A São Silvestre do ziriguidum

Postado em: 1st janeiro 2007 por Vanessa Barbara em Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 4
Janeiro de 2007

Em São Paulo, dez horas seguidas de samba e pisões no pé para ganhar mil reais

por Vanessa Barbara

Não se sabe se, lá fora, chovia ou ventava, se era dia ou noite, Páscoa ou Carnaval, se os Quatro Cavaleiros tinham descido à Terra para trazer a peste ou a fome. Lá dentro, no salão de dança, a única certeza compartilhada por treze casais era a de que quando acabasse a 30ª música – e, com fé, isso iria acontecer – viria outra, e depois do pé esquerdo o direito, e depois do direito mais um rodopio e um passo para trás. Os giros já são automáticos, os casais se olham pensando em sofás, os pares parecem robôs.

A 1ª Maratona de Samba da Cidade de São Paulo teve início num domingo abafado de dezembro, às duas da tarde. Estava prevista para terminar dez horas depois, com o recolhimento dos corpos e o anúncio dos vencedores. Era pouco mais de meio-dia quando os primeiros concorrentes chegaram ao local – o Consulado Music, casa de shows na Zona Norte – para fazer exames de pressão arterial e assinar termos de compromisso. Dois bombeiros, William e Ricardo, foram chamados para medir os batimentos cardíacos e a respiração dos casais antes da largada. Eles também ficariam de plantão para agir em caso de síncope: “Há dez anos, as maratonas de lambada derrubavam bastante gente”, relembra Ricardo. “Quando você ia ver, o pessoal estava caindo no salão.”

Na concentração, os participantes não parecem nervosos. Discutem o que fazer com as camisetas oficiais, que deveriam ser usadas durante a maratona. Eram muito vermelhas e excessivamente quentes. Um dos dançarinos decide rasgar as mangas com uma faca, e o organizador anuncia: “Está chegando a tesoura!”. Prontamente, as meninas confeccionam miniblusas e inventam nós para amarrar a camiseta acima do umbigo.

Enquanto recorta a roupa, Juliana Marques, de 22 anos, confessa que havia almoçado dois pratos grandes de macarrão e um pão com bife, notícia que abala o moral de seu parceiro, Osíris da Silva, 19 anos. Alguém afirma que comeu um pastel e recebe olhares de reprovação. A mais empolgada das dançarinas, Claudia Chaves, 24 anos, professora da escola Algazarra’s, aparece para dizer que “bombou” no teste da pressão arterial. “Estão tentando me derrubar”, desconfia. Depois de um lanche leve e uns passinhos de samba, a pressão de Claudia voltaria ao normal. Às 13h30 chega o capitão da PM Silvio Sciacca, dançarino de fôlego e de longas distâncias, e faz uma aposta: se a sua pressão não der 11 por 7 ou 12 por 8 irá trocar de nome. O resultado é 12 por 7. Ele protesta. Diz que não é reprovado “nem em exame de fezes”.

Dos concorrentes, muitos são professores de dança, como Claudia Chaves, e alguns já participaram de maratonas de salsa e samba-rock. Sciacca, o capitão da PM, com seus 40 anos e 1,95m de altura, foi um dos finalistas da histórica competição de tango de 2003 no Avenida Club. A maratona durou 24 horas e apenas dois casais chegaram ao fim. “Nunca mais”, garante o capitão. “As duas últimas horas foram as mais difíceis, só continuei por questão de foro íntimo.” Ele chegou disposto a enfrentar o desafio de samba, embora preferisse ritmos mais condizentes com as tradições da dança de salão, como a valsa inglesa, a valsa vienense, o slow fox e o quick step, além do tango. Há três anos, ele fez par com a própria professora. “Tive a aula particular mais extensa do mundo”, diz.

Os casais são mandados ao vestiário. As mulheres vestem calças confortáveis e tênis de dança. Os homens escolhem sapatos com bico de camurça e solado de borracha. Pheliphe Britto, de 22 anos, entra no quartinho cheio e pergunta o que houve com o camarim particular que prometeram para ele: “Com licença, onde fica o camarim do Netinho?”. Ele é professor de dança na Algazarra’s e seu par é uma aluna, a jornalista Danielle Marques, de 27 anos.

