O Estado de São Paulo – Caderno 2
30 de janeiro de 2017

por Vanessa Barbara

Minha mãe sempre gostou de musicais. Lembro da antena da nossa televisão disposta em ângulos bizarros, no ponto exato onde a imagem ficava menos verde, e de nós duas na sala assistindo a algum filme como Um dia em Nova York (On the Town, 1949) ou Xanadu (1980), enquanto tentávamos entender se aquilo era um número de dança ou só um personagem de duas cabeças caminhando no parque. (A imagem era muito ruim mesmo.)

Quando eu era menor, achava muito chatas as partes em que os personagens irrompiam a cantar, e aproveitava essas horas para ir ao banheiro. Os números de dança costumavam ser compridos, com plataformas giratórias e atrizes com vestidos esvoaçantes posando de modelos em seus chapéus elaborados. E rocamboles na piscina: havia uma quantidade cansativa de cenas com pessoas nadando em círculos de forma sincronizada e sendo erguidas por um guindaste com uma vela de bolo na cabeça e um sorriso decididamente assustador. Era nesse momento que eu parava para fazer um lanche. Só a “parte da história” me interessava.

Mais tarde, já na adolescência, comecei a entender qual era a graça daquelas coreografias de dança com um cabide e reparei na letra das músicas que o mocinho cantava para sua amada, que até então ele odiava. Passei a esperar esses momentos nos filmes, mesmo porque, àquela altura, a imagem da nossa televisão já estava bem melhor. Mas eu continuava preferindo Gene Kelly a Fred Astaire porque ele era mais acrobático e dava cambalhotas vestido de pirata. (Com o amadurecimento veio a sabedoria.)

O bom de falar de um gênero em extinção é que dá para dizer que você já viu quase tudo sem correr o risco de estar exagerando: desde os musicais mais consagrados como Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952), Amor Sublime Amor (West Side Story, 1961), My Fair Lady (1964), A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965), passando por alguns dos meus favoritos como Alta Sociedade (High Society, 1956) e Meias de Seda (Silk Stockings, 1957), até umas bombas tipo Bonita e Valente (Annie Get Your Gun, 1950) e o já citado Xanadu, que até hoje é matéria de pesadelos.

Vejam: o principal componente de um musical é a tolice. Não há como conceber um mundo sério em que uma pessoa resolve dizer algo cantando – estou pensando em Fred Astaire ao pé da escadaria dizendo que nunca mais vai dançar se não for com Ginger Rogers, em Ritmo Louco (Swing Time, 1936), ou em Gene Kelly e Donald O’Connor torturando o fonoaudiólogo em Cantando na Chuva. Aliás, o sapateado em si já é um troço engraçado.

Dito isso, não dá para saber onde foi parar a tolice naquele momento preciso em que Astaire e Cyd Charisse começam a dançar no Central Park, hesitantes, em Roda da Fortuna (The Band Wagon, 1953). Ou mesmo quando Richard Beymer, que aliás era meio dentuço, canta “Somewhere” para Natalie Wood em Amor Sublime Amor. Ou quando uma maltrapilha Audrey Hepburn em My Fair Lady diz como seria lindo ter as mãos e os pés quentes.

Um musical pode ser predominantemente tolo, mas há instantes de extrema beleza nos quais só a dança e a música fazem sentido. Um dos mais tocantes acontece num filme chamado A Alegre Divorciada (The Gay Divorcee, 1934), quando Astaire pede que Rogers não vá embora porque ele tem “muitas coisas a dizer”, sendo que essas coisas são a letra de “Night and Day”, de Cole Porter.

Neste século tivemos Moulin Rouge! (2001), Chicago (2002) e Os Miseráveis (Les Misérables, 2012), todos bonitos e tolos.

Tudo isso para chegar em La La Land (2016), um musical que prometeu romance, vestidos coloridos, sapateado, coreografias em cima de carros e um planetário. E ainda assim saí do cinema decepcionada.

P.S.: A imagem pelo menos não estava verde.

Peça a peça

Posted: 23rd janeiro 2017 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags: ,

Encontrada

O Estado de São Paulo – Caderno 2
23 de janeiro de 2017

por Vanessa Barbara

Gosto de comprar quebra-cabeças usados, sobretudo da marca alemã Ravensburger. Em 30 de março de 2014, encontrei dentro da caixa uma peça que não pertencia ao meu quebra-cabeça. É toda bege com alguns veios mais escuros, achatada horizontalmente em forma de letra H e com “braços” nas laterais. Claramente pertencia a algum cenário desértico e não à minha bucólica paisagem de trem nos Alpes suíços. Terminei o quebra-cabeça e ela ficou sobrando.

Isso quer dizer que em algum lugar do mundo existe um quebra-cabeça com esta peça faltando. Vocês não sabem como isso ataca a minha ansiedade. Quem estiver sentindo falta de uma peça nas especificações acima, por favor escreva para este jornal com nome, endereço e recompensa oferecida pelo resgate. Imagino que possa haver alguma criança doente por causa disso.

*

Os primeiros quebra-cabeças foram criados a partir de mapas e eram passatempos de cunho educativo. A atividade ganhou força na época da Grande Depressão, por se tratar de uma opção barata que podia render muitas horas de entretenimento – e ainda por cima ser reutilizada.

Como tudo nesta vida, existe um submundo de entusiastas de quebra-cabeças. Os mais habilidosos conseguem encaixar até 100 peças por hora, enquanto a média faz 25 a 50 (eu faço umas quatro). Muitos dos mais experientes preferem ficar de pé durante o processo, pois acreditam que sentar é um fator limitador para seu estilo.

