Você vai dormir, dormir…

Posted: 1st abril 2007 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 7
Abril de 2007

por Vanessa Barbara

Em 1986, a ajudante de enfermagem Nadean Cool procurou um psiquiatra para tratar de um trauma sofrido pela filha. O médico decidiu que a própria enfermeira deveria ser tratada, e a submeteu a hipnose e outras técnicas sugestivas. O objetivo era resgatar lembranças de abuso que a própria enfermeira teria, supostamente, sofrido. Nas sessões, ela foi convencida de que reprimia memórias de ter participado um culto satânico, de comer bebês, de ser estuprada, de fazer sexo com animais e de ser forçada a assistir o assassinato de uma amiga de 8 anos. Chegou a acreditar que tinha mais de 120 personalidades – crianças, adultos, anjos e até um pato. Quem conta o caso é a psicóloga Elizabeth Loftus, da Universidade de Washington, em um artigo na revista Scientific American. Dez anos depois, Nadean processou o psiquiatra, acusando-o de inoculá-la com falsas memórias. Ganhou e recebeu uma indenização de 2,4 milhões de dólares.

Elizabeth Loftus enumera casos de pessoas que acreditavam ter sofrido abusos na infância e, mais tarde, descobriram que as memórias foram plantadas pelo terapeuta quando estavam hipnotizadas. A recorrência dos casos, segundo a pesquisadora, mostra que a hipnose é indissociável da teoria da sugestão. Os fenômenos hipnóticos, diz ela, provocam efeitos psíquicos – produtos de sugestões que, intencionalmente ou não, são provocadas na pessoa em transe. Para Sigmund Freud, o conceito de hipnotismo equivale ao conceito de sugestão.

Numa sala do Museu Alfredo Andersen, em Curitiba, cerca de vinte alunos se estiram em colchonetes azuis e aprendem a hipnotizar. São psicólogos, médicos, enfermeiros, padres, filósofos, publicitários e até um piloto de avião, que optaram por conhecer uma nova linha de terapia: a hipnose condicionativa que, segundo seu criador, Luiz Carlos Crozera, revolucionará a medicina e as ciências humanas. Nascido em Jaú, no interior de São Paulo, ele não é médico ou psicólogo. Mas fundou e dirige o Instituto Brasileiro de Hipnologia.

Crozera é gordinho, usa óculos, tem bastos bigodes e fala sem parar. Segundo ele, já existem mais de 400 hipnólogos clínicos – condicionativos – formados no Brasil, Angola e Portugal. Ele conta que a Universidade Estadual de Londrina está pesquisando a comprovação científica das técnicas que inventou. O seu curso é intensivo. Começa na sexta-feira e termina no domingo. São dez horas de aulas por dia. Ele diz ter ministrado cursos em Manaus e Fortaleza, em Vassouras e João Pessoa, em Lisboa e Sintra, mas as cidades onde sempre esgota as vagas são Curitiba e Campinas.

Os três dias são mais do que suficientes para uma apresentação aos princípios básicos da hipnose condicionativa. Os inscritos vêm do Paraná, do Mato Grosso, de Santa Catarina ou de Minas Gerais, e se hospedam em hotéis próximos. Alguns moram em Curitiba e estão fazendo o curso pela segunda vez. Na sala, dezenas de cadeiras escolares e uma tela para exibir 200 slides em Power Point (que começam com os dizeres “o início da vida: aí estão as bases biológicas do ser humano”). Em cima da mesa, há suco, chá, água, bolinhos e biscoitos de chocolate. São dois intervalos de dez minutos para lanche e uma pausa de uma hora para almoçar, cada um por si. A quantidade de biscoitos por pessoa não foi estipulada, o que faz com que alguns alunos se encham de doces e, talvez, embotem o cérebro. Fica difícil de pensar, comentam os mais céticos.

A hipnose condicionativa trabalha com o bloqueio dos registros mentais negativos. Ela opera em quatro vertentes: o condicionamento interno (ligado à mente e à fisiologia), o condicionamento externo (meio ambiente), o descondicionamento, e o recondicionamento de registros mentais. A principal diferença da hipnose condicionativa para as outras linhas de hipnoterapia é que a nova técnica pretende resolver as dificuldades psíquicas do paciente sem perscrutar, longa e penosamente, os abismos da psique. Ela chegaria às causas dos problemas sem retomar traumas ou revivenciar os abalos emocionais (o que Crozera chama de “sofrologia”). Com isso, abreviaria o tratamento. Ele sustenta que é possível resolver um caso de depressão em três sessões.

***

O segredo do método é encontrar um meio rápido para chegar às causas e bloquear os traumas. O hipnólogo descobre a origem do problema fazendo uma espécie de rastreamento na mente, indo da vida intra-uterina até o presente num curto espaço de tempo. Trabalha-se sempre o lado positivo das coisas. “Cognitivamente, o fato fica intacto, mas fazemos um bloqueio das sensações negativas”, explica, diante da alegação de que sua técnica “apagaria” as memórias indesejáveis (tal como faz a empresa Lacuna Inc. no filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças). “O abalo emocional é que vai embora.”

No primeiro dia de aula, Crozera distribui uma pedrinha para cada aluno, estende colchonetes na sala e dá início a uma sessão coletiva de hipnose para mostrar como a técnica funciona. Apagam-se as luzes e o sistema de som toca uma música calma. Como não há colchonetes para todos, alguns se deitam no chão, espremidos entre os pés das cadeiras. Aos poucos, todos param de se mexer. Ele começa a repetir, com a voz mole: “Quero que você deixe os seus problemas lá fora… concentre-se na música”. A primeira etapa do processo se destina a reduzir a ansiedade e fixar o controle de voz. Crozera comanda um vagaroso exercício de respiração para relaxar os músculos, e vai descrevendo o relaxamento da cabeça, da nuca, dos ombros e da barriga, beeeeeeem devagar. Devagar, mesmo. Devagar para burro. Muito devag…

Em seguida, começa a falar da pedrinha. “Quero que sua atenção e concentração fiquem na pedrinha que está nas suas mãos… e não na minha voz”, ele diz, pausadamente. “Sinta a textura… a forma. Enquanto sente a pedrinha, permita-se sentir uma agradável sensação de paz interior, muita paz e tranqüilidade, envolvendo o seu corpo.” Cada frase que o hipnólogo repete é seguida por segundos de silêncio, que reforçam as ordens de liberar a mente dos pensamentos e deixá-la totalmente vazia, focando apenas na referida pedrinha. Algumas tosses são ouvidas na sala. Depois de dez minutos de preliminares, tem início o relaxamento propriamente dito: “Sinta seus pés pesados… muito pesados… pesados e moles, moles e relaxados. Sinta uma agradável sensação de calor envolvendo seus pés. Relaaaaaxe”.

A frase demora vinte segundos para terminar. É uma etapa de sugestionamento, que serve para que o paciente entre no transe. “Quanto mais você relaxa, uma sensação mais profunda de paz… paz e calma… calma e tranqüilidade vai envolvendo cada parte do seu corpo.” O silêncio na sala é total. Um dos alunos aproveita para coçar o pé. “Onde você ouve apenas a minha voz… E faz somente aquilo que eu lhe disser. Relaaaaaaxe”.

Os órgãos internos da barriga, o tórax, o coração, braços, queixo, bochechas e a testa são mencionados na etapa de relaxamento, bem como as sobrancelhas, as pálpebras e até partes do corpo menos ortodoxas. “Sinta seus pulmões calmos e tranqüilos… tranqüilos e relaxados.” Essa etapa dura um tempão: de trinta a cinqüenta minutos. Aí vem uma lenta contagem de vinte-dezenove-dezoito-dezessete que tem o objetivo de baixar a freqüência mental do paciente. Ao chegar ao número um, espera-se que ele tenha alcançado o relaxamento profundo. Para fixar o nível do sono, Crozera diz a palavra “agora” (alguns alunos entendem “amora”).

***

Desta forma, em teoria, o sensor crítico (racional) do paciente é afastado e a voz do terapeuta tem acesso ao seu universo de registros mentais, captados de forma involuntária e não percebidos pela memória consciente. A terceira fase da sessão consiste nos condicionamentos em si, já que o paciente se encontra em transe hipnótico e está pronto para receber sugestões. (A essa altura, vários alunos estão roncando.) Crozera desenvolveu inúmeras técnicas de condicionamento mental, que ele apelidou de “espelho”, “porta”, “chuveiro”, “travesseiro”, “maçaneta” e “cofre”. São sugestões positivas que se dá ao paciente para aumentar a auto-estima, por exemplo: “Todas as manhãs, quando você se olhar no espelho, sentirá muita disposição e alegria”. Já a técnica do cofre é utilizada para bloquear os registros mentais negativos: pede-se que a pessoa mentalize um cofre sólido, com portas de aço puro, no qual irá colocar todos os sentimentos que a incomodaram, ano a ano, desde a vida intra-uterina. Depois o cofre é fechado e a chave fica com o terapeuta. Segundo Crozera, é assim que se curam os problemas que têm origem em traumas: “O cofre é um inconsciente dentro do inconsciente, onde a pessoa vai pôr o lixão dela”.

Uma etapa opcional é a “energização” – fórmula que consiste em imaginar “uma luz branca entrando pelo seu dedão do pé”, trazendo saúde para todas as células do corpo, removendo as impurezas e fortalecendo as artérias. Pode-se também energizar a pedrinha, ou qualquer outro objeto que o paciente tenha nas mãos. Concluída essa fase, o hipnólogo empreende a saída do sono terapêutico, contando (len-ta-men-te) de 1 a 10 até que os batimentos cardíacos do paciente voltem ao normal.

Nesse momento, após uma hora e meia de sessão, alguns alunos continuavam dormindo. Para Crozera, eles não estavam dormindo, e sim em transe profundo. “Você quase não sente a respiração dele”, explica, apontando para o aluno Darcy Nichetti, filósofo clínico (não se trata de erro: o curso atrai “filósofos clínicos”, aqueles que aplicam o conhecimento filosófico à psicoterapia). Todos trocam olhares, desconfiados, e alguém protesta: “Mas ele está roncando!”. O professor ressalta que o ronco é uma manifestação fisiológica, que não tem necessariamente a ver com o sono. São 11 horas da noite; a sessão termina com as luzes se acendendo e o pessoal se espreguiçando. Uma das alunas se levanta e vai correndo para o banheiro, pois está apertada. “Provavelmente ela não sabe, mas tinha uma doença que acabou de ser curada”, declara o professor. “Uma vez, quando acabou a sessão, uma aluna minha foi correndo para o banheiro fazer xixi. Ela tinha câncer no ovário, e depois da sessão estava curada.”

Sonolentos, os alunos vão embora, com a promessa de que na manhã seguinte olharão para o espelho e sentirão muita disposição e alegria.

***

Nas aulas, Luiz Carlos Crozera garante que a hipnose condicionativa é diferente de todos os tipos anteriores de hipnoterapia. Ele cita a hipnose clássica e a ericksoniana como pontos de partida da nova vertente, mas lembra também do pioneiro Franz Anton Mesmer, médico alemão formado pela Universidade de Viena que, no século XVIII, publicou uma tese de doutorado sobre a influência dos planetas na saúde das pessoas. Mesmer acreditava que havia um fluido universal conectando cada elemento do universo, e que as doenças surgiam quando havia um desequilíbrio dessa energia dentro do corpo. Influenciado pelas curas com ímãs do jesuíta Maximilian Hell, lançou a teoria do “magnetismo animal”, capacidade de um indivíduo em causar efeitos similares ao magnetismo mineral e promover a cura em outra pessoa. Suas técnicas consistiam em efetuar passes com as mãos e olhar fixamente para o paciente, conduzindo-o ao transe. Em 1784, as curas pelo mesmerismo ganharam o mundo e chamaram a atenção da Academia de Ciências de Paris, que nomeou uma comissão para investigar o método.

Em pouco tempo, os cientistas concluíram que o magnetismo animal não passava de charlatanice, pois não possuía validação científica e se sustentava em teorias astrológicas. A comissão anunciou que o fluido universal não existia e que as curas dependiam da auto-sugestão dos pacientes (ou do poder de sugestão do hipnotizador), não sendo, portanto, confiáveis. Mais tarde, também Freud retomou o assunto e o descartou, ao perceber que Mesmer acreditava em um fluido magnético que passaria do hipnotizador ao hipnotizado. Crozera alega que a importância histórica de Mesmer é indiscutível, apesar de tudo.

O termo “hipnotismo” surgiu apenas em 1843, em Manchester, e foi cunhado pelo cirurgião escocês James Braid, para designar o procedimento de indução ao estado hipnótico. Uma vez que hipno significa sono, a palavra em si não é adequada, já que a hipnose coloca a pessoa num estado especial do cérebro que se assemelha ao sono, mas que não é o sono. Depois veio o médico parisiense Jean-Martin Charcot, já em 1882. Ele percebeu que, por meio do hipnotismo, conseguia inculcar sintomas de histeria nos pacientes, ou seja, uma pessoa sadia passava a sentir tremores, paralisia, insensibilidade à dor e outros sintomas físicos da doença. Era possível, portanto, fazer o caminho inverso e curar os sintomas dos pacientes histéricos. A visão de Charcot era puramente somática, pois a considerava um estado fisiológico modificado do sistema nervoso, causado por estímulos externos (o toque da mão, o efeito de ímãs).

Apesar de ter sido seu discípulo, Freud discordava de Charcot em favor de uma terceira teoria da hipnose, a teoria da sugestão, de Ambroise Liébeault. O grande mérito dessa teoria foi despojar o hipnotismo de seu mistério, correlacionando-o com fenômenos conhecidos da vida psicológica normal e do sono. Com isso, o problema da hipnose foi inteiramente transposto para a esfera da psicologia, e a sugestão foi erigida como núcleo do hipnotismo e chave para sua compreensão.

Freud valeu-se da técnica durante dez anos, no máximo: entre 1886 e 1896. Mais tarde, aderiu ao método catártico, criado com Josef Breuer, que usava o transe para perguntar a origem dos sintomas a um paciente que, em seu estado de vigília, podia descrevê-los só muito imperfeitamente, ou de modo algum. Com o método de Breuer, o paciente hipnotizado era levado a expressar em palavras a fantasia emotiva pela qual se achava dominado.

***

Com o tempo, a experiência deu lugar a dúvidas mais graves quanto ao emprego da hipnose, mesmo como um meio para a catarse. A principal foi que até mesmo os resultados mais brilhantes estavam sujeitos a ser de súbito eliminados, se a relação pessoal do terapeuta com o paciente viesse a ser perturbada. Ou seja, a relação emocional entre médico e paciente era, afinal de contas, mais forte do que todo o processo catártico, e a sugestão acabava sendo um instrumento que comprometia a origem e a significação do sintoma.

