Cadernos Expedicionários #2

Posted: 24th abril 2012 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários

Funcionário do Duty Free, tentando convencer cliente a comprar um par de óculos escuros:

“Ficou lindo, dá pra ir num funeral e abafar.”

Cadernos Expedicionários #1

Posted: 24th abril 2012 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários

Zarpando

Por que haveria uma ROLHA no chão da fila do check-in? Alguém comemorando a progressão das posições?

Folha de S.Paulo – Ilustrada
23 de abril de 2012

por Vanessa Barbara

Senhoras e senhores, árvores e multiformes,

Em março, a TV Cultura começou a exibir “Doctor Who” (seg. a sex., às 20h20), a série de ficção científica mais longeva da história – hoje considerada um clássico da BBC britânica.

É uma atração atípica e curiosa. Alguns episódios parecem ter sido escritos por moleques de 11 anos, com “mil bilhões” de exageros e mirabolâncias. Apesar disso (e às vezes justamente por isso), o balanço é ótimo, e dá vontade de acompanhar a atração de forma sistemática.

O herói é um viajante do tempo chamado Doutor, um sujeito eufórico que se movimenta pelo passado e futuro na TARDIS, sua máquina do tempo em forma de cabine da polícia londrina. A série é tão arraigada na cultura britânica que a palavra “tardis” (sigla para “tempo e dimensões relativas no espaço”) hoje é usada para falar de algo pequeno por fora e grande por dentro.

É engraçada e tresloucadamente inventiva, com episódios escritos por Douglas Adams (de “O Guia do Mochileiro das Galáxias”), Neil Gaiman (autor da HQ “Sandman”) e Steven Moffat (de “Sherlock”). E frases como: “A morte da Terra está prevista para as 15h39, seguida de drinques servidos na suíte Manchester”.

Os destaques são o telefone celular do doutor, que faz ligações para o passado e o futuro – “Espere até ver a conta” – e sua paradoxal chave de fenda sônica.

A série é famosa pelos efeitos especiais baratos, trilha sonora eletrônica e uma cronologia das mais intrincadas, totalizando 784 episódios, 32 temporadas e 11 reencarnações do Doutor.

A fase clássica teve 26 temporadas e estendeu-se de 1963 a 1989. Nos anos 90, foi lançado um filme para a televisão. A TV Cultura começou a exibir as temporadas da nova fase, iniciada em 2005, e que no Reino Unido já está no sétimo ano.

O doutor atual é David Tennant, considerado por muitos o melhor de todos.

Quem nunca assistiu “Doctor Who” pode tranquilamente começar agora, da melhor parte – hoje, a emissora paulista exibirá o último episódio da segunda temporada, “Juízo Final”, que contém os vilões enlatados mais célebres da franquia, e amanhã é a vez de um episódio de Natal que pode ser assistido de forma independente, “A Noiva em Fuga”. Quinta-feira o convidado especial é Shakespeare.

No dia 8 de maio, “não pisque, senão você morre”. Escrito por Moffat, o apavorante “Pisque” foi eleito pela imprensa como o melhor episódio da história de “Doctor Who”.

A queda do sistema

Posted: 20th abril 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista Piauí
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Revista piauí n. 67
Abril de 2012

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por Vanessa Barbara

Tempos atrás, lutava-se contra o sistema. Agora a torcida é para que ele jamais caia

Pior do que ditadura militar, estado de sítio ou a descida do Anticristo na Terra, pior, enfim, que comprimido entalado na garganta, unha encravada e música do Ivan Lins no repeat, pior do que tudo na vida é o súbito anúncio: “Caiu o sistema.”

Ainda que alimentemos a ilusão de ter algum controle sobre as circunstâncias da vida, não se pode evitar a queda do sistema. Ela é como a morte. Não há nada que a contenha, ninguém que lhe escape. A queda do sistema pode ocorrer numa fila de banco, numa sala de espera, no aconchego do lar, num hospital de ponta ou num delivery de comida mexicana. É tão inesperada quanto uma chuva de sapos e tão inexplicável quanto um besouro voando. Reza a lenda que os atendentes da lotérica já têm um cartaz de prontidão na fila exclusiva para carregar o Bilhete Único – ele anuncia, feito sentença: “Sem sistema.”

A pane no sistema da SPTrans deve ser a segunda maior causa de moléstias depressivas na região metropolitana, perdendo apenas para a própria SPTrans, imbatível em sua vocação para tirar dos eixos o mais pacato dos munícipes.

Até um desejo prosaico como pedir pizza pelo telefone pode ser totalmente frustrado pela queda do sistema. E não venha argumentar que é só burlar o esquema anotando o pedido num bloquinho, ou mesmo gritar à cozinha e fazer as contas de cabeça, vai um, sobe dois, porque isso seria uma hipótese tão absurda que chega a ser indecente. Isso simplesmente vai contra o sistema. O sistema, seja ele qual for – uma tela de computador esverdeada, um pop-up de JavaScript –, é a autoridade suprema, e não há vida fora dele.

