Tudo por 1,99

Posted: 3rd dezembro 2007 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 15
Dezembro de 2007

por Vanessa Barbara

Em quatro dias de evento, não sobrou um só esguicho de metal

O moderno escorredor de enlatados da Plick Novidades é “ideal para comprimir e espremer dentro de sua própria lata produtos como o atum, extraindo assim o óleo ou salmoura indesejável”. Além de espremer e comprimir, o engenhoso design do escorredor Plick faz dele um produto flex, isto é, permite usá-lo também como peneira. A engenhoca é feita de poliestireno 100% atóxico e está disponível na cor branca. Preço sugerido no varejo: módicos 1,99. Por igual valor, você, consumidor final, levará um pacote de palhas de aço UsiBem, um pregador multiuso Zeek, uma pasta desengraxante Fuzetto ou, por que não?, um par de escovas de dente “pai e filho” com o escudo do seu time do coração – mesmo que ele seja o Coritiba ou o Atlético Paranaense, versões também disponíveis para venda.

Em sua 15ª edição, a “Feira 1,99 Brasil” ofereceu essas e outras maravilhas do varejo popular a lojistas, distribuidores e revendedores, a preços de atacado. Para fazer a feira era preciso ter CNPJ e disposição para comprar lotes fechados – por exemplo, 200 papa-bolinhas (extirpador de bolinhas de roupas) ou 480 mata-moscas. O evento ocorreu no amplo Pavilhão Vermelho do Expo Center Norte, centro de exposições na Vila Guilherme, em São Paulo, e contou com 160 expositores. Em apenas quatro dias, o público deu fim, entre outras mercadorias, a todo o estoque de esguichos de metal e porta-CDs em forma de porquinho.

“Se isso chega na minha loja, não pára nem um dia”, observa um comerciante, indicando uma lousa mágica (para desenho) em meio a um amontoado de brinquedos de plástico. “A lousa e o cubo mágico”, completa, enquanto seu sócio fecha um pedido de 25 bolsas de náilon. Os dois têm uma loja de 1,99 em Feira de Santana, na Bahia. Estão visitando o maior stand do evento, o da distribuidora Issam. Abrindo caminho entre a massa de clientes, apanham alguns produtos, perscrutam, fazem perguntas, devolvem às prateleiras. Entre os itens esgotados, está um relógio de pulso verde da marca Hua Qian.

O evento se realiza duas vezes por ano, em março e outubro. Ao contrário de outros segmentos do comércio e da indústria, que se contentam com feiras anuais, o setor de 1,99, cujo giro de mercadorias é bem mais veloz que o das lojas tradicionais, exige que se façam feiras semestrais para acompanhar o movimento dos estoques. A de março é uma prévia do Dia das Mães, e em outubro se consolidam as encomendas para as festas de fim de ano. Donde a profusão de bolas douradas, laços natalinos, lâmpadas pisca-pisca e Papais Noéis de papel.

Ao entrar no enorme paraíso das bugigangas, o visitante recebe um mapa para se localizar, mas não é o suficiente. Melhor seria um GPS. A feira é um labirinto de potes de plástico e brinquedos semidescartáveis. O ambiente é claustrofóbico e, vez por outra, surreal. Subitamente, duas moças de patins passam voando, ambas com orelhas do Mickey – promoters de alguma loja que vende produtos licenciados da Disney. A maioria dos stands é apertada e entupida de gente. Em alguns há distribuição de brindes, como minitrenas e incensos de benjoim, estratégia não adotada no stand da Fini Guloseimas, cujo modus operandi se assemelha ao da CIA ou do MI-6, a agência onde trabalha James Bond: repórteres são sumariamente expulsos, pois é proibido anotar. Aos afortunados de cotovelos robustos, que conseguem passar à frente das massas, várias são as recompensas. (Algumas vendas são de varejo.) Por 1,99 você pode comprar um funcional amassador de papinha, também no stand da Plick. Por 1,99 você compra um frango de borracha, uma saboneteira com ventosas, um incenso sabor melão, um livro evangélico e um pacote de unhas postiças. Por 1,99 você leva para casa os mais diversos instrumentos de cutelaria e, se der sorte, ainda recebe uma bala de troco. (Conseguir o troco certo de 1 centavo é mais difícil do que descobrir os segredos da Fini Guloseimas.)

Há cerca de 25 mil lojas de 1,99 espalhadas pelo território nacional, com estantes abarrotadas de quinquilharia e poeira (o pó é intrínseco ao segmento). Elas movimentam 8 bilhões de reais ao ano. Há pouca informação sobre a gênese desse tipo de comércio popular, mas sabe-se que, no Brasil, uma das primeiras lojas de 1,99 foi criada há mais de doze anos em Balneário Camboriú, Santa Catarina, pelo empresário argentino Hugo Martignone. Hoje o estabelecimento se chama Super 1,99 e segue a tendência atual: em vez de “Tudo por 1,99”, os letreiros dizem “A partir de 1,99”.