Assim, Freud decidiu abandonar a hipnose como método, embora continuasse tirando proveito de suas descobertas: em primeiro lugar, o hipnotismo era uma prova convincente de que notáveis mudanças somáticas podiam ser ocasionadas unicamente por influências mentais. Em segundo, mostrava que, na consciência dos homens, existiam poderosos processos mentais escondidos – que só se poderiam descrever como inconscientes. O inconsciente, aliás, estivera muito tempo sob discussão entre os filósofos como conceito teórico, mas naquele momento, pela primeira vez, ele se tornava algo concreto, tangível e sujeito a experimentação.

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Enquanto isso, na capital paranaense – 100 anos depois de Freud e 200 após o “magnetismo animal” de Mesmer -, Crozera declara que a energia psíquica de cada um de nós está ligada à energia das outras pessoas. “Quando pensamos, projetamos nossas energias positivas ou negativas aos outros; por isso, depois de encontrar alguém cheio de problemas, é preciso fazer um descarrego”, diz. Ele ensina a importância de tirar os sapatos para descarregar as energias no solo e acusa o calçado de ser a própria fonte do stress, ao que alguns alunos decidem terminar a aula de meias. O que obriga o professor a sacar um desodorizador de ar, de tempos em tempos.

Diante de uma platéia na qual havia um neurocirurgião e uma dermatologista, ele afirmou que a maioria dos medicamentos tem efeito placebo, que o alcoolismo não é doença e que o câncer não é genético, pois é a mente que o desenvolve. Para Crozera, 90% dos casos de câncer são emocionais. “Quem não tem nenhum mecanismo de fuga tem grande tendência a ter câncer. Porque a pessoa se fecha dentro dela e absorve tudo”, explica. Segundo ele, o câncer se desenvolve na região do organismo onde houve abalo emocional. Do universo inteiro das doenças, 90% também surgiriam da mente humana, bem como a obesidade, que teria um fundo quase inteiramente emocional. É por isso, também, que ele se declara contrário à propaganda antitabagista impressa atrás dos maços de cigarro – pois não é o cigarro que mata, e sim a foto. Crozera sai para fumar durante o intervalo, enquanto confessa que acha difícil haver técnica mais eficaz para tratar problemas psíquicos.

Ele avalia que, desde 1927, não havia surgido nenhuma novidade no campo da hipnose, e que sua invenção pode ser considerada a medicina do futuro. “Com a hipnose condicionativa, podemos fazer a pessoa adorar cebola”, diz. Mesmo sob a resistência dos médicos, ele sustenta que a única maneira de bloquear os registros negativos é por meio da hipnose, que trabalha de forma direta na mente. Para ele, nenhum remédio tem eficácia no tratamento de abalos emocionais: eles apenas burlam a mente e não chegam às causas. “A medicina trabalha com o efeito placebo”, garante.

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Até então, o neurocirurgião Silvio Feitosa, de 40 anos, permanecia calado. A partir desse instante, começou a suspeitar que Crozera não acreditasse naquela história de neurotransmissores, e perguntou se ele não achava que a mente era química. O professor respondeu que “mente” é diferente de “cérebro”, pois a mente estaria acima de tudo: é o seu próprio espírito. Desafiado, Crozera se considera pronto para provar sua teoria, que apresenta sem medo para todos os tipos de profissionais. “Falei alguma coisa de mais?”, pergunta, olhando para Silvio Feitosa. “Falei o que a medicina não tem coragem de falar, só isso.”

Ele acentua que a hipnose condicionativa tem a vantagem de não fazer a pessoa sofrer, como nas outras terapias. Na hipnose clássica, é preciso reviver para poder entender o trauma e se livrar dele. Já na condicionativa, logo que o paciente começa a sofrer, o terapeuta isola o sentimento e manda trancá-lo no cofre. Ao contrário da hipnose clássica, a nova técnica não é narrativa e nem investigativa, já que apenas 20% das pessoas conseguem falar durante o estado de transe (ao passo que todas são hipnotizáveis, segundo Crozera). O hipnólogo condicionativo não tem a necessidade de saber o que está acontecendo enquanto repassa um determinado ano na vida do paciente – apenas lê as reações em seu rosto calado, e manda trancar tudo o que o incomoda no cofre. Às vezes eles sabem o que aconteceu durante a sessão porque o próprio paciente lhes conta depois. Crozera narra o caso de uma mulher que tinha aversão a creolina e, em estado hipnótico, teria descoberto que o pai dera um copo do produto para que a mãe abortasse, quando estava grávida.

Na hipnose condicionativa, portanto, é possível fazer regressões até a vida intra-uterina, repassando os sentimentos negativos de forma direcionada (em uma determinada época), ano a ano ou por frações de períodos. Também é possível fazer progressões e ver o futuro – o que vai de encontro a todas as teorias do inconsciente já conhecidas. Ele narra que hipnotizou uma paciente com câncer e curou a doença, mas que ela continuava com medo de que o câncer voltasse. Crozera ressaltou que o processo era perigoso, pois podia revelar coisas que ela não queria saber. A paciente insistiu, e ele fez uma progressão até o ano de 2010. No futuro, a mulher estava saudável, descansando num sítio, cercada de netos. Muitos alunos contestaram. “Mas e se ela estivesse morta, o que iria acontecer?” Outros simplesmente descartaram aquilo como uma grande bobagem. “Algumas coisas você aproveita, outras você ignora”, disse o estudante de psicologia Francisco Benhur, de 44 anos, de Caxias do Sul, um dos mais contestadores da turma.

Crozera acrescentou que é possível fazer projeções, ou seja, projetar a mente do paciente à distância, de modo que ela entre na mente de outra pessoa. Por exemplo: se uma mãe deseja hipnotizar o filho, mas ele não está presente, ela pode pedir para o hipnólogo fazer a sessão com ela, e assim hipnotizar o filho por tabela. “A gente é racional e até ouve, mas tem coisas que não dá pra engolir”, admite a aluna Karen Beatriz Silva, psiquiatra forense de Curitiba.

***

Luiz Carlos Crozera conta que é formado em engenharia civil. Trabalhava como analista de sistemas e era professor de linguagem de programação antes de se interessar pela hipnose. Por influência do pai, começou a estudar o fenômeno, sem nunca ter realizado um curso sobre o assunto. A criação das técnicas, iniciada na década de 1980, demorou muitos anos, até que ele pudesse entender o funcionamento do mecanismo mental. “Numas férias com minha família no Guarujá, vendo pelo menos uma dezena de obesos malhando na academia do Spa Med, resolvi levar a proposta da hipnoterapia ao doutor Augusto Santomauro, que na época era diretor clínico do spa.” Crozera fez uma demonstração. Ele diz que não lembra o nome das pessoas que acompanharam a experiência, mas que havia uma psicóloga, o diretor de UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo, um cardiologista e mais um quarto médico de cuja especialidade, lamentavelmente, ele também não lembra.

O hipnólogo colocou um paciente em situação de risco, fazendo-o acreditar que estava amarrado em uma linha de trem. Com apenas uma palavra: “relaxe”, teria conseguido diminuir a freqüência cardíaca da pessoa de 130 bpm a 23 bpm. “Naquele final de tarde de 1993, os médicos chegaram à conclusão de que estávamos perto da descoberta de um mecanismo de controle da hipertensão”, relata entusiasmado. “Restava descobrir uma forma para que o paciente não ficasse na dependência psicológica do terapeuta, muito menos de medicamentos.” Foi assim que surgiu a técnica da pedrinha. E a hipnose condicionativa.

Segundo o método, basta que o hipnólogo estabeleça uma série de rotinas para aplicar, em voz monocórdia, de acordo com a queixa do paciente. Se a pessoa tem medo de sapos, o terapeuta trabalha “o espelho, o travesseiro e o chuveiro” para aumentar a auto-estima, e depois faz “o cofre”, em que o paciente irá localizar o acontecimento traumático e trancá-lo lá dentro. Energizando a pedrinha, ele garante que o paciente tenha uma espécie de talismã para ajudá-lo nos momentos difíceis, um objeto com potencial curativo que pode ser tanto uma pedra quanto um terço. “Estou até agora com uma dor de cabeça terrível”, reclama uma das alunas, depois da sessão. “Passou a pedrinha?”, pergunta o professor. “Passei, mas não adiantou”, ela responde.

Crozera alerta que a hipnose condicionativa só é eficaz quando considera o componente externo do condicionamento. O terapeuta deve conversar com as pessoas que possam exercer pressão na vida do paciente, para que não haja reincidência. Ele lembra do caso de um alcoólatra que parou de beber durante vários meses, mas retomou o vício quando, em uma festa, a filha duvidou que ele estivesse sóbrio. “Se a gente condiciona uma criança para ir bem nos estudos, mas vem o pai e diz: ‘seu burro’, ele acabou de destruir tudo!”, sustenta. O professor recomenda que os condicionamentos sejam reforçados na mente durante o máximo de tempo possível e que o hipnólogo oriente a família. “Você trabalha o paciente, sugere e ele sai zeradinho”, garante. “Mas aí qualquer coisinha vem e destrói.” (Ele também ensina que há palavras proibidas durante a sessão, como “não”, “medo”, “dor”, “pavor”, “barata” e “dentista”, para aqueles que têm fobia de ir ao dentista. Nesses casos, pode-se usar a palavra “profissional dentário”.)

Estas seriam algumas das falhas da hipnose. O psicanalista Renato Mezan, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, explica que, desde a época de Freud, “a sugestão não resolvia o conflito, como não resolve até hoje: simplesmente o silenciava, o recobria com a influência do hipnotizador. Cessada a sugestão, o conflito retornava tal e qual, às vezes agravado”. Ele explica que bloquear o acesso aos traumas é, na verdade, trabalhar a favor do recalque: é como empurrar a sujeira para baixo do tapete. Nem por isso o cheiro vai deixar de se espalhar. “É como se eu dissesse que, se não olhar para a coisa que dói, ela vai parar de doer”, resume o autor de Freud, Pensador da Cultura. Além disso, ele aponta que o sofrimento psíquico nem sempre tem causa linear, ou seja, não é porque alguém apanhou do pai aos 5 anos de idade que essa pessoa vai fazer xixi na cama quando adulta. É como se não existisse o deslocamento, a metáfora, o recalque. Ou como se todas as crianças que apanhassem aos 5 anos de idade futuramente tivessem problemas de enurese. “Nesta área, não dá pra dizer que A produz B. Não é uma causalidade linear simples”, avisa. Como numa equação física, existem diversas variáveis possíveis, pois muitos elementos concorrem para formar um comportamento.

Mezan lembra que uma das maiores conquistas no campo da psicoterapia foi reconhecer que o paciente se cura por sua própria atividade, por meio de uma reeducação ativa. A terapia pressupõe o diálogo. Por isso, resgatar a hipnose para curar transtornos psíquicos, nos dias de hoje, é ir na contramão do conhecimento – já que o elemento ativo, nesse caso, é o terapeuta. O paciente permanece quieto, quase como um objeto de que não se exige nenhuma participação.

***

Atualmente, muitos profissionais de saúde consideram a hipnose um procedimento sério e eficaz, cientificamente comprovado, que pode ter inúmeras aplicações terapêuticas. Mas observam que é também uma ferramenta perigosa nas mãos erradas, principalmente por utilizar a sugestão – por introduzir uma idéia consciente no cérebro da pessoa hipnotizada, e essa idéia ser aceita como se tivesse surgido de forma espontânea. Afastado o sensor crítico do paciente, o hipnólogo tem um poder bastante grande sobre suas crenças. Em tempos de gnomos, florais e unicórnios, não é preciso muito para acreditar que uma de suas personalidades é um pato.

O curso de hipnose condicionativa de Luiz Carlos Crozera dura três dias, é aberto para profissionais de todas as áreas e custa 900 reais. O psiquiatra Kenneth Olson, por sua vez, cobrou 300 mil dólares do plano de saúde de Nadean Cool, que posteriormente o processou. Era o preço da terapia em grupo para cada uma das 120 personalidades que ela apresentava.

Os Silva

Posted: 1st abril 2007 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 4
Abril de 2007

por Vanessa Barbara

Douglas e Claudia vivem brigando por assuntos banais. “Coisas pequeníssimas!”, ela diz, chacoalhando os pés do alto de seu banquinho. Eles estão juntos há oito anos. São o menor casal do mundo, atestado pelo Guinness Book.Claudia Pereira Rocha da Silva tem 34 anos e 92,5 centímetros de altura, o tamanho de uma criança de três anos. Ela nasceu em Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, e aos oito anos conheceu o futuro marido, que é menor do que ela: tem 89,5 cm. Na época, Douglas Maister Breger da Silva se mudou para Curitiba e perdeu o contato com a amiga. Décadas depois, voltaram a se encontrar.

Após dois anos de namoro, casaram-se na televisão, ao vivo, numa cerimônia no Programa do Gugu. Distribuíram bloquinhos e ímãs de geladeira com a foto dos dois, e cada lembrancinha recebeu um toque de Douglas, que é artista gráfico. “Na verdade, sou pau pra toda obra. Cozinho, passo e lavo”, afirma o maridão, triunfante, ao que a esposa concorda. “É verdade! O feijão dele é muito bom.”

O casal mora nos fundos de uma casa simples em Capão Raso, na periferia de Curitiba. O imóvel é pequeno e pertence ao chefe de Douglas. “Há algumas semanas, eles pediram a casa. Estamos pensando em voltar pro Rio Grande”, diz, contrariado. Eles gostam de Curitiba. Os ônibus ali não têm degraus tão altos como em Porto Alegre. “Quantas vezes eu não ficava com os nervos esticados porque tinha que fazer ginástica pra subir”, protesta Claudia. “Como nós temos bem menos de 1 metro, dificulta.”

Alguém bate palma no portão. Douglas sai correndo, sobe num banquinho e olha pela janela, esticando o pescoço. “Ah, é a Josi e a Salete!”. Salete Fernandes Alves, de 38 anos, é de longe a mais alta da turma: mede 1,24. Trabalha no departamento financeiro de uma empresa onde começou há cinco anos, como telefonista. Joseane Maria do Nascimento, a Josi, de 26 anos, é mais tímida. Está desempregada e vive da pensão que recebe do pai.

