Fachada da Loja para Monstros idealizada pelo escritor Nick Hornby, de “Alta Fidelidade”

Loja literária de artigos para monstros dita as últimas tendências em geração de pavor e alarmismo

Revista Serafina
Novembro de 2012

Vanessa Barbara, de Londres

A rua Hoxton fica no subúrbio de Londres, na zona norte da cidade, onde antes se encontravam hospícios, cortiços e moradias de operários. Hoje vivem ali zumbis de esgoto, um mutante na biblioteca e um monstro de cabelo felpudo chamado Eidan, que se esconde atrás do banco do parque. Ele tem garras afiadas e, quando encosta as mãos numa bela mulher, se transforma num edifício de dez andares.

Com vistas a atender essa horripilante demanda, funciona há dois anos no número 159 a Hoxton Street Monster Supplies (Loja de Monstros da Rua Hoxton), que fornece mercadorias de qualidade para monstros de todos os tipos e formatos. “Muitos dos nossos clientes estão conosco há séculos. Outros são mais antigos ainda. Seja você vampiro, lobisomem, pé grande ou qualquer outra coisa diversa, nós temos o que você precisa”, diz o folheto.

Na Loja de Monstros da Rua Hoxton, o monstro contemporâneo pode adquirir vidros de bile, pele esfolada, sangue AB negativo extrapuro, sangue O positivo para uso geral, pastilhas mentoladas (para o hálito dos zumbis), chutney de entranhas, marmelada de órgãos, catota humana compacta e “uma vaga sensação de mal-estar”. Os produtos são enfileirados e metodicamente expostos em sólidas prateleiras de madeira, como numa loja de boticário.

Os não monstros podem argumentar que a compota de cérebro à moda antiga é apenas geleia de framboesa, enquanto a cera de ouvido em cubos é composta de prosaicos tabletes de caramelo. Aparentemente não há nada dentro do vidro de peidos frescos – cuja descrição é “o fedor do medo: a mais fina iguaria para o monstro exigente” – e há singelas balas de goma dentro das latas de “terror noturno”, “medo paralisante”, “frio na barriga” e “alarmismo”.

No valor de 8 libras cada (26 reais), tais latas são o que há de mais moderno em matéria de sensações desagradáveis. Como verdadeiros antidepressivos, só que ao contrário, prometem induzir visões de demônios, bichos-papões, dentistas e “coisas que fazem BUMP! no meio da noite”, afastando qualquer sentimento de conforto, segurança e contentamento. A posologia de “frio na barriga” para crianças é de um ou oito comprimidos ao dia, postos debaixo do travesseiro.

Já as cápsulas de “terror mortal” inspiram um medo imediato e palpável da morte. Efeitos colaterais: grotesco inchaço dos membros e do rosto, incompetência geral e morte. “Em caso de overdose, entre em contato com um padre e mostre este rótulo”.

São produtos indicados para monstros inseguros, com baixa autoestima, que não conseguem mais instilar o pavor não farmacológico nas vítimas. No interior de todas as latas, contos escritos por autores ingleses fazem as vezes de bulas. 

ESCRITA CRIATIVA

A Loja de Monstros da Rua Hoxton é uma iniciativa do Ministry of Stories (Ministério das Histórias), organização sem fins lucrativos que fornece cursos particulares e workshops de escrita criativa para crianças e jovens da periferia de Londres. Idealizado pelo escritor Nick Hornby (de Alta Fidelidade e Um Grande Garoto), o Ministério visa a instigar a imaginação das novas gerações, promovendo uma melhora geral na confiança e autoestima – não há nenhum paralelo com os anabolizantes para monstros.

A inspiração veio da 826 Valencia, loja de produtos para piratas e centro de escrita criativa fundada em 2002 pelo americano Dave Eggers em San Francisco, Califórnia. Além de comercializar ganchos, tapa-olhos, extensões para barbas, pernas de pau, tampões antissereia e olhos de vidro, o estabelecimento incitou a criação de outros similares pelo país: a primeira foi uma filial para super-heróis aberta em 2004 em Nova York. No ano seguinte surgiram outras quatro: uma loja para robôs em Michigan, uma para viajantes do tempo em Los Angeles, outra voltada para viajantes espaciais em Seattle e outra para espiões em Chicago (disfarçada de Loja Entediante).