Às 14h05, os treze casais são reunidos pelo organizador do concurso, Clovis Pereira Jurado, que (até pelo sobrenome) fará parte do júri. Jurado é diretor da Cia. La Luna, uma das escolas responsáveis pela maratona, em parceria com a rival Algazarra’s e com a Consulado Music. A despeito de ser organizada por academias locais, a prova consta no calendário oficial de eventos da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação. Clovis anuncia as regras: os casais devem dançar, ininterruptamente, até a meia-noite, com pausas de cinco minutos a cada duas horas para ir ao banheiro, e uma parada de quinze minutos na quinta hora para uma refeição. Não serão permitidas trocas de roupas ou de calçados. As duplas podem se servir à vontade das frutas e biscoitos dispostos nas mesas, contanto que não parem de dançar. A partir das 23h, a equipe de jurados avaliará a técnica, a simpatia e a harmonia dos sobreviventes, a fim de eleger um vencedor. Na última hora, houve competidor que reclamou: “Ih, só agora eu lembrei que precisava ir ao banheiro”.

Ainda antes da primeira música, durante o alongamento, o capitão Sciacca conta que não dançará até o fim porque terá de trabalhar. Mesmo assim, ele espera que as primeiras duas horas sejam bem pesadas, para eliminar metade dos concorrentes: “Toca só Paulo Moura”, ele pede, olhando para a cabine da DJ Drica. Ao seu lado, com o número 12 colado nas costas, Pheliphe Britto diz que não se importa, pois já começou na pegada: dançou com Danielle Marques até as 3h30 do dia anterior, deu aula das 9h ao meio-dia e foi direto para a competição. “E amanhã eu volto para a Segunda Absoluta do Netinho!”, completa. O cantor é sócio do Consulado Music, e bate ponto na casa às segundas.

***

Às 14h13 tem início a maratona, com “Meu samba pede passagem”, da música de Claudio Jorge “O Samba Melhor do Brasil”. Os casais começam com os passos básicos: um pra frente, um pra trás, um pra frente, um pra trás – bem juntinhos, porque ninguém é pingüim, ensina Rafael Martins, 21 anos, parceiro de Claudia. Pheliphe está mascando chicletes e Lacyle Emerson Terezinha, 29 anos, traz uma toalhinha no bolso de trás, que se mostraria muito útil no decorrer da maratona. Sua parceira, Elis, usa uma sandália de salto alto, assim como Elizangela Alves Gomes, 20 anos, e Aline Batista Cleto, 18. Das mulheres, apenas elas usam salto, e só Aline dança de saia. Três dos homens vestem calças brancas. Um dos organizadores aponta para Lacyle e para Claudinho Ferreira, 29 anos, e observa: “Aqueles dois são nêgo véio, é tudo malandro”.

14h19 – Pheliphe anuncia: “Troca de damas!”, mas ninguém dá bola.

14h26 – Claudia e Rafael, o casal no 1, não poupa energias. “Ela é assim: sai na escola de samba e dança a avenida inteira, depois ainda vai para a bagunça”, informa o bombeiro Ricardo, que também é dançarino.

14h32 – Sem parar de sambar, Pheliphe diz para uma garçonete: “Me vê uma Brahma!”.

14h44 – Elizangela diz que dança é diversão e Claudinho, seu parceiro, completa: “Estamos só aquecendo”.

14h52 – Rafael amarra na cabeça o que sobrou da manga da camisa.

15h10 – O capitão Silvio Sciacca abandona a prova para ir trabalhar. Agora são doze casais na pista.

15h25 – Chega um repórter de TV e um cinegrafista, que se põem a filmar os pés das pessoas.

15h38 – Pheliphe, com a voz séria: “Bem, amigos da Rede Globo, estamos aqui em mais uma maratona…”.

15h57 – O repórter de TV se mata de comer bananas.

16h10 – Pausa para ir ao banheiro. As mulheres saem correndo e uma funcionária é enviada para controlar o tempo. “E se o xixi for comprido?”, pergunta uma das concorrentes. “Três minutos!”, responde a moça do cronômetro. De dentro da cabine, alguém protesta: “Mas número dois é cinco minutos! Número dois é cinco!”. A dançarina Elis Cristina de Souza, 22 anos, reclama que levou um pisão no pé que quase arrancou a sua unha fora. “O esmalte já foi”, ela mostra. O tempo se esgota e as dançarinas lamentam: “Aqui os minutos passam tão rápido”.

16h15 – “Te segura/ que a vida está dura”, diz a letra do samba.

16h17 – Danielle dança com um pedaço de melancia na mão. Pheliphe continua a mascar chicletes.

16h21 – “Crioula/ eu quero é mocotó”.

16h26 – Um dos organizadores grampeia de volta o número 20 nas costas de Hércules Silva.

16h37 – Osíris faz uma pausa para amarrar o cadarço, sob supervisão.