Em estatura, Douglas e Claudia batem no ombro das duas amigas. Para eles é ainda mais difícil arrumar roupas e sapatos do tamanho certo. “Comprei uma vez um sapatinho maravilhoso”, conta Claudia, que calça 25/26. Depois de anos, quando o sapato enfim furou, ela não descobriu mais nada parecido. Hoje, quando acha alguma coisa que lhe agrada, já vai comprando duas ou três peças, e ainda avisa as amigas. É ela quem costura as roupas básicas do casal, feitas de malha. “Aprendi com minha mãe, que era costureira.”

O casal vai se adaptando como pode nesta terra de gigantes. Para eles, é difícil alcançar os telefones públicos e caixas eletrônicos. “Os elevadores modernos estão mais acessíveis”, segundo Claudia, mas Salete protesta: “É, mas às vezes você tem que levar um objeto comprido na bolsa para alcançar o botão”. As prateleiras de supermercados quase chegam ao céu. Os balcões dos estabelecimentos comerciais – de padarias a lojas de roupas – exigem que eles pulem para chamar atenção. Muitos os confundem com crianças. “Às vezes, você está na fila, chegam outras pessoas atrás, fingem que não vêem e passam na frente. Você só é atendido quando se esforça um pouquinho mais”, diz Salete.

Na casa de Douglas e Claudia muitos móveis têm o tamanho regular, outros são adaptados. Na sala, duas mesinhas de centro fazem as vezes de mesa de jantar. A televisão também é pequena. Na cozinha, uma pia baixa de banheiro foi adaptada para lavar a louça. A geladeira é um frigobar. O balcão principal é fixo e, por isso, quando eles querem cortar legumes, por exemplo, usam uma escada de dois degraus com rodinhas. “A gente leva essa escada para todo lugar, até para o fogão. Mandamos fazer sob medida”, conta Douglas. Para o quarto, eles conseguiram módulos baixos que servem como guarda-roupas. Claudia fez de um banquinho a sua cômoda de maquiagem. “Ela é maquiadora, costureira, dançarina.”, diz Douglas. E, como muitos anões, chegou a trabalhar no teatro. “Adivinhe a peça”, desafia Claudia. Vem o silêncio, ela abre os braços e responde: “A Branca de Neve!”.

Os quatro concordam que o país está mais atento para os deficientes, mas, ainda assim, eles sofrem com o preconceito. Segundo Claudia, é normal as crianças perguntarem: “Pai, por que é que ele não cresceu?”. E o pai responde: “Porque ele não come feijão, não come verdura”.

Mas os quatro dizem que há vantagens em ser pequeno. Na opinião de Douglas, só depende do ponto de vista. Assim como os cegos desenvolvem melhor o tato ou a audição e os surdos aprendem a ler os lábios, os anões adquirem maior agilidade. Para Douglas, isso acontece porque eles precisam de um banquinho para tudo. “Então, no ato de subir e descer para fazer as coisas, a gente se torna mais rápido. Na rua, no centro da cidade, no meio da multidão, se a gente pára ou anda no nosso ritmo, o povo passa em cima. Nós temos então que andar no ritmo deles. E, para nós, esse ritmo é mais rápido.” Claudia acha que eles também têm mais equilíbrio. Nos ônibus, por exemplo, não precisam segurar nas traves. “Quanto mais alto você é, mais difícil”, diz Douglas. Na hora de tropeçar e cair, ser pequeno também é vantagem, pois o tombo é menor.

***

No início de fevereiro, Douglas deu um grande passo. Concluiu as aulas práticas para tirar a carteira de motorista. Ele mostra na câmera digital os vídeos de seus passeios com o instrutor da auto-escola. Em geral, os anões dirigem automóveis adaptados. Os pedais recebem extensões. No carro de Douglas e Claudia – que são muito menores do que a maioria dos anões -, todos os comandos ficam na direção. O carro tem de ser automático; o motorista controla o acelerador e o freio com a mão. “A Salete usa os pedais porque tem mais agilidade e é mais comprida. No meu caso, mesmo com o alongador, os pés não alcançam, e eu uso então o pé aqui em cima, na alavanca. Facilita para usar as duas mãos e ainda posso apoiar os pés aqui do lado, no volante, para ajudar.” Josi observa que é quase como se ele dirigisse com quatro mãos.

Como já está ficando tarde, Salete se levanta, pega as chaves do carro e chama todos para dar uma volta no shopping. No caminho, voltam a reclamar dos pais que assustam os filhos com histórias de anões. Espremido no banco de trás com Claudia e Josi, Douglas exemplifica o absurdo: “Eles chegam a dizer que os anões comem criancinha, você acredita?”.

A São Silvestre do ziriguidum

Posted: 1st janeiro 2007 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 4
Janeiro de 2007

Em São Paulo, dez horas seguidas de samba e pisões no pé para ganhar mil reais

por Vanessa Barbara

Não se sabe se, lá fora, chovia ou ventava, se era dia ou noite, Páscoa ou Carnaval, se os Quatro Cavaleiros tinham descido à Terra para trazer a peste ou a fome. Lá dentro, no salão de dança, a única certeza compartilhada por treze casais era a de que quando acabasse a 30ª música – e, com fé, isso iria acontecer – viria outra, e depois do pé esquerdo o direito, e depois do direito mais um rodopio e um passo para trás. Os giros já são automáticos, os casais se olham pensando em sofás, os pares parecem robôs.

A 1ª Maratona de Samba da Cidade de São Paulo teve início num domingo abafado de dezembro, às duas da tarde. Estava prevista para terminar dez horas depois, com o recolhimento dos corpos e o anúncio dos vencedores. Era pouco mais de meio-dia quando os primeiros concorrentes chegaram ao local – o Consulado Music, casa de shows na Zona Norte – para fazer exames de pressão arterial e assinar termos de compromisso. Dois bombeiros, William e Ricardo, foram chamados para medir os batimentos cardíacos e a respiração dos casais antes da largada. Eles também ficariam de plantão para agir em caso de síncope: “Há dez anos, as maratonas de lambada derrubavam bastante gente”, relembra Ricardo. “Quando você ia ver, o pessoal estava caindo no salão.”

Na concentração, os participantes não parecem nervosos. Discutem o que fazer com as camisetas oficiais, que deveriam ser usadas durante a maratona. Eram muito vermelhas e excessivamente quentes. Um dos dançarinos decide rasgar as mangas com uma faca, e o organizador anuncia: “Está chegando a tesoura!”. Prontamente, as meninas confeccionam miniblusas e inventam nós para amarrar a camiseta acima do umbigo.

Enquanto recorta a roupa, Juliana Marques, de 22 anos, confessa que havia almoçado dois pratos grandes de macarrão e um pão com bife, notícia que abala o moral de seu parceiro, Osíris da Silva, 19 anos. Alguém afirma que comeu um pastel e recebe olhares de reprovação. A mais empolgada das dançarinas, Claudia Chaves, 24 anos, professora da escola Algazarra’s, aparece para dizer que “bombou” no teste da pressão arterial. “Estão tentando me derrubar”, desconfia. Depois de um lanche leve e uns passinhos de samba, a pressão de Claudia voltaria ao normal. Às 13h30 chega o capitão da PM Silvio Sciacca, dançarino de fôlego e de longas distâncias, e faz uma aposta: se a sua pressão não der 11 por 7 ou 12 por 8 irá trocar de nome. O resultado é 12 por 7. Ele protesta. Diz que não é reprovado “nem em exame de fezes”.

Dos concorrentes, muitos são professores de dança, como Claudia Chaves, e alguns já participaram de maratonas de salsa e samba-rock. Sciacca, o capitão da PM, com seus 40 anos e 1,95m de altura, foi um dos finalistas da histórica competição de tango de 2003 no Avenida Club. A maratona durou 24 horas e apenas dois casais chegaram ao fim. “Nunca mais”, garante o capitão. “As duas últimas horas foram as mais difíceis, só continuei por questão de foro íntimo.” Ele chegou disposto a enfrentar o desafio de samba, embora preferisse ritmos mais condizentes com as tradições da dança de salão, como a valsa inglesa, a valsa vienense, o slow fox e o quick step, além do tango. Há três anos, ele fez par com a própria professora. “Tive a aula particular mais extensa do mundo”, diz.

Os casais são mandados ao vestiário. As mulheres vestem calças confortáveis e tênis de dança. Os homens escolhem sapatos com bico de camurça e solado de borracha. Pheliphe Britto, de 22 anos, entra no quartinho cheio e pergunta o que houve com o camarim particular que prometeram para ele: “Com licença, onde fica o camarim do Netinho?”. Ele é professor de dança na Algazarra’s e seu par é uma aluna, a jornalista Danielle Marques, de 27 anos.

Às 14h05, os treze casais são reunidos pelo organizador do concurso, Clovis Pereira Jurado, que (até pelo sobrenome) fará parte do júri. Jurado é diretor da Cia. La Luna, uma das escolas responsáveis pela maratona, em parceria com a rival Algazarra’s e com a Consulado Music. A despeito de ser organizada por academias locais, a prova consta no calendário oficial de eventos da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação. Clovis anuncia as regras: os casais devem dançar, ininterruptamente, até a meia-noite, com pausas de cinco minutos a cada duas horas para ir ao banheiro, e uma parada de quinze minutos na quinta hora para uma refeição. Não serão permitidas trocas de roupas ou de calçados. As duplas podem se servir à vontade das frutas e biscoitos dispostos nas mesas, contanto que não parem de dançar. A partir das 23h, a equipe de jurados avaliará a técnica, a simpatia e a harmonia dos sobreviventes, a fim de eleger um vencedor. Na última hora, houve competidor que reclamou: “Ih, só agora eu lembrei que precisava ir ao banheiro”.

Ainda antes da primeira música, durante o alongamento, o capitão Sciacca conta que não dançará até o fim porque terá de trabalhar. Mesmo assim, ele espera que as primeiras duas horas sejam bem pesadas, para eliminar metade dos concorrentes: “Toca só Paulo Moura”, ele pede, olhando para a cabine da DJ Drica. Ao seu lado, com o número 12 colado nas costas, Pheliphe Britto diz que não se importa, pois já começou na pegada: dançou com Danielle Marques até as 3h30 do dia anterior, deu aula das 9h ao meio-dia e foi direto para a competição. “E amanhã eu volto para a Segunda Absoluta do Netinho!”, completa. O cantor é sócio do Consulado Music, e bate ponto na casa às segundas.

***

Às 14h13 tem início a maratona, com “Meu samba pede passagem”, da música de Claudio Jorge “O Samba Melhor do Brasil”. Os casais começam com os passos básicos: um pra frente, um pra trás, um pra frente, um pra trás – bem juntinhos, porque ninguém é pingüim, ensina Rafael Martins, 21 anos, parceiro de Claudia. Pheliphe está mascando chicletes e Lacyle Emerson Terezinha, 29 anos, traz uma toalhinha no bolso de trás, que se mostraria muito útil no decorrer da maratona. Sua parceira, Elis, usa uma sandália de salto alto, assim como Elizangela Alves Gomes, 20 anos, e Aline Batista Cleto, 18. Das mulheres, apenas elas usam salto, e só Aline dança de saia. Três dos homens vestem calças brancas. Um dos organizadores aponta para Lacyle e para Claudinho Ferreira, 29 anos, e observa: “Aqueles dois são nêgo véio, é tudo malandro”.

14h19 – Pheliphe anuncia: “Troca de damas!”, mas ninguém dá bola.

14h26 – Claudia e Rafael, o casal no 1, não poupa energias. “Ela é assim: sai na escola de samba e dança a avenida inteira, depois ainda vai para a bagunça”, informa o bombeiro Ricardo, que também é dançarino.

14h32 – Sem parar de sambar, Pheliphe diz para uma garçonete: “Me vê uma Brahma!”.

14h44 – Elizangela diz que dança é diversão e Claudinho, seu parceiro, completa: “Estamos só aquecendo”.

14h52 – Rafael amarra na cabeça o que sobrou da manga da camisa.

15h10 – O capitão Silvio Sciacca abandona a prova para ir trabalhar. Agora são doze casais na pista.

15h25 – Chega um repórter de TV e um cinegrafista, que se põem a filmar os pés das pessoas.

15h38 – Pheliphe, com a voz séria: “Bem, amigos da Rede Globo, estamos aqui em mais uma maratona…”.

15h57 – O repórter de TV se mata de comer bananas.

16h10 – Pausa para ir ao banheiro. As mulheres saem correndo e uma funcionária é enviada para controlar o tempo. “E se o xixi for comprido?”, pergunta uma das concorrentes. “Três minutos!”, responde a moça do cronômetro. De dentro da cabine, alguém protesta: “Mas número dois é cinco minutos! Número dois é cinco!”. A dançarina Elis Cristina de Souza, 22 anos, reclama que levou um pisão no pé que quase arrancou a sua unha fora. “O esmalte já foi”, ela mostra. O tempo se esgota e as dançarinas lamentam: “Aqui os minutos passam tão rápido”.

16h15 – “Te segura/ que a vida está dura”, diz a letra do samba.

16h17 – Danielle dança com um pedaço de melancia na mão. Pheliphe continua a mascar chicletes.

16h21 – “Crioula/ eu quero é mocotó”.

16h26 – Um dos organizadores grampeia de volta o número 20 nas costas de Hércules Silva.

16h37 – Osíris faz uma pausa para amarrar o cadarço, sob supervisão.

16h52 – O casal no 2 pergunta as horas.

17h14 – Clovis Jurado avisa que alguns participantes estão dançando fora do ritmo.

17h32 – “Deixa o meu cabelo em paz/ Deixa o meu cabelo em paz”.

17h42 – Os dançarinos estão dispersos, sambando de qualquer jeito e conversando entre si.

17h48 – O no 4 arruma as calças.

17h58 – “É um lugar especial/ Para quem é sentimental/ E aprecia um gostoso bacalhau”.

18h10 – Outra pausa para o banheiro. A organizadora avisa: “Nada de número dois, hein?”. Uma das participantes se desespera: “Gente, a calça não sobe”. Elis continua a reclamar: “Nada-nada, já levei cinco pisões”. Alguém diz que ela devia conversar com o parceiro, porque assim não vai dar. “Não foi o meu parceiro, não, eu levo pisão dos outros!”.

18h21 – Pheliphe dedura um casal que estava quase parado.

18h26 – Mariana Anduta, 16 anos, dança segurando o rabo-de-cavalo para o alto, incomodada com o calor.

18h32 – Fora da pista, bombeiro tira uma moça para dançar.

18h36 – Os jurados se reúnem para deliberar sobre os números que se esfarelam nas costas, principalmente das mulheres, já que os homens dançam com as mãos nas costas de suas parceiras.