Há também um Instituto de Pesquisa do Pé Grande em Boston (fundado em 2007) e um Museu de História Antinatural em Washington (o caçula da turma, de 2010), todos operando como fachadas para o referido programa educativo de Eggers, apelidado de 826 National.

Firmemente enraizado no subúrbio de Londres, o quartel-general do Ministério das Histórias de Hornby pode ser acessado por uma porta secreta nos fundos da loja de monstros. Lá se promovem cursos gratuitos e atividades lúdicas para jovens de 6 a 18 anos.

A última ação do Ministério terminou em agosto e consistiu na fundação de um país independente, a República das Crianças de Shoreditch, dotada de Constituição própria, serviço postal, rede de espionagem e uma embaixada – sita ao lado da Loja de Monstros da Rua Hoxton. Na carta de intenções da nova nação, redigida pelas crianças, firmou-se uma cláusula em favor das nuvens.

UM GIGANTE POR VEZ

A história da criatura Eidan foi escrita por uma menina de Hoxton e consta do “Misterioso e Monstruoso Mapa de Hoxton”, à venda na loja por 2 libras. Redigido e ilustrado com rigor científico, o mapa traz a localização dos principais monstrengos residentes e avisos gerais, tais como: “Atenção! Monstros felpudos também têm sentimentos. Favor não usá-los como travesseiros”.

Naturalmente, os rótulos das mercadorias da Loja de Monstros são redigidos com esmero por escritores como Hornby, David Nicholls e Zadie Smith. No letreiro de um rolo de barbante, lê-se que “o fio dental para vampiros é imbatível em acessar recônditos que nenhuma farpa de madeira ou escova comum consegue alcançar, removendo todo tipo de matéria depositada entre os dentes caninos: miolos, coágulos, ossos, vísceras, entranhas, couve, balas toffee e outros. Ideal para o monstro do século 21 que acredita que a dilaceração cotidiana de carne e ossos não deve necessariamente inviabilizar a socialização pós-ataque”.

Embora a loja funcione em horário comercial, há uma possibilidade de agendamento noturno (mediante reserva) oferecida para vampiros. Feijões mágicos não são aceitos como pagamento.

“Apenas um gigante por vez”, recomenda um letreiro na fachada, insinuando desagradáveis precedentes. Em meio a inúmeros outros avisos, um deles parece prevalecer, por sua natureza alarmista: “Pede-se polidamente que os clientes se abstenham de comer os funcionários. Obrigado”.

Folha de S.Paulo – Ilustrada
1 de novembro de 2012

por Vanessa Barbara

Todo filme curdo tem que ter um bardo

O filme (que eu inventei) para humilhar todos os outros filmes da Mostra é uma coprodução Rússia/Irã/Armênia/Afeganistão/Alemanha de 194 minutos. 

Baseada em uma história real, fala sobre um carpinteiro curdo de meia-idade que perde a mãe num brutal acidente de carro, no qual também perece o cachorro da família e uma coleção de selos que não terá maior importância na história. 

A despeito de seus problemas urinários, Amanj decide sair numa viagem de moto pelo interior do Curdistão, onde entra em contato com os horrores da guerra e se afeiçoa ao pequeno Mako, um garoto de 11 anos com um lábio leporino que pouco a pouco lhe ensina as coisas simples da vida.

Lá pelo meio do filme, Amanj tem alucinações existenciais lindamente filmadas pelo diretor de fotografia, concunhado de Andrei Tarkovski. Febril, o carpinteiro vê imagens de cavalos, leite derramado, espelhos, gente flutuando e chuva dentro de casa.

Quando se recupera do surto, pode ou não estar sem os rins – isso nunca fica claro, nem para a roteirista do filme e nem para o pobre Amanj, que passa o resto do tempo tateando o chão em busca de suas lentes de contato.

“Rapsódia Curda”, de L. Barzani, seria premiado no Festival de Juarez e na Mostra Internacional de Cinema de Paris (Texas). Aplaudido de pé na cabine de imprensa, em São Paulo, teria todos os ingressos esgotados em suas exibições ao público, inclusive na de terça às 13h no Cinespaço Granja Vianna, com legendas em inglês e italiano.

