A Hortaliça — #087

Postado em: 24th novembro 2011 por Vanessa Barbara em Hortaliças
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O bom mandaquiense à casa torna
#087 – São Paulo, 24 de novembro de 2011
Edição especial Volta por Baixo
Fluctuat, nec mergitur*
www.hortifruti.org
*É arremessado pelas ondas, mas não afunda

“Esta vai ser uma semana muito boa”
(eu, aos 23 de maio de 2011)

“Brincando, ele a chamava de minha papoula.”
(James Joyce, “Eveline”)


:: EDITORIAL ::

Há exatos seis meses, numa segunda à tarde, o primo Eduardo foi à janela e viu a vizinha se preparando para o café. Como de costume, ela esquentou o leite, ferveu a água, botou os pãezinhos velhos no forno elétrico. Deve até ter pego alguma coisa para ler – a revista de domingo que ficava debaixo da cesta de biscoitos, sem dúvida, mas havia algo diferente que ele não conseguia explicar. Pela primeira vez em meses, ela parecia saber exatamente o que fazer. Comeu as duas metades do pão com manteiga, guardou tudo de volta à geladeira, mas, naquele dia, não lavou a louça – deixou a xícara suja na pia, e por lá a xícara ficou.

Deve estar lá até hoje, pois, naquela tarde em específico, a moça tirou a mala de rodinhas do armário. Botou lá dentro algumas roupas, dois livros, a caixa de remédios e um computador com nome de legume, tudo em silêncio, como se estivesse regando as plantas. Depois, primo Eduardo reparou que a moça conversava com as tartarugas, tirava os répteis do aquário e os colocava numa bacia de plástico, murmurando alguma musiquinha boba. Não atendeu o telefone e foi embora, levando a mala e o que lhe restava de ar nos pulmões.

Depois daquele dia, primo Eduardo achou tudo muito confuso. As tartarugas jamais voltaram, o aquário se foi num caminhão-baú lamentável e logo apareceu uma outra moça, aliás muito parecida com a anterior, e um dia ele jura que viu a original esparramada no sofá comendo chocolates, como se nada tivesse acontecido. Ela devia estar louca, pois tirava objetos estranhos do lugar com fúria vingativa: botou um rolo de macarrão na gaveta de cuecas, uma lata de ervilhas na prateleira de gibis, um manual de xadrez na gaveta do banheiro, a pomada de micose no lugar da pasta de dente, uma escumadeira junto com as camisetas. Depois desse dia, sumiu. Primo Eduardo passou um tempo tristonho com a sentida ausência, e nisso deve ter sido o único que reparou. Primo Eduardo até hoje tem saudades da vizinha, que falava consigo mesma o dia todo e dançava com as maçanetas da porta – mas já se acostumou com a nova ordem das coisas, como, aliás, sói de acontecer.

Muitos já sabiam o que se passava há meses e todos tiveram a democrática chance de opinar – menos ela – e menos o primo Eduardo, que até hoje não entende, mas também não vai tocar no assunto porque, afinal de contas, a gente se acostuma. Logo vai aparecer um gato, depois uma calopsita, depois um bebê, mais três outros modelos de videogame e o mundo é assim – a gente faz o que bem entende e está muito bom, não havendo motivos para se apoquentar. A moça que trate de viver com isso.

Aos amigos, esta é uma edição d’A Hortaliça que vem com três tipos de molho: agridoce, barbecue e mostarda, conforme a disposição do leitor. Tem quinze assinantes a menos e a Redação de volta ao Mandaqui, terra onde ainda há pochetes e a mobilete tem valor. (Cartas devem ser remetidas à Praça Tito, s/n, onde ergueremos um novo puxadinho espelhado.)

Durante o período de reconstrução pós-Chernobyl, e sem avisar ninguém, adotamos uma terceira tartaruga, o Moisés, que é o homenageado desta edição; também aproveitamos para redecorar nosso sítio e entupi-lo com as mais variadas leguminosas, que é para vocês aprenderem. A inauguração oficial contará com uma espumejante fanfarra descendo a rua, toda de branco, entoando hinos anabatistas, e terá lugar em dia específico que ainda não podemos prever. Segue o endereço.


