Cadernos Expedicionários: Novo QG

Posted: 3rd julho 2012 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários

Graças ao meu espartano senso de limpeza e organização mandaquiense, livrei-me da temida Lápide do Mau Locatário da Rue de Meaux, e ainda ganhei duas mangas como prêmio pelo bom comportamento, além da estima infinita do Monsieur Gabin e seu fiel escudeiro Ganesh. 

Como já era de se esperar, também consegui vencer os 744 passos da Caça ao Tesouro que me separavam do meu novo lar, que realmente incluíam bips escondidos e chaves em locais inusitados – onde agora estou, me sentindo o Indiana Jones. 

(E tenho uma espingarda.)

 

Cadernos Expedicionários: a lápide

Posted: 3rd julho 2012 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários

Em tempo: em alterada conversa etílica com Monsieur Gabin e um prato de mangas, foi-me informado de que esse não é (repito: não é) o túmulo do último locatário, que fez barulho em excesso e não pagou o aluguel. 

Tenho lá as minhas dúvidas. Torçam por mim no Julgamento Final.

Cadernos Expedicionários: Adeus, Rue de Meaux

Posted: 3rd julho 2012 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários

Últimos minutos na Rue de Meaux, um lugarzinho adorável onde eu tenho gato e jardim.

Cadernos Expedicionário-Imobiliários

Posted: 2nd julho 2012 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários

Recebi uma correspondência com o esquema para entrar no meu novo apartamento. Se é que eu entendi direito as variáveis linguísticas, vai ser o seguinte:

1. Primeiro, digitar no interfone a sequência de Fibonacci
2. Depois, no corredor principal, procurar um capacho onde está escrito: Chipotle. Haverá um número na porta levemente solto, atrás do qual se encontra um dispositivo eletrônico que dá acesso à segunda porta.
3. Atrás da segunda porta, debaixo do terceiro lustre à esquerda, um pedacinho de papel enrolado conterá um enigma. A solução do enigma indicará qual escada é a certa.
4. Subir cinco lances de escada e, no 48o. degrau, haverá um ovo. 
5. Dentro desse ovo, um filhote de dragão. 
6. Dentro do filhote de dragão, uma chave.
7. Dentro da chave, outra chave.
8. A chave dourada abrirá o apartamento, mas só os puros de coração poderão ter acesso à terceira porta, esta realmente a porta da casa.

Tolices alemãs

Posted: 2nd julho 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: , ,

Folha de S.Paulo – Ilustrada
2 de julho de 2012

por Vanessa Barbara

Aos que reclamam que esta coluna dá excessiva atenção a porcarias televisivas brasileiras, aqui vai uma boa dose de porcarias televisivas alemãs.

A RTL é uma emissora comercial que passa as tardes exibindo um gênero chamado de “Doku-soap”, uma mistura de documentário e novela (“soap opera”), com reconstituições de casos polêmicos de família e sociedade.

Na atração, atores lamentáveis encenam histórias supostamente reais, mas patentemente inverossímeis (com enredos novelescos, excesso de reviravoltas, comportamentos implausíveis de personagens estereotipados), enquanto a câmera colhe depoimentos dos envolvidos.

“Casos suspeitos”, “Famílias em ponto de ignição”, “Falcatruas”, “Vida real” e “Os detetives de seguradora – na pista da verdade” são alguns dos títulos mais assistidos.

Numa só tarde, é possível acompanhar dois casos de adultério (um de uma garota de 18 anos que namorava um homem casado de quarenta, outro de um professor que engravidou a amante e perdeu o emprego por agredir um aluno), seguidos de um terceiro programa sobre uma jovem perua viciada em compras que levou a família à ruína.

Antes mesmo do jantar, a pungente história de um sujeito que fingia ser gay só para ser aceito numa república de estudantes, quando na verdade era hétero e mulherengo.

Outro gênero apreciado pelo bom povo teutônico é o de julgamentos encenados de casos tão novelescos quanto os supracitados, com atores e enredos tão ruins quanto. Também se referem a crimes contra a moral e os costumes, mas às vezes tratam de assassinatos.