É nessas horas que se testa a integridade de um indivíduo. O homem perante a queda do sistema – eis o derradeiro teste de caráter. Há os que reagem ao imprevisto com fúria, urrando, socando as paredes, como quem acaba de encontrar uma imensa verruga peluda no nariz – sinal inequívoco do final dos tempos, de que não há motivos para continuar existindo.

Mas também há gente ponderada na Terra, gente sábia que entendeu que não somos nada nesta implacável engrenagem cósmica e que, portanto, com ou sem verruga peluda no nariz, nenhum surto de fúria irá reverter a triste verdade: o sistema parou de funcionar – e viva-se com isso.

Não vai dar para autenticar os documentos, marcar uma endoscopia, efetuar a transferência monetária que salvaria a vida de sua tia na Holanda, curtir o vídeo daquela lépida tartaruga no Facebook. Impossível colocar créditos no celular, encomendar maçãs carameladas, retirar os remédios gratuitos para hipertensão que você teria que tomar hoje, do contrário morrerá amanhã. (A morte iminente é um dos efeitos colaterais da total subserviência ao sistema.) Sinto muito, senhor. É o sistema – e não há previsão.

 

as repartições públicas, a queda fatal do sistema pode antecipar o recesso de fim de semana e trazer muitas alegrias ao homem simples, devotado à máquina estatal. Em horário de expediente, a derrocada da rede – também chamada de “pau no servidor” – é uma ótima desculpa para ceder àquela necessidade imperiosa de lixar as unhas, ler o catálogo da Avon e papear ao telefone, enquanto a fila vai se multiplicando. A prática é tão difundida que existe um protocolo específico para anunciar ao público o apagão da rede. O funcionário deve executá-lo com certo ar enlutado, convocando todos à resignação, como convém a um legítimo barnabé – afinal, é o sistema.

Na iniciativa privada, a coisa não muda muito: se não há rede, não há com o que trabalhar, e o senhor não queira sequer insinuar que devemos desencavar uns formulários pautados do almoxarifado e preencher planilhas com caneta preta e papel-carbono, pois muitos de nós têm as falanges atrofiadas e o Meirelles da contabilidade nem sabe o que é escrever à mão.

A queda do sistema está para os burocratas assim como o “mau humor do mercado” está para os economistas e a virose para os médicos: ela justifica tudo sem nada explicar. A queda do sistema é a filosofia insuperável da nossa época.

À guisa de desculpa, se alguém ainda perguntar, pode-se alegar que “o menino do TI” já foi acionado e está a caminho. Às vezes, nem isso: a funcionária do guichê bota a plaquinha no vidro e solta um suspiro entediado quando alguém pede detalhes sobre a normalização dos serviços. É preciso aguardar a volta do sistema, e uma hora ele há de voltar. Oremos.

Outros funcionários ensaiam uma desculpa absolutamente aleatória: “É o horário”, “a chuva”, “a manutenção nos servidores”, “o efeito estufa”, “a conjunção astral”, “os campos magnéticos”. Reiniciar as máquinas ou dar um chute na mesa também pode restabelecer o respeito geral – no mínimo, dá a impressão de que algo está sendo feito pelo sistema.

Curioso é que, tempos atrás, lutava-se contra o sistema, e agora a torcida é para que ele jamais caia.

Poucos sabem que ele é pensado para sofrer tilts com certa regularidade, em maior ou menor escala, e para ruir por completo sem razões plausíveis – do contrário não seria tão respeitado. Nem tampouco sistêmico. Karl Marx já explicou, em seu Manifesto Comunista, que o sistema contém em si o germe da destruição do próprio sistema; em algum lugar, em meio a uma porção de códigos binários e comandos incompreensíveis em linguagem php, há sempre uma determinada linha que põe tudo a perder.

<?php if( random ):?> { CRASH

Não se brinca com o sistema.

Revista piauí – n. 67
Abril de 2012

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Fluxo de tartarugas intriga moradores de prédio carioca

por Vanessa Barbara

Eliane Castelo Branco é uma senhora elegante de olhos azuis e cabelos brancos. É diretora médica do Hospital São Vicente de Paulo, no Rio de Janeiro. Já foi síndica e hoje é subsíndica de um edifício de seis andares encravado numa ruazinha torta do Jardim Botânico. Foi lá que, certa tarde, deparou-se com o inexplicável: as duas tartarugas que moravam no laguinho do prédio viraram três da noite para o dia.

“Me avisaram: olha, o segurança botou aí uma tartaruga que encontrou andando na calçada, sozinha”, contou. “Estava numa rua sem saída.” Pouco menor que as demais, a novata já era adulta. Não faltou quem imaginasse uma explicação para a inusitada presença: a nova hóspede decerto viera visitar as amigas e se perdeu no caminho.

Hoje a população do laguinho é flutuante, literalmente: são cinco tigres-d’água, às vezes sete. As tartarugas somem e reaparecem, mas ninguém sabe explicar por quê. A hipótese mais aceita pelos condôminos é que algumas são visitantes temporárias deixadas pelos donos em férias que depois voltam para buscá-las. Vez ou outra uma delas foge, espremendo-se pela cerca baixa que ladeia o jardim: “A gente acha tartaruga no corredor de entrada, na calçada, em tudo que é canto”, disse Eliane.

