desse minuto. Fantástica, a invisibilidade de um homem? Então só no futebol, no café com leite, nas primeiras confidências sexuais poderíamos nos encontrar?

Adolescente, acreditei como tantos que meu contínuo estranhamento era o símbolo anunciador do poeta, e escrevi os poemas que se escrevem então e que sempre são mais fáceis de se escrever do que a prosa, a essa altura de uma vida que repete no indivíduo as fases da literatura.

Com os anos, descobri que se todo poeta é um estranhado, nem todo estranhado é poeta, na acepção genérica do termo. Entro aqui em terreno polêmico, aceite o desafio quem quiser.

Se por poeta entendemos funcionalmente aquele que escreve poemas, a razão para que os escreva (não se discute a qualidade) deve-se ao fato de que seu estranhamento pessoal provoca um mecanismo de challenge (desafio) and response (resposta); assim, cada vez que o poeta é sensível à sua lateralidade, à sua situação extrínseca em uma realidade aparentemente intrínseca, reage poeticamente (quase diria profissionalmente, sobretudo a partir de sua maturidade técnica); dito de outra maneira, escreve poemas que são como petrificações desse estranhamento, o que o poeta vê ou sente em lugar de, ou ao lado de, ou por debaixo de, ou diante de, remetendo este “de” ao que os demais vêem tal como acreditam que é, sem deslocamento nem crítica interna.

Julio CortázarPoemas vêm da estranheza

Duvido que exista um só grande poema que não tenha nascido dessa estranheza ou que não a traduza; mais ainda, que não a ative ou a potencialize ao suspeitar que é precisamente a zona intersticial por onde cabe ascender.

Também o filósofo se estranha e se desloca deliberadamente para descobrir as fissuras do aparente, e sua busca nasce também de um challenge and response; em ambos os casos, ainda que os fins sejam diferentes, há uma resposta instrumental, uma atitude técnica frente a um objeto definido.

Mas já se sabe que nem todos os estranhados são poetas ou filósofos profissionais. Quase sempre começam por sê-lo ou por querer sê-lo, mas chega o dia em que se dão conta de que não podem ou não estão obrigados a essa response quase fatal que é o poema ou a filosofia frente ao challenge do estranhamento.

Sua atitude se torna defensiva, egoísta se preferir, posto que se trata de preservar sobretudo a lucidez, resistir à solapada deformação que o cotidiano codificado vai montando na consciência com a ativa participação da inteligência racional, os meios de informação, o hedonismo, a arterioesclerose e o matrimônio inter alia [entre outras coisas].

Os humoristas, alguns anarquistas, não poucos criminosos e uma certa quantidade de contistas e romancistas se situam neste setor pouco definido no qual a condição de estranhado não acarreta necessariamente uma resposta de ordem poética. Estes poetas não profissionais suportam seu deslocamento com maior naturalidade e menor brilho, e até seria possível afirmar que sua noção do estranhamento é lúdica, em comparação à resposta lírica ou trágica do poeta.

Enquanto este trava sempre um combate, os estranhados simplesmente se integram à excentricidade até um ponto em que o excepcional dessa condição, que suscita o challenge para o poeta ou o filósofo, tende a tornar-se condição natural do sujeito estranhado, que assim o preferiu e que portanto ajustou sua conduta a essa aceitação paulatina.

Penso em Jarry e num lento comércio à base do humor, da ironia, da familiaridade, que acaba por inclinar a balança para o lado das exceções, por anular a diferença escandalosa entre o sólito e o insólito, e permite o progresso cotidiano, sem response concreta porque já não há challenge, a um plano que (à falta de melhor nome) seguiremos chamando realidade, mas sem que seja um flatus vocis [vocábulo sem conteúdo] ou um pior é nada.


La vuelta al día en ochenta mundos, editora Siglo XXI.

Ulrica

Posted: 10th fevereiro 2003 by Vanessa Barbara in Traduções
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Revista Fraude
10 de fevereiro de 2003

Jorge Luis Borges
trad. Vanessa Barbara

“Hann tekr sverthit Gram ok leggr i methal theira bert.”
[Tomou a espada Gram e estendeu-a, desembainhada, entre os dois]
Völsunga Saga, capítulo 27

Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que dá no mesmo. Os fatos ocorreram há pouco, mas sei que o hábito literário é assim mesmo, o hábito de intercalar detalhes circunstanciais e de enfatizar os pontos altos.

Quero narrar meu encontro com Ulrica [não soube seu sobrenome e talvez não saberei nunca] na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.

Nada me custaria contar que a vi pela primeira vez junto às “Cinco Irmãs de York”, estes vitrais puros de imagem que respeitaram os iconoclastas de Cromwell, mas o fato é que nos conhecemos na saída do Northern Inn, que fica do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém ofereceu-lhe uma taça e ela recusou.

– Sou feminista – disse. – Não quero imitar os homens. Desagrada-me seu tabaco e seu álcool.

A frase pretendia-se engenhosa e supus que não era a primeira vez que a pronunciava. Descobri, posteriormente, que não era do seu feitio, embora o que digamos nem sempre se pareça conosco.

Contou que havia chegado tarde ao museu, mas que a deixaram entrar quando viram que era norueguesa. Um dos presentes comentou:

– Não é a primeira vez que os noruegueses entram em York.
– É verdade – disse ela -, a Inglaterra foi nossa e a perdemos, se é que alguém pode ter algo ou algo pode perder-se.

Foi então que olhei para ela. Um verso de William Blake fala de garotas de suave prata ou furioso ouro, mas em Ulrica estavam o ouro e a suavidade. Era leve e alta, de feições afiladas e de olhos cinzas. Menos que seu rosto, impressionou-me seu ar de tranqüilo mistério. Sorria facilmente e o sorriso parecia distanciá-la. Vestia-se de preto, o que é raro em terras do Norte, que tratam de alegrar com cores o monótono das redondezas. Falava um inglês nítido e preciso, e realçava levemente os erres. Não sou observador; essas coisas fui descobrindo pouco a pouco.

Apresentaram-nos. Disse-lhe que eu era professor da Universidade dos Andes, em Bogotá. Expliquei que era colombiano. Ela perguntou, de modo pensativo:

– O que é ser colombiano?
– Não sei – respondi. – É um ato de fé.
– Como ser norueguesa – assentiu.

Nada mais posso recordar do que foi dito aquela noite. No dia seguinte, desci cedo à sala de jantar. Pela janela vi que havia nevado; os desertos desapareciam com a luz da manhã. Não havia mais ninguém. Ulrica me convidou à sua mesa. Disse-me que gostava de sair a caminhar sozinha.

Lembrei uma brincadeira de Schopenhauer e respondi:
– Também gosto. Podemos sair os dois.

Afastamo-nos da casa, sobre a neve jovem.

Não havia uma alma nos campos. Propus que fôssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a algumas milhas. Sei que já estava apaixonado por Ulrica; não desejava ao meu lado qualquer outra pessoa.