Na saída, cinéfilos aproveitariam para fazer uma apreciação crítica dos filmes anteriores do diretor, “Elegia de Outono: A Sombra” e o polêmico “Uma Alface Para o Tio do Meu Carteiro”, em que o cineasta revisita sua dura infância nas estepes.

“Gostei de ‘Rapsódia’, mas é um Barzani menor”, afirmaria um entendido. “Não tem a plasticidade de um ‘Elegia’ e nem a transcendência do ‘Alface’, mas é natural se formos pensar na trajetória do diretor, que recentemente teve problemas com a questão da nacionalidade.”

Mastigando balas de goma cítricas em forma de minhoca, Barzani responderia a todos os questionamentos do público com a mesma frase: “Eu gosto de cavalos”. 

Rachel Seiffert on Vanessa Barbara

Posted: 30th outubro 2012 by Vanessa Barbara in Clipping

 

Blog Granta.com
30 de outubro de 2012
Link para o original: http://www.granta.com/New-Writing/Rachel-Seiffert-on-Vanessa-Barbara

por Rachel Seiffert

Vanessa Barbara is a journalist, translator and writer. Her publications include O livro amarelo do terminal (2008), winner of the Jabuti Award, the novel O verão do Chibo(2008), co-written with Emilio Fraia, and the children’s book Endrigo, o escavador de umbigo (2011), illustrated by Andrés Sandoval. She recently published a translation of The Great Gatsby. Barbara also edits the literary website A Hortaliça and is a columnist for the newspaper Folha de S. Paulo. ‘Lettuce Nights’ (‘Noites de alface’) is an extract from her forthcoming novel. Here, as part of an ongoing series on the twenty authors from The Best of Young Brazilian Novelists issue – which was first published in Portuguese by Objetiva – Vanessa Barbara is introduced by previous Best of Young British Novelist, Rachel Seiffert.

A story that starts with a bereavement: already I’m drawn in. The real story is always in the aftermath, and here’s a young writer who not only understands that, but expresses it with tender humour too. So it’s the socks that miss Ada first; Otto notices them swollen in mourning, untended in the wash. The tone has been set, wry and gentle, even in the first paragraph, and we’ve been taken straight into that intimate, domestic space expressive of a long and contented marriage.

It’s a sad start, but there’s contentment for the reader here too: the particular satisfaction offered by a well-turned first chapter. Unhappily for Otto, his wife is now gone; happily for us, these are but the opening pages of a novel-in-progress, full of the promise of more to come, in good time, beyond this issue of Granta.

Otto and Ada, we are told, decided early on not to have children. Their life had to do with each other, and with those who lived around them. Inward-looking Otto took shelter behind his garrulous Ada; the kind of woman who would welcome a delivery boy into the living room and draw out his life story over coffee. Otto has his neighbours now, but he has his memories too – which should he choose? In this widower’s dilemma lies all the potential energy of a narrative ready to unfold.

Oh, and it has to do with cauliflowers too . . . – Rachel Seiffert, Best of Young British Novelist in 2003

Lettuce Nights

When Ada died, the wash hadn’t dried yet. The trousers’ elastic waistbands were still damp, socks swollen, T-shirts hanging the wrong way out. A rag was left soaking in the bucket. Rinsed recycling bins in the sink, the bed unmade, open biscuit packets lying on the couch. Ada had gone away without watering the plants. The household things were holding their breath and waiting. Since then, the house without Ada has been nothing but empty drawers.

Otto and Ada were married in 1958, just as the town was transitioning between mayors. They bought a yellow house and decided not to have children, no dogs or cats, not even a pet turtle. They spent almost fifty years together: cooking, assembling massive puzzles of European castles and playing ping-pong on the weekends, until arthritis set in and made the game impossible. In the end it was nearly impossible to tell the difference between their tone of voice, their laugh, their way of walking. Ada was thin with short hair and liked cauliflower. Otto was thin with short hair and liked cauliflower. They wandered up and down the hallways and took out the rubbish together. Ada dealt with the various household details and did most of the chores while Otto followed her around telling anticlimactic stories. They were such good friends that Ada’s death left a silence in the hallways of the yellow house.