Em geral, a tática mais utilizada é solucionar as bordas e depois separar as peças por cor. Mas há também quem as classifique por formato e número de “pernas”, a fim de facilitar a localização conforme a figura vai sendo preenchida.

Eu pessoalmente uso a tática Vaca Louca: sentar num canto, concentrar-se numa indistinta área de céu (ou telhado) e começar a testar as peças uma a uma, enquanto converso aleatoriamente sobre o dia em que eu estava sentada no escritório com a janela aberta e o vento engoliu as anotações de uma entrevista que fiz com um coordenador do Ibama – ou qualquer história do mesmo naipe. Alternativamente coloco para tocar alguma seleção de músicas passíveis de serem cantadas em voz alta, com uma ou outra faixa de cunho mais reflexivo – que é para quando você fica em silêncio tentando resolver o quebra-cabeça e pensa no absurdo da existência.

Os produtos da Ravensburger são notáveis porque suas peças são robustas, bem cortadas e encaixam perfeitamente. A marca comercializa o maior quebra-cabeça do mundo, um painel de 680 por 192 centímetros com dez cenas de desenhos da Disney. Ele tem 40.320 peças.

Foram eles também que lançaram o Krypt Silver Puzzle, um quebra-cabeça monocromático retangular com 654 peças prateadas e dispostas em círculo, tudo rigorosamente da mesma cor. Outro considerável desafio para os adeptos do passatempo é um puzzle de 5 mil peças com cores em degradê desenvolvido pelo artista Clemens Habitch. E há um puzzle da Clementoni só de peixinhos Nemo e uma única Dory.

Cada vez mais, os fabricantes têm desenvolvido novas formas de dificultar a resolução de seus produtos. Uma das marcas mais maquiavélicas é a Stave, que já produziu um quebra-cabeça impossível de resolver como pegadinha de Primeiro de Abril. A marca é conhecida por não trazer a figura na caixa (só uma pista por escrito) e por introduzir uma série de maldades como um “canto falso” (peça de canto que encaixa no meio de um quebra-cabeça), uma “beirada maldita” (peças adjacentes de beirada que não se encaixam por si só, mas exigem uma terceira peça para se juntar) e um “corte na linha da cor” (peças cortadas bem na linha divisória entre duas cores diferentes, de modo que uma peça azul pode emendar numa verde sem nenhuma pista da junção).

Alguns puzzles da Stave contém espaços em branco só para despistar.

Nomes de esmaltes

Posted: 17th janeiro 2017 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo

O Estado de São Paulo – Caderno 2
16 de janeiro de 2017

por Vanessa Barbara

No mês passado, fiz uma pesquisa para o The New York Times sobre nomes de esmaltes e constatei que o ápice da criatividade humana não está mais sendo empregado em áreas como a literatura e a música, mas no batismo de tons de verniz para decorar as unhas.

Diante de uma nova cor, as empresas nunca recorrem ao Pantone ou código hexadecimal – “achei divino aquele vermelho #ff001E” –, mas a epítetos mais poéticos como “Renda”, “Algodão Doce” ou “Pétala Branca”. Por alguma razão, isso rapidamente desandou para nomes bizarros como “Risoto de Mandioquinha” (um laranja com tom de mostarda), “Pantalona de Chita” (vermelho rosado) e “Manjar de Tapioca” (nude).

Os nomes que mais me irritam trazem um leve tom condescendente junto com o fundo perolado. “Bom Dia com Amor”, da Colorama, é um deles, bem como “Encontro Delícia”, “Quem Nunca?” e “Ai, Amiga!”.

Lá fora, temos uma tonelada de nomes exóticos como “Fiji Weejee Fawn” [algo como Bege Fiji Ouija], “Seychelles Seashells” [Conchas de Seychelles] e “Up the Amazon Without a Paddle” [Rio Amazonas Acima Sem um Remo]. Até aí, tudo bem. Mas logo a marca americana OPI achou que era uma boa ideia lançar a cor “Kiss Me, I’m Brazilian” [Me Beije, Sou Brasileira], a despeito de ser um tanto ofensiva.

Hoje em dia não há nenhum pudor em dar nomes misóginos aos vidros de esmalte. A grife Sephora by OPI tem uma coleção inteira que eu chamo de “Tons Chauvinistas de Inverno”: inclui uma cor de maravilha chamada “Lost Without My GPS” [Perdida Sem Meu GPS] e um preto vivo de nome “What’s a Tire Jack?” [O Que É um Macaco?]. A marca também é responsável por “How Many Carats” [Quantos Quilates?], “I’m With Brad” [Estou com o Brad] e “Never Enough Shoes” [Nunca Há Sapatos o Bastante].

Mas eles não estão sozinhos: a marca Essie lançou “No Pre-Nup” [Sem Acordo Pré-Nupcial], “Where’s My Chauffeur” [Onde Está Meu Motorista], “Trophy Wife” [Esposa-Troféu] e “Show Me the Ring” [Me Mostre a Aliança]. A empresa China Glaze vende as cores “Man Hunt” [Caça-Homens], “Limbo Bimbo” [algo como Vadia do Limbo] e “Marry a Millionaire” [Case-se com um Milionário]. A marca Deborah Lippmann tem “Before He Cheats” [Antes Que Ele Traia]. Uma das cores mais populares da OPI é um tom de vermelho-rubi que eles intitularam “I’m Not Really a Waitress” [Não Sou Exatamente uma Garçonete]. E a Spoiled tem um esmalte chamado “Daddy’s Credit Card” [O Cartão de Crédito do Papai].

O Brasil não fica para trás: nós temos as cores “Deixa Beijar”, “Nunca Fui Santa”, “Me Belisca!”, “Fiu Fiu”, “Ô Meu Santo Antônio”, “Boneca de Luxo” e “Amante”, entre outros.

