João Doria, prefeito de São Paulo, visita moradores de Vila Carrão, em fevereiro. Crédito: Maurício Lima para o New York Times

 

The International New York Times
25 de setembro de 2017

por Vanessa Barbara

Uma mulher chora na sala de reuniões, cercada por empresários de testa franzida e por janelas panorâmicas de vidro mostrando a cidade de São Paulo. Ela pede desculpas, mas diz que deveria ter o direito de cometer erros. Afinal, é a primeira vez dela em um reality show! Além disso, tudo o que fez foi servir um cappuccino sem leite.

João Doria, um magnata da mídia, não se mostra solidário. “O nosso mundo é o mundo real”, ele diz para a mulher chorando do outro lado da mesa. “O seu mundo é que é irreal.”

Desde janeiro, uma nova temporada do reality teve início para muitos de nós. Nos Estados Unidos, Donald Trump se tornou presidente. Aqui em São Paulo, João Doria se tornou prefeito. Os dois homens têm muito em comum: são conservadores populistas com um ego enorme. Gostam de usar as redes sociais para divulgar suas mensagens. Ambos escreveram livros de autoajuda com títulos pouco inspirados (“A Arte da Negociação” por Trump, “Lições para Vencer”, por Doria).

Ambos também são ex-apresentadores do reality show “O Aprendiz”.

Eu queria entender melhor o novo prefeito e o que ele irá fazer à minha cidade. Então, em vez de consultar sua plataforma eleitoral, seus discursos ou formação acadêmica, decidi ir diretamente à fonte primária. Seguindo os passos de Emily Nussbaum, a crítica de televisão da New Yorker, assumi a tarefa de assistir aos 31 episódios das duas temporadas de Doria em “O Aprendiz”, a versão brasileira do programa original de Trump, à procura de lições sobre a natureza da realidade.

“O Aprendiz” é um game show que testa as habilidades nos negócios de uma dúzia de candidatos que competem para conquistar um cargo em uma das empresas do apresentador. Em cada episódio, eles são divididos em equipes e recebem uma tarefa, em geral patrocinada por uma empresa (um banco, uma rede de varejo, um fabricante de automóveis). A tarefa geralmente consiste em vender produtos ou criar novas estratégias publicitárias.

Em média, os episódios são assim: os competidores, a maioria deles branca e privilegiada, recebem cerca de 15 mil reais para montar um pequeno quiosque em um shopping. Eles passam uns poucos dias árduos ao telefone, tentando convencer outros empresários a prestar favores como doar produtos ou prestigiar eventos de marketing. Eles negociam valores baixos com free-lancers desesperados.

De repente, eles têm algum tipo de ideia brilhante (por exemplo, vestir alguém em uma fantasia de coração para promover uma marca de café) e esse toque de gênio resulta em um vencedor. A equipe ganha uma viagem de luxo à Suíça como prêmio. Caminhando pelas ruas de Zurique, uma das participantes rememora o dia terrível que passou servindo café em um evento de marketing, e diz: “Lembra quantos cafés a gente serviu, quantas pessoas a gente atendeu? A gente merece, não merece?” (Imagino uma garçonete de verdade, que trabalha por um salário mínimo, assistindo a isso e se encolhendo em posição fetal, aos soluços.)

Após os primeiros episódios, notei algo curioso: os participantes estavam pedindo ajuda às mesmas empresas que já tinham patrocinado os desafios anteriores da temporada. (Vamos chamar isso de poder do networking.) Eles também fecharam acordos ultrajantemente improváveis, como vender seis bananas por 50 reais e ganhar 50 euros para lavar alguns poucos pratos em um hotel italiano.

E o que isso tem a ver com a forma de Doria fazer política? Muito, na verdade.

Às vezes, como o prefeito admite com orgulho, ele telefona para um de seus amigos executivos e pede generosas doações à cidade. Não importa se a empresa à qual pede fundos esteja sendo processada pela prefeitura ou tenha dívidas imensas com ela. É o mesmo estilo dúbio e personalizado de fazer negócios pelos quais os candidatos de “O Aprendiz” são recompensados.