Das coisas encontradas dentro de livros

Posted: 30th outubro 2012 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
30 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara 

Numa sombria tarde de verão, perdi meu Bilhete Único — esse mítico cartão magnético que nos permite girar catracas de metrô sem dificuldade e tomar quantos ônibus nos parecerem adequados, no máximo de quatro, num período de até três horas. Procurei vagamente entre bolsas, mochilas e pertences de mesa, mas o vazio existencial que me surpreendeu naquela tarde não deixava dúvidas: meu Bilhete Único havia partido. Assim como Graham Chapman e o papagaio do Monty Python, era um ex-bilhete. Cessara de existir. Bateu as botas. Foi puxar margaridas pela raiz.

Tenho um modesto, porém representativo, histórico de objetos perdidos, cuja mais recente listagem vai a seguir:

– uma toalhinha azul de rosto, num acampamento em 1993;
– uma minipasta de dente sabor hortelã, durante uma viagem rodoviária em 2001;
– uma lente de contato do olho esquerdo, na pia do banheiro, em 2009;
– um par de óculos escuros na Praia do Forte, em 2010;
– a chave de casa, que encontrei semanas depois dentro da cestinha da bicicleta.

(Como se pode ver, nada tão significativo quanto um Bilhete Único.)

Pois bem: confusa e de coração partido, dirigi-me a um posto da SPTrans, onde fui consolada por estranhos que me orientaram a pagar uma taxa de 20 reais para reaver os créditos contidos no meu antigo amigo de plástico. Assim o fiz, e dentro de uma semana ganhei novo bilhete. Dois meses depois, encontrei o fatídico cartão enfiado dentro deFreud, a biografia de Peter Gay publicada pela Companhia das Letras.

Não discutirei aqui as interpretações subconscientes da minha perda. Basta supor que o referido livro se encontrava em minha mochila quando o cartão deslizou por entre as páginas. Devolvido à estante, o volume passou dois meses ocultando semelhante tesouro, e ficaria mais tempo se não fosse casualmente consultado a respeito de qualquer assunto. Ou desempoeirado.

* * * *

Dias atrás, o leitor Roberto Bencz Jr. escreveu para informar que encontrou seu crachá da empresa perdido há semanas dentro de O albatroz azul, do João Ubaldo Ribeiro. “Livros são predadores de cartões, crachás etc. Não dá para deixar os dois no mesmo compartimento. Outro dia foi um ímã de geladeira do disk-água alemão cinco estrelas.”

No interior das minhas enciclopédias, descubro folhas secas que alguém guardou na década de 80. Dentro do Dicionário ilustrado da Língua Portuguesa, da Abril Cultural, achei duas violetas, três heras e outras plantas vetustas — estavam junto ao verbete “inhenho”. Nos outros livros, encontro recibos, listas, lembretes, endereços, horários de consultas médicas, notas fiscais, cartas e páginas soltas de outros títulos. Também resgato cédulas de cruzados novos, canhotos de cheques e comprovantes de pagamento de aulas de francês tomadas em 2004, há tanto esquecidas.

Numa descompromissada expedição ao miolo de livros antigos, encontrei o seguinte:

– Um cartão-postal (foto acima) endereçado à minha tia-avó América de Assunção Pinto, de 12 de julho de 1959. “À estimada companheira de lutas sindicais, envio [este postal] como recordação de meu curso no colégio St. John’s, esperando que a continuidade de seus trabalhos arregimente o maior número de companheiras telefonistas em torno de nosso sindicato, para melhoria e defesa das leis de proteção da mulher que trabalha.” Meu queixo caiu. Todo respeito à tia América e seu desconhecido passado militante.

– Num volume de poesias do Ferreira Gullar, o folheto promocional de um espetáculo de mímica ocorrido em 10 de abril de 1988.

– Dentro de um romance do Hemingway, uma lista de personagens de um policial da Donna Leon: Guido Brunneti, Rizzardi (médico-legista), Patta (vice-questore), Vianello, Ruffolo (Peppino) e Concetta.

– Na página 110 de As aventuras de Huckleberry Finn, um cartão do filme de basqueteBlue Chips, com o Nick Nolte, que eu nunca assisti.

– Em 20 mil léguas submarinas, um recibo de Big Mac, Coca-Cola média e molho caipira consumidos no dia 7 de janeiro de 2002, na rodoviária de Resende.

– Num livro do Flaubert, uma passagem rodoviária da EMTU para Guarulhos, de 28 de dezembro de 2005 às 9h35.