Como se não bastasse, no ano retrasado, a Risqué decidiu contribuir ainda mais para o movimento global antifeminista dos nomes de esmaltes com a coleção: “Homens Que Amamos”. O intuito era celebrar os grandes atos de nossos heroicos namorados e maridos. Há um tom laranja vivo chamado “André Fez o Jantar”, um roxo de nome “Leo mandou flores”, um cinza-escuro chamado “Zeca Chamou Para Sair” e um prateado de nome “Guto Fez o Pedido!!” (com dois pontos de exclamação). O slogan da coleção é: “O assunto número um das nossas conversas”, claro, os homens, “em seis cores que vão dar o que falar”.

É claro que tamanha criatividade nos incentivou a sugerir para a marca uma nova coleção temática, chamada: “Arco-Íris da Repressão”. Tem o “Neblina de Lacrimogêneo”, um branco cremoso com toques de esfumaçado; o “Pimenta Nos Olhos dos Outros”, um vermelho que dispensa explicações; o “Noite dos Mascarados”, preto com brilho; o “Roxo de Cassetete”, que com o tempo muda de cor e fica esverdeado; e o “Constituição Brasileira”, que sai com qualquer chuvinha.

O Estado de São Paulo – Caderno 2
9 de janeiro de 2017

por Vanessa Barbara

O ano de 2016 começou com a Frida, uma vira-lata preta e frenética que resgatei de ser atropelada e que levei para casa junto com as compras do mês. Muito já foi dito sobre Frida e nunca será o suficiente – basta dizer que, no momento, ela se encontra feliz e confortável em seu novo lar com os cães Astor e Mocha, dormitando em cima desta coluna de jornal e perpetrando pequenas contravenções domésticas.

Sem negar suas origens, Frida já foi flagrada furtando um pote de ração de cima da mesa e levando para o sofá, onde ficou beliscando o quitute como se fosse pipoca. (Cogita-se que também roubou a senha da Netflix e assistiu à segunda temporada de “O Encantador de Cães”.) Frida já furtou um pote de Whey e convenceu a pequena Mocha a consumi-lo, para prejuízo do estômago desta.

Depois veio o Pokémon, um vira-lata caramelo que estava dormindo ao relento no inverno e parecia uma hiena famélica quando chegou. Assim como Frida, Pokémon foi castrado e recuperado para ser oferecido para adoção. Ele chegou a passar um tempo em um novo lar, mas a gata da casa ficou muito enciumada. O adorável vira-lata, que tem as orelhas mais expressivas da Zona Norte e adora passear, continua num lar temporário esperando um adotante responsável.

Já na primavera veio o Puppy, um poodle branco velhinho e surpreendentemente teimoso que foi abandonado pela tutora em Osasco e chegou esquelético e depressivo. Puppy tinha catorze anos de idade e o que mais fazia era ficar de pé e olhar para o chão, desolado. Ele gostava de quibe, mas não comia quase nada e vomitava muito.

A despeito da sua fraqueza, Puppy era um lorde e nunca fazia xixi na própria cama: ele se levantava, ia cambaleando até o meio da cozinha e se aliviava ali mesmo. Uma vez tentamos fechar o caminho para a sala com uma grade improvisada e ele saiu dando cabeçadas no obstáculo até ficar livre. Quando não gostava da comida, também dava vigorosas cabeçadas na tigela. Puppy estava morrendo, mas era o nosso cabeçudo preferido.

Ele passou alguns dias conosco antes de ser internado, e ficou na clínica por um mês, até descobrirem que estava com tumores generalizados. Morreu numa sexta-feira às seis da manhã e eu chorei no ônibus o caminho inteiro de volta. Ainda não consigo olhar para o hipopótamo vermelho de borracha que ficava do lado da cama dele. Até hoje estou pagando a conta do hospital. (Se alguém quiser ajudar, contatem a ONG Bendita Adoção, de Osasco, que aliás sempre precisa de padrinhos para os animais abandonados.)

Outro cão ilustre de 2016 foi o Paçoca, um vira-lata garboso de olhos claros e pelo branco e bege que foi resgatado pela minha cunhada e ganhou abrigo numa fazenda em Juiz de Fora. Ele veio tão traumatizado que tinha pavor até de receber carinho, mas hoje vive como um rei com sua amiga canina Zuzu (mandona) e a recém-chegada Lola, uma filhotinha marrom de cerca de quatro meses de idade que apareceu um dia no quintal, cheia de pulgas. Lola gosta de roer objetos e quando vê pessoas fica tão feliz que faz xixi no chão.

Foi um ano rico em amizades caninas, o que significa que foi um ano rico em geral. Também passeei com vários vira-latas da ONG Canto da Terra, com sede em Santana: o adorável Tibe, um cão preto e enorme que adora brincar com pinhas e foi adotado por uma família que mora num sítio; a Gil, uma cachorra preta e cheia de energia que também já foi adotada; o Velho, um idosinho extremamente dócil que faz questão de marcar com xixi todos os arbustos do caminho, mesmo que só saia um pinguinho; e o Flipo, um baixinho bege e feliz que gosta de correr. Estão todos disponíveis para adoção responsável.

O novo parâmetro para o sucesso de um ano é relembrar todos os cães que você ajudou.

En Brasil ya comenzó el fin del mundo (traducción)

Posted: 8th janeiro 2017 by Vanessa Barbara in Traduções

Sarah Mazzetti

The New York Times
11 de enero de 2017

by Vanessa Barbara

SÃO PAULO — En Brasil ya comenzó el fin del mundo. Al menos eso es lo que la gente anda diciendo. Los opositores llaman así —la Reforma del Fin del Mundo— a la propuesta de enmienda constitucional que aprobó el senado el mes pasado. ¿Por qué? Debido a que las consecuencias de la reforma parecen desastrosas. Y duraderas. Congelarán todo el gasto federal durante 20 años, incluyendo la educación y los servicios de salud.