O mais intrigante é que a multiplicação das tartarugas está acontecendo sob as barbas de todos. A rua possui um vigia 24 horas e o prédio tem porteiro diurno. Nenhumdeles jamais flagrou qualquer operação de carga e descarga. A instalação de câmeras de segurança para solucionar o mistério não foi descartada pelo condomínio.

Uma testemunha-chave para a investigação é Erivan Silva, há mais de dez anos porteiro do “prédio das tartarugas”, como ficou conhecido na vizinhança. É Erivan quem cuida do bem-estar dos inquilinos aquáticos. Serve aos animais uma dieta inaudita: eles só aceitam ração de gato.

Na limpeza mensal do lago, costuma botar “todo mundo de barriga pra cima” para não fugir. “Um dia esvaziei o lago e vi que brotaram outras duas bem pequeninas”, contou o porteiro. Em razão do tamanho, as novas hóspedes quase passaram despercebidas. Um mês depois, tinham desaparecido.

A hipótese óbvia para explicar a multiplicação dos habitantes do lago seria a procriação dos bichinhos. Contudo, as cinco residentes são fêmeas, aparentemente – e a literatura técnica ainda não registrou casos de partenogênese em tartarugas. Sem ter examinado os animais no foco da polêmica, o médico-veterinário Rafael Bittencourt Torres, de uma clínica da Zona Sul do Rio, não descartou a hipótese de reprodução. “Em cágados, a diferença entre macho e fêmea pode ser quase imperceptível, de modo que as duas menorzinhas podem ser crias”, considerou.

 

ocupação do lago remonta a 1995, quando uma sobrinha de Eliane confiou à tia uma dupla de tartarugas de água doce, na época adquiridas em feiras, o que hoje é ilegal. Eram tão diminutas que Eliane as abrigou num pirex. Dividiam o apartamento com uma gata, dez gatinhos, um coelho que dormia em cima de um cão, um casal de hamsters e seus 35 filhotes.

Naquele tempo, o prédio já tinha um lago com peixinhos no jardim. Crescidas, as tartarugas foram transferidas para lá e, com a fartura de espaço, sol e alimento, dobraram de tamanho. Anos depois, de número.

Sua presença não desagrada aos condôminos, mas alguns não veem com bons olhos a circulação de estranhos nas dependências do prédio. O incômodo não impediu a afluência de visitantes que fizeram dele uma referência na vizinhança: há quem frequente o lago só para ver os répteis tomando sol. Os mais destemidos querem acariciar os bichos. “Quando estou perto, peço para não botar a mão porque elas mordem”, disse Eliane. Vítima ela própria da fúria quelônia, a subsíndica pensou em colocar um aviso: “Cuidado! Tartaruga brava.”

A babá Dilma de Oliveira Coutinho conheceu a atração em 2008, ao se mudar para o bairro. Vinda de um prédio com playground e pracinha, esbarrou na escassez de recursos para entreter as gêmeas Maria Antonia e Valentina Ruiz Britto, de 5 anos. Foi um alívio quando descobriu a pródiga fauna do bairro, com macacos-prego que entram pelas janelas basculantes, lagartos tomando sol nas ruas e o insólito prédio das tartarugas.

Nas visitas ao lago, Maria Antonia desenvolveu verdadeira obsessão em alisar cascos. Já a irmã se limitava a interagir com as tartarugas arremessando-lhes folhinhas de alface. Nenhuma delas sabe dizer de onde vêm e para onde vão as ativas cascudas.

O veterinário Rafael Torres trouxe uma pista valiosa ao evocar o tamanho da espécie. Os tigres-d’água podem chegar a 30 centímetros de diâmetro, o equivalente a uma folha de papel A4 – informação omitida aos clientes por alguns vendedores de pet-shop. “A pessoa compra achando que vai ficar pequenina e acaba com um bicho enorme”, disse. Com a fama que ganhou, o prédio poderia ser um depósito de tartarugas indesejadas da vizinhança. “O lago do condomínio Parque Guinle, em Laranjeiras, é um conhecido lugar de desova”, comentou.

Subitamente, um inocente menino que frequentava o lago todos os dias ganhou ares de suspeito. “Ele passava para dar tchau, chamava a bichinha pelo nome, nitidamente era dele”, contou Eliane. “A mãe deve ter pedido para se livrar do bicho e ele o levou para o prédio vizinho”, supôs a subsíndica. Estaria aí a resposta para o mistério? O menor não foi localizado pela reportagem para esclarecer o caso.


Galeria

Episódio número cem

Posted: 16th abril 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
16 de abril de 2012

por Vanessa Barbara

Nos últimos capítulos desta coluna, abordamos 99 assuntos dos mais disparatados, como suricatos, punção lombar, Ciro Bottini, futebol de várzea, Leilão de Muares e acumuladores de entulho.