Já a programação noturna é ficcional e traz uma vasta oferta de seriados policiais (os chamados “Krimis”), alguns importados, como “CSI Miami”, e outros nacionais. As telenovelas têm nomes como  “Entre nós”, “Tempos bons, tempos ruins” e “Tudo aquilo que conta”.

Nosso correspondente em Berlim, o tradutor Rafael Mantovani, confessa que os “Doku-soaps” e os programas de julgamento são às vezes maçantes, mas sempre compensa ver um ator ruim confessando que estrangulou a ex-amante com o cadarço do tênis, ou uma péssima atriz admitindo que roubou dinheiro da creche do filho para comprar sapatos.

Rafael, que estuda filosofia na Universidade Humboldt (a mesma de Einstein e Schopenhauer), diz que é preciso “saber apreciar uma bela cena real da mãe arrastando a filha vadia pelos cabelos loiros até Mönchengladbach”. 

Cadernos Expedicionários – Grand Bal Swing

Posted: 2nd julho 2012 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários

Briga de palhaço

Posted: 25th junho 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: , , ,

Patatá é detido na delegacia para esclarecimentos

Folha de S.Paulo – Ilustrada
25 de junho de 2012

por Vanessa Barbara

“O show em Paripe foi uma fraude. Não tinha Patati Patatá nenhum”, esbravejou uma mulher em dezembro de 2011. Na ocasião, mais de 500 crianças foram vítimas do calote de falsos palhaços, contratados pelo produtor de uma casa de espetáculos no subúrbio de Salvador como se fossem os originais.

O show acabou sendo embargado pela produção dos genuínos Patati Patatá, apresentadores do programa “Carrossel Animado” (SBT, seg. a sex. das 7h30 às 9h30).

Pais, crianças, produtores e o palhaço Rafael Zamprônio, que interpretaria o Patati (o de azul, com a flor no chapéu), foram parar na delegacia. Ele sofreu escoriações leves durante o quebra-quebra. Já o palhaço que interpretaria o Patatá (o de verde, com as batatas fritas na cabeça), fugiu durante a confusão.

Não foi a única ocorrência. No mês passado, circularam pela internet fotos de um Patatá fajuto sendo detido pela polícia após se apresentar em Sergipe. Josival Gomes de Oliveira, de 49 anos, e seu amigo Paulo Tenório, 19, foram indiciados por uso indevido da marca. Para não frustrar as crianças, os policiais esperaram terminar o show e só então deram voz de prisão.

Os verdadeiros Patati Patatá são na realidade uma marca que, em 2011, movimentou R$ 250 milhões em produtos licenciados. Seu proprietário é Rinaldo Helder Faria, que atualmente está sendo processado por um ex-Patatá e por isso não revela mais a identidade dos atores que interpretam os palhaços televisivos.

A empresa possui um departamento de “caça-cover”, composto por sete advogados que rastreiam os shows piratas e tentam impedir as apresentações. Utilizando um modelo de negócios à la Bozo, Rinaldo já chegou a gerenciar 40 duplas de Patati Patatá em 17 Estados, que realizaram até 160 shows por dia e alavancaram as vendas de CDs e DVDs.

Na tevê, o programa intercala desenhos animados e músicas próprias, como as famosas “Se Você Quer Sorrir” e “O Pintinho Piu”. As crianças participam pelo telefone em brincadeiras pouquíssimo empolgantes, com o intuito de ganhar brinquedos oficiais. Ao telefone, elas devem repetir o slogan: “Patati Patatá, meus melhores amigos”. As piadas e a interação entre os palhaços tampouco têm muita graça.

Ainda assim, no mês passado, outra dupla de arlequins farsantes foi desmascarada (e demaquilada) em Campinas, pouco antes do espetáculo. Eles conseguiram escapar e foram substituídos no palco por um grupo de pagode.

Revista Serafina – Folha de S.Paulo
24 de junho de 2012
Versão integral 

por Vanessa Barbara

No número 2 da Ćirilometodska, uma viela estreita no centro de Zagreb, há um sobrado branco com um banner roxo onde se lê: Museum of Broken Relationships. É um espaço dedicado às relações amorosas que não deram certo. Lá se exibem os mais variados objetos que restaram desses trágicos romances – ursos de pelúcia, chaves de casa, vestidos de noiva, cartas rasgadas e calcinhas comestíveis. 