:: SELETA DE LEGUMES ::

Novo!

Reportagens, crônicas, traduções, preparações e ficções publicadas nos mais diversos veículos da imprensa mandaquiense, nacional e interplanetária, em troca de exíguas patacas que possam custear os meus vícios.

http://www.hortifruti.org


:: ABRINDO OS TRABALHOS ::

Depoimento de Armando Nogueira para o Roda Viva

O poeta Frederico Schmidt, por telefone, leu o último poema dele para Pedro Dantas, jornalista e cronista esportivo do Diário Carioca. O verso de abertura era o seguinte: “Se batesse à minha porta, eu, tímido, olharia”.

Dantas entendeu: “Se batesse à minha porta o time do Olaria”.


:: ALUCINAÇÕES MUSICAIS ::

Oliver Sacks

Daniel Levitin salientou que Ulysses S. Grant, segundo se dizia, “era surdo para tons e afirmava conhecer apenas duas músicas: Uma é ‘Yankee Doodle’, e a outra não”.


:: OVO FRITO ::

Alain de Botton, Ensaios de amor

A história da medicina nos conta um caso de um homem que vivia na ilusão peculiar de que era um ovo frito. Como ou quando essa ideia havia entrado em sua cabeça ninguém sabia, mas ele agora se recusava a sentar em qualquer lugar com medo de “se quebrar” e “derramar a gema”. Seus médicos tentaram sedativos e outras drogas para apaziguar seus temores, mas nada parecia funcionar. Finalmente, um deles fez o esforço de penetrar na mente do paciente iludido e sugeriu que ele deveria levar sempre um pedaço de torrada consigo, que ele poderia colocar sobre qualquer cadeira em que desejasse se sentar, e assim evitar que a gema se espalhasse. Dali por diante, o homem iludido nunca mais foi visto sem uma fatia de torrada na mão, e foi capaz de continuar a ter uma existência mais ou menos normal.

Qual o propósito desta história? Ela mostra tão-somente que, embora uma pessoa possa estar vivendo sob uma ilusão (amor, a crença de que se é um ovo), se ela descobre sua parte complementar, então tudo pode ficar bem.


:: MÁXIMAS ::

Galvão Bueno

Estamos aqui, direto do Stade de France, que em francês significa “Estádio da França” […].


:: PARA SCOTT ::

de Zelda Fitzgerald, primavera/verão de 1932

Meu adorado e muito valoroso Monsieur,

Temos aqui uma espécie de maníaca que parece imbuída de aberrações eróticas em seu nome. Fora isso, trata-se de pessoa de excelente caráter, disposta a trabalhar, aceita um salário nominal durante fase de aprendizado, pele clara, olhos verdes, gostaria de trocar cartas com rapaz refinado que corresponda a sua descrição, com vistas a casamento. Experiência anterior desnecessária. Adora vida familiar e é um animalzinho de estimação maravilhoso para se ter em casa. Com uma indicação atrás da orelha esquerda de leve tendência à esquizofrenia.

Achamos conveniente avisá-lo de que a referida paciente é uma das melhores que temos no momento na classe dos irresponsáveis, e não gostaríamos que nada de mal lhe acontecesse. Parece que, em grande parte, sofre de uma imensa paixão e é facilmente identificável pois estará em condições supimpas e balbuciando coisas sobre o 6:54 ser a flecha de cupido. Esperamos que tal espécime lhe dê satisfação completa, que quaisquer pedidos posteriores sejam dirigidos a nós e nós o amamos com todo, todo nosso coração, alma e corpo.


:: MAIS ZELDA ::

Trad. Beth Vieira

Salvo alguns retrocessos rumo a uma rebeldia maluca e uma falta total de equilíbrio, estou melhor.


:: TURTLES ALL THE WAY DOWN ::

Stephen Hawking, Uma breve história do tempo

A well-known scientist (some say it was Bertrand Russell) once gave a public lecture on astronomy. He described how the earth orbits around the sun and how the sun, in turn, orbits around the center of a vast collection of stars called our galaxy. At the end of the lecture, a little old lady at the back of the room got up and said: “What you have told us is rubbish. The world is really a flat plate supported on the back of a giant tortoise.” The scientist gave a superior smile before replying, “What is the tortoise standing on?” “You’re very clever, young man, very clever,” said the old lady. “But it’s turtles all the way down!”