El gobierno justificó la medida basándose en que Brasil enfrenta importantes déficits presupuestarios. Sin embargo, la gente no está convencida. Una encuesta de diciembre de 2016 reveló que solo el 24 por ciento de la población está a favor de la reforma. Los brasileños tomaron las calles para expresar su descontento. Se encontraron, como es habitual, con gas lacrimógeno y oficiales de la policía montada. Los estudiantes de secundaria tomaron mil escuelas en protesta, la mayoría en el estado de Paraná, al sur del país.

El gobierno no dará marcha atrás. La Reforma del Fin del Mundo es solo una de las muchas medidas neoliberales impulsadas por Michel Temer, el presidente de Brasil. Debería ser motivo de preocupación que Temer pueda llevar a cabo tantas reformas de tal envergadura, en especial considerando que la mayoría de ellas, incluyendo la de los límites al presupuesto, van en contra de la agenda de la persona que, a diferencia de él, sí fue electa presidenta.

En agosto del año pasado, la presidenta Dilma Rousseff, del Partido de los Trabajadores, fue destituida del cargo al ser acusada de haber manipulado el presupuesto estatal. Tan pronto como Temer, quien era vicepresidente de Rousseff, asumió el cargo, anunció una serie de políticas neoliberales. Todavía sigue en ello, con el argumento de que está sacando provecho de su impopularidad para implementar medidas impopulares.

El presidente Michel Temer de Brasil. Su reforma al presupuesto dañará a los ciudadanos más pobres y vulnerables del país durante las próximas décadas. Credit Evaristo Sa/Agence France-Presse — Getty Images

La reforma al presupuesto, al igual que muchas de las políticas de Temer, dañará a los ciudadanos más pobres y vulnerables del país durante las próximas décadas. No solo los opositores de izquierda del presidente opinan así. Philip Alston, relator especial de las Naciones Unidas para la pobreza extrema y los derechos humanos, declaró recientemente que la medida “congelará gastos en niveles inadecuados y rápidamente decrecientes en salud, educación y seguridad social, dejando, por tanto, a toda una generación futura en riesgo de recibir una protección social muy por debajo de los niveles actuales”.

Alston agregó que la ley situará a Brasil en una “categoría socialmente retrógrada”. Que parece exactamente adonde Temer y sus secuaces quieren llevarnos.

Además de congelar el gasto, Temer presentó una propuesta para renovar el sistema de pensiones de Brasil. Su propuesta establecerá la edad mínima para el retiro a los 65 años, en un país en el que una persona promedio se retira a los 54. La ley también exige al menos 25 años de aportaciones al sistema de seguridad social para hombres y mujeres.

Hay buenas razones por las que Brasil no había aprobado leyes como esta en el pasado. Aunque el promedio de la esperanza de vida en Brasil es de 74 años, se trata de uno de los países con mayor desigualdad en el mundo. Por ejemplo: en el 37 por ciento de los barrios de la ciudad de São Paulo, la gente tiene una esperanza de vida de menos de 65 años. En el caso de la población rural pobre es aún menor.

Algunos de los planes económicos de Temer ni siquiera tienen que ver con un déficit presupuestal. Además, el mes pasado, poco después de aprobar el techo del presupuesto, el gobierno propuso un plan laboral que permitiría convenios entre los empleados y los sindicatos que se impondrían sobre las leyes laborales. La nueva propuesta también aumenta el máximo de horas laborales permitidas a 12 al día y reduce la reglamentación en materia de empleo de trabajadores provisionales. La comunidad empresarial ha alabado el plan, pero desató indignación entre los sindicatos.

Otra prioridad para el presidente Temer es lo que se conoce como el plan de outsourcing. Se propuso por primera vez en 2004, pero nunca se aprobó debido a la fuerte resistencia de los sindicatos. En abril de 2015 fue ratificado por la Cámara Baja del congreso y ahora aguarda la aprobación del senado. El proyecto de ley dará libertad a las empresas para contratar cualquier trabajo a terceros, incluso en sus actividades principales. Según las reglas actuales, las empresas solo pueden contratar externamente los empleos “no esenciales” como los de limpieza, en tanto que los trabajadores “esenciales” tenían que estar contratados directamente por la empresa, lo cual quiere decir que tienen derecho a todas las prestaciones y derechos que establece la ley, como vacaciones pagadas, permiso de maternidad y bonos de fin de año.

Teniendo en cuenta todo esto, no sorprende que la administración de Temer tenga una aprobación tan baja: una encuesta de diciembre reveló que el 51 por ciento de los brasileños lo califican como “malo” o “pésimo” (solo el diez por ciento de los participantes dijo aprobar al gobierno; el 34 por ciento lo calificó de “regular”). Temer también fue encontrado culpable de violar los topes de financiamiento de campaña y su nombre ha formado parte de uno de los muchos escándalos de corrupción que se desarrollan en el país.

No obstante, el nuevo gobierno ya ha recibido todo el apoyo de las siguientes organizaciones: la Federación Brasileña de Bancos, el Frente Parlamentario Agrícola, la Confederación Nacional de Industria, la Organización Mundial del Comercio, la Federación de Industrias del Estado de São Paulo, la Federación de Industrias del Estado de Río de Janeiro, la Cámara Brasileña de la Industria de la Construcción, la Federación Nacional de Distribuidores de Vehículos Automotores y varios altos ejecutivos.

Para algunos brasileños, al menos, el fin del mundo es el comienzo de una oportunidad de oro.