Imediatamente, ouvi o distante uivo de um lobo. Nunca tinha escutado uivar um lobo, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.

Após um tempo ela disse, como se pensasse em voz alta:

– As poucas e pobres espadas que vi ultimamente na Catedral de York comoveram-me mais do que os grandes navios do museu de Oslo.

Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, aquela tarde, seguiria viagem até Londres; eu, até Edimburgo.

– Em Oxford Street – ela disse – repetirei os passos de Quincey, que buscava sua Anna perdida entre as multidões de Londres.
– De Quincey – respondi – deixou de buscá-la. Eu, durante toda a vida, continuo buscando-a.
– Talvez – falou em voz baixa – você a tenha encontrado.

Percebi que uma coisa inesperada não me estava proibida e a beijei na boca e nos olhos.

Afastou-me com suave firmeza e logo declarou:

– Serei tua na pousada de Thorgate. Peço-te que enquanto isso não me toques. É melhor que assim seja.

Para um homem solteiro já avançado em anos, o amor oferecido é um presente que já não se espera. O milagre tem direito de impor condições. Pensei na minha mocidade em Popayán e em uma garota de Tezas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.

Não incorri no erro de perguntar-lhe se ela me amava. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Aquela aventura, talvez minha última, seria uma entre tantas para essa resplandecente e corajosa discípula de Ibsen.

Com as mãos unidas, seguimos.

– Tudo isto é como um sonho – falei -, e eu nunca sonho.
– Como aquele rei – replicou Ulrica – que não sonhou até que um feiticeiro o fez dormir numa pocilga. – Acrescentou depois:
– Escute. Um pássaro está prestes a cantar.

Em pouco tempo ouvimos o canto.

– Nestas terras – falei – dizem que quem está prestes a morrer prevê o futuro.
– E eu estou prestes a morrer – disse ela.

Encarei Ulrica, atônito.

– Cortemos pelo bosque – apressei-a. – Chegaremos mais rápido a Thorgate.
– O bosque é perigoso – replicou.

Seguimos pelo deserto.

– Queria que este momento durasse pra sempre – murmurei.
– “Sempre”é uma palavra proibida aos homens – afirmou Ulrica e, para diminuir a força daquilo, pediu-me que repetisse o meu nome, que não tinha entendido direito.
– Javier Otálora – disse-lhe.

Ela quis repeti-lo e não conseguiu. Fracassei, igualmente, com o nome Ulrikke.

– Chamarei-te Sigurd – declarou, com um sorriso.
– Se sou Sigurd – repliquei -, tu serás Brynhild.

Ela havia retardado o passo.

– Conhece a saga? – perguntei-lhe.
– Claro que sim – respondeu. – A trágica história que os alemães estragaram com seus recentes Nibelungos.
Não quis discutir e respondi:
– Brynhild, caminhas como se desejasse que entre nós dois houvesse uma espada na cama.

Paramos de repente, diante da pousada. Não me surpreendi que se chamasse, como a outra, Northern Inn. Do alto da escada, Ulrica gritou:

– Ouviste o lobo? Já não restam lobos na Inglaterra. Apressa-te.

Subindo ao andar superior, notei que as paredes estavam forradas à maneira de William Morris, um vermelho muito profundo, com desenhos entrelaçados de frutos e pássaros. Ulrica entrou primeiro. O quarto escuro era baixo, de teto inclinado. A esperada cama estava duplicada em um turvo espelho e o mogno lustroso lembrou-me o espelho da Escritura. Ulrica já tinha se despido. Chamou-me pelo meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. Já não restavam mais móveis ou espelhos. Não havia espada entre nós dois. Como a areia, ia-se embora o tempo. Profano na sombra, o amor avançou e possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.



Notas

1. Jorge Luis Borges, mestre das piadas internas obscuras, refere-se neste conto à Völsunga Saga [Epopéia dos Volsungs]. Trata-se de uma antiga lenda nórdica de autoria desconhecida, cuja origem remonta à Islândia do século XIII. O trecho citado no conto faz parte dos capítulos finais da epopéia, que narram a história de amor entre Brynhild e o herói Sigurd. De maneira resumida: Brynhild está presa em um castelo envolto por um muro de fogo, e uma maldição diz que se casará apenas com o homem que passar pelo obstáculo. Sigurd a liberta, eles se apaixonam, juram amor eterno, essas coisas. Ele sai pra comprar cigarros, digo, para resolver umas tarefas na cidade. Tempos depois, a feiticeira Grimhild e o marido decidem que o herói Sigurd seria uma boa aquisição para a família [jovem, rico, corajoso], e que a filha deles, Gudrun, seria perfeita pra desposá-lo. Rapidinho, a bruxa enfeitiça-o para que esqueça a antiga amada, e assim ele acaba se casando com Gudrun.

Enquanto isso, o outro filho da feiticeira, de nome Gunnar, também resolve que já era hora de se casar com alguém. Escolhe Brynhild, que ainda está esperando no castelo da muralha de fogo. Como Gunnar não conseguia passar pelas chamas de jeito nenhum, nem com os melhores cavalos, o herói Sigurd decide ajudá-lo e ambos trocam de feições, sabe-se lá como. Facilmente, o intrépido Sigurd entra no castelo no lugar de Gunnar, dotado da aparência deste, e corteja a pobre Brynhild. Ela vê-se obrigada a cumprir a sina e desposar aquele rapaz estranho que atravessara o fogo, apesar de ainda estar apaixonada por Sigurd. Convida-o, então, a dormir com ela. Neste momento, ocorre o incidente de que fala Borges: Sigurd [sempre sob a forma de Gunnar] desembainha a espada e coloca-a entre os dois, sobre a cama, como se fosse uma barra para separá-los. Quando ela indaga sobre o motivo daquele ato, Sigurd responde que lhe fora ordenado para apenas tocar na noiva após o casamento, sob pena de morte.

Finalmente, ela sai do castelo e se casa com Gunnar [o verdadeiro], enquanto Sigurd continua com a tal Gudrun. Trata-se de uma história trágica, senhores. Até a morte de Brynhild e Sigurd [leia a saga para descobrir o que aconteceu], sempre haveria uma espada entre eles.

2. A Völsunga Saga foi uma das fontes usadas por Richard Wagner em Der Ring des Nibelungen [O anel dos Nibelungos]. Os alemães têm suas versões para a saga, também.

3. No túmulo de Jorge Luis Borges, há a frase “…And ne forthedon nã” [“…e não tenha medo”, em inglês arcaico], tirada do poema anglo-saxão “La Bataille de Maldon”. Na outra face do túmulo, há a epígrafe de Ulrica: “Hann tekr sverthit Gram ok leggr i methal theira bert”, que conta o episódio da espada acima descrito. Na parte inferior do túmulo, há a dedicatória: “De Ulrica a Javier Otárola”, sendo Ulrica a ex-esposa de Borges, Maria Kodama.