A ideia é de dois croatas, Drazen Grubisic e Olinka Vistica, que namoraram de 1999 a 2003 e, quando romperam, não sabiam o que fazer com a vasta memorabilia da relação. Pediram contribuições aos amigos e, em 2006, fundaram o Muzej prekinutih veza, um porto seguro para a herança intangível dos amores frustrados. “Parecia uma solução mais sutil e poética do que ceder às explosões de raiva que acabam destruindo boa parte de nossa história íntima”, explica Olinka no catálogo da exposição.

É ela que recebe os visitantes na entrada do museu, muito tranquila e sorridente, a poucos passos da primeira peça em exibição: um coelhinho movido à corda, lembrança de seu relacionamento com Drazen. Na inscrição: “1999-2003. Zagreb, Croácia. Este coelhinho deveria viajar pelo mundo todo, mas nunca foi além do Irã.”

Todos os itens possuem uma placa informando a procedência, duração do romance e uma breve justificativa de seu valor sentimental. A maioria vem de croatas e eslovenos, mas há também objetos bósnios e sérvios, alguns alemães, um suíço, três macedônios, um norueguês, dois filipinos e um sul-africano, entre outros. Em breve, uma peça brasileira entrará para o acervo permanente – um garboso buquê de casamento feito de papel, minha modesta contribuição à galeria croata.

Não será páreo para o “anão raivoso do dia do divórcio”, um dos itens mais interessantes da coleção. Após 20 anos de matrimônio, o marido de uma eslovena resolveu comprar um carro novo e pedir a separação, ao que ela reagiu arremessando um anão de jardim em direção ao possante. O anão bateu no para-brisa, quicou e aterrissou no asfalto. “Descreveu uma parábola comprida que foi como um arco no tempo e marcou o fim do nosso casamento”, ela escreve. A peça não tem nariz.

Já um alemão enviou um “recipiente para lágrimas” com a prova líquida do quanto sofreu. Uma americana de Bloomington, Indiana, mandou “uma lata de incenso do amor” com a sucinta inscrição: “Não funciona”.

MACHADO DA EX 

De início, o Museu do Amor Malogrado era itinerante. Percorreu doze países entre Singapura, Irlanda, Estados Unidos, África do Sul, Argentina, Turquia e Inglaterra, sempre agregando artefatos locais. Em novembro de 2010, ganhou uma galeria permanente em Zagreb.

O espaço é branco e sóbrio, feito um museu minimalista. As peças são iluminadas por focos de luz e se dispõem esparsamente em salas austeras, a despeito de serem prosaicas lagostas de pelúcia, botas, bicicletas, perucas, retrovisores, ferros de passar, um “frisbee estúpido” e um relógio de parede com as palavras: “Ele terminou comigo via Skype”.

A trilha sonora é convenientemente composta de canções românticas antigas escolhidas por Olinka, como “Hallelujah, I Love Her So” (Ray Charles), “Cheek to Cheek” (versão de Frank Sinatra) e “Can’t Buy Me Love” (de Ella Fitzgerald). É como uma celebração ao amor – só que ao contrário.

Algumas seções são mais pesadas, outras melancólicas. Muitos visitantes assoam o nariz ao passar por um certo cavalinho de vidro (1982-97) com a legenda: “Seu amor desapareceu como o vento. Guardei o cavalo de vidro numa caixa com a aliança e a tranquei. Disse a mim mesma: ‘Não chore! Amanhã é um novo dia’”.

A tristeza, a saudade e a banalidade convivem neste museu, que, para Olinka, proporciona a chance de lidar com um rompimento de forma criativa e catártica, aprofundando a compreensão dos fatos e fortalecendo nossa crença em algo além do sofrimento aleatório. “A doação de um item proporciona a fusão entre realidade imutável – o objeto em si, que traz lembranças – e o caráter volátil de uma história pessoal, com o poder alternativo de sublimar a memória.” Um bom exemplo é a camiseta que uma garota sérvia ganhou do namorado. Ela diz ter superado a tristeza no dia em que usou a roupa enquanto tingia o cabelo.