Vanessa Barbara es columnista del periódico brasileño O Estado de São Paulo, editora del sitioweb literario A Hortaliça y columnista de opinión de The New York Times.

Este texto foi publicado em inglês na página A9 do The New York Times do dia 6 de janeiro de 2017, com o título: Brazil’s austerity apocalypse.

O apocalipse brasileiro da austeridade (tradução)

Posted: 6th janeiro 2017 by Vanessa Barbara in Traduções
Tags: ,

Sarah Mazzetti

The New York Times
6 de janeiro de 2017

por Vanessa Barbara
Contributing op-ed writer

SÃO PAULO, Brasil — O fim do mundo já chegou no Brasil.

Pelo menos é o que as pessoas estão dizendo. Uma emenda constitucional aprovada pelo Senado no mês passado está sendo chamada de “PEC do fim do mundo” por seus oponentes. É que as consequências da medida parecem desastrosas – e duradouras. A PEC irá congelar por vinte anos os gastos do governo, incluindo em educação e saúde.

O governo justificou a medida dizendo que o país sofre um déficit orçamentário grave. Mas as pessoas não estão comprando a desculpa. Uma pesquisa no mês passado constatou que apenas 24% da população apoia a PEC. Os brasileiros saíram às ruas para expressar desaprovação e foram recebidos, como de costume, com gás lacrimogêneo e a polícia montada. Estudantes secundaristas chegaram a ocupar mil escolas em protesto, muitas no estado do Paraná.

O governo não está recuando. A PEC do fim do mundo é apenas uma de várias medidas neoliberais aprovadas por insistência de Michel Temer, o novo presidente. É preocupante que Temer possa executar tantas reformas, sobretudo considerando que muitas delas, incluindo a do teto dos gastos públicos, vão contra a agenda política da candidata que – ao contrário dele – foi efetivamente eleita presidente. 

Em agosto passado, a presidente Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores foi removida do cargo sob alegações de ter manipulado o orçamento. Assim que Temer, então seu vice-presidente, assumiu o cargo, ele anunciou uma série de políticas neoliberais. E não parou até hoje, sob o argumento de que está aproveitando sua impopularidade para botar em prática medidas impopulares.

Presidente Michel Temer, do Brasil. Sua PEC do teto dos gastos irá prejudicar os cidadãos mais pobres pelas próximas décadas. Crédito: Evaristo Sá/Agence France-Presse — Getty Images

 

A PEC do teto, como muitas outras políticas de Temer, vai prejudicar os cidadãos mais pobres e vulneráveis pelas próximas décadas. Não só na opinião dos oponentes esquerdistas do presidente. Philip Alston, o relator especial da ONU para extrema pobreza e direitos humanos, disse recentemente que a medida “bloqueará gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, portanto, colocando toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais”.

Alston acrescentou que a lei colocará o Brasil em uma “categoria única em matéria de retrocesso social”. É exatamente onde parece que Temer e seus aliados querem nos deixar.

Além da PEC dos gastos, Temer introduziu uma proposta para reformular o sistema previdenciário do Brasil. Seu plano é estabelecer a idade mínima de aposentadoria aos 65 anos, num país onde a média das pessoas se aposenta aos 54. A lei também vai exigir pelo menos 25 anos de contribuição de mulheres e homens.

Há boas razões pelas quais o Brasil ainda não passou leis como essa. Embora a média da expectativa de vida no Brasil seja de 74 anos, somos um dos países mais desiguais do mundo. Por exemplo: em 37% dos bairros na cidade de São Paulo, os moradores têm uma expectativa de vida de menos de 65 anos. Ela é ainda menor para os trabalhadores rurais.

Alguns dos planos econômicos de Temer nem têm a ver com o déficit orçamentário. Também no mês passado, pouco depois que a PEC do teto dos gastos foi aprovada, o governo propôs uma reforma na legislação trabalhista que permite que os acordos firmados entre os empregadores e os sindicatos passem por cima da lei. A nova proposta também aumenta o número máximo de horas permitidas para 12 por dia e flexibiliza as regras para a contratação de trabalhadores temporários. As entidades patronais elogiaram o plano. Os sindicatos ficaram furiosos.

Outra prioridade do governo Temer é o projeto de lei da terceirização, que foi proposto pela primeira vez em 2004, mas adiado por causa da pressão dos sindicatos. Em abril de 2015, foi aprovado pelo Congresso e agora aguarda votação no Senado. A medida irá permitir que as empresas terceirizem qualquer emprego, inclusive os pertencentes à sua atividade-fim. Conforme as leis atuais, as empresas podem terceirizar apenas os cargos “não-essenciais”, como serviços de limpeza, enquanto os funcionários “essenciais” teriam que ser contratados diretamente pela empresa, o que significa que têm acesso a todos os benefícios e direitos prescritos pela lei, como férias remuneradas, licença-maternidade e décimo terceiro.

Dessa forma, não surpreende que a gestão de Temer seja imensamente impopular: uma pesquisa em dezembro constatou que 51% dos brasileiros a consideram “ruim” ou “péssima”. (Só 10% dos entrevistados aprovam o governo, e 34% o julgam “regular”.) Temer, que chegou ao poder graças ao impeachment de Rousseff, também foi declarado culpado em violar limites de financiamento de campanha e citado em um dos muitos escândalos de corrupção se desenrolando no Brasil.

Ainda assim, o novo governo já recebeu apoio das seguintes organizações: Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Confederação Nacional da Indústria (CNI), World Trade Organization (WTO), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) e inúmeros altos executivos.

Para alguns brasileiros, pelo menos, o fim do mundo é o início de uma oportunidade de ouro.


Vanessa Barbara é cronista do jornal O Estado de São Paulo, editora do site literário A Hortaliça e colunista de opinião do INYT.