4. O original Ulrica, em espanhol, pode ser lido aqui. Você também pode ler a Völsunga Saga na língua lá deles.

O caso dos velhinhos voadores

Posted: 5th fevereiro 2003 by Vanessa Barbara in Traduções
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Revista Fraude
5 de fevereiro de 2003

por Adolfo Bioy Casares
trad. Vanessa Barbara 

Um deputado, que nos últimos anos tem viajado com freqüência ao estrangeiro, pediu à Câmara que convocasse uma comissão investigadora.

O legislador havia advertido, primeiro sem alegria, depois com apreensão, que em aviões de diversas companhias atravessava o céu em todas as direções, de modo quase contínuo, um punhado de homens muito velhos, pouco menos que moribundos. Um deles, visto num vôo de maio, novamente foi encontrado em um de junho. Segundo o deputado, reconheceu-o “porque o destino assim o quis”.

Com efeito, o ancião encontrava-se tão terrível que parecia outro, mais pálido, mais débil, mais decrépito. Esta circunstância levou o deputado a entrever uma hipótese que respondia às suas perguntas.

Por trás de tão misterioso tráfego aéreo, não haveria uma organização para o roubo e a venda de órgãos de velhos? Parece incrível, mas também é incrível que ela exista para o roubo e venda de órgãos de jovens. Os órgãos dos jovens são mais atrativos, mais convenientes? De acordo: mas as dificuldades para consegui-los são maiores. No caso dos velhos poderá contar-se, em alguma medida, com a cumplicidade da família. Com efeito, hoje todo velho cultiva duas alternativas: a doença ou o asilo. Um convite para viajar resulta, em regras gerais, na aceitação imediata, sem averiguações prévias. A cavalo dado não se olha os dentes.

A comissão bicameral, por azar, mostrou-se numerosa demais para agir com a urgência e eficácia sugeridas. O deputado, que não dava o braço a torcer, conseguiu que a comissão delegasse sua incumbência a um investigador profissional. Foi assim que O Caso dos Velhos Voadores chegou a este escritório.

A primeira coisa que fiz foi perguntar ao deputado em que companhias aéreas viajou em maio e em junho.

“Na Aerolíneas e nas Linhas Aéreas Portuguesas”, respondeu. Apresentei-me em ambas as companhias, requeri as listas de passageiros e não tardei em identificar o velho em questão. Tinha que ser uma das duas pessoas que figuravam em ambas as listas; a outra era o deputado.

Prossegui nas investigações, com resultados pouco estimulantes a princípio [a resposta oscilava entre “Nem faço idéia” e “Não me parece estranho”], mas finalmente um adolescente me disse: “É uma das glórias de nossa literatura”. Não sei como alguém se mete a investigador: tudo é tão estranho. Bastou que eu recebesse a resposta do pequeno para que todos os interrogados, como se tivessem ouvido São Bento, me diziam: “Não sabe? É uma das glórias de nossa literatura”.

Fui à União dos Escritores, onde um sócio jovem confirmou a informação, em linhas gerais. Na verdade, perguntou-me: “Você é arqueólogo?”.

– Não, por quê?
- Não me diga que é escritor?

– Tampouco.

– Então não entendo. Para os mortais comuns, o senhor de que me fala tem um interesse puramente arqueológico. Para os escritores, ele e alguns outros como ele são algo muito real, e sobretudo incômodo.

– Parece que você não tem por ele qualquer simpatia.

– Como ter simpatia por um obstáculo? O senhor em questão não é mais que um obstáculo. Um obstáculo intransponível para todo escritor jovem. Se levamos um conto, um poema, um ensaio a qualquer revista, adiam-nos indefinidamente, porque todos os espaços estão ocupados por colaborações desse indivíduo ou de indivíduos como ele. A nenhum jovem são concedidos prêmios ou são feitas reportagens, porque todos os prêmios e todas as reportagens são para esse senhor ou pessoas similares.

Resolvi visitar o velho. Não foi fácil. Em sua casa, invariavelmente, diziam-me que não estava. Um dia me perguntaram para que desejava falar com ele. “Queria perguntar-lhe algo”, respondi. “Chega”, disseram, e me colocaram em contato com o velho. Este perguntou de novo se eu era jornalista. Disse-lhe que não. “Tem certeza?”, indagou.

“Absoluta”, disse. Encontrou-me este mesmo dia em sua casa.

– Queria perguntar-lhe, se o senhor me permite, por que viaja tanto?

– Você é médico? – perguntou-me. – Sim, viajo demais e sei que me faz mal, doutor.

– Por que viaja? Acaso lhe prometeram operações que lhe devolveriam a saúde?

– De que operações está falando?

– Cirurgias.

– De onde veio essa idéia? Viajaria para salvar-me do que elas me fizeram.

– Então, por que viaja?

– Porque me dão prêmios.

– Um escritor jovem disse-me que você monopoliza todos os prêmios.

– Sim. Uma prova da falta de originalidade das pessoas. Alguém te dá um prêmio e todos sentem que também têm que te dar um prêmio.

– Não acha que é uma injustiça com os jovens?

– Se os prêmios são entregues aos que escrevem bem, seria injusto premiar os jovens, porque não sabem escrever. Embora não me premiem porque escrevo bem, mas sim porque outros me premiaram.

– A situação deve ser muito dolorosa para os jovens.

– Dolorosa por quê? Quando nos premiam, passamos uns dias zonzeando vaidosamente. Cansamos. Por um tempo considerável não escrevemos. Se os jovens tivessem um pouco de senso de oportunidade, levariam em nossa ausência suas colaborações às revistas e, por piores que fossem, teriam uma remota possibilidade de serem aceitas. Isso não é tudo. Com esses prêmios o trabalho atrasa e não entregamos o livro ao editor dentro do prazo. Outra chance para o jovem esperto aproveitar e mandar seus rascunhos. Entretanto guardo na manga outra dádiva aos jovens, mas melhor não falar, para que a impaciência não nos destrua.

– A mim pode dizer qualquer coisa.

– Bom, então eu digo: já me deram cinco ou seis prêmios. Se continuam com esse ritmo, você acredita que vou sobreviver? Desde já adianto-lhe que não. Você sabe como envaidecem o premiado? Creio que não me restam forças para agüentar outro prêmio.



Nota da tradutora:
“El caso de los viejitos voladores”, publicado no La Nación de 7 de janeiro de 1997. Em espanhol, “volar” pode ter a mesma conotação do termo em português, “voar = viajar de avião”. Não sei se “volador” também pode ser “aquele que viaja de avião” [o que não acontece em português], ou se o título é bacana assim mesmo. Acho que não fui a única a imaginar centenas de velhinhos planando no ar, contentes, com os braços abertos e a pança pra cima.

O texto original pode ser lido aqui.

Um espaço para todos os mundos possíveis

Posted: 26th janeiro 2003 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Site EmCrise
26 de janeiro de 2003
Cobertura do Fórum Social Mundial/Porto Alegre

Por Vanessa Barbara

“A tolerância não é o oposto da intolerância, a sua contrafação. São ambos despotismos. Um se arroga o direito de impedir a liberdade de consciência, a outra se arroga o direito de concedê-la” (Thomas Paine).

