Christina Hägerfors

Passamos os dias vendo ambulâncias enquanto a Covid-19 assola o país.

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The New York Times
21 de abril de 2021

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

SÃO PAULO, Brazil — Da varanda do meu apartamento, consigo enxergar um estacionamento de ambulâncias. Já faz mais de um ano que eu e minha filha de 2 anos e meio monitoramos – de forma ávida e ansiosa – o movimento das dez ambulâncias estacionadas no local. É o tipo de entretenimento que temos hoje em dia.

“Olha, mais uma está voltando!”, ela diz, apontando para a ambulância, que encosta e desliga suas luzes vermelhas e brancas. Não é bem uma análise rigorosa, eu sei, mas costumo avaliar a severidade da pandemia olhando para esse estacionamento. Desde o começo do ano, cada vez menos veículos ficam parados. Agora, durante o dia, é comum ver só uma ou duas ambulâncias no local —e nunca por muito tempo. Basta esperar um pouco e lá vão elas, com as sirenes ligadas, atender ao chamado de alguém.

As estatísticas oficiais confirmam nossas observações. No estado de São Paulo, onde vivemos entre outras 46 milhões de pessoas, a taxa de internações por Covid-19 mais do que dobrou nas quatro semanas de 21 de fevereiro a 21 de março. No início de abril, em média 3.025 pessoas foram internadas por dia nos hospitais —um aumento de 58 por cento com relação ao início do mês anterior. Eu tento explicar à minha filha, de uma forma leve, que essas ambulâncias estão transportando pessoas doentes ao hospital, onde elas irão tomar um remédio de frutas e logo irão melhorar.

Olhando para esse desfile incessante de ambulâncias, eu tento não soar desesperada. Procuro disfarçar do meu tom de voz o conhecimento de que 543 pessoas morreram esperando por um leito de hospital desde o fim de fevereiro só em São Paulo, que no país mais de 370 mil pessoas perderam a vida —e que o pior ainda pode estar por vir. (Afinal, no hemisfério sul, o inverno vem chegando.) Mas não consigo esconder a impotência e a raiva que sinto, presa num apartamento pequeno por sabe-se lá mais quanto tempo, assistindo ao desenrolar da tragédia.

Houve um glorioso intervalo, porém. No início de fevereiro, meu marido e eu inscrevemos nossa filha em uma escola particular com muitas árvores e ar fresco. As salas são espaçosas e arejadas, e inúmeras aulas acontecem ao ar livre. Nunca a vi tão feliz. Seu desenvolvimento social e emocional disparou. Ela cantava aleatoriamente e tagarelava sobre os novos amigos.

Contudo, no início de março, ela testou positivo para o coronavírus. Teve sintomas leves: febre baixa, nariz escorrendo, tosse. Demos a ela 14 gotas de paracetamol, de que ela não gosta muito, uma vez a cada seis horas, por três dias. Ela aceitou obedientemente. Seus colegas de classe e professores também entraram em um isolamento de 14 dias, embora mais ninguém tenha testado positivo. Ela se recuperou rapidamente; eu e meu marido testamos negativo. Não conseguimos rastrear a origem de sua doença, mas assumimos que deve ter sido alguém da escola. “Uma imaculada infecção!”, brincou o meu marido.

Quando nossa quarentena acabou, em meados de março, o governador de São Paulo declarou estado de emergência, fechando todas as escolas. O vírus já devastava o país, arrebatando um número inédito de vidas. Um amigo meu que trabalha como enfermeiro disse que se tornou comum ver um congestionamento de ambulâncias diante dos hospitais. Do lado de fora do nosso apartamento, o estacionamento estava movimentado.

Foi um agravamento totalmente previsível. Desde que o vírus chegou ao Brasil, em março do ano passado, não chegamos a ter um lockdown propriamente dito, em nível regional ou nacional. Enquanto governadores e prefeitos tentavam impor algumas restrições, o presidente Jair Bolsonaro defendia sistematicamente a livre circulação de pessoas – e, consequentemente, do vírus.

Os resultados não podiam ser mais nítidos: temos, em média, 3 mil mortes por dia, um número espantoso que foi impulsionado por uma variante nova e mais contagiosa do coronavírus. O Brasil atualmente responde por quase um terço das mortes diárias por Covid-19 no mundo. Em dezenas de estados, as UTIs estão com 90 por cento ou mais de ocupação. O termo “calamidade” nem chega perto de descrever a situação.

A campanha de vacinação, a princípio caótica, permanece lenta. Meu pai de 72 anos finalmente recebeu a segunda dose há dez dias; minha mãe, de 67 anos, recebeu a primeira dose na semana passada. Apenas 4,5 por cento da população está totalmente imunizada, em comparação a 25 por cento nos Estados Unidos. Nosso sistema público de saúde é capaz de fazer muito melhor, mas simplesmente não temos vacinas suficientes. Jamais esqueceremos que, no ano passado, o governo de Bolsonaro rejeitou uma oferta de 70 milhões de doses do imunizante da Pfizer.

Muitos outros países já começam a sair da crise, enquanto o nosso mergulha ainda mais fundo na catástrofe. Mas Bolsonaro – que desencorajou ativamente o distanciamento social, os testes e as vacinas – não dá a mínima. “Chega de frescura, de mimimi”, ele disse em março. “Vão ficar chorando até quando?”

Sem vacinas ou vontade política para conter o vírus, não nos restam muitas opções. Não podemos ir às ruas protestar – não sem um alto risco de infecção – e ainda temos um ano e meio até a próxima eleição. Mais de 370 mil brasileiros se foram. Quanto ao resto de nós, continuamos a viver como prisioneiros em nossas casas, vendo as ambulâncias passarem.


Este artigo foi publicado na edição de 20 de abril de 2021 do The New York Times, Section A, Page 25 com o título: “Trapped in Brazil’s Covid Tragedy”. Tradução para o português da autora.