Outro exemplo é um gibi em turco que, com o tempo, tornou-se insignificante “como todas essas histórias absurdas do Zagor que ele costumava ler”.

Olinka admite que “nunca ficará claro se fizemos isso tudo para erradicar o nosso amor ou para torná-lo eterno. Gosto de pensar que o museu serve a ambos os propósitos”.

Os objetos mais apreciados são os raivosos e cínicos, como um “machado da ex” (“an Ex-Axe”) usado para quebrar todos os móveis de uma donzela, ou uma prótese de perna que um soldado inválido ganhou da namorada. “A prótese durou mais do que o nosso amor. Era feita de um material mais resistente!”, exclama o desiludido.

O destaque mais recente vai para uma foto (1993-95) de “um lago na Flórida onde cabulei aula com o meu namorado. A seta aponta para o local onde vi pela primeira vez um pênis ao pôr-do-sol”.

No livro de comentários à saída da exposição, as declarações são igualmente paradoxais. Um americano conta que quebrou todos os pratos de porcelana chinesa da amada e se sentiu muito bem. Uma tal de Jenny se orgulha de haver possuído apenas um grande amor – por abacaxis. E há o registro de um diálogo:

Barbara: Quer se casar comigo?
Mathias: Não.

No fim daquela tarde, em Zagreb, um alegre casal de noivos contraiu matrimônio na igreja St. Catherine, do outro lado da rua, e foi tirar fotos no café do museu. “Gosto de pensar que existe aqui um equilíbrio”, afirmou Olinka.

Afinal, tudo se resume a um vestido de casamento (1995-2003) enviado por uma moça croata ao museu. No pacote, nenhum tipo de explicação, além da pergunta: “Vocês me devolvem se um dia eu resolver me casar outra vez?”.


Links

– http://www1.folha.uol.com.br/serafina/1108594-escritora-visita-espaco-dedicado-a-romances-frustrados-na-croacia.shtml
– http://brokenships.com/

Fotos

Um passaporte francês (fevereiro 1980 – junho 1998)
Ljubljana, Eslovênia
A única coisa que restou de um grande amor foi a cidadania francesa.

Um sabonete íntimo masculino (1995-96)
Split, Croácia
Quando o namoro terminou, minha mãe usou para polir espelhos. Ela disse que é absolutamente incrível.

 

Um telefone celular (12 de julho de 2003 – 14 de abril de 2004)
Zagreb, Croácia
Durou 300 longos dias. Ele me deu este telefone celular para que eu não pudesse mais ligar para ele.

 

Uma cinta-liga (primavera–outono 2003)
Sarajevo, Bósnia Herzegovina
Nunca usei. O namoro provavelmente teria durado mais se o tivesse.

Um urso de pelúcia
Eslovênia
Chegaram juntos. O urso ficou e ele foi embora com outra.

Um buquê de papel (2006-2011)
São Paulo, Brasil
Um verdadeiro machucado com corte de papel.

No Tolkien’s House, o estacionamento de equinos é por conta da casa.

Folha de S.Paulo – Turismo
21 de junho de 2012

por Vanessa Barbara

O prosaico Tolkien’s House é um pub temático encravado entre dezenas de outros bares, no alto da ladeira Opatovina. Seria normal se não estivéssemos falando de Zagreb, na Croácia, onde aparentemente J. R. R. Tolkien, autor britânico de “Senhor dos Anéis”, nunca pôs os pés.

É um bar onde se pode tomar praticamente todos os tipos de cerveja trapista do mundo, além de uma caneca da bebida da casa, a chamada “cerveja original dos hobbits”. Meio litro custa 20 kunas (6,50 reais).

Na parede, um aviso proíbe a entrada de orcs, trolls e goblins. O interior é escuro, apertado e cheio de garrafas decorativas. O pub dispõe de um bucólico terraço onde os clientes conversam em cadeiras dispostas sobre uma faixa de grama artificial. Há ainda uma exposição de peças obtidas em fictícias escavações pela Terra Média: um colete de mithril, meia dúzia de espadas e uma clava supostamente utilizada por um troll.