Simplificações são ótimas, principalmente para jornalistas com pressa. Ajudam a entender o mundo, mesmo que de maneira equivocada; acalmam os que têm preguiça de tentar conhecê-lo.

Tratar o Fórum Social Mundial como uma coisa só (uma horda homogênea de gente maluca) ou julgá-lo um amontoado de acontecimentos exóticos é o mais fácil de fazer, ao se chegar por aqui e ficar perdido, procurando uma caixa cheia de compartimentos para ordenar as coisas.

Existem vários e vários Fóruns acontecendo simultaneamente, uns dentro dos outros e diferentes entre si (mesmo com tanto em comum). Há o Fórum da grande imprensa, dos confeiteiros sem fronteiras, das ONGs assistencialistas, das autoridades políticas, das velhinhas agricultoras de SC, dos estudantes de comunicação. Há o Fórum da Via Campesina: mil pessoas acomodadas nas arquibancadas do ginásio, descascando batatas em minúsculas cozinhas feitas de bambu e sacos de lixo. É o Fórum da disciplina, onde o portão fecha à uma e meia da madrugada; onde o chão da quadra está coberto de placas de papelão; onde os horários são rígidos e os olhares, impressionantes. Um dos porteiros da Via Campesina tem um rosto triste e usa um boné da BMW – como gostam de bonés! -, o outro ainda ri mas depois volta a ficar quieto. Por mais que haja agitação e alegria, paira sempre um silêncio estranho no viver de cada campesino, algo difícil de entender. É possível passar semanas em cada um desses Fóruns, a fim de conhecê-los. Mesmo assim sairíamos confusos.

São tantos os Fóruns que o francês Philippe Merlant, no painel sobre do dia 25/1, chegou a “mudar” o lema oficial do evento: buscamos não um “outro” mundo, mas um mundo onde caibam todos os mundos possíveis.

Apenas olhando o Fórum por essa perspectiva é que podemos entender a francesa Geneviève Jacques, do Conselho Mundial de Igrejas, a dizer, no mesmo painel, que o contrário da intolerância não é a tolerância. É a convivência. Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente é uma posição arrogante – como disse José Saramago, “quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro”. Seria preciso, segundo ele, eliminar das relações humanas tanto a tolerância quanto a intolerância, para dar espaço à relação igualitária entre as pessoas.

E é por isso, também, que devemos tentar estabelecer diálogos – embora difíceis – com o lado de lá, aquele ser estranho de uniforme militar que passa o dia afagando um cachorro, o palhaço da perna-de-pau que distribui alfaces, o velhinho do MST que mastiga sacos e mais sacos de pipoca doce, e assim senti-los mais próximos de nós. Afinal de contas, somos nada além de criaturas esquisitas que usam xampus “para cabelos secos que ficam oleosos ao longo do dia”.

Política, cidadania e participação

Posted: 25th janeiro 2003 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Correio da Cidadania – Ed. 330
25/01 a 01/02/2003

por Vanessa Barbara

“A nossa indignação é uma mosca sem asas,
não ultrapassa a janela de nossas casas” – Skank

Era 7 de setembro de 2002. Dia de desfiles cívicos: militares marchando, crianças chacoalhando as bandeiras, toda aquela cidadania saudável que a gente aprende na pré-escola. Era também aniversário de 68 anos da minha avó, que, de repente, começou a contar uma história do curso de informática que fazia gratuitamente, patrocinado por um parlamentar (candidato à reeleição). Mostrou as apostilas – a capa indicava o nome do sujeito, repetido à exaustão em todas as folhas, onde também havia seu retrato, o número eleitoral e textos sobre seus feitos políticos. Na contracapa, uma foto ampliada do parlamentar sorrindo. Minha avó repetia o número dele, que já sabia de cor, pois fazia as lições de casa. Finalmente, contou que teve que apresentar o título de eleitor no ato da inscrição.

“Isso é ilegal, não é?” – mas eu não sabia, e nem meus amigos da faculdade de Jornalismo, que ficaram todos chocados: “é um absurdo, isso é compra de votos, onde é que o país vai parar?”, e assim por diante. Sentia-me como a minha avó, pessoalmente ofendida, com a sensação de que sofria uma lavagem cerebral, como se nosso voto fosse comerciável. A formatura dos alunos, após 2 meses de aulas, aconteceria naquela quinta-feira.

Tentei convencer alguns amigos repórteres a me acompanharem na reportagem, mas, embora estivessem horrorizados com a situação, todos tinham compromissos importantes e inadiáveis. Resolvi ir à formatura sozinha, munida de câmera fotográfica, gravador e bloco de notas. Faltei à aula de Política – irônico! – e fui à associação onde o curso era ministrado.

Os alunos com quem conversei confirmaram a necessidade de apresentar o título para se inscrever, e uns ainda declararam, resignados: “é voto que ele quer!”. Quando começou o discurso, a professora pediu a todos que votassem no deputado, “pra ele continuar fazendo esse trabalho bonito que ele faz”. O assessor de imprensa, por sua vez, aconselhou que os alunos “fizessem o que deve ser feito” e contou que uma das maneiras de valorizar o curso era “através do voto”. Cheguei a entrevistá-lo, e perguntei por que o título de eleitor era solicitado para a inscrição. Ele respondeu: “porque o voto é obrigatório”, e porque o documento servia como confirmação dos dados e do endereço da pessoa. E se ela não possuir título – se, por exemplo, tiver 17 anos?, cheguei a indagar. Disse que era só fazer a requisição no cartório e apresentar o comprovante. E se fosse menor de 16? “Então, dificilmente vai entrar no mercado de trabalho”, ele retrucou; portanto, não precisava do curso.

Quando a formatura acabou, levei pra casa a apostila, o certificado e umas fotos da camiseta que minha avó ganhara (com o número e o nome do candidato impressos de maneira nada discreta). Estava desnorteada: não achava que era meu papel escrever uma reportagem sobre o caso, julgando pessoas a quem mal dei oportunidade de defesa; não poderia fazer uma daquelas típicas matérias-denúncia. Escrevi para o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, para que encaminhassem o caso à Justiça; entreguei o material, e logo fui chamada para depor como testemunha no Tribunal Regional Eleitoral.

Minha avó também recebeu a intimação. Logo em seguida, alguns parentes telefonaram, reprovando a atitude (abominável!) de me meter onde não fui chamada, de envolvê-la na história; já meu pai dizia que tudo bem, levaria tabletes de chocolate enquanto eu estivesse na cadeia; todos contavam lendas de réus que se vingaram com assassinato, que levaram famílias à falência, que fatiaram criancinhas inocentes com um ralador de beterrabas. Achavam uma estupidez arriscar-se por algo que não me dizia respeito. Nem um pouco.