18h38 – Elizangela e Claudinho, casal no 14, dão uma demonstração de extrema habilidade no samba-rock, que envolve giros consecutivos.

18h42 – “Provei do famoso feijão da Vicentina/ Só quem é da Portela sabe que a coisa é divina”.

19h02 – Alguns casais dançam coladinho.

19h04 – Substituição dos sucos de laranja.

19h12 – Osíris grita: “Vamos lá! Faltam só cinco!”.

19h15 – Brito comanda alguns casais na dança: “Cinco, seis, sete, oito, gira”.

19h20 – Pausa de quinze minutos para comer macarrão ao alho e óleo. Sentados, Pheliphe e Danielle continuam dançando. A maioria tirou os sapatos e reclama dos calos. Brito declara: “Nunca quinze minutos foram tão importantes na minha vida”. Danielle estima que aproximadamente três casais estão “só a alma”. Alguns fazem alongamento, e antes de retornar ela se levanta e diz: “Agora é só o espírito!”.

19h35 – “Olha nós outra vez no ar/ O show tem que continuar”.

19h43 – Casal no 5 quase colide com a mesa de frutas.

19h47 – Pheliphe faz esforço para abrir mais um chiclete enquanto dança. Com a mão esquerda, Danielle tenta ajudar.

20h32 – Casal no 11 desiste. “Sei que estou quase morrendo”, afirma Vitor Albani, de 15 anos.

20h35 – Casal no 13 é tirado da pista por estar fora do ritmo. Marinês Capanema, de 46 anos, reclama e diz que não está cansada: “Eu me canso de lavar roupa, de limpar a casa. De dançar eu não canso”.

20h42 – Claudinho esnoba os outros competidores: “Mais dez horinhas? Tranqüilo, tranqüilo”.

20h55 – Mariana olha feio para a música animada que a DJ colocou.

21h02 – Casal no 8 desiste.

21h04 – Começa o show de uma banda de pagode, ao vivo. A casa enche.

21h15 – “Estrela, ilumina meu céu/ Me tira desse fel/ Adoça o meu vi-veer”.

21h22 – O vocalista articula as palavras felicidade, liberdade e sofrer na mesma estrofe.

21h32 – Adolescentes se enfileiram em frente à pista e gritam os refrões das músicas, sobretudo os finais: a-mô-or, fe-e-li-i-z.

21h37 – O mau humor atinge índices jamais auferidos.

21h42 – Avós, tios e primos acenam para o casal no 1.

21h47 – Começa a carnificina: casais no 4 (Mariana e Gerson) e no 1 (Claudia e Rafael) são tirados da pista. Na seqüência, no 2 (Osíris e Juliana) e no 12 (Pheliphe Britto e Danielle) também recebem o bilhete-azul dos jurados: “Você está muito cansado, sai daí”. A revolta é geral. Danielle afirma que o organizador encostou em seu ombro e disse apenas: “Tocou o seu celular”.

21h52 – Justificativa de Clovis Jurado: “Eles não estavam na pegada, estavam só enrolando”.

22h01 – Pheliphe Britto, já fora da pista, continua a dançar. Uma das eliminadas chora.

22h10 – Casal no 5 recebe o aviso: “Chegou a hora de vocês”, e entende que era hora de ir ao banheiro. Eles fazem uma pausa e ficam esperando o momento de retornar, mas descobrem que haviam sido eliminados.

22h36 – Um dos organizadores confessa: “O pessoal ainda está bravo comigo”.

22h56 – “Blablablablá/ Eu nasci pra te amar”.

23h05 – Uma repórter é convidada para ser jurada da competição. Ela argumenta que entende tanto de dança quanto de jardinagem.

23h12 – Jurados saem com as fichas de avaliação.

23h18 – O vocalista da banda faz uma piada e ninguém dá bola.

23h20 – A maioria dos eliminados vai embora, bem como parte do público. A casa está quase vazia.

23h26 – A música pára por alguns segundos e os quatro casais finalistas continuam dançando, sem perceber.

23h27 – “Vamos continuar com o pagode!”, diz o vocalista. Silêncio na platéia.

23h38 – Comentário de um espectador: “Está todo mundo triste”.

23h42 – Claudinho corta o pé e continua dançando.

23h46 – “Eu quero voar bem mais alto que o condor/ Lê leleô/ Chega de tanto sofrer e de tanta dor”.

23h54 – Ivan Carlos Gonçalves, no 6 nas costas, começa a bater na perna direita. Diz que está com cãibra há horas, mas continua a dançar.

0h08 – A maratona termina com “Brasileirinho” e “Tá a Fim de Sambar”, do grupo Os Morenos. Os participantes se jogam no chão e ficam por lá, paralisados. Alguns colocam gelo nos pés e pedem água.

***

Depois de dez horas ininterruptas de samba, os jurados chegaram ao veredicto: em terceiro lugar, o casal Hércules e Andréia Silva, professores da Algazarra’s, que levaram como prêmio uma coletânea de CDs para dança de salão. Em segundo lugar, com apenas dois pontos de diferença, Elizangela Gomes, 20, e Luiz Cláudio Ferreira Silva, 29, o Claudinho, também da Algazarra’s. Eles ganharam um kit de roupas e sapatos, além da coletânea de CDs. Ao casal número 7, Elis Cristina de Souza e Lacyle Emerson Terezinha, coube a glória do primeiro lugar, e um prêmio de mil reais. “É, mas eu vou aparecer na TV e eles, não”, pondera Pheliphe Britto, eliminado após sete horas de maratona.

***

Elis tem 22 anos de idade, 1,68m de altura e é babá. Ela joga a cabeça pra trás e dá uma risada gostosa quando lhe perguntam se é dançarina profissional. “Não sou, não! Eu danço por esporte”, responde. Mas acrescenta que está se profissionalizando, e para isso freqüenta as aulas do CPD, o Centro Profissional de Dança, ao lado da estação Carandiru do Metrô, também na Zona Norte. Seus ritmos preferidos são o black e o samba-rock. Foi ela quem insistiu junto ao professor, Lacyle, para se inscreverem na competição.

Lacyle tem 29 anos e é professor de dança de salão e técnicas de samba-rock. Começou a dançar aos 16 anos com “um ritmo que ninguém acredita: o hip-hop”. Da dança de rua passou para o samba, e hoje dá aulas em escolas de Santana, Guarulhos, ABC paulista e Alto da Lapa. Seu sonho é abrir uma academia só de samba, para valorizar os ritmos locais, divulgar a cultura negra e dar ao samba o mesmo valor das danças consideradas, como diz, “mais clássicas”, caso do balé.

Lacyle confessa que passou mal de ansiedade na noite de sábado, e no domingo de manhã tomou apenas “sucos e sucos”. Só foi comer na hora do macarrão ao alho e óleo, quando ganhou novo ânimo. Após dez horas de samba, com o fim da maratona, foi para casa tomar um banho e comer. Logo seu corpo começou a apresentar cãibras sucessivas: nas pernas, nos braços, no abdômen. Sua irmã virou a noite cuidando das dores de Lacyle e fazendo curativos, até que o pacote de Salonpas acabou e tiveram que sair para comprar mais. Como foi a segunda-feira? “Passei o dia todo com Salonpas, e dei aulas de dança à noite.”

Quando lhe perguntam o que mais ele gosta de fazer, além de sambar, Lacyle faz uma pausa, dá risada e responde: “Olha… eu não consigo ver outra atividade que me agrada: se vou assistir alguma coisa, é sobre dança, se vou ler uma coisa, é sobre dança. Eu gosto de conversar sobre dança, discutir sobre dança… na verdade, para mim tudo é dança”.

O inventor da caixinha de CD chega ao inferno

Posted: 1st janeiro 2007 by Vanessa Barbara in Traduções
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O inventor da caixinha de CD chega ao inferno
por Steve Martin
tradução Vanessa Barbara

Piauí n. 4
Janeiro de 2007

As portas flamejantes do Inferno se abriram de par em par e o inventor da embalagem do cd se integrou à diabólica fanfarronada.

– Queríamos que tivesse vindo antes – comentou o Puro Mal Encarnado com seus lacaios demoníacos -, mas decidimos adiar um pouco. Afinal, ele estava fazendo um bom trabalho lá em cima. Empenhou-se com afinco em embrulhar os cds com celofane e com aquela fita pegajosa que não desgruda de jeito nenhum. Chamem-no para o jantar. E não se esqueçam de convidar também o pessoal dos manuais de computador.

O Diabo desapareceu no ar, perdendo assim a calorosa demonstração de afeto oferecida ao inventor.

– O próprio Belzebu tirou uma lasquinha de pele do polegar quando foi abrir uma coletânea da Barbra Streisand – cochichou um diabrete. Uma serpente grossa rastejou para perto e se aninhou em torno da perna do inventor.

– Antes, ele adorava a turma do controle remoto e aqueles minúsculos botõezinhos espremidos um contra o outro – disse a cobra. – E, ainda por cima, com todas aquelas abreviações enigmáticas. Mas agora ele só fala em você, porque você isso, você aquilo… Bem, mas vamos indo, está na hora de se arrumar para o jantar. Podemos conversar mais tarde sobre as suas atribuições.

Enquanto indicava o caminho para os alojamentos satânicos, a serpente lançou- lhe um olhar ávido e inquiridor.

– Como conseguiu? – perguntou ela, fixando-o cara a cara. – Quer dizer, como é que inventou a embalagem? Todo mundo quer saber!

O inventor, sentindo o conforto dos pés em brasa e lisonjeado pelo reconhecimento, relaxou imediatamente.

– A maldita caixinha original do cd era um troço fácil demais de abrir – explicou. – Porque cá entre nós… Se for para dificultar o acesso do consumidor, pelo amor de Deus, vamos fazer a coisa direito! O que eu quis foi criar uma embalagem que obrigasse o comprador a ir na cozinha buscar uma faca, porque assim pelo menos teríamos uma chance de ele decepar a própria mão.

– Foi aí que surgiu a idéia daquele plástico do tipo termoencolhível? – perguntou a serpente.

– O plástico termoencolhível funcionou durante um tempo. Eu adorava a idéia de que não havia ali nem uma brechinha para ninguém enfiar a unha e rasgar, mas eu sabia que podia ir mais longe. Foi aí que descobri o celofane. O celofane e a fita que dá a ilusão perfeita de que existe, sim, um caminho para abrir a embalagem, só que na verdade nem a própria fita existe.

Naquela noite, no jantar comemorativo realizado a cada éon para homenagear os recém-chegados, o inventor da caixinha de cd sentou-se à direita do Diabo. À esquerda, sentou-se Cérbero, o cão de guarda do Hades e notório criador do abacaxi. O Diabo papeou a noite toda com o inventor e, a certa altura, pediu-lhe que abrisse outra garrafa de vinho, desta vez com um saca-rolhas de lâminas paralelas, aquele dispositivo semelhante a uma pinça, dotado de duas hastes finas e perfurantes que têm porque têm que entrar entre as paredes da garrafa e a rolha, sem machucá-la. O inventor suou, mas uma hora depois a rolha estava separada de sua garrafa.

A princípio, ninguém notou o ruído abafado que vinha de cima, e que logo se tornou um clamor incontido. Pouco a pouco, os comensais começaram a olhar para o teto e, por fim, o próprio Diabo percebeu que a atenção de seus convidados fora desviada. Ele ergueu os olhos.

Três anjos planavam no éter, cada qual segurando um objeto. O inventor sabia exatamente que objetos eram aqueles: a caixa de leite, o saco zip e a banana – três embalagens de desenho impecável. Lembrou que costumava admirálas antes de sucumbir ao mal. Os três anjos deslizaram em direção ao parlatório. Um deles ergueu o saco zip sobre os asseclas do frasco de aspirina e lhes deu um banho de luz sobrenatural. O brilho amarelo da banana inundou o peçonhento Cérbero, projetista do abacaxi, e a caixa de leite derramou sua branca luminosidade em cima do inventor da embalagem do cd. O Diabo, nessa hora, se levantou abruptamente, urrou qualquer coisa em latim enquanto súcubos lhe escorriam da boca, desculpou-se a si mesmo e se retirou, irritado.

Depois do fiasco, o inventor voltou a seus aposentos e se ocupou com os cinco controles remotos necessários para operar o aparelho de dvd. Frustrado, fechou os olhos e contemplou a perspectiva da eternidade no vazio do Inferno, percebendo que provavelmente nunca mais veria um floco de neve ou um Chicabon. Em seguida, porém, pensando naquele belo jantar e em seus novos amigos, decidiu que flocos de neve e Chicabons não tinham tanta importância assim. Imaginou que, afinal de contas, a eternidade poderia não ser tão ruim. Aí ele ouviu uma batida na porta e a serpente entrou.

– O Diabo me pediu que lhe comunicasse qual será a sua incumbência – disse ela. – Às vezes ele tem enxaquecas fortíssimas. Ele quer que você fique do lado dele para abrir o frasco de aspirina.

– Acho que consigo – respondeu o inventor.

– Ah, e você já viu – esclareceu a serpente -, ele faz questão de aspirinas frescas. E então toda vez você vai ter que remover o resistente aro inviolável, a tampa de segurança à prova de crianças e o lacre de alumínio.

O inventor suspirou aliviado:

– OK. Sem problema.

– Ótimo – disse a serpente, dandolhe as costas para ir embora.

Nesse instante, uma onda de pavor sacolejou o corpo do inventor:

– Mas espera aí, espera aí… – sua voz tremia de nervoso. – Quem é que vai tirar aquela bolota de algodão da boca do frasco?

A serpente se voltou lentamente. Seu rosto, num repuxão, havia se transformado na máscara de Belzebu:

– Por quê? – ela perguntou, agora com uma voz cavernosa que parecia brotar das profundezas do Inferno. – E você pensou que fosse quem?… uhahahahaha!