Leva-se um bom tempo para decifrar o cardápio, composto de quinze páginas em croata e quenya, a linguagem dos elfos – por sorte, a descrição dos drinques é traduzida para o inglês. Como música de fundo, uma boa seleção de Johnny Cash, Beatles, Bob Dylan e Elvis Presley, entre rompantes de música folclórica irlandesa e punk rock. Nos últimos anos, o Tolkien’s House tem comemorado o Dia de St. Patrick, feriado nacional irlandês.

 Fundada em 1996 pelo médico Roman Murr, a casa serve coquetéis com nomes como Aragorn, Lady Arwen, Red Mordor (vodca, suco de tomate, suco de limão, sal e pimenta), Sauron e Peter Jackson. Na categoria “soft drinks”, há o Beijo de Galadriel (Cointreau e Baileys) e Meu Precioso (licor de café, Amaretto e canela).

Pode-se pedir conhaque, licor, vinho, cidra, hidromel, uísque maltado e diversos tipos de brandy, como o de Gondor, feito de “15 ervas curativas”, e a Poção Uruk-Hai, um “brandy de cerejas que nossas avozinhas preparavam para manter o calor interno do corpo”. Outras opções: o Barad-dȗr Schnapps, feito de maçã, e os shots carinhosamente apelidados de O Cérebro de Sauron, Apocalipse e A Primeira Vez de Bilbo.

Entre os coquetéis sem álcool, destacam-se o refrescante Maçãs Amarelas do Condado (suco de limão, de maçã e água) e o Pôr do Sol na Terra Média (suco de laranja, limão e granadina). O Goblin Feliz serve duas pessoas e tem banana em sua composição.

Graças apenas ao boca a boca, o Tolkien’s House tem atraído turistas e locais, sobretudo por sua carta de cervejas: claras, escuras, tchecas, croatas, belgas, austríacas, inglesas, irlandesas (a O’Haras é considerada a melhor do mundo), orgânicas, de trigo, frutadas, pretas, de inverno e até cervejas alemãs de malte defumado.

Outra especialidade da casa é o chocolate quente. Os mais hobbits podem pedir a Floris, uma marca de cerveja branca com gosto de chocolate e bala toffee.

 

Link

http://www1.folha.uol.com.br/turismo/1107687-bar-na-croacia-homenageia-senhor-dos-aneis.shtml

Os inventores da gravata e sua marcha nonsense pelas atrações turísticas da capital croata

Folha de S.Paulo – Turismo
21 de junho de 2012

por Vanessa Barbara

Há dois anos, em julho de 2010, o Comitê de Turismo de Zagreb criou uma nova atração: a Troca da Guarda, que acontece todos os fins de semana das 11h40 às 14h20.

É um ritual interminável e de difícil compreensão em que meia dúzia de soldados de infantaria marcha pelo centro da cidade, em círculos, com seus tradicionais trajes azul-marinho, chapéus murchos e um lenço vermelho no pescoço, enquanto quatro homens a cavalo (a cavalaria) fazem o mesmo por outra rota. De vez em quando eles se encontram, ensaiam umas mesuras, deixam guardas pelo caminho e voltam pra fazer tudo de novo e de novo.

A cerimônia dura duas horas e cobre uma pequena área de cinco quarteirões. De forma confusa, os batalhões sobem e descem as mesmas ruas, fazem paradas estratégicas para executar inspeções, descansam em degraus, se separam e se cruzam. Aqui e ali, dão ordens uns aos outros e saúdam a bandeira aos gritos de: “Pela cruz honorável e pela liberdade de ouro!”.

Os turistas tentam acompanhar pelas brochuras, desdobrando-as e consultando o relógio, mas é preciso ter um doutorado em exploração de mapas para descobrir exatamente o que está havendo. Para quem não entende o idioma, a impressão é de que eles gritam coisas como: “Guardas! Vamos invadir a Prússia”, e alguém responde: “Mas, senhor! A Prússia não existe”. Inúmeras teorias surgem enquanto os soldados vão e vêm, andando sempre em ângulos retos – nunca em diagonal –, como personagens de um videogame.