16h52 – O casal no 2 pergunta as horas.

17h14 – Clovis Jurado avisa que alguns participantes estão dançando fora do ritmo.

17h32 – “Deixa o meu cabelo em paz/ Deixa o meu cabelo em paz”.

17h42 – Os dançarinos estão dispersos, sambando de qualquer jeito e conversando entre si.

17h48 – O no 4 arruma as calças.

17h58 – “É um lugar especial/ Para quem é sentimental/ E aprecia um gostoso bacalhau”.

18h10 – Outra pausa para o banheiro. A organizadora avisa: “Nada de número dois, hein?”. Uma das participantes se desespera: “Gente, a calça não sobe”. Elis continua a reclamar: “Nada-nada, já levei cinco pisões”. Alguém diz que ela devia conversar com o parceiro, porque assim não vai dar. “Não foi o meu parceiro, não, eu levo pisão dos outros!”.

18h21 – Pheliphe dedura um casal que estava quase parado.

18h26 – Mariana Anduta, 16 anos, dança segurando o rabo-de-cavalo para o alto, incomodada com o calor.

18h32 – Fora da pista, bombeiro tira uma moça para dançar.

18h36 – Os jurados se reúnem para deliberar sobre os números que se esfarelam nas costas, principalmente das mulheres, já que os homens dançam com as mãos nas costas de suas parceiras.

18h38 – Elizangela e Claudinho, casal no 14, dão uma demonstração de extrema habilidade no samba-rock, que envolve giros consecutivos.

18h42 – “Provei do famoso feijão da Vicentina/ Só quem é da Portela sabe que a coisa é divina”.

19h02 – Alguns casais dançam coladinho.

19h04 – Substituição dos sucos de laranja.

19h12 – Osíris grita: “Vamos lá! Faltam só cinco!”.

19h15 – Brito comanda alguns casais na dança: “Cinco, seis, sete, oito, gira”.

19h20 – Pausa de quinze minutos para comer macarrão ao alho e óleo. Sentados, Pheliphe e Danielle continuam dançando. A maioria tirou os sapatos e reclama dos calos. Brito declara: “Nunca quinze minutos foram tão importantes na minha vida”. Danielle estima que aproximadamente três casais estão “só a alma”. Alguns fazem alongamento, e antes de retornar ela se levanta e diz: “Agora é só o espírito!”.

19h35 – “Olha nós outra vez no ar/ O show tem que continuar”.

19h43 – Casal no 5 quase colide com a mesa de frutas.

19h47 – Pheliphe faz esforço para abrir mais um chiclete enquanto dança. Com a mão esquerda, Danielle tenta ajudar.

20h32 – Casal no 11 desiste. “Sei que estou quase morrendo”, afirma Vitor Albani, de 15 anos.

20h35 – Casal no 13 é tirado da pista por estar fora do ritmo. Marinês Capanema, de 46 anos, reclama e diz que não está cansada: “Eu me canso de lavar roupa, de limpar a casa. De dançar eu não canso”.

20h42 – Claudinho esnoba os outros competidores: “Mais dez horinhas? Tranqüilo, tranqüilo”.

20h55 – Mariana olha feio para a música animada que a DJ colocou.

21h02 – Casal no 8 desiste.

21h04 – Começa o show de uma banda de pagode, ao vivo. A casa enche.

21h15 – “Estrela, ilumina meu céu/ Me tira desse fel/ Adoça o meu vi-veer”.

21h22 – O vocalista articula as palavras felicidade, liberdade e sofrer na mesma estrofe.

21h32 – Adolescentes se enfileiram em frente à pista e gritam os refrões das músicas, sobretudo os finais: a-mô-or, fe-e-li-i-z.

21h37 – O mau humor atinge índices jamais auferidos.

21h42 – Avós, tios e primos acenam para o casal no 1.

21h47 – Começa a carnificina: casais no 4 (Mariana e Gerson) e no 1 (Claudia e Rafael) são tirados da pista. Na seqüência, no 2 (Osíris e Juliana) e no 12 (Pheliphe Britto e Danielle) também recebem o bilhete-azul dos jurados: “Você está muito cansado, sai daí”. A revolta é geral. Danielle afirma que o organizador encostou em seu ombro e disse apenas: “Tocou o seu celular”.

21h52 – Justificativa de Clovis Jurado: “Eles não estavam na pegada, estavam só enrolando”.

22h01 – Pheliphe Britto, já fora da pista, continua a dançar. Uma das eliminadas chora.