Revelamos em primeira mão os segredos mais bem guardados da tevê brasileira, como o fato de que não há ninguém de plantão nos estúdios de transmissão dos canais a cabo – só uma sonolenta calopsita silvestre cujo ofício é botar a fita para rodar no primeiro dia de cada mês, copiando e colando os mesmos reclames em intervalos aleatórios.

Falamos muito cedo das lutas de MMA e seus protagonistas, o “Maníaco Hispânico”, o “Mestre da Maldade” e o “Ninja do Amor”. Pouco depois, demos espaço a Morgan Freeman, mais conhecido como Deus, apenas para provar que ouvimos os dois lados. Traçamos a gênese do coraçãozinho com as mãos, que remonta a Alexandre Pato, e da mística do controle remoto universal.

Assistimos com a mesma disposição cinco horas seguidas de Raul Gil, oito temporadas de “24 horas”, uma tarde inteira de programas femininos e um episódio especial de “Busão do Brasil”. Utilizamos vocábulos como “enchoiriçada” e  “lumbago”, e publicamos uma coluna só sobre rádio que passou despercebida dos chefes. Falamos de Big Brother, de zumbis e de Big Brother zumbi (não ao mesmo tempo).

Explicamos ao leitor leigo o que é o Teorema do Disco Riscado e da Persistência Recompensada, e a minha mãe finalmente entendeu por que o Van Damme entra numa banheira de gelo em “Soldado Universal”.

Fomos elogiados por um jornalista da ESPN americana por nossos conhecimentos sobre beisebol, saudados pela Leci Brandão e ofendidos por um anônimo, que nos acusou de ter comido cocô antes de escrever um texto. Foram dezenas de e-mails redigidos em letras maiúsculas com os mais variados xingamentos – do tipo “bobona” e “vá regar uma grama”.

Citamos o Pinheirinho e as queimadas no Parque do Trululu, celebramos a “Semana do Tubarão” no Discovery e falamos treze vezes da Globo, sete da Record, seis da Band e três do Animal Planet. Foram 29 colunas sobre séries e doze sobre reality shows. Dois concursos de misses, diferentes modelitos de pijama, 99 belas ilustrações da Águeda Horn e um controle remoto oleoso.

Nos próximos episódios: um humorista com cara de cachorro, mais implicância com os telejornais e a série de ficção científica mais longeva da televisão. Não mudem de canal.

Folha de S.Paulo – Ilustrada
9 de abril de 2012

por Vanessa Barbara

Uma das coisas boas da vida é saber que há inúmeros universos funcionando de forma paralela e independente de nós, com suas regras próprias, linguagem, lendas, vilões e heróis. Isso vale para áreas complexas como a astroquímica no Brasil e também para temas prosaicos, como o setor dos parafusos, da escultura em legumes, dos tocadores de pífano, dos fãs de “Star Trek”, dos praticantes de vôlei e entusiastas do latim.

Sempre quis falar, por exemplo, das dançarinas bamboleando atrás do Faustão – quem são elas, quais são suas motivações e angústias? Quem é a mais invejada? Quem revolucionou a área?

Dito isso, foi com prazer que me vi perdidamente envolvida no mundo da criação do gado nelore, iniciando-me num Leilão de Muares que passou ao vivo no Canal Rural.

Foram quase 4 horas de portentosos bovinos desfilando na tela enquanto compradores davam seus lances por telefone e um especialista pecuário descrevia os atrativos de cada lote. Fiquei tão fascinada que foi preciso tirar o telefone de perto, ou agora mesmo teria um novilho pastando no meu quintal.

Em pouco tempo, entendi o básico: a venda era de prenhezes, em que se exibia a vaca grávida e sua previsão de parto. Forneciam-se os detalhes da gestante, sua genealogia e se gerou descendentes célebres.

Scarlat I, por exemplo, era uma vaca de grande consistência em sua progênie. “Ô, vaca maravilhosa!”, exclamou o leiloeiro, dizendo ser “pigmentada, feminina e com a caixa de crânio linda”. Ela chacoalha o papo, como se concordasse. “Tudo o que ela pare, ela pare muito bem.”

Identificava-se também o touro – não raro, o desgovernado Bitelo SS, campeão absoluto de paternidade.

“São prenhezes destacadas e de grandes matrizes, oriundas de um legado sagrado da raça nelore do Brasil”, exclamou o leiloeiro Aníbal Ferreira, emocionado. Na abertura dos trabalhos, lamentou a ausência do criador Ronaldo Alves, um homem, um mito, que muito cedo aprendeu “a discernir o certo e errado na criação do zebu”. Ele estava ausente porque esperava a chegada de um neto – humano, e não bovino.

Fui cativada pela prenhez da Sérvia 9, uma pechincha – 24 parcelas de 500 reais –, rês de qualidade que estava sendo visivelmente subestimada, apesar de ser “maravilhosa por dentro e por fora”.

Já Backiana era uma vaca com ótima habilidade maternal, muito comprida e mimosa. Não comprei, mas foi quase.

