Histórias sem graça

Postado em: 26th maio 2014 por Vanessa Barbara em Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista
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Revista sãopaulo – Folha de S.Paulo
25 de maio de 2014

por Vanessa Barbara

No romance “Garota Exemplar”, a protagonista Amy acusa a mãe de contar histórias “escandalosamente banais e intermináveis”, sem propósito nem clímax. Por muito tempo, ela e a irmã acharam que estavam sendo sacaneadas em segredo; mas não havia nenhuma moral ou entrelinha nas anedotas maternas. No fim, a brincadeira preferida das duas virou contar longas narrativas sobre o conserto de equipamentos e o preenchimento de cupons:

“Então eu precisava de uma pilha palito, que, descobri, é diferente de uma bateria, então tive que encontrar o recibo para devolver a bateria…”, dizia uma delas, engatando numa epopeia sonífera.

É este o clima do site “História Sem Graça” (historiasemgraça.tumblr.com), um dos melhores endereços de toda a internet. Trata-se de uma seleção de relatos aleatórios, absolutamente anticlimáticos — verdadeiras obras-primas do “E daí?”.

Como este, postado por um anônimo: “Sempre compro muçarela fatiada pra fazer sanduíche em casa. Outro dia comprei queijo prato. Não fez muita diferença”.

Ou esta, de teor similar: “Hoje passei condicionador antes do xampu pra ver se mudava alguma coisa, mas não mudou nada”.

O idealizador do site é o arquiteto paulistano Felipe Zene Motta, de 27 anos, que em fevereiro foi acometido por três inequívocas ocorrências sem graça e decidiu compartilhá-las. (São as três últimas do Tumblr, que envolvem incidentes na fila da padaria, na piscina e no banco.)

Hoje já são 1.500 anedotas enviadas por leitores ávidos por comungar, em minúcias, as mais opacas situações. Minhas preferidas são as mais compridas e com certo ar resignado: “Eu trabalho numa central de telemarketing e o lugar onde a gente senta pra atender é chamado de P.A. Hoje estava sentado num lugar trocando ideia com uma amiga, aí veio uma moça e me mandou sair porque a P.A. era dela. Eu disse que não ia sair e perguntei se tinha o nome dela lá, ela disse que sim, e tinha mesmo”.

Muitas das histórias são registradas em letras minúsculas e às vezes contêm deslizes gramaticais, o que lhes confere um ar ainda maior de cansaço e desinteresse do próprio narrador. Um exemplo, com a grafia original:

“esses dias lembrei de um amigo de infância, joão pedro, que mudou de cidade quando éramos bem novos, anos atrás. resolvi procurá-lo no facebook usando apenas esses dois nomes, já que não sabia a cidade em que ele mudou. encontrei vários, de várias localidades, mas nenhum se parecia com ele.”

Como se vê, é uma obra de gênio que revela de forma singular a essência da nossa vida cotidiana, esse ir e vir de ocorrências sem razão e sem rumo, de onde mal se pode tirar um sentido que não seja a perplexidade.

“Sempre que eu abro a geladeira, meu gato entra correndo lá dentro e se joga no compartimento de legumes. Eu nunca vou entender o motivo.”

  1. Shibbo disse:

    Na verdade, quem conta histórias intermináveis é a mãe do Nick e ele fala sobre como ele e sua irmã gêmea achavam que estavam sendo zoados. A Amy é filha única.