Picasso divulga “Dama com leque”

Posted: 1st dezembro 2006 by Vanessa Barbara in Traduções
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Picasso divulga “Dama com leque”
Espero que meus fãs entendam essa nova fase

por Steve Martin
tradução Vanessa Barbara

Piauí n. 3
Dezembro de 2006

The entertainment channel: Antes de mais nada, nós gostamos muito de “Dama com leque”.
Picasso:
Obrigado. As pessoas parecem ter se empolgado com o quadro, e a crítica foi positiva.
EC:
Como foi a sensação de pintar “Dama com leque”?
Picasso:
Muito, muito empolgante. Me empolguei com a idéia de pintá-lo e de trabalhar com pessoas tão empolgantes, o pessoal das tintas, o cara das telas.
EC:
Puxa, então foi um projeto empolgante.
Picasso:
Foi, eu fiquei realmente empolgado. Às vezes mais, às vezes menos.
EC:
Mas você passou o tempo todo empolgado?
Picasso:
Com certeza, o tempo todo. Você acertou na lata.
EC:
E a modelo?
Picasso:
É mesmo, eu quase esqueci. Que hilário! Admiro as poses dela há anos e finalmente tive a chance de trabalhar com ela. Foi maravilhoso ir pro ateliê todos os dias.
EC:
Conte para os telespectadores como ela é.
Picasso:
Ah, ela é simples, sem afetação. Podia ter o rei na barriga, mas não tem.
EC:
E rolou um clima?
Picasso:
Rapaz, que entrevista difícil! (risos) Na verdade, somos bons amigos, mas não passa disso. Eu tenho regras claras sobre namorar minhas modelos.
EC:
Em entrevista ao nosso programa, ela disse: “Adorei trabalhar com Picasso. Nós demos muitas risadas”. Sobre o que vocês riam? Algum incidente engraçado?
Picasso:
Deixa eu ver. Hmm. Ah, sim. Um dia, eu disse que queria pintá-la nua. Nossa, você precisava ter visto a cara dela. É claro que logo em seguida eu disse que tava só brincando.
EC:
Mas que hilário!
Picasso:
Foi muito, muito engraçado.
EC:
Dama com leque é muito diferente dos seus trabalhos anteriores. Você acha que os seus fãs irão aprovar?
Picasso:
Bom, eu realmente quis expandir meus horizontes, espero que meus fãs entendam esta nova fase.
EC:
Muitos outros quadros foram lançados recentemente. Matisse apresentou o “Retrato com risca verde”, e Vlaminck pintou uma boa natureza morta. Você se preocupa com a concorrência?
Picasso:
Olha, tenho certeza de que o quadro de Matisse deve ser muito, mas muito fofo. Quanto a Vlaminck, ele é um idiota.
EC:
Uau! Vamos, não esconda nada – diga ao espectador tudo o que você pensa!
(risos)
EC:
Pablo?
Picasso:
Diga.
EC:
Por que um leque?
Picasso:
Puxa, todo mundo me faz essa pergunta. Acho que é porque eu não quis chamar o quadro de “Dama com banana”. Brincadeira.
EC:
Puxa, mas que hilário!
Picasso:
Falando sério, o leque foi escolhido por ser uma alegoria da feminilidade, porque ele equilibra a composição do quadro e porque eu arranjei a mão da modelo na clássica posição religiosa de “A virgem das rochas”, de Leonardo, com a diferença de que eu queria vê-la segurando um objeto profano.
EC:
Entendi. (Pausa) Quais são os seus próximos projetos?
Picasso:
Bom, gostaria de fazer pinturas menos sérias. “Dama com leque” é, na verdade, uma obra profunda, e eu gostaria de ampliar um pouco mais e mostrar que não sou um pintor de um quadro só.
EC:
Muito obrigado, Pablo Picasso. (Virando para a câmera) ‘Dama com leque’ ficará exposto na National Gallery pelos próximos mil anos, não perca. Pablo, por favor, você pode olhar para a câmera e dizer: “Oi, eu sou Pablo Picasso, você está assistindo o Entertainment Channel!”?
Picasso:
Claro. Posso mandar um beijo para a Gertrude Stein?

O brasileiro Juan Manuel

Posted: 1st dezembro 2006 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 03
Dezembro de 2006

texto e fotos por Vanessa Barbara

Agora serão sete no apartamento de Beatriz Apaza, no bairro do Pari, centro de São Paulo. “Seis e meio”, ela corrige, olhando para um pequeno embrulho de bebê e cobertores na cama da maternidade. Juan Manuel não é maior do que esta revista, está deitado bem no centro da cama, e a mãe se senta na ponta, com cautela. “Ele não chora, fica dormindo o tempo todo”, diz Beatriz, ainda sem tirar os olhos da criança. O bebê tomou as vacinas sem reclamar, fez o teste do pezinho, mamou durante meia hora e dormiu.

Tudo indica que Juan Manuel não quer dar trabalho nem chamar a atenção – assim como a mãe. Quando começaram as contrações, na manhã de 13 de novembro, Beatriz preferiu ficar em casa, esperando a dor aumentar. A jovem boliviana caminhou pela rua, tomou água, respirou fundo. Só foi para o hospital no fim da tarde, quando as contrações redobraram. “No Brasil, as mulheres fazem muita cesárea, e eu queria parto normal”, diz. Por isso, decidiu chegar quando a dilatação já estivesse boa. O parto foi rápido, e às 7 da noite Juan Manuel nasceu, depois de nove meses e uma semana na barriga da mãe.

Receosa, Beatriz não aceita tirar fotos ao lado do bebê. Ela e a irmã Deysi conversam aos sussurros, em espanhol. O Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, no Belenzinho, é referência no atendimento de gestantes bolivianas, pois pertence à rede pública e se encontra próximo aos bairros do Bom Retiro, Pari e Brás, onde se concentra a colônia. Segundo Zuleika Olivieri, presidente do voluntariado do hospital, cerca de 25% das parturientes têm origem boliviana. Como se encontram em situação irregular no Brasil, algumas delas são arredias. Mesmo assim, são atendidas pelo hospital, que ganhou uma placa de agradecimento do Consulado Geral da Bolívia.

Max e Beatriz, os pais do bebê, vieram de La Paz há três anos. Eles decidiram emigrar para o Brasil no dia em que perderam a filha de três meses de idade, Fabiana. Segundo Beatriz, a menina morreu de “febre, gripe e tosse”. Na época, só faltava a tese de conclusão do curso para Max se formar em engenharia mecânica, mas, ainda assim, eles resolveram partir. Metade da família de Beatriz já vivia no Brasil (ao todo, nove irmãos: três mulheres e seis homens).

Hoje, aos 23 anos, ela mora em um apartamento com o marido e mais quatro de seus oito irmãos. A família trabalha na oficina de costura do irmão Rodolpho, para firmas brasileiras e coreanas. O pagamento é feito por prenda (peça de roupa). “Nós costuramos bastante por pouco dinheiro”, afirma. A idéia do casal era passar somente um ano no Brasil e voltar para casa, mas a situação piorou e eles foram ficando. Aí veio a gravidez, e os planos tiveram de ser adiados de novo.

É difícil saber exatamente quantos bolivianos vivem em São Paulo. Os números podem chegar a 200 mil, segundo o relatório de 2004 da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. A Maternidade Leonor Mendes de Barros atende muitos deles, além de moradoras de rua, presidiárias e grávidas de alto risco. Segundo as voluntárias, não são poucas as bolivianas que já chegam com tuberculose, devido ao ambiente insalubre de moradia e trabalho. “A grande maioria vem do trabalho escravo em confecções”, diz Zuleika. “Vivem em casas sem janela, tipo porão.” Algumas entram no hospital gritando, mas não é de dor, é de medo. Têm medo de serem denunciadas e medo do desconhecido, daí a importância das voluntárias, que vestem um avental rosa e servem de acompanhantes para as pacientes que não têm ninguém por perto.

“Tivemos uma boliviana de dez anos de idade que teve nenê, vítima de abuso sexual do tio, mas somente conseguimos descobrir isso depois de muita conversa”, conta Zuleika. Algumas pacientes só aceitam falar com “as de avental rosa”, e não com os médicos ou psicólogos. São mais de cem voluntárias no hospital, em sua maioria donas-de-casa ou aposentadas, que auxiliam as enfermeiras, conversam com as pacientes, organizam bazares e recebem doações para os enxovais. Curiosamente, as bolivianas são as parturientes que menos se interessam por receber esses enxovais – cobiçadas caixas de papelão grátis, contendo pijaminhas de flanela com fitinhas e tudo o mais.

***

Durante a conversa, Beatriz e Deysi não param de trocar olhares e sorrisos encabulados. Quando uma voluntária pergunta a Beatriz se ela gosta do Brasil, a moça responde: “é… Eu gosto”, e olha para a irmã. “Não foi muito convincente, hein?”, brinca a funcionária. Beatriz explica que Juan Manuel será educado em espanhol, pois é o idioma que eles falam em casa, e também porque a família pretende retornar à Bolívia quando as coisas melhorarem.

Enquanto isso não acontece, eles se distraem encontrando os amigos e participando dos eventos da colônia boliviana na região. Todos os sábados, na Rua Coimbra, no Brás, e todos os domingos, na Praça Kantuta, no Canindé, milhares de imigrantes se reúnem em uma feira de produtos típicos, comida, dança e artesanato. Na Kantuta pode-se comprar saltenhas (um salgado boliviano), flautas, potes de barro, malhas de lã de lhama e dvds com discursos do presidente Evo Morales. Pode-se cortar o cabelo, jogar futebol e procurar subempregos em anúncios expostos em painéis. Beatriz costuma freqüentar a praça em busca de seu prato preferido, o chicharrón, espécie de torresmo servido com chuño (batata desidratada) e mote (milho branco cozido). Também gosta de comprar o queijo branco boliviano, que é “parecido com o brasileiro, mas estica”.

Rodeada de senhoras de avental rosa, a mãe de Juan Manuel dá indicações de como chegar à Praça Kantuta, já que ninguém sabe ao certo onde fica. Uma das voluntárias confessa: “Eu fui uma vez, mas não saberia voltar”. E Beatriz, indignada: “Mas como?! Está en su país…”. No quarto coletivo da maternidade, que ela divide com mais três gestantes, a boliviana conta que sua festa preferida é a de Alasitas (“compre-me”, no idioma aimara), que começa em 24 de janeiro e é oferecida a Ekeko, o deus da abundância. Nesse dia, na praça paulistana, há venda e exposição de miniaturas que simbolizam o que se deseja alcançar: casas, automóveis, sacos de arroz e de açúcar. No ano que vem, Beatriz promete levar o diminuto Juan Manuel à Alasitas – sem falta -, pois é uma festa de miniaturas e ele vai se sentir “muito à vontade”.

Nanoesquina

Posted: 1st dezembro 2006 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Nanoesquina
Uma esquina experimental

por Vanessa Barbara

Piauí n. 3
Dezembro de 2006

Em 6 de novembro, o Rio de Janeiro recebeu o chinês Xi Shun, o homem mais alto do mundo. Enquanto isso, a cidade de São Paulo abrigava a Nanotec Expo 2006, onde foram exibidas calcinhas fabricadas com tecido nanomodificado, bolas de golfe com polímeros nanoestruturados e outros produtos fabricados com manipulação da matéria na escala dos átomos. XI Shun tem 2,36 m de altura. O nanômetro equivale a um milionésimo de milímetro. Depois do Rio, Xi Shun veio a São Paulo. Foi ao Jô Soares, à avenida Paulista e deu autógrafos. Não visitou a Nanotec Expo 2006. Talvez por falta de espaço.

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Piauí n. 2
Novembro de 2006

por Vanessa Barbara

Splash: elegância de um pato a um custo de cinco Ferraris

A história dos carros-anfíbios tem capítulos surpreendentes. Um deles se desenrolou às 7 da noite do dia 2 de fevereiro de 2004, quando um Buick 1959, verde-abacate, zarpou de uma praia a leste de Havana com onze cubanos a bordo. O objetivo era atravessar os 140 quilômetros que separam Cuba da costa dos Estados Unidos. Chegando ao destino, o veículo aportaria na areia, engataria a segunda e, presumivelmente, entraria à direita na Sombrero Boulevard. Um dia depois da partida, contudo, a Guarda Costeira o interceptou a 16 quilômetros de Marathon, na Flórida. Quando as autoridades mandaram o Buick encostar, seus tripulantes e passageiros – seis adultos e cinco crianças – desceram do capô, onde tomavam sol, pularam para dentro do carro e fecharam os vidros. Ficaram ali, olhando para a frente, fingindo que não era com eles. Não deu certo. Foram presos na hora.

A Guarda Costeira pediu aos tripulantes que ajudassem a afundar o Buick. Tarefa aparentemente impossível. “Nós embutimos isopor em todos os compartimentos do carro. Se ele fosse jogado no mar de uma altura de três andares, mesmo assim boiaria”, explicou o engenheiro mecânico Luis Grass Rodriguez a uma revista americana de automóveis. Se tivessem concluído a travessia, os cubanos ganhariam o direito de permanecer nos Estados Unidos. Como isso não aconteceu, iniciaram-se os procedimentos de repatriação. Com medo de voltar a Cuba, Luis Grass e sua família conseguiram asilo na Costa Rica. Os outros foram devolvidos à ilha.

***

Para adaptar o Buick à navegação em alto-mar, o engenheiro e seu amigo Marciel Basanta Lopez gastaram 4 mil dólares. As portas do carro foram vedadas e a parte da frente ganhou uma legítima proa de aço, que os construtores tiveram o capricho de pintar do mesmo tom verde-abacate do automóvel. Propulsores ligados ao motor original do Buick, um v-8, fizeram as vezes de hélice. Os pneus foram mantidos. O leme foi controlado por cabos conectados ao volante. O anfíbio verde-abacate singrou os mares a uma velocidade de 10 quilômetros por hora.

Um mês depois, enquanto alguns dos cubanos repatriados retomavam as tentativas de boiar até a Flórida – desta vez num táxi azul, um Mercury 1948 -, a empresa suíça Rinspeed lançava Splash, o carro-anfíbio mais veloz do mundo. Com as feições de uma Ferrari, muito baixo e repleto de logomarcas, o veículo amarelo-ouro custou cerca de 2 milhões de dólares. Splash funciona à base de hidrofólios, mecanismo que eleva a carroceria a alguns centímetros da água e o faz deslizar com menos resistência e boa velocidade. No mês passado, Splash fez uma demonstração na represa de Guarapiranga, na região sul de São Paulo. O próprio inventor, o suíço Frank Rinderknecht, vestiu uma roupa de neoprene e assumiu o volante. “É um sonhador”, declarou uma assessora.