A cerimônia é uma homenagem à cavalaria croata, que, no século XVII, durante a Guerra dos Trinta Anos, engrossou as fileiras do exército da França. “A desenvoltura militar e aparência singular dos soldados croatas afirmaram-se em 1664 com a fundação do Régiment des Cravates du Roi dentro do exército francês”, diz o folheto. Os forasteiros usavam echarpes de tecido para identificar os postos militares, o que foi copiado pelos oficiais franceses e adotado pela corte de Versalhes, de onde se espalhou pelo mundo. Assim surgiu a gravata ou cravat – que significa “croata”.

O folheto sugere: “Marche por Zagreb acompanhado do comandante do batalhão, um armeiro, um trombeteiro, um tocador de tambor e um porta-estandarte, e conheça as atrações da cidade de uma forma diferente”.

PASSO A PASSO

 

O evento começa às 11h40 em dois lugares ao mesmo tempo: a infantaria parte do quartel-general na praça do Mercado Dolac, em meio a barracas de flores e lembrancinhas quadriculadas, e segue ladeira acima pela Tkalčićeva, uma viela de paralelepípedos com ares medievais. No Kamenita vrata, um portal de pedra do século XIII, eles se alinham para uma oração e ficam a postos. A gruta é um conhecido local de devoção por exibir uma pintura da Virgem que se salvou de um incêndio em 1731, e é onde fiéis acendem velas e rezam.

Enquanto isso, o batalhão da cavalaria trota pela rua Dubravkin, num longo percurso até o santuário. São 11h55 quando ambos se encontram pela primeira vez.

Ao meio-dia, o canhão da torre Lotrščak dispara, numa tradição obscura que remonta a 1877 – a versão mais difundida da lenda conta que o tiro do canhão atingiu um prato de frango carregado por um soldado turco, e por isso a Turquia desistiu de atacar Zagreb, mas, na verdade, as causas do disparo comemorativo diário continuam sem explicação satisfatória.

Teoricamente nesse horário – a cerimônia não é pontual, dificultando ainda mais a localização dos turistas –, o regimento militar chega à praça São Marcos, forma uma só coluna e saúda a audiência. Em seguida, há um peculiar ritual de inspeção das armas. Dois soldados são estacionados na entrada da igreja São Marcos, um dos cartões-postais da cidade, que possui um telhado de azulejos pintados com os brasões do antigo reino da Croácia e da capital Zagreb.

Mais tarde, outros dois homens tomam guarda diante da estátua de Ban Josip Jelačić, conhecida por ser um ponto de encontro dos locais – “debaixo do rabo do cavalo” já se tornou uma referência geográfica. Conta-se que, de início, o monumento estava voltado na direção norte, com o general croata brandindo a espada ameaçadoramente em direção à Hungria. Foi removido em 1947 pelo marechal Tito e devolvido em 1990 ao seu lugar histórico, só que virado para o lado contrário. Ninguém sabe por quê: uns dizem que é para ameaçar a Sérvia, outros argumentam que ficava feio ter uma estátua com o rabo voltado para a praça.

O grupo perde ainda mais elementos ao passar pela estátua de Nossa Senhora no Kaptol.

A essa altura, há poucos soldados restantes. Dos espectadores iniciais, quase nenhum conseguiu acompanhar a cerimônia inteira, que em certos momentos acelerou o ritmo e dividiu os batalhões, para a exaustão do público, que optou pela deserção militar em prol de uma cerveja Karlovačko ou de um bom café.

É perante um desdém generalizado, portanto, que os bravos croatas de gravatas seguem marchando – lá vêm eles de novo – e recolhendo seus companheiros, um a um, numa troca mecânica de rituais e continências que se estende até bem depois das duas da tarde. 


Links

http://www1.folha.uol.com.br/turismo/1107658-em-zagreb-troca-da-guarda-confunde-turista.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/turismo/1107681-militares-se-encontram-para-saudar-audiencia-em-zagreb.shtml

Vídeo