– Dentro de um volume da Barsa, o canhoto: “Seção Acabamento. Chapa 300. Em caso de reclamação, pedimos devolver êste bilhete. Companhia Melhoramentos de São Paulo”.

– Retângulo de papel em branco dentro de um livro do Platão.

– Cartão-postal com a ilustração de um santo barbudo com uma espada na mão, passando por cima de uma multidão de feridos. Em Diálogos, de Platão.

– Dentro de um livro de obras-primas de contos de terror, recibo de compra do volume As forças do bem na Livraria Freitas Bastos, a 18 cruzeiros, em 11 de novembro de 1974. A obra foi ditada pelo espírito do irmão Thomé, o Apóstolo do Senhor, para o senhor Diamantino Coelho Fernandes.

– Um comprovante de envio de fax do dia 19 de julho de 2007 dentro do tomo 8 da coleção O mundo pitoresco.

– Uma antiga carta datilografada da Biblioteca de Seleções, endereçada aos padres franciscanos da Igreja Nossa Senhora da Conceição, dizendo que, “por motivos alheios à nossa vontade, não nos foi possível enviar o cupom numerado do concurso Seleções da Sorte no Natal. […] Guarde cuidadosamente esta carta, pois a posse da mesma tem, para nós, o mesmo valôr que o cupom”.

– Na p. 66 de A máquina do tempo, de H.G. Wells, um recibo de lanche consumido em 17 de abril de 2064.

(Brincadeira.)

* * * *

Vanessa Barbara e Fido Nesti autografam a graphic novel A máquina de Goldberg em São Paulo:
Sábado, 10 de novembro, das 16h às 19h30
Loja Companhia das Letras por Livraria Cultura
Av. Paulista, 2073 – Conjunto Nacional

* * * * 

Vanessa Barbara nasceu em 1982, é jornalista e escritora. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista da Folha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Folha de S.Paulo – Ilustrada
30 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

No debate após a sessão de “A Cara que Mereces” (Portugal, 2004), perguntaram ao diretor Miguel Gomes qual o significado de uma maçã que aparece no início e no fim do filme. Diligentemente, ele discorreu sobre os personagens, fez considerações de cunho estrutural e, por fim, confessou: “Ah, sim, a maçã. Não sei por que eu fiz isso”.

Em outro momento da conversa, sobre o protagonista começar o filme metido numa fantasia de caubói, ele observou: “Eu gosto de caubóis”.

A sinceridade dos diretores sempre me deixa feliz, em contraste com certas perguntas da plateia feitas por gente que deseja aparentar erudição. Muitos falam de “transcendência” e “plasticidade”, dissertando em círculos – são desses genuínos loucos de palestra. “Minha pergunta é sobre…”, dizem, e a tal pergunta nunca vem.

No filme de Gomes, uma moça questionou asperamente a ausência de personagens femininas na trama. Sábio, o diretor desconversou.

Já na exibição de “Felicidade… Terra Prometida” (2011, França), uma mulher levou quase um minuto para tecer uma pergunta incompreensível sobre depoimentos positivos e negativos, que o diretor Laurent Hasse conseguiu driblar com elegância.

A curiosidade genuína gerou respostas interessantes. Hasse revelou que 80 pessoas foram ouvidas no documentário, sendo que só 15 entraram na edição final. “Minha primeira versão do filme tinha cinco horas. Estava perfeita”, afirmou, rindo. O filme acabou com 94 minutos.

Outro bom exemplo de louco de Mostra, além do perguntador exibido, é um anônimo senhor que se senta sempre na primeira fileira e reage de forma peculiar às cenas, sejam engraçadas ou não. Dizem que ele solta um “haaaa” único e bem longo, e quando é muito engraçado faz um “ha-ha-ha”.

Ainda não conheci o tal senhor, mas tem a minha total simpatia.

Conta-se também que, numa sessão de “A Colônia” (2001, Rússia), após meia hora de filme, um doido de cinema começou a berrar: “São seis e 36, seu mentiroso! Seis e 36!”, e empurrou o amigo. Seguiram-se safanões. Aos gritos de “seu puto!”, ambos saíram da sala, sem maiores explicações.

Dizem por aí que pode ter sido uma propaganda de “Perder a Razão” (Bélgica/Luxemburgo/França/Suíça, 2012). 