Este texto foi publicado em inglês na página A9 do The New York Times do dia 6 de janeiro de 2017, com o título: Brazil’s austerity apocalypse. Tradução da autora.

Brazil’s austerity apocalypse

Posted: 5th janeiro 2017 by Vanessa Barbara in New York Times, Reportagens

Sarah Mazzetti

The New York Times
Jan 6th, 2017

by Vanessa Barbara
Contributing opinion writer

SÃO PAULO, Brazil — The end of the world has already arrived in Brazil.

At least that’s what people here are saying. A constitutional amendment passed by the Senate last month is being called “the end of the world” amendment by its opponents. Why? Because the consequences of the amendment look disastrous — and long lasting. It will impose a 20-year cap on all federal spending, including education and health care.

The government justified the measure on the grounds that Brazil faces severe budget shortfalls. But the people aren’t buying it. A poll last month found that only 24 percent of the population supports the amendment. Brazilians took to the streets to express their disapproval. They were, as usual, met with tear gas and mounted police officers. High school students occupied as many as 1,000 schools in protest, many in the southern state of Paraná.

The government isn’t backing down. The “end of the world” amendment is just one of many neoliberal measures being pushed through by Michel Temer, the president. It should be cause for concern that Mr. Temer can undertake so many such reforms, especially considering most of them, including the budget cap, go against the agenda of the person who — unlike Mr. Temer — was actually elected president.

Last August, President Dilma Rousseff of the Workers’ Party was removed from office over allegations that she had manipulated the state budget. As soon as Mr. Temer, who had been Ms. Rousseff’s vice president, took office, he announced a series of neoliberal policies. He’s still at it, saying he’s taking advantage of his unpopularity to put unpopular measures in place.

 
President Michel Temer of Brazil. His budget amendment will harm Brazil’s poorest and most vulnerable citizens for decades to come. Credit: Evaristo Sa/Agence France-Presse — Getty Images

The budget amendment, like many of Mr. Temer’s policies, will harm Brazil’s poorest and most vulnerable citizens for decades to come. This is not just the view of the president’s left-wing opponents. Philip Alston, the United Nations special rapporteur on extreme poverty and human rights, recently said that the measure will “lock in inadequate and rapidly dwindling expenditure on health care, education and social security, thus putting an entire generation at risk of social protection standards well below those currently in place.”

Mr. Alston added that the law would place Brazil in a “socially retrogressive category all of its own.” Which seems exactly where Mr. Temer and his allies want us to be.

In addition to the spending cap, Mr. Temer has introduced a proposal to revamp Brazil’s pension system. His proposal will set a minimum retirement age of 65, in a country where the average person retires at 54. The law will also require at least 25 years of contributions to the social security system by both men and women.

There are good reasons Brazil hasn’t passed laws like this before. Although the average life expectancy in Brazil is 74, we’re one of the most unequal countries in the world. For example, in 37 percent of the neighborhoods of the city of São Paulo, people have a life expectancy of less than 65 years. It’s even shorter for the rural poor.

Some of Mr. Temer’s economic plans don’t even have to do with the budget deficit. Also last month, shortly after the budget cap passed, the government proposed a labor bill that would allow deals between employers and trade unions to prevail over the labor laws. The new proposal also increases the maximum permitted working hours to 12 per day and reduces regulations on the employment of temporary workers. The business community has praised the plan. Labor unions are enraged.

Another priority of the Temer presidency is what’s known as the outsourcing bill. It was first proposed in 2004, but never passed because of strong labor union resistance. In April 2015, it was ratified by the lower house of Congress and is now awaiting consideration by the Senate. The bill would free companies to contract out any job to third parties, even from their core business. Under current rules, companies can outsource only “nonessential” jobs like janitorial positions, while “essential” workers have to be hired directly by the company, which means they are entitled to all the rights and benefits prescribed by law, such as paid vacation, maternity leave and year-end bonuses.

Given all of this, it shouldn’t be surprising that the Temer administration is deeply unpopular: a poll in December found that 51 percent of Brazilians rated it “bad” or “terrible.” (Only 10 percent of respondents said they approve of the government. Thirty-four percent called it “regular.”) Mr. Temer, who took power thanks to Ms. Rousseff’s impeachment, has also been found guilty of violating campaign finance limits and has been named in one of the many corruption scandals unfolding in the country.

Nevertheless, the new government has already received full support from the following organizations: Brazilian Federation of Banks, the Agricultural Parliamentary Front, National Confederation of Industry, the World Trade Organization, the Federation of Industries of the State of São Paulo, Federation of Industries of the State of Rio de Janeiro, Brazilian Chamber of Construction Industry, National Federation of Motor Vehicle Distributors and several top executives.

For some Brazilians, at least, the end of the world is the beginning of a golden opportunity.

Começando mal

Posted: 5th janeiro 2017 by Vanessa Barbara in Caderno 2, O Estado de São Paulo
Tags: ,

O Estado de São Paulo – Caderno 2
2 de janeiro de 2017

por Vanessa Barbara

Muitos encaram a virada do ano como o momento de renovar as esperanças no futuro. Isso é particularmente verdadeiro em anos como 2016, quando o Reino Unido decidiu sair da União Europeia, Trump foi eleito presidente, morreu o Dom Paulo e tudo o que podia dar errado efetivamente deu. Poucos anos foram tão antecipados quanto 2017, uma página em branco que todos estavam ansiosos para estrear com a inabalável esperança de que tudo agora irá se acertar.