Veja o caso da Cyrela, uma das maiores incorporadoras e construtoras do Brasil. A Cyrela concordou em reformar os banheiros em um parque de São Paulo “sem nenhum custo” para os cofres públicos, apesar de a reforma ter custado cerca de R$ 450 mil. Na época, a empresa estava envolvida em uma disputa legal com a prefeitura em torno de projetos de construção no terreno do Parque Augusta. (Essa disputa foi resolvida posteriormente em um acordo.) Além disso, a Cyrela tem interesses velados na atualização do plano diretor de São Paulo, que inclui leis sobre a altura máxima dos novos edifícios.

Como se isso não bastasse, Doria nomeou recentemente o ex-vice-presidente da Cyrela como chefe de uma nova pasta chamada Secretaria Especial de Investimento Social. Sua primeira tarefa foi presidir a cerimônia de entrega dos novos banheiros doados por sua antiga empresa. Lembrei de uma cena do último episódio da 7ª temporada, quando um competidor consegue convencer Saulo, o cantor que venceu o reality show “Ídolos”, que, é claro, passa na mesma emissora que “O Aprendiz”, a se apresentar em um evento de marketing.

Doria não vê nenhum conflito de interesse, ainda que certa vez tenha ameaçado encerrar uma entrevista quando o assunto foi abordado. Na ocasião, os jornalistas do Valor Econômico perguntaram ao prefeito sobre seus laços com um de seus muitos amigos do setor privado: o dono da rede de farmácias Ultrafarma, que por acaso é membro da Lide, uma empresa de eventos fundada por Doria e atualmente dirigida por seu filho. O grupo costuma promover eventos de negócios com a participação de políticos.

Segundo notícias da Veja e do Uol, a Ultrafarma fez uma doação de um cheque de R$ 600 mil para as farmácias populares de São Paulo em fevereiro deste ano. (A secretaria de comunicação da prefeitura nega que isso tenha ocorrido.) Um dia depois, o prefeito postou um vídeo no qual anunciava pessoalmente uma marca de vitamina da Ultrafarma pouco antes de uma reunião de gabinete.

No mês seguinte, a Ultrafarma fez uma doação oficial à prefeitura, desta vez na forma de propagandas de TV em horário nobre para o polêmico programa de limpeza de Doria, o “Cidade Linda”, que tem sido criticado por muitos cidadãos como inútil. Não está claro como a cidade poderia se beneficiar dessa doação.

O mais preocupante é que esse comportamento tipo “O Aprendiz” pode não ficar confinado a São Paulo. Doria é considerado um possível candidato para a eleição presidencial de 2018. Do ponto de vista dos negócios, uma doação oportuna à prefeitura pode render mais frutos do que uma contribuição para uma campanha política.

De fato, esse campo minado ético na prefeitura de Doria surge logo após o Supremo Tribunal Federal ter decidido proibir doações de empresas para campanhas políticas. O objetivo é justamente enfraquecer os laços entre o governo e interesses privados que possam levar a propina e outras formas de corrupção.

Mas Doria permanece imperturbável em sua camisa polo, enquanto toma decisões eticamente questionáveis. O prefeito já restringiu a autonomia da Controladoria Geral do Município, o órgão anticorrupção recém-criado pela cidade, e no mês passado demitiu a controladora-geral por “razões administrativas e operacionais”. Em protesto, três funcionários do órgão renunciaram, incluindo o chefe do departamento de integridade.

Curiosamente, no quinto episódio da 8ª temporada de “O Aprendiz”, Doria demitiu um candidato por usar suas conexões com um empresário para obter vantagem em um dos desafios. “Este país só vai mudar quando tiver ética, princípios”, declarou Doria com veemência, enquanto brandia uma caneta de prata. Trump ficaria orgulhoso.


Trad. adaptada de George El Khouri Andolfato/ Uol Notícias