Zona de conforto

Posted: 29th outubro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S. Paulo – Ilustrada
29 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

Dia após dia, já se sabe exatamente o que esperar do SPTV 2a Edição (Globo, segunda a sábado às 18h55): três blocos com os assuntos de sempre, curtos e previsíveis como uma couve-flor.

Se está muito frio em São Paulo, é assim que o telejornal começa: imagens de paulistanos agasalhados na avenida Paulista, uma tirada espirituosa feita por um popular, um médico falando sobre os perigos do ar seco. Estatísticas sobre os dias mais frios dos últimos dezessete anos.

No calor, podemos esperar cenas de paulistanos tomando sol no Ibirapuera, crianças nadando no chafariz da praça da Sé, especialistas dissertando sobre o filtro solar.

Em dias de chuva, “caos na cidade” será uma das expressões mais utilizadas, com cenas de trânsito engarrafado, estatísticas da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) e motoristas ilhados nas enchentes.

Na véspera e na volta de um feriado prolongado, há sempre câmeras nas rodovias, o paulistano reclamando que Bertioga amanheceu nublada, imagens ao vivo da Marginal parada. “É a volta pra casa”, repete Carlos Tramontina, um tanto preocupado.

O telejornal tem 15 minutos de duração (mais os comerciais). Há dois assuntos obrigatórios: tempo e trânsito, com um espaço adicional para crimes e contravenções.

Para fechar, uma matéria mais esperançosa com o que chamam de “olhar diferenciado sobre o que acontece de relevante na cidade”, segundo o release do departamento de comercialização da Globo. Trata-se de uma pauta inusitada ou singela para que Tramontina possa sorrir e esquecer as mazelas do contribuinte.

No Dia das Crianças, houve uma reportagem sobre pais e filhos jogando peteca num parque da cidade, em atividade promovida pela própria Rede Globo.

Na quarta-feira passada, o assunto foi uma feira de empreendedorismo. “Você que cansou de viver de holerite, seja bem-vindo”, começa o repórter. “Essa feira é o mapa da mina para quem quer virar patrão.”

A sequência é: gracinha de abertura, dois ou três clichês, uma gracinha mais discreta e a piscadela final.

Neste exemplo, uma visitante da feira falou exatamente o que o repórter queria ouvir. “Tem que se preparar, né?”, indagou o jornalista. “Tem que se preparar, conhecer gente, se capacitar”, repetiu a moça. “Não pode desistir.”

É como se ligassem um gerador de chavões sobre contratempos climáticos, congestionamento e “temas gerais”.

Abaixo a primavera

Posted: 27th outubro 2012 by Vanessa Barbara in Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
27 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

Se, na Copa do Mundo, o Brasil é um país de técnicos de futebol, em época de Mostra somos 190 milhões de críticos de cinema.

Atrás de mim, na fila de um longa alemão, uma moça de sandália nos pés e saia comprida não teve pudor em sentenciar: “O filme da Sarah Polley é péssimo. Péssimo”. Seu colega, rapaz com óculos de aros grossos e a barba por fazer, disse que não gostou do iraniano que acabara de assistir: “O roteiro é sofrível, mas achei boa a temática social”.

Sem prestar atenção na mudança de assunto, a amiga insiste: “Os dois se conhecem no avião, mas ele morava o tempo todo na frente da casa dela!”.

Não faltaram críticas pesadas à estrutura dramática e ao conteúdo de vários títulos, sobretudo por parte dos cinéfilos mais maduros. “Lindamente filmado, mas achei o roteiro podre de ruim”, comentou alguém sobre um dos longas pernambucanos. “Tô achando que adorei”, retrucou outro.

Ao fundo, dava pra ouvir os últimos fiapos de resmungo da menina anti-Polley, que já adentrava em outra sala.

Nos grupinhos mais jovens, o que se via era o oposto: eufórica, uma garota disse que chorou o tempo todo na exibição de “Vidas Curdas”, e repetia sem cessar, a respeito de tudo: “Meu, tipo – eu quero muito ver esse filme. Parece que é lindo”.