22h10 – Casal no 5 recebe o aviso: “Chegou a hora de vocês”, e entende que era hora de ir ao banheiro. Eles fazem uma pausa e ficam esperando o momento de retornar, mas descobrem que haviam sido eliminados.

22h36 – Um dos organizadores confessa: “O pessoal ainda está bravo comigo”.

22h56 – “Blablablablá/ Eu nasci pra te amar”.

23h05 – Uma repórter é convidada para ser jurada da competição. Ela argumenta que entende tanto de dança quanto de jardinagem.

23h12 – Jurados saem com as fichas de avaliação.

23h18 – O vocalista da banda faz uma piada e ninguém dá bola.

23h20 – A maioria dos eliminados vai embora, bem como parte do público. A casa está quase vazia.

23h26 – A música pára por alguns segundos e os quatro casais finalistas continuam dançando, sem perceber.

23h27 – “Vamos continuar com o pagode!”, diz o vocalista. Silêncio na platéia.

23h38 – Comentário de um espectador: “Está todo mundo triste”.

23h42 – Claudinho corta o pé e continua dançando.

23h46 – “Eu quero voar bem mais alto que o condor/ Lê leleô/ Chega de tanto sofrer e de tanta dor”.

23h54 – Ivan Carlos Gonçalves, no 6 nas costas, começa a bater na perna direita. Diz que está com cãibra há horas, mas continua a dançar.

0h08 – A maratona termina com “Brasileirinho” e “Tá a Fim de Sambar”, do grupo Os Morenos. Os participantes se jogam no chão e ficam por lá, paralisados. Alguns colocam gelo nos pés e pedem água.

***

Depois de dez horas ininterruptas de samba, os jurados chegaram ao veredicto: em terceiro lugar, o casal Hércules e Andréia Silva, professores da Algazarra’s, que levaram como prêmio uma coletânea de CDs para dança de salão. Em segundo lugar, com apenas dois pontos de diferença, Elizangela Gomes, 20, e Luiz Cláudio Ferreira Silva, 29, o Claudinho, também da Algazarra’s. Eles ganharam um kit de roupas e sapatos, além da coletânea de CDs. Ao casal número 7, Elis Cristina de Souza e Lacyle Emerson Terezinha, coube a glória do primeiro lugar, e um prêmio de mil reais. “É, mas eu vou aparecer na TV e eles, não”, pondera Pheliphe Britto, eliminado após sete horas de maratona.

***

Elis tem 22 anos de idade, 1,68m de altura e é babá. Ela joga a cabeça pra trás e dá uma risada gostosa quando lhe perguntam se é dançarina profissional. “Não sou, não! Eu danço por esporte”, responde. Mas acrescenta que está se profissionalizando, e para isso freqüenta as aulas do CPD, o Centro Profissional de Dança, ao lado da estação Carandiru do Metrô, também na Zona Norte. Seus ritmos preferidos são o black e o samba-rock. Foi ela quem insistiu junto ao professor, Lacyle, para se inscreverem na competição.

Lacyle tem 29 anos e é professor de dança de salão e técnicas de samba-rock. Começou a dançar aos 16 anos com “um ritmo que ninguém acredita: o hip-hop”. Da dança de rua passou para o samba, e hoje dá aulas em escolas de Santana, Guarulhos, ABC paulista e Alto da Lapa. Seu sonho é abrir uma academia só de samba, para valorizar os ritmos locais, divulgar a cultura negra e dar ao samba o mesmo valor das danças consideradas, como diz, “mais clássicas”, caso do balé.

Lacyle confessa que passou mal de ansiedade na noite de sábado, e no domingo de manhã tomou apenas “sucos e sucos”. Só foi comer na hora do macarrão ao alho e óleo, quando ganhou novo ânimo. Após dez horas de samba, com o fim da maratona, foi para casa tomar um banho e comer. Logo seu corpo começou a apresentar cãibras sucessivas: nas pernas, nos braços, no abdômen. Sua irmã virou a noite cuidando das dores de Lacyle e fazendo curativos, até que o pacote de Salonpas acabou e tiveram que sair para comprar mais. Como foi a segunda-feira? “Passei o dia todo com Salonpas, e dei aulas de dança à noite.”

Quando lhe perguntam o que mais ele gosta de fazer, além de sambar, Lacyle faz uma pausa, dá risada e responde: “Olha… eu não consigo ver outra atividade que me agrada: se vou assistir alguma coisa, é sobre dança, se vou ler uma coisa, é sobre dança. Eu gosto de conversar sobre dança, discutir sobre dança… na verdade, para mim tudo é dança”.