 

Blog da Companhia das Letras
03 de abril de 2012

por Vanessa Barbara

Phineas Gage

“E se amanhã eu acordar e não for mais eu mesmo, 
mas um besouro vira-bosta?” (Andrew Solomon)

Muitas vezes, ler sobre desequilíbrios, insânias e extravagâncias pode ser uma grande fonte de alívio para quem, como eu, tem medo de um dia acordar besouro. É terapêutico saber que há casos piores que o nosso, como o de Oliver Sanderson, que há mais de trinta anos pensa que é uma laranja, ou Phineas P. Gage, um operário de ferrovias que, após uma explosão, teve o crânio trespassado por uma barra de ferro de 6 kg. O comprido artefato entrou pela bochecha esquerda do rapaz, projetou seu globo ocular para fora, perfurou o lobo frontal e saiu pelo topo da cabeça. Ao dar entrada no hospital, caminhando, ele comentou ao médico: “Doutor, isso aqui vai dar um trabalhão”.

Além de catártica, esse tipo de leitura pode estabelecer uma conexão com outros mundos (autismo, esquizofrenia, depressão), do qual podemos sair a qualquer momento simplesmente desligando o abajur.

A seguir, uma lista das minhas leituras psiquiátricas preferidas (elaborada após o pedido de um Top 5 para o blog Meia Palavra). Lacunas imperdoáveis podem ser atribuídas a um lapso de memória e não devem ser consideradas sintomas. Para a infelicidade dos que sofrem de TOC, a lista não segue nenhuma ordem.

1) O demônio do meio-dia, de Andrew Solomon, ed. Objetiva. Melhor estudo sobre depressão já publicado. Com um estilo literário apurado, o jornalista expõe seu vínculo pessoal com a doença e faz uma investigação de sua incidência, manifestação, sintomas e tratamentos. É um mundo cinzento onde chove o tempo todo e até as estruturas mais fortes podem ser tomadas pela ferrugem. “Viver com depressão é como tentar manter o equilíbrio enquanto dança com um bode”, define.

O repórter da revista The New Yorker explica que a depressão começa do insípido, enevoa os dias num tom sépia e enfraquece ações ordinárias até que suas formas claras sejam obscurecidas pelo esforço que exigem, nos deixando cansados, entediados e obcecados em nós mesmos. Há uma bela passagem sobre a dificuldade que ele tem para se levantar da cama e ir tomar banho, antecipando cada passo e por fim desistindo da tarefa: “No mundo inteiro as pessoas tomam banho. Por que eu não podia ser uma delas?”.

Seu relato oscila magistralmente entre o registro jornalístico e o pessoal. A pesquisa durou cinco anos e é bem precisa em suas metáforas e definições: na depressão, o ar parece espesso e resistente, como que cheio de massa de pão. Tudo o que foi rápido é agora lento. A depressão, enfim, é a ausência de sentido vital de propósito e o embotamento de sensações — felicidade, tristeza, senso de humor e capacidade de amar.

A superação da doença é às vezes descrita com a simplicidade de quem decide sair para comprar um par de meias. Para alguns dos personagens deste livro, a salvação foi “fazer coisas com fios”, descascar pepinos, aprender sapateado e forçar-se a seguir em frente. “Pessoas que atravessaram uma depressão e estão estabilizadas frequentemente têm uma aguda consciência da alegria da existência cotidiana. Mostram-se capazes de uma espécie de êxtase imediato e de uma intensa apreciação por tudo que é bom em suas vidas. […] Podem desenvolver uma profundidade moral que é um troféu no fundo de sua caixa de tristezas”, diz.

2) Um antropólogo em Marte: Sete histórias paradoxais, de Oliver Sacks, ed. Companhia das Letras. O renomado neurologista e escritor descreve alguns casos curiosos que encontrou durante a prática clínica: um pintor que enxerga tudo em preto e branco, um cirurgião com síndrome de Tourette, um massagista cego que recupera a visão.

Autor de onze livros, Sacks descreve em detalhes o histórico de vida dos pacientes. Seu estilo literário aproxima-se das chamadas “anedotas clínicas” do século XIX, com especial influência do neuropsicólogo A. R. Luria, frequentemente citado em seus artigos.

Um dos pontos altos da obra é a constatação de que as deficiências, distúrbios e doenças podem ter um papel paradoxal na vida das pessoas, revelando poderes latentes que talvez nunca fossem vistos na ausência desses males. Em Um antropólogo em Marte, o tema central é justamente o potencial criativo das doenças. Se, por um lado, os distúrbios de desenvolvimento destroem caminhos preciosos no cérebro, podem, por outro, forçar o sistema nervoso a buscar alternativas, levando-o a um inesperado crescimento ou evolução.

O próprio Sacks é portador de algumas afecções esquisitas: tem prosopagnosia congênita, que é a incapacidade de identificar rostos — inclusive o dele mesmo. Há dois anos, perdeu a visão estereoscópica (tridimensional) devido a um tumor maligno na retina, e não enxerga mais em profundidade. Em O olhar da mente, ele conta sua dificuldade de subir escadas, atravessar a rua e caminhar sem tropeçar ou trombar nos outros.