Após ter confundido Tchaikovski com Tarkovski, ela confessou nunca ter visto nada do diretor russo. “Os filmes dele são pesados, mas acho que vale a pena”, falou a amiga, que havia assistido a “Solaris” e aprovou a fotografia. “É tudo muito bom. Só que meio parado”, observou, receosa. A outra rebateu: “Ah, mas ele é muito conceituado”.

Entre a empolgação dos novatos e a implicância dos veteranos, surgem novos (e interessantes) critérios para seleção e exclusão de títulos – como o do cinéfilo Érico Fuks, que morre de medo de filme com nome de estação.

Só este ano temos seis: “Voz da Primavera” (Irã), “Sinfonia da Primavera” (Israel), “Inverno da Desilusão” (Egito), “Nômades do Inverno” (Suíça), “Uma Janela para o Verão” (Alemanha/Finlândia) e “Sem Outono, Sem Primavera” (Equador/Colômbia/França).

“Pra mim, filme com nome de chave de chuveiro cai três pontos antes mesmo de começar”, afirma, decidido. 

Um barco maior

Posted: 25th outubro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
25 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

Em plena segunda à tarde, encalhei no cinema do Shopping Frei Caneca durante quatro soníferas horas, pega de surpresa com o esgotamento dos ingressos de “Barbara” (2012, Alemanha). Diante da súbita preguiça de escolher um plano B (um filme turco, dois brasileiros, um francês, um israelense e um cazaque), fiquei esperando o início de outra sessão que acabou por não acontecer (“Tubarão”, 1975, EUA).

Sem Kindle na mochila e nem vontade de sair para comprar sapatos, fui parar no Scada Café, onde um sanduíche de rosbife custa 14,90 reais e a fila beirava a parede oposta dos caixas. Levei quinze minutos para mastigar cada naco de pão, cochilei, acordei, dormi de novo, fiz novos amigos, e o tempo não passava. Como numa pescaria.

Preferia ter ficado presa no pitoresco espaço Matilha Cultural (rua Rêgo Freitas, 542), onde há jardim, tabuleiro de xadrez e uma excelente biblioteca (vi um tratado sobre tulipas em meio a clássicos da literatura e um livro de poemas astrológicos).

Lá, as sessões da Mostra são gratuitas e cachorros são bem-vindos.

No Frei Caneca, como de hábito, a fila para as sessões mais concorridas se forma com meia hora de antecedência – num piscar de olhos, o que antes era vazio se transforma em aglomeração, e se você resolve amarrar os cadarços antes de aderir é capaz de só conseguir um lugar ao fundo, atrás do sujeito com pigarro.

Grupos de conversa se formaram e se dissolveram, ao nosso lado passou a fila inteira para o filme do Ken Loach, e nada de abrirem a sala. As cédulas de votação foram distribuídas, gerando certa inquietação – afinal, devemos marcar um “regular” ou “não gostei” para o clássico do Spielberg, na esperança de fazê-lo voltar no tempo e repensar “Hook” e “Amistad”? 

Por fim, vieram avisar: “Não iremos exibir ‘O Tubarão’”. (Alguém sussurrou: será que vão substituir por “O Bacalhau”?) O arquivo digital em formato DCP não abriu, portanto seria veiculado o longa “Dom: Uma Família Russa”.

“É, não rolou…”, disse um rapaz da organização. “Vamos precisar de um barco maior”, eu pensei, arrastando meus barris amarelos para casa. 

As boas sinopses do ano

Posted: 23rd outubro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S. Paulo – Ilustrada
23 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

Uma das melhores coisas da Mostra de Cinema é abrir o guia de programação na fila e proceder à leitura das sinopses dos mais de 350 títulos.

Algumas delas já valem pelo filme. Este ano, a vencedora do Prêmio Sinopse de Ouro eleita pelo meu júri particular foi:

Hot Hot Hot (Luxemburgo, 2011). Um homem de 40 anos introvertido libera sentimentos quando começa a trabalhar em um spa com sauna.

Mas há subcategorias importantes, como a de novela trágica, composta só por sinopses que tiram a nossa vontade de viver:

38 Testemunhas (França, 2012). Uma jovem é esfaqueada, agredida sexualmente e assassinada em público, e os vizinhos ignoram seus gritos de socorro.

O longa francês levou o caneco após competição acirrada com seu compatriota O resto do mundo. Neste, “Eve descobre estar grávida logo após o namorado cometer suicídio. Enquanto isso, a namorada de seu pai revela que ele não é o pai biológico de sua irmã”.