Na hora marcada para a exibição, o carro não pegou. Estacionado numa plataforma no Yacht Club Santo Amaro, Splash foi rapidamente cercado por suíços aflitos, que gesticulavam e discutiam em alemão. A tampa do capô foi aberta. Em estilo cubano, os suíços tentavam consertar a bomba a golpes de martelo. Chaves de fenda foram freneticamente manuseadas. Um membro da equipe enrolou cabos em fita silver tape, provavelmente para tapar algum buraquinho. “Parece o meu carro”, disse um fotógrafo. Márcio Dottori, consultor técnico da revista Náutica, e um dos organizadores do evento, tratou de acalmar os jornalistas. Tinha havido um problema com a bomba de gasolina, mas em menos de quinze minutos Splash estaria na água. Aproveitou para dar mais detalhes sobre o veículo: ele pesa 825 quilos, aparentemente pouco, pois é feito de fibra de carbono (“Não queríamos um submarino”), e alcança 200 km/h em terra e 80 km/h na água. Em contraste com o Buick, onde se acomodam onze cubanos, no cockpit de Splash cabem apenas duas pessoas. Em julho, o veículo bateu o recorde mundial da categoria ao atravessar em 3 horas e 14 minutos os 36 quilômetros do canal da Mancha, entre Dover (Inglaterra) e Sangatte (França). Venceu ondas de até 7 metros de altura. O mar brabo o forçou a manter uma média de 10 quilômetros por hora.

“Para um carro que vale cinco Ferraris.”, desdenhou um popular. “Joga logo na água pra ver se flutua!”, desafiou aos gritos. O problema foi finalmente resolvido. Rinderknecht entrou no automóvel, girou a chave de ignição e sugeriu aos jornalistas que tomassem um bote para acompanhar o passeio. Splash veio descendo a rampa e entrou na água com a naturalidade de um pato. Inicialmente, não fez mais do que boiar. “Ih, afogou!”, comentou um observador. “Vai ter que empurrar”, avisou um repórter mais cético. Nesse momento os hidrofólios entraram em ação: foi como se Splash tivesse aberto os braços. O carroanfíbio empinou as rodas da frente e acelerou, a 60 centímetros da água. Parecia voar. Deixou um rastro não de fumaça, mas de espuma. “Que coisa. pitoresca”, comentou o repórter de uma revista automobilística, tentando não molhar o bloquinho. Depois de inúmeras voltas pela represa, Splash estacionou no asfalto. Como um pato ou um nadador sem toalha, pingava sem parar.

O próximo projeto da Rinspeed é desenvolver um carro-anfíbio ainda mais potente. Sonhador e pragmático, Rinderknecht construirá seu novo bólido aproveitando todas as lições deixadas por Splash. É a mesma estratégia de Luis Grass Rodriguez, que planejou seu Buick a partir de um protótipo anterior, um caminhão Chevrolet 1951, de lataria também verde, caçamba coberta por uma lona amarela e dezenas de tambores de óleo vazios no papel de flutuadores. Sete meses antes do Buick verdeabacate e oito meses antes de Splash, o caminhão flutuante chegou a 65 quilômetros de Key West, onde foi interceptado pela Guarda Costeira. Foi preciso muita artilharia para afundá-lo. O anfíbio submergia e boiava, submergia e boiava, para alegria dos cubanos, que assistiam de longe e aplaudiam cada vez que ele voltava à tona.

Aí é luta, patuléia

Posted: 1st novembro 2006 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista piauí
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Novembro de 2006

por Vanessa Barbara

Uma desavença fonética opõe a jovem guarda aos palindromistas tradicionais – seria “Acena, Vanessa!” aceitável?

Há uma frase em latim que cura mordida de cobra e facilita o parto. É “Sator Arepo Tenet Opera Rotas” (o semeador Arepo mantém o curso com atenção), que ao ser lida da direita para a esquerda é literalmente igual. Ou seja, é um palíndromo. Segundo Otto Lara Resende, uma senhora mineira escrevia cada palavra dessa oração num pedaço de papel, enfiava num bentinho e amarrava no pescoço dos doentes, dizendo que, para coqueluche e asma, era tiro e queda. A frase é considerada o palíndromo mais antigo do mundo, e além disso, se as palavras forem dispostas em pilha, uma embaixo da outra, o sentido é preservado em todas as direções. Há inúmeras traduções possíveis, como “Deus, Criador, mantém com cuidado o mundo em sua rota”, mas ninguém sabe ao certo o que ela quer dizer. O escritor pernambucano Osman Lins baseou seu romance Avalovara nessas cinco palavrinhas enigmáticas.

Existem palíndromos atribuídos ao demônio. Alguns trazem azar. O gramático Napoleão Mendes de Almeida, autor de Questões vernáculas, diz que uma das provas de soberania entre os incas era que seus reis tinham nomes palindrômicos, como Capac. Na década de 70, um casal de Ohio, nos Estados Unidos, batizou seus filhos como Noel Leon, Lledo Odell, Lura Arul, Loneya Ayenol, Norwood Doowron, Lebanna Annabel e Leah Hael. A certa altura, alguém criou a palavra “aibofobia” para designar o medo mórbido e irracional de palíndromos. O termo não tem raiz grega ou latina, mas funciona de trás pra frente.

Junto a restos de churrasco, em uma mesa na calçada, um rapaz de camiseta amarela olha intrigado para a palavra “gnus” escrita em um papel. Ao lado dele, outro jovem rabisca nomes de ditadores numa folha: Hitler, Stálin, Mussolini. De repente, Paulo Werneck descobre que “a gnus” ao contrário dá “sunga”, e se põe a construir uma frase. Chico Mattoso desiste dos totalitários e passa para a palavra “pires”. Naquela tarde de outubro, na mesa de uma churrascaria em Santa Cecília, na região central de São Paulo, a jovem guarda palindrômica trabalha com afinco. Há quem diga que estamos vivendo os tempos áureos dos palíndromos. Nunca se produziu tanto desde um certo período na década de 90, quando um palindromista veterano sofreu um acidente de automóvel e passou três meses de cama, ditando frases invertidas para a esposa.

Por fim, uma garota sentada na outra ponta da mesa quebra o silêncio e mostra um palíndromo: “. E amamos só mamãe.”, na linha terno-familiar. Aos 25 anos, a moça de vestido longo, cabelos castanhos e voz suave é um dos grandes nomes da jovem guarda de palindromistas. O garçom vai buscar mais cerveja. Marina Wisnik diz que o segredo é não teimar por muito tempo. Se em quinze minutos não deu palíndromo, é melhor desistir e tentar outra palavra.

***

Representante da velha guarda palindômica, Rômulo Marinho, 74 anos, concorda com Marina: o importante é seguir tentando. Rômulo se intitula rei do palíndromo. Nascido em Guaçuí, no Espírito Santo, o advogado aposentado já compôs mais de 2002 frases. São de sua autoria expressões como “A droga do dote é todo da gorda”, “O rio é de oiro”, “Seco de raiva, coloco no colo caviar e doces” e “E até o papa poeta é” (nos palíndromos, acentos não são levados em conta), além de um poema de 123 letras chamado “Palíndromo do amor total”. Em 1998, publicou o livro Tucano na CUT?, com 202 frases. “Quase todo dia, vendo televisão, faço um palíndromo”, diz ele, “mas já não os anoto mais.” Nos três meses em que ficou de cama, ditando frases para a esposa, chegou a produzir cinco por dia.

Rômulo nasceu em 1932. Demorou mais de sessenta anos para fazer seu primeiro versus cancrinus (em latim: aquele que se comporta como caranguejo). Ele conta que, desde a infância, tinha a mania de ler palavras ao contrário, esperando encontrar algum sentido. Foi quando descobriu os bustrofédons, ou parapalíndromos, palavras que, lidas da direita para a esquerda, formam vocábulos diversos, como amor (Roma), após (sopa), assim (missa) e ar (rã). Pode-se dizer que o bustrofédon é um ponto de partida para o palíndromo. Mesmo assim, Marinho não parou por aí: continuou sem saber que existiam sentenças inteiras em espelho, embora já conhecesse a famosa frase “Roma me tem amor”. Aos 25 anos, tornou-se telegrafista, mais tarde engajou-se na militância sindical e política, foi eleito deputado federal e exerceu inúmeros cargos públicos. Aos 40 anos, formou-se em direito e, aos 59, ganhou o posto de juiz classista em Taguatinga, nos arredores de Brasília. A essa altura, um cardiologista obrigou-o a fazer longas caminhadas matinais. “Para esquecer a distância e o tempo, tentei fazer palíndromos”, lembra. “Passaram-se meses, até que um dia nasceu o primeiro: ‘A base do teto desaba’.” A vantagem desse hábito foi que Rômulo Marinho nunca precisou de papel para criar suas frases.

O palíndromo é uma arte sem planejamento, ou, nas palavras de Millôr Fernandes, uma arte neurótica e maravilhosa, capaz de envergonhar qualquer concretismo. Para começar uma frase (ou terminá-la, no caso), não se deve ter um tema prévio, ou uma intenção a comunicar. “Pegue uma palavra na qual duas consoantes não se encontrem e coloque no meio de uma frase imaginária”, ensina Marinho. “A partir daí, da esquerda para a direita ou vice-versa, vá construindo seu palíndromo.” É a abordagem centrista, utilizada pela maioria dos criadores de palíndromos, em que a frase vai abrindo para as pontas até ganhar sentido. Devem-se evitar advérbios terminados em ente, gerúndios e tritongos, além de letras mudas e a palavra “Volkswagen”.

Apesar da limitação imposta pelo método, os palíndromos não são necessariamente aleatórios e desprovidos de sentido. Rômulo Marinho os divide em “explicitus”, “interpretabiles” e “insensatus”, sendo que os insensatus cuidam apenas de juntar letras ou palavras sem se preocupar com o sentido, como: “Olé! Maracujá, caju, caramelo.” Os interpretabiles têm coerência, mas requerem esforço intelectual do leitor para entendêlos: “A Rita, sobre vovô, verbos atira.” Já os explicitus, mais valiosos, trazem sempre uma mensagem direta, clara e inteligível, como : “A diva em Argel alegra-me a vida.” Marinho se empenha para que os seus tenham significado óbvio. De fato, poucos dos seus versos exigem do leitor um esforço de interpretação. Além disso, segundo ele, “à exceção de certos palindromistas americanos, que vivem em permanente excitação atrás do recorde palindrômico, desprezando, na maioria das vezes, o nexo, todos os palíndromos que se cristalizaram são perfeitamente inteligíveis”. Em português, o mais famoso deve ser “Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos”, de autoria anônima.

No Brasil, os azes da palindromia incluem Pedro Nava, Malba Tahan, Afonso Arinos de Mello Franco, Eno Teodoro Wanke (autor de O livro dos palíndromos, onde registra mais de 3 mil) e Millôr Fernandes, autor de “Assim a aia ia à missa”, “A mala nada na lama” e “Olá, galo”. O cartunista Laerte é outro que faz suas incursões. Numa de suas tirinhas, uma família de cavalos está jantando e o potrinho diz: “Rir, o breve verbo rir”, e o pai retruca: “Eu já te disse para não dizer palíndromos à mesa!” Chico Buarque, por sua vez, demorou cinco horas para inventar o seu, durante uma noite de insônia: “Até Reagan sibarita tira bisnaga ereta”, que foi publicado em 1986, com ilustração de Chico Caruso. Nenhuma dessas personalidades supera Rômulo Marinho em dedicação.

***

O veterano palindromista, que chegou a receber o grau de Comendador na Ordem do Mérito de Brasília – mas não por causa de seus palíndromos -, acredita que existe um bocado de gente devotada ao ofício e atribui a si mesmo o crédito por boa parte dessa expansão. Todos os anos, na Feira de Livros de Brasília, ele é escalado pelo Sindicato dos Escritores para fazer uma palestra sobre o assunto. Pela internet, vende de quatro a cinco livros por mês. Recebe, quase que diariamente, a correspondência de novos palindromistas que encaminham seus trabalhos para sua apreciação.

Um desses novos talentos é Marina Wisnik, a jovem da churrascaria. Há seis anos, ela teve alguns de seus palíndromos musicados em uma canção do pai, José Miguel Wisnik. Em “Relp”, a atriz colabora com os versos: “Oi, rato otário”, “Eco: vejo hoje você”, “Ser cor e ser ocres”, “Ó mãe, tu era réu. Te amo”, “Mima a mina e anima a mim”, “Só dote dádiva é a vida de todos” e, o mais conhecido, “Lá vou eu em meu eu oval”, que abre a canção. Marina começou a fazer palíndromos aos doze anos, durante as aulas. A adolescência foi sua época mais produtiva, quando compôs quase todos os palíndromos utilizados na música.

Seus versos seguem uma linha mais poética e filosófica, embora ela tenha frases de diversas tendências, como a coloquial “.Ô Piauí! Viu? Aí, pô.”, que ela criou em poucos segundos, sob encomenda. “É interessante perceber que os palíndromos têm estilo”, afirma. “Quer dizer, se eles partem de uma regra, supostamente eram para ser todos iguais, mas não são: cada autor tem um jeito.” Como exemplo, Marina Wisnik mostra os versos de Sofia Mariutti, 19 anos, estudante de letras na USP e especialista em palíndromos coloquiais. Sofia é autora de “Ô padre, meu, que merda, pô!”, “É pesado? Foda-se, pé!” e “Olé! Bacon no cabelo!”.

***

A jovem guarda palindrômica abriga representantes de todos os tipos- do culto ao coloquial, do comportado ao sacana, todos com uma característica em comum: palindromia desenfreada. No encontro da churrascaria, foram criados em poucas horas dezenas de versos, na modalidade engajada, como “Aí é luta, patuléia!”, de Paulo Werneck, “A luta: tu lá”, de Marina, e na modalidade líricoembevecida, como “Ah, larga gralha!” e “Ah, livre ervilha”, de Werneck. A pedidos, produziram uma seqüência sobre cavalos. Paulo fez “Só lava cavalos” e “Seo Zala só lava cavalos alazões”, embora a legitimidade do senhor Zala tenha sido contestada, e o escritor Chico Mattoso veio com o coloquial “Ó lá! Vaca a cavalo!”.

Mattoso, de 28 anos, formado em letras, é craque em palíndromos eróticos, como “Alzira no colo: coloco nariz lá”, “O soro louco do cu oloroso” e “Ó: meto anal, miss? Sim, lá não temo.” É também notável seu poema lírico-terrorista Barab:

“Osama ama só
E, no nada, mama danone.”

Alguns de seus palíndromos coloquiais procuram captar o espírito da época. É o caso de “A Ju, cara, mó maracujá” e “Lã, mina: animal!”, em que um rapaz tenta cortejar uma moça exibindo o nobre material de suas vestes.

Já o editor Paulo Werneck, também de 28 anos, possui um estilo mais experimental, marcado pelos palíndromos insensatus: “É mala, salame!”, “Só furado podar ufos”, “E volátil a palita: love”, “Os nós de Edson só” e “Ela fede a gnus, a sunga, Ed! É, fale!”. No papel, ficaram inconclusas as suas tentativas com as palavras “pinel”, “árvore”, “Fidel”, “pulôver”, “Pol Pot”, “Churchill”, “pâncreas”, “apócrifo”, “diarréia”, “Abraão” e “couve”.