[Certa vez, um cientista famoso (dizem que foi Bertrand Russell) fez uma palestra ao público sobre astronomia. Ele descreveu como a Terra orbita ao redor do Sol e como o Sol, por sua vez, orbita ao redor de uma vasta coleção de estrelas conhecidas como a nossa Galáxia. No final do discurso, uma velhinha, sentada no fundo da sala, levantou-se e disse: “O que você acabou de dizer é tolice. O mundo, na verdade, é um prato raso apoiado em cima de uma tartaruga gigante.” O cientista deu um sorriso arrogante antes de replicar: “E onde a tartaruga está se apoiando?” “Você é muito esperto, meu jovem, muito esperto!”, disse a velhinha. “Mas é uma tartaruga embaixo da outra, até lá em baixo!”]


:: QUADRINHAS PAULISTANAS ::

do Fabrício Corsaletti, na revista sãopaulo

jamais pensar no futuro
desprezar o duodeno
comer barriga de porco
no Izakaya Bueno

[…]

tem nove poodles em casa
não conversa com ninguém
de vez em quando ela late
dizem que não late bem

um taxista confessa
que come, a cada manhã
seis pães franceses – e pesa
menos que uma freira anã


:: SOLENEMENTE ::

Frank Wynne, Eu fui Vermeer

Mas os peritos são, realmente, aves raras, cujos métodos incluem arcanos rituais: o historiador da arte Richard Krautheimer, autor de Early Christian and Byzantine Architecture, lambia esculturas para descobrir quando foram feitas; outro eminente crítico de arte determinava a idade de um quadro mascando solenemente uma lasca do verniz.


:: PERANTE DEUS E OS CISNES ::

André Maurois, História da Inglaterra

O Rei da Inglaterra estava velho, enfermo, mas prometeu, num estranho juramento místico “perante Deus e os Cisnes”, esmagar a revolta escocesa […].


:: GIRAFA NA AREIA MOVEDIÇA ::
Ilustrando os cinco estágios do luto

http://www.youtube.com/watch?v=m-u1Kd7istI


:: MAIS ZELDA ::

Meados de novembro de 1931

Querido,

Este foi um daqueles dias empapados de saudades de você. Sinto-me muito pobre e como se a vida fosse vasta demais. Gostaria de enfiar minhas velhas roupas e ir arar o campo.


:: VOLTANDO ÀS ORIGENS ::
Seleções do Reader’s Digest, maio de 1998

Telégrafo – Samuel morse, inventor do telégrafo, “despiu a língua de suas inutilidades”. Não havia instrumento mais perfeito a fim de dizer algumas verdades para alguém. O melhor de todos foi, provavelmente, aquele enviado a Lord Home, ministro das Relações Exteriores britânico: “VÁ PARA O INFERNO. SEGUE CARTA COM INSULTOS”.

Dois titãs da réplica se sobrepujaram quando Bernard Shaw convidou Churchull para a estreia de sua nova peça: “ESTOU RESERVANDO PARA VOCÊ DUAS ENTRADAS PARA MINHA PREMIÈRE. VENHA E TRAGA UM AMIGO – SE TIVER UM.” A resposta de Churchill: “IMPOSSÍVEL COMPARECER À PRIMEIRA APRESENTAÇÃO. ASSISTIREI A SEGUNDA – SE HOUVER.”

Às vezes a concisão levou à confusão. Em 1933, a embaixada americana na Bulgária telegrafou para seu país: “NASCEU A FILHA DA RAINHA IOANNA. ENVIAR CONGRATULAÇÕES AO PRIMEIRO-MINISTRO”.


:: RIGHT AROUND THE CORNER ::

Sim, é uma citação de Gilmore Girls

Anyhow, I’m fine. I mean, not that I’m over it, but little by little it’s getting easier to pretend it’s easier, which means easier must be right around the corner.


:: NOTÍCIA ::

Jornal A Época, Rio de Janeiro, 31 de julho de 1912

Aramis, de 2 annos, filha de Affonso Santos, feriu-se levemente quando brincava em sua residencia.