Outros grandes livros de Sacks são: Tempo de despertar (que deu origem ao filme),Alucinações musicais e O homem que confundiu sua mulher com um chapéu.

3) O segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, ed. Companhia das Letras. Escrito por um dos maiores jornalistas da New Yorker, é o perfil de um mendigo excêntrico que pretende escrever a história oral do nosso tempo, um livro doze vezes maior do que a Bíblia. Gould era conhecido por falar com gaivotas e despejar na comida frascos inteiros de ketchup. Caótica e ambiciosa, sua obra possuía longos capítulos ensaísticos que tratavam de temas como a influência do tomate na vida da sociedade contemporânea, além de trechos narrativos, fartamente carregados de digressões, nos quais Gould reproduzia conversas ouvidas ao acaso.

“Trata-se, talvez, da obra inédita mais longa que existe: a História Oral e as notas ocupam 270 cadernos de linguagem, desses que as crianças usam na escola, todos rasgados, imundos, manchados de café, gordura e cerveja. Gould usa caneta-tinteiro e enche os dois lados de cada folha, sem deixar margem alguma, tem péssima caligrafia, e centenas de milhares de palavras são legíveis só para ele mesmo. Nenhum editor se interessou pelo trabalho.”

4) “O alienista”, de Machado de Assis, in: Papéis Avulsos, ed. Penguin-Companhia das Letras. Conto clássico sobre um médico que decide enveredar pelo campo da psiquiatria, abre um sanatório e se dedica ao estudo da loucura. “De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados de espírito.” Com o passar das páginas, sua definição de loucura se torna ligeiramente mais abrangente.

“Não imaginava a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuléio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! Um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!” Esse era provavelmente um genuíno Louco de Palestra.

Entre os meus preferidos estão um rapaz que se supunha estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, “e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se”. Outro era um fazendeiro de Minas cuja mania era distribuir boiadas a toda gente: dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, e não acabava mais. “Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse”. Também destaco o licenciado Garcia, que não falava nada pois acreditava que, no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, “todas as estrelas se desapegariam do céu e abrasariam a terra”.

5) Bem que eu queria ir, de Allen Shawn, ed. Companhia das Letras. Bela obra de referência para os fóbicos. O autor confessa ter medo de altura, água, campos abertos, estacionamentos, túneis, elevadores, metrôs, pontes e estradas desconhecidas. Sua agorafobia serve de base para uma investigação mais ampla sobre as fobias e a psicologia do medo. O grande mérito deste livro é que, à maneira de Oliver Sacks, acaba expondo a relação direta entre nossas fraquezas e aquilo que somos. Referindo-se ao pai (o lendário editor William Shawn), o autor diz: “O paradoxo é que, sem suas fobias, ele não teria chegado aonde chegou. Podia muito bem ter chegado a outros lugares; que possivelmente poderiam lhe ser mais compensadores, mas não lá, onde se revelou tão competente.”

Shawn explica que o conceito de fobia abrange todo um elenco de temores sociais, que podem ir da especificidade (ficar trancado em um armário de lavanderia) à generalização (todo confinamento de qualquer espécie), mas podem também permanecer notavelmente individualizados. “Recentemente li a respeito de um tenista que tinha medo de coisas felpudas e, portanto, usava luvas quando jogava; de certa pessoa que evitava todos os objetos marrons e não conseguia caminhar na direção de nada que fosse dessa cor; de uma mulher que tinha uma severa fobia de coxas de galinha. Sempre que a convidavam para uma festa, ela precisava ligar e perguntar: ‘Vocês não vão servir coxas de galinha, não é?’.”

Há fobias que se assemelham simplesmente a um medo de estar neste planeta: o medo da luz (fotofobia), do ar (aerofobia). E, para cúmulo da ciclicidade, há o medo de adquirir fobia (fobofobia).

6) O autor mente muito, de Carlos Sussekind e Francisco Daudt, ed. Dantes. Todos os livros do escritor carioca são notáveis (o melhor é Armadilha para Lamartine), mas este é especial por ter sido escrito em parceria com seu psiquiatra. Carlos, um dos senhores mais doces e divertidos deste mundo, tratou-se durante anos e foi dado como incapaz de distinguir entre ficção e realidade. “Diante de tal imprevisto, e para que não se desperdiçasse o caudal de fantasias desenfreadas que o paciente liberou sem retorno terapêutico no consultório do dr. Daudt, resolveu a dupla associar-se numa aventura literária — desistindo da cura em favor da diversão.” Isso está no capítulo “A verdadeira história deste livro”.

Leitura complementar: Entrevista com Carlos Sussekind.