Minha mãe conversou com a minha avó todos os dias, para acalmá-la e convencê-la a comparecer no dia. O medo era grande: resquício da ditadura militar; das vezes em que, se a Justiça batia à sua porta trazendo uma intimação no meio da noite, o que você deveria fazer era sair pela janela e correr.

Pois ela teve coragem e foi comigo ao Tribunal. Diz-se que ela deu uma declaração exemplar e detalhada, que não tremeu nem ficou nervosa. Quando chegou a minha vez, fui conduzida a uma sala grande, onde me senti parte de um romance de Kafka. Numa mesa comprida, vários homens de terno e gravata se enfileiravam; as paredes estavam repletas de retratos enormes, de velhos juízes carrancudos que me davam medo.

Na ponta da mesa, reconheci o candidato em pessoa, a me encarar. Respondi às questões da melhor maneira possível, embora entrasse em pânico sempre que o advogado perguntava: “quantas pessoas estavam presentes?”, “depois de quanto tempo você soube?”, como se eu fosse abrir uma planilha e responder “trezentos e quinze, senhor; oito dias, nove horas e dezessete minutos. Horário de Brasília”.

Saímos do tribunal satisfeitas, eu e minha avó. Alguns meses depois, recebemos um jornal do deputado, com uma manchete que dizia: “A derrota da mentira e da infâmia. A vitória de todos nós”. O editorial contava que o parlamentar fora inocentado (por unanimidade) da acusação. Que tudo tinha por trás muitos “interesses escusos”. Dizia, também, que não adiantou a trama, a infâmia, os boatos, a jogada política dos inimigos: a Justiça acabara vencendo.

Poderia reconhecer, no final das contas, que não adiantou nada e que perdi meu tempo. Entretanto, fiz o melhor que pude e o faria de novo. Nada além da minha obrigação, de como deveria agir freqüentemente: é preciso continuar tentando, sempre. Embora haja ainda os que insistam em dizer que “isso não é da sua conta” (e é da conta de quem?), que nunca adianta, ou, então, que você está de parabéns pela intrépida e patriótica demonstração de cidadania (nada além do normal).

Enquanto a noção de política, cidadania e participação não estiverem entrelaçadas, sob a forma de ativismo e indignação permanente, de real consciência política, o país vai ser “assim mesmo”, “corrupto e subdesenvolvido”, sem saída, como dizem. Apáticos e resignados, preocupados com nossos próprios narizes, assistiremos aos desfiles e aos golpes de Estado pela TV, com a mesma indiferença, a cada 7 de setembro.


Vanessa Bárbara é estudante de sociologia na USP e de jornalismo na Fundação Cásper Líbero.

Viagem ao centro da Terra

Posted: 23rd janeiro 2003 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Site EmCrise
23 de janeiro de 2003
Cobertura do Fórum Social Mundial/Porto Alegre

Por André Deak, Vanessa Barbara e Solange Cavalcante

A 1109 quilômetros de distância de seus destinos, peregrinos aguardam sob a chuva o início de uma jornada. A provação é difícil. Longas horas de viagem os esperam, mas a recompensa é tentadora. Ou assim pensam as milhares de pessoas que rumam para Porto Alegre neste janeiro de 2003, em busca do Fórum Social Mundial que novamente levanta suas tendas na cidade.

Como já disse o poeta, “no hay camino, hay caminar”. Assim como o terceiro Fórum é parte de um processo de transformação maior, sua própria jornada de ida também transforma. Ou, no mínimo, transtorna.

O atraso para a saída do ônibus, entre tantos outros percalços, foi de quase quatro horas. Organização e planejamento não parecem ser as especialidades da esquerda, ainda mais quando festiva: inicialmente, o ônibus faria apenas três paradas. Ao final da viagem, ninguém mais sabia quantas vezes teve que descer do ônibus, devido a motivos dos mais insólitos. Mas não se pode generalizar; até agora, o Fórum está funcionando razoavelmente bem.

Assim como os peregrinos do Caminho de Santiago de Compostela, quem pega a estrada BR-116 (que já foi sombriamente conhecida como “rodovia da morte”) também sofre mudanças. Sobretudo quando o meio de transporte é um ônibus verde e apertado da Lerotur, típico para levar crianças ao Playcenter em trajetos curtos – e não para atravessar três estados com lotação máxima. E banheiro entupido.

A primeira madrugada de viagem correu sinuosa, entre buzinadas e curvas da estrada medonha. Ficou evidente, pelos solavancos e volteios, que o ônibus estava sendo guiado por Homer Simpson em pessoa. Quanto aos passageiros, entre os menos prosaicos estavam os vocalistas das bandas Sua mãe também e No Graal. Houve os festivos, que ocuparam o tempo jogando truco e bebendo catuaba, a tal bebida de rótulo sugestivo. Ainda no início da viagem (aquele bom-humor, a esperança de que tudo ia correr bem), descobrimos que a fórmula da catuaba deve ser a mesma do Biotônico Fontoura. “Isso se o princípio ativo não for soja geneticamente modificada”, alertava um dos nossos, preocupado com a questão dos transgênicos. “Daí vai que a gente toma isso e desenvolve tentáculos nas costas”. Todos riem, por enquanto.

Como era de se esperar, durante a travessia do Paraná, um dos pneus fura. Os fiéis descem do ônibus, satisfeitos, para respirar o ar puro da manhã e cumprimentar as ovelhas. Finalmente, descobrem onde estão: Mandirituba, Capital Nacional da Camomila. Nada mais coerente, nada mais apropriado. Alguns se ajoelham e o mecânico sentencia: o estado dos pneus não é nada aprazível. Um dos peregrinos lança as mãos aos céus e pergunta: “O que é que vem depois de ‘santificado seja o vosso nome’?”.

Vinte e quatro horas de viagem em um ônibus Lerotur é a oportunidade perfeita para pobres alunos de comunicação e jornalistas recém-deformados soltarem o verbo. O que é difícil, dada a qualidade – não dos ônibus – das escolas de comunicação. Quando em condições ideais de temperatura, pressão atmosférica e liberdade, soltam-se trocadilhos, inferências, comentários engraçadinhos, citações em francês (de O pequeno Príncipe) e alusões a Habermas, et al. “Olhem! Uma ovelha”, e todos voltam suas atenções à janela. Então o garoto completa, sem qualquer coerência: “Vamos fazer um pedido”.

A todo instante, havia quem calculasse o tempo que restava. Só faltam doze horas, alguém afirmou, naquele clima de tolerância. “Podia ser pior”, foi o que retrucaram. “Não consigo imaginar como, mas podia ser pior”. Imediatamente, alguém chama a atenção para uma coluna de fumaça em um dos pneus, mas logo o detalhe é esquecido: naquele momento, sem qualquer cerimônia e para desespero geral, um moço resolve abrir a porta do banheiro. Houve quem vestisse uma máscara de rosto contra gases tóxicos. O aroma espalhou-se e o limite do suportável parecia ter sido finalmente atingido.