Não é que eu queira ser indelicada, mas convém considerar que tal otimismo pode ser precipitado. No passado, já aconteceu de o ano-novo abrir uma porta que não leva a um caminho esplendoroso de novas oportunidades, mas a uma trilha de lama muito pior do que a do ano anterior, algo tão nefasto que nos faria exclamar: “Bons tempos do vírus zika”.

Já houve anos inteiros que se perderam em janeiro. Que o digam nossos antepassados de 1919. Nos primeiros dias do novo ano, estavam todos aliviados com o término da pandemia de gripe espanhola e com o fim da Primeira Guerra Mundial, confiantes de que o mundo iria melhorar.

Naquele ano, mal o champanhe perdeu suas bolhas, já no dia 1o de janeiro, a Checoslováquia ocupou Pressburg, atual Bratislava. Um navio com marinheiros que lutaram na guerra naufragou na costa da Escócia, matando 205 pessoas. No dia 5, foi criado o Partido dos Trabalhadores Alemães, precursor do Partido Nazista. Os primeiros sopros de vida do ano ainda resultaram na chamada Semana Trágica na Argentina, uma greve por direitos trabalhistas que terminou com o massacre de pelo menos 800 pessoas, entre anarquistas, comunistas e operários. Na ocasião, houve também perseguição e extermínio de judeus, naquele que é considerado o primeiro pogrom da América Latina.

No dia 11 de janeiro, ossetianos radicais promoveram um genocídio de georgianos na cidade de Alagir, na Rússia. Na Alemanha, a Liga Espartaquista tentou iniciar uma revolução marxista em Berlim, mas foi brutalmente reprimida por grupos paramilitares, que terminaram por assassinar Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

E não foi só isso. No dia 15 de janeiro de 1919, acreditem se quiser, um gigantesco reservatório de melaço se rompeu em Boston, nos Estados Unidos. Uma onda viscosa com 5 metros de altura tomou as ruas a uma velocidade de 56 km/h, matando 21 pessoas e ferindo 150. Um tsunami caramelizado. Que tal isso para um começo de ano?

**

No Brasil, o mês de janeiro é pródigo em inundações e deslizamentos de terra. No dia 11 de janeiro de 2011, na região serrana do Rio de Janeiro, um temporal deixou mais de 900 mortos e 35 mil desabrigados. No mesmo dia, só que em 1966, uma chuva de 72 horas ininterruptas resultou em 250 mortos e 50 mil desabrigados na capital fluminense. Em 1967, foram 785 mortos em enchentes e deslizamentos na cidade.

Aconteceu em janeiro de 2013 o incêndio da boate Kiss, em Santa Maria. E foi em janeiro do ano passado que morreu o cantor David Bowie.

Aliás, logo de cara, nem bem o ano se instalou, a humanidade costuma sofrer muitas baixas ilustres: faleceram em janeiro Marco Polo, Galileu Galilei, Lineu e Momofuku Ando (inventor do miojo); os escritores Albert Camus, T. S. Eliot, Katherine Mansfield, James Joyce, Lewis Carroll, George Orwell e J. D. Salinger; os estadistas François Mitterrand, Vladimir Lênin e Winston Churchill; a médica Zilda Arns; a cantora Elis Regina; o jogador Leônidas da Silva; as atrizes Hedy Lamarr, Barbara Stanwyck, Audrey Hepburn e Ava Gardner.

Janeiro não poupou Calígula nem Al Capone; levou igualmente Salvador Dali, Giuseppe Verdi, Carlos Magno e a rainha Victoria. Ceifou Cecil B. DeMille e também Samuel Goldwyn. Executou Guy Fawkes. Basta dizer: janeiro é um mês tão impiedoso que levou Mahatma Gandhi.

Fiquem avisados.

O Estado de São Paulo – Caderno 2
26 de dezembro de 2016

por Vanessa Barbara

O protagonista desta história de Natal é Guillaume Le Gentil, astrônomo francês que tinha um sonho. Em março de 1760, ele deixou a família em Paris e empreendeu uma viagem até Pondicherry, colônia francesa na Índia, de onde pretendia acompanhar o trânsito de Vênus.

(Trata-se de um raríssimo evento astronômico que ocorre quando a silhueta do planeta pode ser observada da Terra, a olho nu, passando diante do Sol. Os últimos aconteceram em 2004 e 2012; agora só em 2117.)

O obstinado astrônomo chegou às ilhas Maurício em julho, mas, nesse meio tempo, a França entrou em guerra contra a Inglaterra e não havia jeito de seguir viagem. Só em março do ano seguinte ele conseguiu embarcar numa fragata em direção à Índia e, apesar de faltarem poucos meses para o fenômeno, programado para o dia 6 de junho, calculou que chegaria a tempo.

O navio foi desviado da rota por uma tormenta e passou cinco semanas à deriva. Quando enfim se aproximava de Mahé, na Índia, o capitão recebeu a notícia de que a Inglaterra havia tomado Pondicherry, e, portanto, seria preciso navegar de volta a Maurício. Foi o que fizeram. No propalado dia do trânsito, o céu estava limpo, mas Le Gentil não pôde fazer suas medições porque estava em alto-mar e o navio balouçava excessivamente.

Como já chegara tão longe, achou que fazia sentido aguardar o trânsito seguinte, dali a oito anos, em 1769. Viajou pela costa de Madagáscar e, como bom naturalista, aproveitou para se dedicar a estudos de geografia, física, navegação, ventos e marés. Em 1766, resolveu que observaria o fenômeno de Manila, nas Filipinas. Mas, ao aportar no local, deparou-se com a desconfiança do governador espanhol, que o acusava de ser um espião. Em março de 1768, Le Gentil fugiu para Pondicherry, que àquela altura já havia sido devolvida à França. Lá construiu um observatório nas ruínas de um forte.