7) Querido Scott, Querida Zelda, ed. Companhia das Letras. Por último, este livro lindo e melancólico que me deixou verdadeiramente impressionada. O que mais chama a atenção nesta coletânea de cartas trocadas entre Scott e Zelda Fitzgerald é a vida triste que ambos levaram, a evolução da doença de Zelda e o modo como ela lidava com seu estado nas cartas. A escritora foi diagnosticada como esquizofrênica e internada em diversas instituições. Era imensamente infeliz, mas em sua correspondência deixa transparecer um talento profundo e até mesmo um senso de humor admirável.

“Querido: A vida é difícil. São tantos os problemas. 1) O problema de como permanecer aqui e 2) O problema de como sair daqui. E eu quero tanto ir à Guatemala e andar de bicicleta até o fim de uma longa estrada branca. Uma estrada margeada por cedros-do-líbano e choupos, com esplendores antiquíssimos se desfazendo na encosta dos morros esturricados de sol e nativos dormindo à sombra, junto a um enorme muro cinzento.”

Visível nas entrelinhas das cartas, a história de ambos é de partir o coração. Por muito tempo, Scott lutou contra o alcoolismo e Zelda jamais se recuperou de sua doença. Há uma missiva datada de setembro de 1930 em que ela faz um balanço de seu relacionamento; é amarga e catastrófica, mas linda de dar nó. Ainda que separados, eram obcecados um pelo outro: “Eu o amo tanto e estar sem você é como ter saído e deixado o gás aceso, ou largado o bebê no cesto de roupa suja”, ela diz, no hospital. “Mas vou vê-lo em breve, e a chuva martela do lado de fora da janela, achata as árvores encharcadas, sobrecarrega o cascalho do passeio e eu torço para que a terra encolha com toda essa molhadeira, assim você ficará mais perto.”

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Vanessa Barbara tem 29 anos, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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Entrevista da semana para o Portal Imprensa
2 de abril de 2012

por Ana Ignacio

O personagem principal é uma fila enorme. A partir disso, Vanessa Barbara desenvolveu um dos contos para o livro recém-lançado “São Paulo 1971-2011”. Luiz Ruffato, Ignácio de Loyola Brandão e Tony Bellotto também desenvolveram narrativas para a obra. O tema era livre. A única exigência é que a história se passasse na cidade de São Paulo. “Demorei um pouco pra pensar sobre o que escreveria, mas depois que a ideia surgiu o resto veio rápido, sobretudo o modo de contar, na forma de relato jornalístico”, diz Vanessa.

Além de “São Paulo 1971-2011”, a jornalista é autora do livrorreportagem “O Livro Amarelo do Terminal” e do infantil “Endrigo, o Escavador de Umbigo” e co-autora do romance “O verão do Chibo”. Colaboradora da revista Piauí, colunista da Folha de S.Paulo, tradutora da Companhia das Letras e criadora da “Hortaliça”, um “almanaque eletrônico de gratuidades”, como define.O ofício de Vanessa é escrever. “Me formei em jornalismo em 2003, mas descobri que não gostava de ser repórter e já comecei procurando outras opções. Nesse campo da escrita, são inúmeras”. Começou escrevendo para um site publicitário, tornou-se revisora e passou a atuar na preparação de originais para a Companhia das Letras.

Dividindo-se entre todas essas atividades, Vanessa gosta da liberdade profissional que conquistou. “Só tenho tanta liberdade para trabalhar com coisas diferentes porque não tenho um emprego fixo em lugar nenhum. Se, por um lado, isso é libertador, é terrível porque não se tem estabilidade financeira, férias remuneradas, benefícios, nada. Você acaba tendo que cuidar de si mesma, viver de forma bem mandaquiense e se conformar com isso”.

Sempre bem humorada, Vanessa falou à IMPRENSA sobre a criação de “A Hortaliça”, mídia, mercado de trabalho, presunção de jornalistas e projetos futuros.

 

IMPRENSA – Como surgiu a ideia para a criação de “A Hortaliça”? 

Vanessa Barbara – Foi há dez anos. Eu estava de férias da faculdade, não tinha o que fazer e decidi compilar num almanaque uma série de besteiras que havia anotado de leituras que fiz e coisas que vi. Enviei para algumas dezenas de amigos e essa foi a edição número um. O almanaque foi crescendo e hoje está na octogésima oitava, com 700 infelizes assinantes.

Como foi o processo de produção de seu conto para o livro recém-lançado “São Paulo 1971-2011”?

Meu conto é sobre uma fila gigantesca que começa a se formar no bairro do Mandaqui e vai tomando conta da cidade. As pessoas vão aderindo ao organismo humano mesmo sem saberem para que serve. A única diretriz fornecida pelo editor do livro foi que escrevessemos ficções sobre a cidade baseadas em determinadas décadas, e eu fiquei com a de 2001-2011. Demorei um pouco para pensar sobre o que escreveria, mas depois que a ideia surgiu o resto veio rápido, sobretudo o modo de contar, na forma de relato jornalístico. Até o meu irmão começou a ler e achou que era verdade.

Como você avalia o mercado de jornalismo hoje?