:: NOTÍCIA RELACIONADA ::


:: O AVÔ NA MPB ::

O que me deixa mais triste nessa história são as músicas que se referem à fria e imediata substituição do avô, como se um avô de verdade fosse mesmo substituível. Seguem exemplos:

“É tarde, é tarde
Arranjei um novo avô…”
(João Gilberto)

“Que tolo fui eu que em vão tentei raciocinar
Nas coisas do avô que ninguém pode explicar
Vem nós dois vamos tentar
Só um novo avô pode a saudade apagar”
(Tom Jobim)

“Andam dizendo na noite que eu já não te amo
Que eu saio na noite e já não te chamo
Que eu ando talvez procurando outro avô”
(Tom Jobim)

“O meu coração já tem um novo avô
Você pode fazer o que quiser”
(Raça Negra)

“Tô fazendo avô com outra pessoa”
(Só Pra Contrariar)


:: DIFERENCIADOS ::
Instruções do microônibus que vai para o Shopping Pátio Higienópolis

Para embarcar nos microônibus, basta acenar para o motorista.


:: RIR DEMAIS ::
Chiara Frugoni, Vida de um homem: Francisco de Assis

Assim como as crianças e jovens que, tão logo se encontram, põem-se a rir –– talvez seja esta a principal diferença em relação aos adultos ––, os frades, principalmente os jovens, também desandavam a rir logo que se viam. Como realmente riam demais, mesmo à mesa, decidiu-se por um remédio extremo: para cada risada receberiam um castigo físico. Apesar disso, um pobre frade foi chicoteado onze vezes num dia, sem conseguir parar de rir. Só parou quando ficou realmente assustado com um terrível sonho que lhe contou o padre guardião.


:: CORAGEM DE MORDER TOMATES ::
Dicionário Universal de Curiosidades, p. 1268

Antigamente o tomate era considerado venenoso, por ser muito vermelho, e ninguém ousava prová-lo. Foi Michele F. Corne que teve a coragem de mordê-lo, em Newport (Inglaterra), perante multidão de 35 mil pessoas. No local onde Corne provou os primeiros tomates, ergueu-se uma estátua em sua homenagem.


:: O AVÔ NA MPB – PARTE II ::

“O avô não passa de um garotinho bem antigo”, já dizia um pensador anônimo, cobertíssimo de razão. Sempre preferi os que louvam nossos garotinhos longevos, como o poeta Frejat, que certa vez perdeu de vista o seu num shopping center e declamou, no sistema de som do estabelecimento: “Eu procuro um avô/ Que ainda não encontrei”, e, mais adiante: “Vou encontrar, eu vou até o fim”.

Ou então, para os mais líricos:

“O nosso avô é lindo
Tão lindo
Nada pode ser mais lindo
Do que o nosso avô”
(Adryana & A Rapaziada)

“Que coincidência é o avô
A nossa música nunca mais tocou”
(Cazuza)

“When the moon hits your eye like a big pizza pie
That’s avô”
(Dean Martin)

“O avô faz a gente enlouquecer
faz a gente dizer coisas
pra depois se arrepender”
(Razão Brasileira)

“Quem vai pagar as contas deste avô pagão?”
(Herbert Vianna)


:: POEMINHA FINAL ::
Guilherme Shakespeare

Sigh no more, ladies, sigh nor more;
Men were deceivers ever;
One foot in sea and one on shore,
To one thing constant never;
Then sigh not so,
But let them go,
And be you blithe and bonny;
Converting all your sounds of woe
Into. Hey nonny, nonny.


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Agradecimentos
Adriano Marcato, Audrey Furlaneto, Bruno Brasil, Marcos Barbará, Moisés, Paulo Velho, Ricardo Nassif. Aos novos amigos, às velhas tartarugas. E que volte a crocância.

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“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado — logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie Avari, a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)   ## Você está recebendo !!Witzelsucht!!porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e o To Fu, que ganhou o direito de trazer um tufo de nenúfares e furar a fila. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para hortalica@gmail.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja — e nem queira ser — Kudno Mojesic.
  1. Taynara Borges disse:

    Ai, que feliz ver isso aqui de volta. Mesmo que com um cadim de atraso. Não pára não pára não pára não!