O Estado de São Paulo – Caderno 2
30 de janeiro de 2017

por Vanessa Barbara

Minha mãe sempre gostou de musicais. Lembro da antena da nossa televisão disposta em ângulos bizarros, no ponto exato onde a imagem ficava menos verde, e de nós duas na sala assistindo a algum filme como Um dia em Nova York (On the Town, 1949) ou Xanadu (1980), enquanto tentávamos entender se aquilo era um número de dança ou só um personagem de duas cabeças caminhando no parque. (A imagem era muito ruim mesmo.)

Quando eu era menor, achava muito chatas as partes em que os personagens irrompiam a cantar, e aproveitava essas horas para ir ao banheiro. Os números de dança costumavam ser compridos, com plataformas giratórias e atrizes com vestidos esvoaçantes posando de modelos em seus chapéus elaborados. E rocamboles na piscina: havia uma quantidade cansativa de cenas com pessoas nadando em círculos de forma sincronizada e sendo erguidas por um guindaste com uma vela de bolo na cabeça e um sorriso decididamente assustador. Era nesse momento que eu parava para fazer um lanche. Só a “parte da história” me interessava.

Mais tarde, já na adolescência, comecei a entender qual era a graça daquelas coreografias de dança com um cabide e reparei na letra das músicas que o mocinho cantava para sua amada, que até então ele odiava. Passei a esperar esses momentos nos filmes, mesmo porque, àquela altura, a imagem da nossa televisão já estava bem melhor. Mas eu continuava preferindo Gene Kelly a Fred Astaire porque ele era mais acrobático e dava cambalhotas vestido de pirata. (Com o amadurecimento veio a sabedoria.)

O bom de falar de um gênero em extinção é que dá para dizer que você já viu quase tudo sem correr o risco de estar exagerando: desde os musicais mais consagrados como Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952), Amor Sublime Amor (West Side Story, 1961), My Fair Lady (1964), A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965), passando por alguns dos meus favoritos como Alta Sociedade (High Society, 1956) e Meias de Seda (Silk Stockings, 1957), até umas bombas tipo Bonita e Valente (Annie Get Your Gun, 1950) e o já citado Xanadu, que até hoje é matéria de pesadelos.

Vejam: o principal componente de um musical é a tolice. Não há como conceber um mundo sério em que uma pessoa resolve dizer algo cantando – estou pensando em Fred Astaire ao pé da escadaria dizendo que nunca mais vai dançar se não for com Ginger Rogers, em Ritmo Louco (Swing Time, 1936), ou em Gene Kelly e Donald O’Connor torturando o fonoaudiólogo em Cantando na Chuva. Aliás, o sapateado em si já é um troço engraçado.

Dito isso, não dá para saber onde foi parar a tolice naquele momento preciso em que Astaire e Cyd Charisse começam a dançar no Central Park, hesitantes, em Roda da Fortuna (The Band Wagon, 1953). Ou mesmo quando Richard Beymer, que aliás era meio dentuço, canta “Somewhere” para Natalie Wood em Amor Sublime Amor. Ou quando uma maltrapilha Audrey Hepburn em My Fair Lady diz como seria lindo ter as mãos e os pés quentes.

Um musical pode ser predominantemente tolo, mas há instantes de extrema beleza nos quais só a dança e a música fazem sentido. Um dos mais tocantes acontece num filme chamado A Alegre Divorciada (The Gay Divorcee, 1934), quando Astaire pede que Rogers não vá embora porque ele tem “muitas coisas a dizer”, sendo que essas coisas são a letra de “Night and Day”, de Cole Porter.

Neste século tivemos Moulin Rouge! (2001), Chicago (2002) e Os Miseráveis (Les Misérables, 2012), todos bonitos e tolos.

Tudo isso para chegar em La La Land (2016), um musical que prometeu romance, vestidos coloridos, sapateado, coreografias em cima de carros e um planetário. E ainda assim saí do cinema decepcionada.

P.S.: A imagem pelo menos não estava verde.