Mas ainda era cedo. Àquela altura, a Lerotur Atrações Cinematográficas já tinha proporcionado aos passageiros quatro ou cinco sessões do mesmo filme, “Pânico 2”. Dublado. A outra fita que vez ou outra passava na única televisão do ônibus era “The Night Flier”, do Stephen King. Também dublado. Nada como assistir filmes de horror durante os momentos mais felizes: o acaso estava rindo um bocado de tudo aquilo, em algum lugar.

Muitas serras se passaram, as dezoito horas iniciais já tinham partido há tempos (e chegado antes de nós). O motorista parecia não saber o caminho, ou então estava querendo chegar a Davos. Finalmente, em Canoas, já na Grande Porto Alegre, o relógio se aproxima das 9 da noite e Homer Simpson resolve parar um instantinho. Uma garota queria fazer xixi, pôxa. Outras aproveitaram para descer, comprar salgadinhos, trocar receitas, enfim, confraternizar. Temos todo o tempo do mundo, diriam. Começava a escurecer; parte dos fiéis jogava truco e achava tudo aquilo um barato. Outros deixavam-se levar pelo pânico puro e simples. Quando o motorista foi finalmente convencido de que aquilo não era uma excursão ao Hopi Hari, as pessoas voltaram ao ônibus e terminaram a jornada.

Vencida uma batalha, contam-se as baixas. O que aprendemos, afinal? Solidariedade é apenas mais uma palavra bonita do dicionário? Calma é algo que só se consegue com camomila? Planejamento e respeito são nomes bonitos, mas… “Acho que não vou usar, não estou acostumado”. No desembarque, ainda encaramos alguns vendedores ambulantes, que nos perguntavam: “Água? Refri? Cartão telefônico? “Não”, era a resposta. “Afago? Carinho?”, e quase que compramos. No final, terá valido a pena? Tudo indica que sim, mas prometemos não voltar no ônibus em que viemos.

Mais sobre a seriedade e outros velórios

Posted: 27th novembro 2002 by Vanessa Barbara in Traduções
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Revista Fraude
27 de novembro de 2002

Julio Cortázar, in La vuelta al día en ochenta mundos
trad. Vanessa Barbara

Quem nos resgatará da seriedade? – pergunto, parafraseando um verso de Ricardo Molinari. A maturidade nacional, suponho, que nos levará a entender, por fim, que o humor não tem por que continuar sendo privilégio dos anglo-saxões e de Adolfo Bioy Casares. Cito especificamente Bioy, primeiro porque seu humor é dos que começam por admitir honestamente os limites de sua literatura, enquanto a seriedade se crê absoluta desde o soneto até o romance; segundo, porque alcança essa volúvel eficácia que pode ir muito além (quando é usada por um Leopoldo Marechal, por exemplo) de tanto tremendismo dostoievskiano mal feito que prolifera em nossas bandas.

Além disso, essas bandas vão mais além de Mar del Plata: ocorreu também a Jean Cocteau, à sua maneira um Bioy Casares francês, que os “comprometidos” de qualquer grupo e os sérios de solenidade como François Mauriac pretenderam relegá-lo a esses lugares do estabelecimento feudal da literatura onde há o rincão dos bufões e os trovadores. Sem falar em Jarry, Desnos, Duchamp… Em seu espasmódico Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, Edward Albee diz a alguém: “O mais profundo sinal da maldade social é a falta de senso de humor. Nenhum dos monolitos jamais foi capaz de aceitar uma brincadeira. Leia a história. Conheço bastante bem a história”. Também nós conhecemos bastante bem a história literária para prever que Dargelos e Elizabeth (personagens de Cocteau) viveram mais que Thérese Desqueyroux (personagem de Mauriac), e que o pai Ubu (de Jarry) jogará ao poço, com seu crochet à nobles, todos os heróis de Jean Anouilh e de Tennessee Williams.

Essa pulga prodigiosa chamada Man Ray escreveu uma vez: “Se pudéssemos exilar a palavra sério de nosso vocabulário, muitas coisas se arregalariam”. Mas os monolitos velam com seu ar de tartarugões pálidos, como tão bem os retrata José Lezama Lima. Oh, quem nos resgatará da seriedade para que, por fim, possamos ser sérios de verdade no plano de um Shakespeare, de um Robert Burns, de um Julio Verne, de um Charles Chaplin. E Buster Keaton? Este deveria ser nosso exemplo, muito mais que os Flaubert, os Dostoievski e os Faulkner dos quais só reverenciamos a carga de profundidade, enquanto esquecemos Bouvard e Pécuchet (Flaubert), esquecemos Foma Fomich (Dostoievski), esquecemos o sorriso com que o cavalheiro sulino Faulkner respondeu a um convite da Casa Branca: “Um almoço a quinhentas milhas de distância é longe demais pra mim”. Em cada escola latinoamericana deveria haver uma grande foto de Buster Keaton, e nas festas pátrias o diretor passaria filmes de Chaplin e de Keaton para estimular os futuros cronópios, enquanto as professoras recitariam “A Morsa e o Carpinteiro” ou pelo menos algo de Guido y Spano; por exemplo, a versão em alemão da Nenia, que começa:

Klage, klage, Urutaú,
In den Zweigen des Yatay.
War einmal ein Paraguay
Wo geboren Ich und du:
Klage, klage, Urutaú!(*)

Mas sejamos sérios e observemos que o humor, desterrado de nossas letras contemporâneas (Macedonio, os primeiros trabalhos de Borges, os primeiros de Nalé, César Bruto, Marechal às vezes, são outsiders escandalosos no nosso prado literário), representa uma constante do espírito argentino – apesar do que pensam os tartarugões – em todos os registros culturais ou temperamentais que vão da afiada tradição de Mansilla, Wilde, Cambaceres e Payró até o humor sublime do réu portenho que, na plataforma do trem 85, tendo sido obrigado a calar a boca pelo guarda massificado, contesta: “E o que você quer? Que eu morra em silêncio?”. Sem falar que às vezes são os guardas os humoristas, como aquele do ônibus 168 gritando a um senhor de ar importante que fazia tilintar interminavelmente a campainha para descer: “Pare com isso, camarada, que aqui estamos no ônibus, não na igreja!”.

Por que diabos há entre a nossa vida e nossa literatura uma espécie de “muro da vergonha”? No momento de pôr-se a trabalhar num conto ou romance, o escritor típico endurece o pescoço e sobe ao ponto mais alto do guarda-roupas. Quantos conheci que, se tivessem escrito como pensavam, inventavam ou falavam nas mesas dos cafés ou nas conversas após um concerto ou uma luta de boxe, conseguiriam essa admiração cuja ausência seguem atribuindo a razões lamentadas com lágrimas e panfletos pelas associações de escritores: esnobismo do público, que prefere os estrangeiros sem ligar para o que tem em casa, traidora perversidade dos editores, e não continuemos senão ele chora como uma criancinha.

Hiato egípcio entre uma escritura demótica e outra hierática: nosso escriba sentado assume a solenidade do que habita no Louvre tão logo saca sua Remington, de cara percebe-se a ruga nos lábios, a amarga experiência humana despontando na forma de ritos que, como é notório, não são computados entre os trejeitos que facilitam a melhor prosa.