Werneck é um dos pioneiros do controverso palíndromo fonético, nova modalidade de frases que se pautam pela regra da oralidade. Os maiores exemplos são: “Acena, Vanessa!”, em que de trás para frente os dois ss substituem o cê, “Soluço sob os óculos”, em que o cê e o cê cedilha se confundem, e “Osaka girava a Varig: acaso”, que além de fonético não faz nenhum sentido.

“Jamais me passou pela cabeça que alguém iria, um dia, fazer um palíndromo assim, só sonoramente palindrômico”, confessa, desgostoso, Rômulo Marinho, um defensor da palindromia ortodoxa. “Para mim, que a considero uma arte idiomática, não vale.” Ele acredita que fazer palíndromos é uma distração destinada ao cultivo do idioma, e portanto a transgressão é de mau gosto. “É simplista demais. De qualquer forma, da mesma maneira que alguns fazem versos caipiras, com erros crassos da nossa língua, fica a juízo e critério de seu produtor e de seus ouvintes o julgamento. Eu, simplesmente, não vejo qualquer graça nisso. Quem sabe o ‘seu Creysson’ gostaria”, ataca. Em sua defesa, Paulo Werneck bate na mesa e observa que “a palindromia precisa se abrir para a oralidade. O palíndromo fonético é uma realidade!” A discussão corre o risco de terminar com o palíndromo “É a mãe! É a mãe!”.

Outra inovação trazida pela mocidade palindromista, e dessa vez aclamada pelos veteranos, é o Palíndromo Plus 2002, do engenheiro Pedro Mindlin, de 32 anos (http://www. larc.usp.br/ ~pmindlin/ palindromo.html). O programa serve para auxiliar na criação das sentenças, pois possui os campos “Contrário”, em que a palavra escolhida aparece às avessas, e “Espelho”, que ajuda a visualizar uma frase, já que todo palíndromo é, sempre, espelhado, isto é, a primeira letra da frase é igual à última, a segunda igual à penúltima e assim por diante, até chegar à letra central, caso o número total de letras seja ímpar, ou letras centrais, caso o número seja par. O Palíndromo Plus foi baseado na obra do médico Manu Lafer, que lançou ano passado o CD Grandeza, com duas músicas em palíndromo: “A cara rajada da jararaca” e “Bustrofédon”. O próprio criador da ferramenta, Pedro Mindlin, possui palíndromos de sua autoria, entre eles “O Pedro morde pó” e “O Pedro me morde, pô!”. E também recebe, por email, frases de usuários do programa – como Elizene Cássia, da cidade de Taió, Santa Catarina, que enviou recentemente um palíndromo singelo: “Oi a todo Taió.”

Bom dia, meu nome é Sheila

Posted: 1st outubro 2006 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 01
Outubro de 2006

por Vanessa Barbara

Como trabalhar em telemarketing e ganhar um vale-coxinha

Fagner vendia planos de saúde pela lista telefônica. Boné na cabeça, mascando chiclete, ele abria a letra A e começava a discar. “Bom-dia, meu nome é Fagner, com quem eu falo, por gentileza?” Às vezes preferia trabalhar com prefixos. Butantã é 3735 e Mandaqui é 6979. Começava discando o 0001, 0002, 0003. Ou tentava qualquer combinação a esmo. Fagner vendeu dezenas de planos usando a Lista de Assinantes Residenciais de São Paulo, capital, e distribuindo panfletos com seu nome e telefone.

O trabalho se estendia das nove da manhã às seis da tarde, sem direito a valetransporte ou salário fixo. Depois de três meses, pediu demissão. Há poucas semanas, estava sentado na sala de aula de um prédio na rua Sete de Abril, no Centro de São Paulo, e juntava bombons ao lado de seu boné.

“Bom-dia, meus guerreiros!”, ataca o professor Isaac Martins. Ele não admite alunos sonolentos. “Para ser grande profissionalmente, você precisa estar na tomada. Toda vez que eu disser ‘todo mundo ligado’, é pra bater uma palma e dizer: Hai! Como os samurais”. A turma inteira responde: Hai! É o primeiro dia do curso Operação de Telemarketing. Pela participação, Fagner já ganhou quatro bombons. “Vou sair daqui e vender”, diz. “Pelo telefone”, completa um colega.

O primeiro exercício de um curso de telemarketing é praticar o bom-dia. Há pelo menos quatro tipos de bom-dia: o tradicional, o belicoso, o sorridente e o de quem ganhou na loteria. Operadores de SAC – Serviço de Atendimento ao Cliente – costumam adotar uma saudação mais sóbria, a fim de evitar um bom-dia belicoso do outro lado da linha. Já os operadores de vendas devem usar a versão sorridente do cumprimento. Para esses, o entusiasmo é obrigatório em todas as etapas da abordagem, embora alguns especialistas argumentem que o sorriso exigido do profissional é, na verdade, um sorriso interior, e não físico. “Manter as comissuras labiais eternamente esticadas, em forma de sorriso, com certeza seria de grande prejuízo para o teleoperador e para a emissão da palavra”, sustenta a fonoaudióloga Eudosia Acuña Quinteiro, autora de O poder da voz e da fala no telemarketing. Segundo ela, a necessidade de sorrir no telefone é uma importação equivocada de teorias de telemarketing dos Estados Unidos, país onde o smile (cheese!) e o yes são muito diferentes do nosso “sim”. A articulação da palavra no Brasil corresponde a uma forma ligeiramente “bicuda” de falar, fruto da influência francesa. “É só pensar na atriz Marieta Severo”, recomenda a fonoaudióloga. “Ela não tem um baita bico? E você não perde nada do que ela diz, tamanha a articulação das palavras.”

Ignorando as advertências de Eudosia Quinteiro, que prevê danos irreparáveis nas comissuras labiais, os cursos de preparação para teleoperadores ensinam a potencializar o tom de voz conversante e a manter a entonação de quem está empolgado. “Escolha o bom humor e não o mau humor”, ensina a professora Tamires Siqueira, assistente d0 mestre Isaac Martins, dirigindo-se a uma platéia de dezoito alunos. Fagner é o primeiro a bater palmas e o único a se oferecer como voluntário para fazer uma simulação de venda de canetas. Também tira o boné prontamente e se livra do chiclete assim que o professor lhe chama a atenção.

***

Fagner, cujo sobrenome é Queiroz Rocha, tem 21 anos. Ele fez cursos de datilógrafo e padeiro antes de se inscrever nas aulas de telemarketing. “Tenho que ganhar dinheiro”, explica. Foi feirante, frentista, forneiro, garçom e recepcionista. Conhece o ambiente profissional dos frigoríficos, já fechou caixa, trabalhou em padaria e efetuou, como diz, “auxílio e apoio a força de vendas”. Tradução: panfletagem em cruzamentos. Sua mais recente experiência no mundo do trabalho foi como lavador de carros num centro automotivo, onde conseguiu ser promovido a frentista depois de três dias de trabalho. Fagner, que pretende terminar o supletivo em meados do próximo ano, inscreveu-se no curso do professor Isaac Martins porque sentia dificuldade em vender pelo telefone. Realista, também sabe que a escola indica alunos para empresas.

Fagner está numa situação parecida com a de Gabriela, de 21 anos. Ela passou três meses no telemarketing de uma escola de informática, oferecendo prêmios e descontos ilusórios. “Eu ligava e dizia: ‘Parabéns, você foi sorteado para ganhar um curso de informática’, e precisava inventar quem é que promovia o concurso”, conta. “Aí a pessoa respondia: ‘Mas eu não escuto essa rádio’, e eu ficava sem ter o que dizer.” É uma situação semelhante à de Roseli, de 23 anos, que chora até em inauguração de supermercado e se inscreveu no curso por iniciativa de um amigo. Ou de Elizabeth, de 28, que é balconista de uma cafeteria e tem como objetivo de vida fazer faculdade. Ou de Aretuza, 29 anos, ex-técnica de raio-x, e Daniele, de 22, que compartilham o mesmo sonho (e até a mesma frase para resumi-lo): “Progredir junto com a empresa”.

Com 630 mil operadores empregados, o telemarketing é o setor da economia que mais contrata hoje no Brasil. Ele surge como a única saída para Daniele, Elizabeth, Fagner e Gabriela, jovens com pouca formação escolar cujos filhos provavelmente “já vão nascer devendo”, nas palavras de um deles. Segundo um relatório do Global Call Center Industry Project 2005, pesquisa internacional que no Brasil ficou a cargo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Associação Brasileira de Telesserviços, 74% dos atendentes brasileiros cursaram o ensino médio e 4% têm apenas o ensino fundamental. Do total de teleoperadores, 76% são mulheres.

No curso da rua Sete de Abril, além de gritar Hai! para ganhar bombons, os alunos passam por dinâmicas de grupo. Levam a mão à cabeça e ao joelho, acompanhando determinada seqüência de números para aprender a reagir de forma instantânea. Fazem um círculo, recebem uma palma do colega da esquerda e a repassam para o da direita sem hesitar, o que supostamente mimetiza o trabalho em equipe. Os alunos ouvem também histórias motivacionais. Como a do cavalo que caiu em um poço-mas não se deixou enterrar-, que termina com a seguinte lição: “Muitos jogam sobre você a terra da incompreensão; levante e cresça com as dificuldades”. Durante o curso, eles são colocados à prova e pagam seus erros com polichinelos. “Quando você é novo, tem que pagar uns pauzinhos, trabalhar até de graça”, justifica o professor Martins. Segundo ele, o desempregado típico já chega meio corcunda no local da entrevista, carregando a pasta de papelão azul da época do prezinho com o currículo dentro. “Não basta ter conhecimento, experiência, você tem que ter sangue nos olhos”, garante. Como todos ali desejam ter sangue nos olhos e arrumar emprego, a saída é pagar R$90 por dezoito horas de aulas teóricas e práticas que lhes permitirão, no futuro, falar no telefone como se fossem uma fita cassete.

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Durante os exercícios de simulação, os alunos escrevem scripts, ou roteiros de atendimento telefônico, para telemarketing “ativo” e “receptivo”. No ativo, a iniciativa das ligações sempre parte da empresa. Nessa modalidade, os alunos começam por telefonar para oferecer de tudo um pouco-produtos para emagrecer, fraldas descartáveis, bicicletas, apartamentos de luxo, latas de tinta, helicópteros, kit-festa com piscina de bolinha e pula-pula. Um aluno faz as vezes do cliente; o outro, do operador. Há também a opção de usar o script de vendas do livro SuperMotivado, de autoria do próprio professor Isaac Martins. Os alunos que fazem o papel de vendedor tentam seguir os preceitos básicos do telemarketing-nunca dizer “não”, trocar “gasto” por “investimento” e manter, durante toda a ligação, o tom formal de fita gravada-, enquanto os que desempenham o papel de cliente falam o que bem entendem:

Operador: Bom-dia, meu nome é Sheila, sou da Motivação Total, com quem eu falo, por gentileza?
Cliente: Faaaaala!
Operador: Qual é o seu nome, porgentileza?
Cliente: É Gabriela!
Operador: Senhora Gabriela, o motivo do meu contato é estar oferecendo uma maneira da senhora estar tendo motivação e aumento da sua auto-estima. [pausa] A senhora já deve ter notado que, diante das dificuldades do dia-a- dia, está cada vez mais difícil manter a sua auto-estima, não é mesmo? [pausa] Então, pensando nisso, estou ligando para um seleto número de pessoas para convidá-las a fazer parte do clube da Motivação Total! Não é excelente, senhora Gabriela?
Cliente: Não.
Operador [ignorando a reação e seguindo o script]: Para isso, a senhora receberá o livro SuperMotivado, com um cd duplo em áudio contendo dezenas de histórias motivacionais e frases quefazem com que a senhora extraia o máximo de si. O investimento será de apenas R$ 39, com boleto para o próximo dia 10. A senhora extraia o máximo de si. O investimento será de apenas R$ 39, com boleto para o próximo dia 10. A senhora poderia confirmar o seu endereço? É rua ou avenida?
Cliente: [desliga].

Nova tentativa:
Operador: Bom-dia, meu nome é Sheila, sou da Motivação Total, comquem eu falo, por gentileza?
Cliente: Marcelo.
Operador: Senhor Marcelo, o motivo do meu contato é oferecer uma maneira do senhor ter motivação e aumento da sua auto-estima. [pausa] O senhor já deve ter nota…
Cliente: [interrompendo]: Olha, eu não estou interessado.
Operador: Então, pensando nisso, estou ligando para um seleto número de pessoas para convidá-lo a fazer parte do clube da Motivação Total…
Cliente: Eu não quero!
Operador: Por apenas R$39,90 o senhor receberá o livro SuperMotivado, com um cd duplo em áudio, contendo dezenas de histórias mo…
Cliente [interrompendo]: Eu sei, mas não estou interessado mesmo. Tenha um
bom-dia.
Operador: [largando o script e abrindo os braços]: Ahhh, senhor Marcelo. Ah, não, senhor Marcelo, não faz isso!
Cliente: Bom-dia.
Operador: Não, você tem que falar “alô”!
Cliente: Alô.
Operador: O motivo do meu contato é oferecer uma maneira da senhora ter motivação e aumento da sua auto-estima! Por apenas duas vezes de R$19,95 a senhora receberá em sua casa o livro SuperMotivado, com um cd duplo em áudio, contendo dezenas de histórias motivadoras que…
Cliente [interrompendo]: Não quero. A minha mãe faleceu.
Operador [com entonação penalizada]: Tudo bem. [pausa] E o que a senhora acha de dar o livro de presente para alguém? Para o seu pai, por exemplo?

Nos Estados Unidos e na Europa, existem organizações para repelir as ligações de telemarketing. Elas têm como armas perguntas bizarras e até as mesmas técnicas usadas pelos operadores. O egbg (www.egbg.nl), um grupo de ativistas de Amsterdã, preparou um roteiro em que o cliente toma as rédeas da ligação e pede ao vendedor que soletre o próprio nome, que diga o quanto ganha por mês, se tem tempo de ir ao dentista, qual a sua pasta de dente favorita etc. O contra-roteiro termina com uma frase padronizada, na qual a vítima de telemarketing agradece as informações fornecidas e solicita o número do telefone do operador para o caso de precisar de dados adicionais. Tudo isso sem usar gerúndios.