Conforme a data se aproximava, sucediam-se belas manhãs de céu claro e previsão irretocável. Na véspera, Le Gentil brindou o governador de Pondicherry com observações do planeta Júpiter. O dia 4 de junho de 1769, por fim, amanheceu nublado e o astrônomo não enxergou nada. “Senti-me amaldiçoado e me atirei à cama, sem conseguir fechar os olhos”, relembrou. Uma inexplicável tormenta obscureceu o céu durante todo o decorrer do trânsito. Imediatamente em seguida, o tempo abriu e o Sol brilhou pelo resto do dia.

“É essa a sina que às vezes acomete os astrônomos”, desabafou Le Gentil em seu diário. “Percorri quase 50 mil quilômetros e atravessei uma amplidão de mares, exilando-me de minha terra natal, só para observar uma nuvem trágica postando-se diante do Sol no momento exato da minha observação, afastando-me do fruto de minhas dores e de minha exaustão…”

Para piorar, o céu de Manila esteve absolutamente claro naquele dia.

De forma até que previsível, Le Gentil caiu em depressão. Também sofreu uma forte disenteria que lhe atrasou a viagem de volta. Posteriormente, seu navio foi pego por uma tempestade e naufragou nos arredores da ilha Bourbon (Réunion), onde teve que aguardar pelo resgate. Na tragédia, perdeu todos os espécimes que havia coletado.

Essa é a história de Natal que eu gostaria de contar: a saga do astrônomo mais azarado do mundo. Ele chegou a Paris em outubro de 1771, após onze anos e meio de viagem, e lá descobriu que não só perdera o trânsito de Vênus, mas também todos os seus bens e a esposa, além de ter sido dado como morto. Como se não bastasse, fora destituído de seu posto na Academia Francesa de Ciências.

Porém, no fim das contas, Le Gentil recuperou os bens, casou-se de novo, teve uma filha e viveu aparentemente feliz por mais 21 anos. Seu nome hoje batiza uma das crateras da Lua e uma grande nebulosa escura na constelação de Cygnus.

Eu sou o Pagliacci

Posted: 5th janeiro 2017 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags: , ,

O Estado de São Paulo – Caderno 2
19 de dezembro de 2016

por Vanessa Barbara

A menos que também se leve em conta a dolorida realidade do palhaço triste, há poucas coisas mais pungentes na vida do que um cronista deprimido. Certo: há pianistas com artrose e equilibristas com labirintite, e existem astrônomos azarados, bispos que perdem a fé e cirurgiões com soluço – temos até especialistas em lógica formal depois de misturar catuaba com cerveja –, mas vamos aqui nos concentrar nessa lamentável ocorrência que infelizmente não recebe a devida atenção das campanhas de saúde pública.           

O cronista deprimido não se interessa por coisa alguma. Ele pensa num tema para a coluna e imediatamente o descarta por puro desânimo. Meditando sobre outros assuntos possíveis, ele não encontra nenhum que lhe apeteça, nem quando se depara com a história de vinte e duas capivaras que invadiram a piscina de um clube chique carioca. O cronista deprimido não acha graça em nada, não tem vontade de perseguir nenhuma pauta; acha que o ideal mesmo seria fechar a coluna para balanço e recomendar que os leitores procurem gavetas para arrumar. O cronista deprimido olha pela janela e vê o mundo acinzentado e moroso, como se fosse um velhinho puxando vagarosamente uma carroça de recicláveis com um cachorro magro encarapitado na boleia.

Ele tenta ler sobre expedições polares e não consegue. Procura se interessar por teorias da conspiração e segredos de guerra, sem resultado. Dá uma mordida numa banana e desiste de continuar porque a vida não faz sentido, calculando que o esforço da mastigação não chega exatamente a compensar. O cronista deprimido abandona a banana mordida dentro de uma tigela na geladeira, e não se dá ao trabalho nem de responder quando lhe perguntam por que tem uma banana meio comida dentro de uma tigela. (É tudo muito cansativo.)

Por definição, um cronista é aquele que enxerga interesse em temas diferentes, que exalta a beleza dos clipes de papel e que a cada semana tem alguma coisa inesperada para mostrar. Que num dia escreve sobre doutrinas éticas, no outro sobre lojinhas de 1,99, em seguida fala de racismo, sambas-enredo, poluição sonora, gatos e sapateado. Um cronista deprimido não tem assunto. Não consegue sair da cama e levar seu texto para lugar nenhum, por mais que esteja fazendo sol lá fora; não sente o gosto dos sorvetes nem tem empatia pelas coisas.

Ele assiste a vídeos de labradores felizes tomando um banho de mar e fica ainda mais chateado.

            **

O quadrinista britânico Alan Moore, autor de V de Vingança, imortalizou nas páginas de Watchmen uma das minhas piadas preferidas, que não é exatamente uma piada nem tem muita graça. É assim:

“Um homem vai ao médico. Diz que está deprimido. Que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto.
O médico diz: ‘O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade esta noite. Vá ao show. Isso deve animar você.’

O homem se desfaz em lágrimas. E diz: ‘Mas, doutor… eu sou o Pagliacci.’”

            **

O cronista deprimido deve trazer, a cada semana, pequenos instantâneos do mundo, lembretes curtos de que vale a pena continuar calçando os sapatos e indo para a rua, mas ele mesmo não está muito convencido disso. Não há nada que seja empolgante o suficiente para instigá-lo. No fim das contas, é até possível ser engraçado usando expedientes racionais, sem necessariamente enxergar o humor no que se está fazendo, mas o interesse genuíno é mais difícil de forjar.

Daí a triste sina do cronista deprimido, que bem poderia contar com uma boa dose de tristeza se ao menos lhe viesse o ânimo suficiente para iniciar um parágrafo.