Aqueles ñatos (n.t.: pessoa que tem o nariz chato) acreditam que a seriedade deva ser solene ou então não ser; como se Cervantes tivesse sido solene, diabos. Dizem que a seriedade deveria basear-se no negativo, no tremendo, no trágico, no terrível, no Stavrogin, e que só a partir daí nosso escritor concederá (e ascenderá) aos sinais positivos, a um possível happy end, a algo que se assemelhe um pouco mais a esta confusa vida onde não há maniqueísmo que chegue a lugar algum.

Despertar-se para o grande mistério com a atitude de um Macedonio ocorre a poucos; os humoristas são tachados de pronto para que sejam diferenciados higienicamente dos escritores sérios. Quando meus cronópios fizeram algumas das suas em Corrientes y Esmeralda, uma eminente intelectual exclamou: “Que lástima, pensar que era um escritor tão sério!”. Somente se aceita o humor em sua estrita jaulinha, e olhando-o a trinar, soando como uma sinfônica, porque o deixamos sem alpiste para que aprenda.

Enfim, senhora, o humor é all pervading ou não é, como sempre souberam Juan Filloy, Shakespeare e Max Ernst; reduzido a suas próprias forças, solitário na jaulinha, dará Three Man on a Boat mas jamais Sancho na ilha, jamais meu tio Toby, jamais o velório do pisador de barro. Fica claro então que o humor, cuja alarmante carência em nossas terras julgo deplorável, reside na situação física e metafísica do escritor que permite o que para outros seriam erros de paralaxe, por exemplo: ver os ponteiros do relógio da sala de jantar marcando uma e meia quando apenas é meia-noite e vinte e cinco, e jogar com tudo o que brinca com essa flutuante disponibilidade do mundo e de suas criaturas, entrar sem esforço na ironia, no understatement, na ruptura dos clichês idiomáticos que contaminam nossas melhores prosas tão seguras de que é meia-noite e vinte e cinco, como se à meia-noite e vinte e cinco elas possuíssem alguma realidade fora da convenção que as decidiu com grande aclamação de cosmógrafos e calígrafos de Maguncia e de Genebra.

E isto dos clichês idiomáticos não é bobagem; pode-se verificar o predomínio de uma linguagem hierática nas letras sul-americanas, uma linguagem que em seu mais alto nível dá, por exemplo, em O Século das Luzes, enquanto todo o resto empelota-se numa prosa que mais tem a ver com a farinha que com a vida que pretende encarnar.

Na Argentina há sinais de um divertido processo; em reação à prosa dos tartarugões pálidos, uns quantos escritores mais jovens se puseram a escrever “falado”, e ainda que os melhores o façam muito bem, a maioria errou o alvo e está afundando até mais que os purificados (palavra que eles colocam sempre em alguma parte). Parece-me que não é passando do calor do crisol ao do campo do Racing que faremos nossa literatura. Um Roberto Arlt escrevia idiomaticamente mal porque não possuía meios de fazê-lo de outra maneira; entretanto, possuir uma cultura de primeira como sonham os argentinos e cair numa literatura de pizzaria me parece, no fundo, uma reação de moleque que se decreta comunista porque o pai é sócio do Clube do Progresso.


Notas

– “De La Seriedad en Los Velorios” – Julio Cortázar, publicado em 1967
Projeto Rayuel-o-matic
– Todos os “enlaces” sobre o Cortázar
– Leia o “Jabberwocky” (Lewis Carroll) em latim

* do fantástico original, de Guido y Spano:
¡Llora, llora urutaú
en las ramas del yatay,
ya no existe el Paraguay
donde nací como tú ­
¡llora, llora urutaú! (N.T.)

Meu Reino Encantado

Posted: 25th setembro 2002 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Fazia tempo que ele não ia ao bingo, segundo o que eu e as duas senhoras sentadas à frente do homem pudemos apurar. (…) – De vez em quando eu vou catar latinha de alumínio no Terminal, ontem consegui 2 reais e comprei um bife.

Site EmCrise
25 de setembro de 2002

Por Vanessa Barbara

– Ninguém nunca conseguiu provar nada contra ele. Falam, falam, mas ainda não provaram que ele rouba.

Estava sentado no banco da frente.

– Por isso eu vou votar no Maluf. Sempre apoiei ele, desde mil novecentos e oitenta e dois.

Conversava com outro senhor grisalho; sua careca movia-se como se estivesse discursando no parlamento romano. Não estava. Apertou os olhos e mostrou um porta-documentos de plástico.

– Vou votar nestes aqui: delegada Rose e o Nelo Rodolfo. Grandes pessoas. E simpáticos.

O companheiro ao lado fez menção de comentar alguma coisa, mas o homem prosseguiu:

– Este documento aqui é da minha namorada. Fui ver ela ontem. Ela mora no Imirim, uma delas; a outra é de Cirade Tiradentes. Paula, o nome dela, moça muito bonita: tem olhos azuis.

Não faço idéia a qual das duas ele se refere.

– Porque é paulistana da gema, por isso é que é boazinha, se bem que a outra é de Belém do Pará. Pelo menos não é baiana, nunca mais caso com baiana.

O homem já falava alto. O topo de sua cabeça se voltava para todos os pontos cardeais, como um pirocóptero. O senhor sentado na poltrona ao lado limitava-se a concordar.

– Eu casei com uma baiana terrível. O nome dela era Felizarda. Ela controlava a minha vida, a mulher só queria o meu dinheiro. E olha: era feia…

Riu, obviamente sozinho. Àquela altura, a lotação inteira escutava ou fingia não escutar, com o olhar parado em algum ponto de sua careca. “A minha irmã se chama Dirce”, prossegue, com o indicador suspenso no ar, como se estivesse dando uma lição de moral.

– A Dirce, que é a minha irmã, dizia pra eu largar a Felizarda. Mas eu não largava. “Nilso”, ela dizia, a minha irmã, não a Felizarda, “ninguém pode ficar mandando na sua vidinha, não”. Mulher é uma peste, mulher nenhuma presta. Não é verdade? Todas elas.

Então ele tomou coragem e finalmente largou a Felizarda, no ano da graça de mil novecentos e noventa e cinco, como pudemos atestar, e desde então sua rotina era a mesma.

– Vou chegar em casa, tomar meu banho da tarde, colocar bermuda e escutar música. A Dirce, que é a minha irmã, também gosta de sertanejo. Eu já fui no Raul Gil cantar a música do Daniel, “Meu reino encantado”. É tão bonita. E amanhã eu vou ao Bingo.

Fazia tempo que ele não ia ao Bingo, segundo o que eu e as duas senhoras sentadas à frente do homem pudemos apurar. Não tinha sabonete para levar de prenda e nem pasta de dente, só que dessa vez prometeram que ele não precisava levar, caso não tivesse.