Me parece que trabalho não falta – o que faltam é condições de trabalho. A grande maioria dos meus amigos que trabalha em redação ganha um salário ridiculamente baixo, não tem benefícios nem carteira assinada, passa mais de dez horas por dia na redação e se desdobra em inúmeras funções por falta de funcionários. Só no jornalismo existe essa aberração chamada “frila fixo”, que é o sujeito que trabalha de manhã até a noite, todos os dias, mas por algum motivo místico não é considerado funcionário do jornal e portanto não tem direito a nada. Também acho que há cada vez menos espaço para escrever e os jornalistas agora têm que possuir experiência em haicai.

Na Folha de S.Paulo seus textos são sobre televisão. Qual a sua relação com essa mídia?

Há pouquíssimos programas de qualidade na TV aberta, mas gosto muito de seriados, documentários e atrações pitorescas ou experimentais, como essas da TV comunitária, programas independentes, leilão de muares etc. De resto, tudo é muito padronizado e monótono, e a maioria trata o espectador como um tolo.

A revista Piauí valoriza o texto e destaca boas histórias. Qual a importância de uma publicação com esse formato hoje? 

Pelo que vejo nos jornais e revistas, o texto longo e a grande reportagem são cada vez mais raros, e sinto muita falta disso enquanto leitora. Acho estranho que se limitem os caracteres de um texto mesmo no meio eletrônico, onde há espaço infinito para escrever. Um pouco de verborragia às vezes é saudável.

Você disse em uma entrevista que não gosta “da presunção, do hábito de se levar muito a sério”. Acredita que jornalistas e escritores se preocupam muito com essa imagem de “sérios”? 

Uma das coisas que acho mais ridículas nos jornalistas é a presunção. Andar de peito estufado e se achar importantíssimo é um erro em qualquer profissão, e no jornalismo parece que você precisa disso para ser respeitado. Isso é triste, porque só se conseguem boas reportagens com paciência e humildade. Na televisão, isso atinge níveis absurdos – o sujeito chega, enfia a câmera no nariz da pessoa e pergunta como ele se sente tendo perdido a família inteira numa enchente. Essa prepotência pode descambar para o menosprezo do leitor/espectador sob a forma de gracinhas inócuas, na tentativa de “cativar” a audiência. Isso é o telejornalismo hoje: uma mistura de pompa jornalística e gracinhas variadas.

Qual a sua relação com o humor e a importância dele na literatura e no jornalismo?

O humor deve permear tudo, não na forma de piada mas no jeito de olhar as coisas.

Já tem alguma ideia para um novo livro? 

Estou escrevendo um romance há algum tempo, mas é segredo. Ele fala sobre alfaces.

Mortos pela TV

Posted: 2nd abril 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV

Folha de S.Paulo – Ilustrada
2 de abril de 2012

por Vanessa Barbara

Segundo um estudo divulgado no ano passado por uma universidade australiana, a TV pode matar. Não só porque os programas são tão ruins que anulam a sua vontade de viver; os médicos atribuem os danos ao sedentarismo e aos longos períodos de inatividade diante do aparelho.

Para os pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Queensland, a ausência de movimento diminui o metabolismo, afeta a capacidade de processar gorduras e aumenta os riscos de diabetes e doença cardíaca. Quem assiste mais de quatro horas de TV por dia tem 80% mais de chances de desenvolver problemas cardiovasculares do que aqueles que assistem menos de duas horas.

A cada hora perdida diante daquilo que Stanislaw Ponte Preta chamou de “máquina de fazer doido”, aumenta-se em 18% o risco de morrer de complicações cardíacas, e 11% de morrer por outras causas (tédio?). Na inatividade, uma enzima chamada lipoproteína lipase para de funcionar, cortando o envio de gordura para o tecido muscular. Esta acaba por se acumular no sangue, entupir as artérias e catapimba.

Ainda de acordo com o estudo, uma hora de TV diminui a expectativa de vida em 22 minutos, quase tanto quanto a obesidade e o tabagismo. (Cada cigarro ceifaria 11 minutos de sua existência.)

Em crianças, a TV superestimula e prejudica o desenvolvimento normal do cérebro, dispersando a concentração e favorecendo a impulsividade, impaciência e confusão. Também resulta em adultos com ossos fracos e osteoporose. Mesmo ligada ao fundo, a TV reduz em 20% a atenção dos pais com os filhos.

E não é só isso: um estudo da Universidade de Londres provou que é possível morrer de tédio. Após 25 anos da primeira sondagem, pesquisadores analisaram um universo de 7,5 mil funcionários públicos e constataram: aqueles que possuíam as vidas mais tediosas tinham 37% mais chances de estarem mortos ao término do estudo.

O tédio pode estar relacionado a fatores de risco como depressão e hábitos pouco saudáveis, como beber, fumar e comer demais.

Quem assiste seis horas de TV por dia, portanto, vive cinco anos a menos do que quem não assiste. Literal e metaforicamente: se você passa seis horas seguidas assistindo “Domingão do Faustão” enquanto fuma um maço de cigarros, toma cerveja e come sem parar, sendo que o ponto alto de sua tarde é levantar para ir fazer xixi, há grandes chances de você já estar morto.