Em terceiro lugar ficou o equatoriano Melhor Não Falar de Certas Coisas: “Paco é um viciado que alimenta uma paixão proibida. Um dia, ele e o irmão entram na casa dos pais para furtar um cavalo de porcelana e trocá-lo por drogas.”

Ficaram de fora um filme sobre uma enfermeira casada com um paraplégico que tem um amante suspeito de ser um assassino serial, bem como um longa sobre um desempregado que é rejeitado por seu cão.

O franco-canadense Laurence Anyways entrou na categoria especial de protagonistas completando 30 anos, junto com A cara que mereces. Neste, o personagem tem uma alucinação existencial durante crise de sarampo, e no outro anuncia à namorada que vai mudar de sexo.

Menção honrosa para Num Lugar Conhecido, sobre dois irmãos obcecados em fechar um buraco no quintal. “Suas vidas irão mudar após uma série de coincidências e o aparecimento de um homem que se diz vindo do futuro.”

Por último, temos o Troféu Ai Que Preguiça, conferido por um popular na fila do Espaço Itaú Frei Caneca para a sinopse de um documentário sobre obesidade infantil. 

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Extras

Troféu Nonsense Criativo

Whisky com Vodca (2009, Alemanha)
O renomado ator Otto é a personificação do homem problemático. Ele entende muito de cinema, mas não é confiável.

(2012, Grécia)
Um motorista vive só em seu carro. Sua mulher e seus filhos vivem em outro veículo. Ao ser demitido, ele entra em crise e decide abandonar a vida dentro do carro.

O tecido do cosmo

Posted: 22nd outubro 2012 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
22 de outubro de 2012

por Vanessa Barbara

Semana passada falei sobre “Nova”, franquia de documentários científicos exibida pela emissora americana PBS.

Em novembro de 2011 foi ao ar pela primeira vez “The Fabric of The Cosmos”, conjunto de quatro capítulos baseados no livro do físico Brian Greene. Com a ajuda de bamboleantes efeitos especiais e depoimentos de especialistas, Greene procura mostrar como os cientistas contemporâneos têm lidado com as velhas questões de tempo, espaço e universo.

Ele é professor e diretor do ISCAP (Instituto de Teoria das Cordas, Cosmologia e Astrofísica de Partículas) da Universidade de Columbia. Apesar das credenciais, este amável Ted Mosby da gravitação quântica vai devagar com o espectador: no primeiro episódio, pergunta singelamente o que é o espaço.

Só um problema: trata-se de um dos maiores mistérios da ciência, conforme nos informa o teórico Sylvester J. Gates – uma espécie de Morgan Freeman de chapinha.

Episódio a episódio, Greene usa recursos gráficos para apresentar conceitos fundamentais como a mecânica clássica de Newton. Ele diz: “Agora imagine o seguinte”, enquanto compara o tempo a um pão de forma, as partículas subatômicas a um grupo de paparazzi e o universo a um queijo suíço inflável. Mas ele tem más intenções. Marotamente, vai nos levando pela mão rumo a um beco sem saída teórico.

“Mas, se isso é verdade, então isto aqui também é”, afirma. “E não faz o menor sentido”.

É dessa forma que Greene introduz ao espectador uma teoria absolutamente desvairada, fruto de uma descoberta recente.

Assim como os físicos, ficamos cada vez mais confusos. Aprendemos que as partículas atômicas e subatômicas são regidas por leis de probabilidade, e não de certeza, e passamos a considerar cientificamente aceitável a ideia de que o tempo é uma ilusão. 

“Como poderíamos estar tão errados sobre algo tão familiar?”, pergunta Greene.

“Ela é chamada de teoria do Big Bang, mas não diz nada sobre o Bang em si, o que fez Bang, por que fez Bang ou o que aconteceu antes do Bang”, explica outro Ph.D. em coisas complexas.

O episódio derradeiro fala sobre a polêmica dos multiversos, eterna briga de foice entre os cientistas. No fundo, ninguém parece saber de nada.

“Isso incomoda? Claro que sim”, admite Steven Weinberg, Prêmio Nobel de Física. “Mas não há princípio embutido nas leis da natureza que diga que os físicos teóricos têm que ser felizes”.