Já no sítio www.sorrygottago.com, podem-se obter dezenas de sons que simulam pretextos para desligar, como interferências no telefone, barulhos de helicóptero, buzinas de carro, alarmes de incêndio, vacas que passam mugindo, crises de espirro, problemas com moscas e o som de uma carruagem estacionando. Há também um minuto inteiro de gravações com comentários como este: “Ahn-hã… sei…muito interessante. Como? Repete. Ah… Ahn-hã. Estou ouvindo”. Ou um arquivo de áudio que começa assim: “Você disse que trabalha em qual empresa mesmo? [pausa] Não, não acredito… Eu trabalhei lá também! Aquele maluco do Bill continua na área?”.

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A Federal Trade Commission, organismo de defesa do consumidor dos Estados Unidos, instituiu um cadastro nacional para pessoas que não desejam receber ligações de telemarketing, o chamado Do Not Call Registry. Toda empresa que ligar para um número que conste da lista é multada. Só no primeiro dia de inscrições, em junho de 2003, 7 milhões de números telefônicos foram cadastrados. Hoje são 125 milhões.

Numa das maiores centrais de atendimento telefônico do Brasil, a operadora Flávia segue a lógica da fita cassete. Sentada na sua “posição de atendimento”, ou P.A. (também chamada de “cubículo” ou “cercadinho”), ela põe a mão na cabeça e começa a pensar em outras coisas logo que a Sra. Eunides atende do outro lado da linha. O tom de voz do teleoperador é sempre baixo, o ritmo de Flávia faz crer que ela está conversando sobre o assunto pela primeira vez: “Boa-tarde, senhora Eunides, meu nome é Flávia, tudo bem? O motivo do meu contato é para informar que, mediante a sua confirmação, encontra-se disponível na sua linha telefônica o superseguro premiado, com uma cobertura de até R$50 mil em dinheiro. A senhora é casada? Mora perto de uma casa lotérica?” Flávia não desiste nem quando a Sra. Eunides diz que não entendeu (“Mas eu fui premiada?”); repete todas as informações e acrescenta que “o primeiro mês é gratuito, e depois o investimento é de apenas R$0,53 ao dia, ou seja, R$ 15,90 por mês na sua conta telefônica. Podemos confirmar os seus dados?”.

Flávia faz de 150 a 180 ligações por dia, a média entre os operadores da seguradora para a qual trabalha. Logo que a Sra. Eunides desliga o telefone, contrariada, o computador já disca o próximo número. Flávia volta a colocar a mão na cabeça, respira fundo e recomeça. “Hoje está difícil”, diz, e emenda: “Boa-tarde, meu nome é Flávia, o motivo do meu contato é informar que…”. A meta da corretora é alcançar cem vendas mensais por funcionário. Os seguros são oferecidos para potenciais compradores de diversos estados. Na maioria das ligações, no início os interlocutores não entendem o que se passa. Em seguida, alguns acreditam que ganharam um prêmio. Às vezes, Flávia consegue chegar à frase em que pede a confirmação dos dados, para que o seguro possa ser efetivado “a partir da meia-noite de hoje”. A maioria das pessoas consegue interromper o procedimento antes que ele seja completado. “Até porque, depois que comprou, é muito difícil cancelar qualquer coisa”, diz Isaac Martins, o professor.

Nenhum dos cercadinhos tem isolamento acústico. Eles servem apenas para evitar que um operador fale com o outro. Quem entra na sala se depara com muito barulho, risadas e operadores em pé, com a mão erguida, esperando a chegada do supervisor. É impossível prestar atenção numa conversa só, ainda que todos os atendentes pareçam absortos no trabalho. Cada um tem um headset, o apetrecho formado por fone de ouvido e microfone, acoplado a um dispositivo de discagem com a tecla mute. Essa tecla, que emudece o áudio, é de enorme importância, sobretudo durante crises de tosse ou de riso, como costuma ocorrer quando o cliente diz que esqueceu “o longuinho” (o login) ou que a marca de seu aparelho celular é Pomarola (Motorola). As ligações são direcionadas para os operadores automaticamente, pelo sistema, que também exibe dados sobre o cliente na tela de cada um. Antes de começar a falar, a primeira providência de todo operador, sem exceção, é abrir o bloco de notas no computador, para registrar o nome do interlocutor e, em seguida, localizar informações nas telas.

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Operadores de telemarketing completam, em média, 74 chamadas por dia. Segundo o relatório local do Global Call Center Industry, o tempo de cada ligação é de 3 minutos e 27 segundos. Os dados do relatório informam que os profissionais têm capacidade reduzida de determinar seus horários de almoço e descanso. A grande maioria das empresas (87%) contrata empregados em tempo integral (36 horas semanais), e, embora na jornada diária de seis horas esteja prevista uma pausa de quinze minutos para o almoço (chamada de pausa “lanche” ou “café”), em muitas empresas a jornada é de seis horas e quinze minutos, para descontar o intervalo. “Normalmente, somando as pausas para ir ao banheiro dá um total de dez minutos”, diz Estefânia de Andrade, 34 anos, que trabalha há seis anos numa multinacional de atendimento telefônico. Se o operador ultrapassa o tempo de intervalo, perde pontos e corre o risco de ser demitido. Segundo ela, tudo é monitorado por meio de acompanhamento direto, escutas e câmeras, inclusive as ligações e a conduta dos empregados. Todos os computadores estão ligados em rede.

Estefânia começou a trabalhar como operadora em 1989. Na época não se usava o headset. Eram maiores, assim, os riscos de desenvolver tendinite, lordose e outros problemas na coluna. Pelo menos em teoria. Com o passar dos anos, ficou claro que a popularização dos novos equipamentos de telefonia e informática não resultou na melhoria das condições de trabalho. “O operador passou a ser mais sacrificado”, diz Estefânia. Se antes a meta de um operador de telemarketing era atender cinqüenta ligações, agora a meta mínima é 150, às vezes quinhentas. Há um tempo médio de atendimento exigido, muitas vezes restrito a trinta segundos por chamada. Perde pontos o operador que gastar com o cliente mais tempo do que o estipulado pela empresa.

Antes o funcionário podia decorar sua P.A. com vasos de plantas, móbiles nada no local, pois outros funcionários ocuparão o cercadinho em seguida. Como é comum que os objetos pessoais do operador fiquem amontoados do lado do computador, em pilhas prestes a desmoronar, há empresas em que é proibido levar garrafas d’água para a P.A. Também é proibido abrir as janelas da sala de operação, devido ao ar-condicionado polar. Muitas empresas ignoram os atestados médicos apresentados pelos funcionários. Foi o caso de Estefânia, que levou uma solicitação médica de pausa maior para o almoço. Não foi atendida. Se fosse feita a concessão, argumentou um funcionário graduado, os demais empregados também passariam a querer um intervalo de almoço superior a quinze minutos. Por conta disso, era comum Estefânia sair para o trabalho às seis da manhã e almoçar apenas às quatro da tarde, já em casa. Mesmo que a pausa fosse maior, ela não teria condições de comer em restaurante, pois, pela convenção coletiva da categoria, as empresas de telemarketing não são obrigadas a pagar tíquete-refeição aos empregados. Quando pagam, o valor médio é de R$3. Na multinacional onde Estefânia trabalha, os operadores costumam perguntar ao chefe, referindo-se ao tíquete, se já veio “o vale-coxinha”. Uma de suas colegas, grávida, chegou a receber orientação especial do ginecologista, cansado de lidar com as negativas da empresa e com as más condições de trabalho: “Amanhã você vai levar uma muda de roupa e vai fazer xixi na p.a.”. A moça fez exatamente o que o médico mandou. Só assim conseguiu mais pausas para ir ao banheiro.

O médico Airton Marinho da Silva, mestre em saúde pública pela Universidade Federal de Minas Gerais e ex-auditor fiscal do Trabalho, identificou vários tipos de problemas de saúde entre os que trabalham em teleatendimento. Eles estão ligados a patologias osteomusculares, a distúrbios mentais e a alterações do aparelho de fonação. “As empresas se apresentam como benfeitoras e formadoras de jovens, dizem que são uma solução contra o desemprego e que mantêm ambientes de trabalho saudáveis, mas o fato é que os trabalhadores manifestam uma série de queixas”, diz o médico. “O que ocorre é o adoecimento dessa mão-de-obra jovem, num trabalho sem características de formação e sem chance de crescimento profissional. As reclamações constantes de estresse, o alto absenteísmo, a alta rotatividade de funcionários e as dificuldades de gerenciamento são evidências do desgaste físico e psíquico dos operadores de telemarketing.”

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Em sua tese, intitulada A regulamentação das condições de trabalho no setor de teleatendimento no Brasil, Marinho sustenta que a pressão temporal exercida sobre os operadores é o principal fator de sobrecargas emocionais e físicas. A insuficiência de pausas no trabalho e de intervalos entre as ligações vem agravar o quadro, ao qual se soma a imposição de scripts que restringem o diálogo do operador com os clientes. O monitoramento ostensivo, os baixos salários e as duras exigências de produtividade tornam a atividade potencialmente lesiva. Em São Paulo, o piso determinado pelo sindicato da categoria é de R$510. Diversas organizações sindicais do exterior denominam os centros de atendimento telefônico de “senzalas da era eletrônica”.

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Faz meio século que cinco pesquisadores, liderados pelo psiquiatra francês Louis Le Guillant, identificaram a chamada “neurose das telefonistas”, uma sensação de lassidão profunda, de verdadeiro aniquilamento ao final da jornada de trabalho. Segundo Le Guillant, o problema afetaria pelo menos um terço das profissionais da área. Encerrado o dia, muitas delas se dizem com a “cabeça vazia”, não conseguem estabelecer conversações, não suportam que ninguém fale com elas. Queixam-se de uma queda significativa das faculdades intelectuais, têm alterações de memória e de atenção, dificuldade em conversar e não encontram argumentos nas discussões. À semelhança dos operadores de telemarketing, cerca de 20% das telefonistas estudadas por Le Guillant admitiram empregar, por engano, expressões profissionais no dia-a-dia. A mais comum é “Alô, aguarde um instante”, que escapa em diversas ocasiões-por exemplo, quando alguém lhe dirige a palavra repentinamente. Irritação, agressividade e nervosismo também são comuns a mais da metade das telefonistas pesquisadas. Para Le Guillant, o controle da produtividade, do comportamento e das pausas cria uma atmosfera que, se não chega a ser de medo, é de apreensão contínua. “Você nunca pode nada, não tem autonomia para resolver o problema”, concorda a operadora de telemarketing Estefânia de Andrade, cinqüenta anos depois.

Estefânia perdeu a voz em 27 de dezembro de 2003, às 10h45, quando falava no telefone com o Sr. Lauro. “Eu estava com o cliente na linha e a minha voz começou a sumir. Tossi um pouco e disse: ‘Acho que estou ficando rouca, seu Lauro, é resfriado, ou então estou muito nervosa com o senhor’.” Ela encerrou a conversa, indicou no computador que faria uma pausa e procurou o médico da empresa, que a encaminhou a um otorrino. Naquela mesma tarde, Estefânia descobriu que estava com laringite e obteve uma licença de duas semanas. “No dia seguinte, quando acordei, minha mãe perguntou as horas e eu não consegui dizer. Passei trinta dias sem poder falar nada. Eu andava com um bloquinho e uma caneta e escrevia, por exemplo, ‘5 pãezinhos’, e mostrava para o moço da padaria.” Desde então, Estefânia enfrenta uma disfonia funcional-provocada por uso excessivo da fala-que lhe tirou 75% do timbre vocal. “As pessoas não reconhecem a minha voz no telefone”, diz. “Quando alguém perde o timbre da voz, perde a identidade. Foi o meu caso.”

Estefânia ficou quatro meses afastada, até maio de 2004, recebendo auxílio-doença do Instituto Nacional do Seguro Social, o inss. Quatro dias depois de retornar ao serviço, foi despedida. No “exame demissional” o médico contestou a dispensa, com o argumento de que, se ela começara a trabalhar com boa saúde, falando e ouvindo perfeitamente, deveria sair do emprego nas mesmas condições. Encaminhou Estefânia para o sindicato, que a orientou na abertura de uma ação trabalhista contra a empresa. Ela foi reincorporada ao quadro de funcionários. O processo continua na Justiça.

Se Estefânia de Andrade tivesse passado pelo curso de telemarketing, teria aprendido que, para evitar problemas com a voz, basta comer muitas fibras e mastigar maçã, fruta com “poder impermeabilizante na garganta”. Se tivesse lido o livro da fonoaudióloga Eudosia Quinteiro, teria ficado alerta contra a ingestão de chocolate, inimigo poderoso da mucosa orofaríngea. O vilão, segundo a autora, é o excesso de parafina usado na confecção da guloseima, que derrete e gruda na mucosa, comprometendo a ressonância natural da fala. Outros grandes inimigos da voz são as balas à base de menta: “Seus vapores gelados conseguem anestesiar as cordas vocais”, explica Eudosia. Nos últimos dois anos e meio, Estefânia se submeteu a videolaringoestroboscopias e gastou R$4 mil num tratamento fonoaudiológico que não surtiu efeito. “Eu pagava R$120 por sessão pra ficar na frente do espelho falando ‘aaaaa, eeee, iiiii, o rato roeu a roupa do rei de Roma’, mas a fonoaudióloga já tinha me dito que não ia adiantar.”

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O professor Isaac Martins prefere recorrer a um método que batizou de “baleês” (a língua das baleias), em homenagem à personagem Dory, do desenho animado Procurando Nemo. Noseu curso da Rua Sete de Abril os alunos repetem os principais exercícios para articulação em baleês, ou seja, bem devagar “Deeebaixxooo deee uuumaaa maaataaa seeecaaa haviiiaaa uuumaaa caaataaatreeepa com seeeete caaataaatreeepitoooos…”. A seleção de frases para treinamento é singular: “O prato de prata premiado é precioso e sem preço. Foi presente da princesa primogênita,irmã do procurador da Prússia”. Ou: “Sou um original que não se desoriginalizará senão quando os originais estiverem desoriginalizados”. Ou ainda: “Sófocles soluçante ciciou no Senado suaves censuras sobre a insensatez de seus filhos insensíveis”.

Quem repete as frases mais alto, naturalmente, é sempre Fagner. No último dia de curso, ele tinha feito amizade com todos os colegas. Também aprendera os fundamentos e macetes da profissão, como trocar o headset de hora em hora. “Desse jeito, em vez de ficar surdo de um ouvido só, você fica dos dois”, explica. Assim como Estefânia, Fagner está pronto para ser insultado pelas pessoas para as quais telefona. Pronto para perder parte da personalidade, ou da voz, ou da sanidade, em troca de um salário anual médio de R$10 mil e de um vale coxinha de R$3.