– Foi a Rosinha que me disse, Rosinha é companheira minha, eu encontrei ela na estação do metrô. De vez em quando eu vou catar latinha de alumínio no Terminal, ontem consegui 2 reais e comprei um bife.

Só então percebeu que o homem ao lado estava de pé, tentando passar para o corredor. “Já vai descer?”, perguntou, recebendo uma resposta afirmativa do homem. Recomendou lembranças aos parentes.

Sentada atrás do homem careca, eu tentava cutucar as costas dele com a ponta de uma caneta. As senhoras voltaram a tricotar, o careca desceu. Foi isso.

Desavenças zoológicas: fuinhas vs. furões

Posted: 15th maio 2002 by Vanessa Barbara in Crônicas
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E então os ingleses foram os primeiros. Redigiram um documento que instituía, a partir da ocasião, um jornalismo sem regras, sem quaisquer normas de proteção, imparcialidade ou seleção de assuntos. “Qualquer coisa vale”, disse um redator, bastante satisfeito, sorrindo para as câmeras.

Site EmCrise
15 de maio de 2002

Por Vanessa Barbara

Foi um acontecimento sem precedentes. Um repórter australiano, que preferiu permanecer anônimo mas não escondeu suas ligações com a comunidade dos furões, atacou publicamente a atitude das fuinhas pardas de garganta branca, que, segundo ele, estariam desdenhando e ferindo a auto-estima dos demais animais. Isso porque, apurou o jornalista, ao passarem saracoteando, as fuinhas não cumprimentavam seus colegas e ainda empinavam os focinhos, e isso estaria causando uma depressão generalizada e suicídios em massa entre os demais animais.

A reação da imprensa diante da acusação, publicada em jornal local, foi de deboche. Mas, em questão de dias, os ecologistas membros do Comitê de Defesa Aos Mamíferos Magrinhos, o M.A.M.A., entraram com um processo na justiça para exigir a restauração da honra das fuinhas. Começava a virar notícia.

O juiz, munido de manuais de conduta jornalística e ética da marcenaria, interrogou o repórter sobre o procedimento adotado para chegar a tais conclusões. O jornalista provou que sua matéria fora baseada nas declarações de biólogos especializados em psicologia animal – que citavam pesquisas científicas sobre o sentimento de superioridade dos mamíferos pardos com relação a outras espécies. Foi constatado, também, que o repórter usara aspas ao falar sobre “os obviamente superiores furões”, seguido de um “conforme fontes do meio”, o que isentaria o jornalista da responsabilidade de tais afirmações.

A manchete da reportagem, “Biólogos declaram: ‘fuinhas são arrogantes'”, seguida pelo subtítulo “animaizinhos pardos estão com popularidade em baixa, além de terem uma tremenda cara de fuinha”, ambos partindo de afirmações científicas, delegaria a responsabilidade aos especialistas, além de provar que o repórter, por não ter a informação, procurou noticiá-la da maneira que a recebeu. A matéria ainda apresentava dados auxiliares que, visivelmente, endossavam a opinião dos biólogos, como índices altos de reprodução das fuinhas em comparação aos demais mamíferos, mortes aparentemente acidentais dos animais próximos a elas, brigas em cativeiro, depressão, fraqueza e outros. Havia também algumas linhas para a defesa das fuinhas, mas os ecologistas que as redigiram não haviam se pronunciado com tanta convicção.

Enfim, o repórter venceu. O juiz decidiu que o profissional agira corretamente, não existindo nada que pudesse desaboná-lo, e encerrou o caso. A imprensa mundial espantou-se e examinou a reportagem minuciosamente, à procura de um erro que pudesse descartar a credibilidade da notícia. E não foi encontrada uma só vírgula passível de contestação. Por incrível que pareça, uma notícia sobre desavenças zoológicas, claramente tendenciosa para um dos lados e totalmente insana aos olhos do mundo, estava perfeitamente enquadrada nos chamados rituais de objetividade jornalísticos.

E então os ingleses foram os primeiros. Redigiram um documento que instituía, a partir da ocasião, um jornalismo sem regras, sem quaisquer normas de proteção, imparcialidade ou seleção de assuntos. Afinal, o que antes só poderia estar em publicações consideradas inferiores hoje era cultuado como exemplo de jornalismo competente. “Qualquer coisa vale”, disse um redator, bastante satisfeito, sorrindo para as câmeras.

E a imprensa mundial seguiu os britânicos. Em uma semana houve uma revolução nos jornais, e as vendas foram às alturas com manchetes do tipo “Vacas voam devagarinho pois desejam observar a paisagem”, “Família de argentinos vive numa caixa de sapatos por 17 anos”, “Ratos ambiciosos tomam conta de uma padaria”, “Eu acho que o meu jornal é bom e você é feio” e mais algumas frases ambígüas, tendenciosas, sem explicação coerente e cheias de toda sorte de irregularidades – um repórter tradicional morreria de enfarte. O enfarte, aliás, era tema de um dos tablóides recém-lançados, que distribuía versões do jornal concorrente em cores berrantes e holografias esquisitas, com a finalidade de provocar colapso cardíaco ou epilepsia em seus leitores. E não havia nada que pudesse ser feito para deter a onda de insanidade da imprensa.

Ao vivo, o correspondente de guerra da CNN contava uma piada de papagaios enquanto sua colega cortava as unhas do pé e ria sem parar, pois já sabia o final. O caderno de cultura do New York Times, hoje New York Nicks (por causa das preferências do dono), continha uma explicação passo-a-passo de como limpar um umbigo sem dor usando pasta de Amendocrem e quiabos. A revista Veja decidiu, enfim, assumir a condição de semanário de variedades e prometeu apresentar toda semana uma seção intitulada: “Pombas, ser pobre é muito feio”, com 20 dicas para que o brasileiro médio possa investir na bolsa e levar os pimpolhos à escola sem quebrar a primeira camada de esmalte das unhas. Um jornal de circulação nacional elegeu o Presidente da República como “colírio do mês” e uma revista de economia alterou todos os índices da bolsa para que os acionistas investissem no dentifrício Tandy sabor gelatina e os jornalistas pudessem, enfim, ficar ricos.

Em meio à balbúrdia, alguém pediu a palavra. Pronunciava-se da Casa Branca, já que o presidente norte-americano estava sendo acusado de ter o nariz muito brilhante, e isso ofendia muito os fabricantes de pancake, patrocinadores do jornal que o acusou. No palanque, posicionava-se uma tímida fuinha, um tanto quanto desapontada com os acontecimentos. “Perdoem-me os jornalistas”, dizia ela, alisando freneticamente as alças de sua bolsinha cor-de-rosa. “Devo dizer que forjei aquelas estatísticas e comportei-me como tola, empinando mesmo meu focinho e magoando meus companheiros furões. Eu só queria ser popular, desculpem-me”, e se retira, apressada.

A verdade, então, fora encontrada. Tudo não passava de invenção, a objetividade e neutralidade do jornalista continuava totalmente válida. No dia seguinte, infelizmente, tudo havia voltado ao normal.