De fato, embora os produtos de 1,99 ainda representem o carro-chefe do negócio, na maioria dos estabelecimentos os preços oscilam entre 1 real e 10 reais. A feira oferece incontáveis itens nessa faixa. Muitos expositores não tinham uma única quinquilharia a menos de 1,99. “Aqui, só cartão de Natal”, diz o vendedor da Grafon’s, fabricante de artigos de papelaria. “A única pessoa que eu conheci aqui que só vende artigos de 1,99 é uma chinesa, dona de uma loja de flores de plástico.”

Para as festas de fim de ano, que sempre incluem libações várias e celebrações pantagruélicas, o setor também oferece alimentos a granel, tais como pão de cachorro-quente, biscoitos de polvilho, amendoim confeitado e balas de goma em forma de dentadura. Isso sem falar nos cosméticos, indispensáveis ao festeiro formoso e úteis para fazer bonito no amigo-oculto. Um alentado pote de creme (verde) para mãos e pés, de marca indefinida, pode ser adquirido pelos lojistas a menos de 1 real e revendido a 1,99. Nas farmácias, um similar de marca custa, por baixo, 8 reais. E note-se: nem é feito de sebo de carneiro.

A coisa está à solta

Posted: 3rd dezembro 2007 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 15
Dezembro de 2007

por Vanessa Barbara

“Me deram um brinquedinho”, diz Wagner Souza Amorim, de 25 anos, funcionário do SAO (sem til) Parking, estacionamento do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. De cinco meses para cá, ele faz a ronda montado num patinete motorizado de 27 mil reais, o Segway, que desliza suavemente pelo piso. Wagner dirige o mimo com peito estufado e porte altivo. Entre duas fileiras de automóveis, breca com destreza para abordar uma funcionária. Faz manobras radicais inclinando o tronco para a frente e desenha curvas arrojadas jogando o corpo para os lados. Sobe as rampas do edifício-garagem e avança com a imponência de um cisne.Acha a geringonça utilíssima para cobrir a área; afinal, são 50 mil metros quadrados, distribuídos em cinco andares.

O Segway, ou a “Coisa” (seu inventor lhe deu originalmente o nome de It), é uma espécie de patinete elétrico de alta tecnologia, movido a bateria recarregável. O projeto é simples: duas rodas, um guidão e uma plataforma para os pés. Lançada em dezembro de 2001 pelo americano Dean Kamen, a Coisa ganhou imediatamente o posto de invenção do milênio, concedido pela imprensa especializada em objetos de desejo do mundo do consumo. Seria assim como um iPod da locomoção humana. A Coisa é mesmo esperta. O pulo do gato é um sistema inovador de estabilização dinâmica: o auto-equilíbrio do condutor. O patinete não tem acelerador nem freio, pois é controlado pelo movimento do corpo. Na base onde se apóiam os pés, há um conjunto de cinco giroscópios e microprocessadores que reproduzem o senso de equilíbrio do labirinto. Assim, acelera-se projetando o tronco para a frente e freia-se jogando-o para trás. Os sensores detectam qualquer retraimento ou inclinação do motorista e respondem na forma de movimento.

“Ganhamos em agilidade”, explica o diretor operacional e financeiro do SAO Parking, João Carlos da Silva, o Jota Silva, de 58 anos. O Segway foi escolhido para substituir as motos, que eram muito poluentes e ruidosas. “E ele entrou com o elemento-surpresa”, acrescenta, “porque agora os vigias se aproximam sem fazer barulho.” Os patinetes são alugados de uma empresa de Cotia, a Segway Brasil, que fornece dois aparelhos e cinco baterias elétricas a um custo de 1 800 reais mensais por unidade. Os Segways fazem até 20 quilômetros por hora (o que não é lá grande Coisa) e têm autonomia de aproximadamente oito horas. De acordo com o fabricante, multiplicam por cinco a área de cobertura de um vigilante.

Segundo Jota Silva, o treinamento na auto-escola do Segway dura cerca de quarenta minutos. Para o usuário, o segredo é alcançar a própria estabilidade em cima do aparelho, que, ao ser ligado, pára em pé sozinho, o que por si só já é uma sensação. O vigia Wagner levou meia hora para pegar o jeito, e confirma: é mole. Tornou-se um experiente piloto, capaz até de dar rodopios sem sair do lugar. “Uma vez caí numa segunda-feira, voltando do fim de semana”, justifica o diligente funcionário, alegando que os folguedos dominicais haviam prejudicado seu equilíbrio. A Coisa, com justiça, é conhecida por ser quase à prova de quedas.

Quase. Em junho de 2003, ao tentar montar num Segway, o presidente americano George W. Bush tomou um tombo diante das câmeras. O acidente ocorreu na propriedade de verão da família, no estado do Maine. O supremo dignitário não seguiu o manual, que aconselha o principiante a usar capacete e chamar um amigo para segurá-lo: “Se você tentar andar pela primeira vez sem um apoio, corre grande risco de se machucar e provavelmente não se divertirá muito”. Rindo da cara do perigo, Bush não usou capacete, não chamou um amigo e, ao que tudo indica, deve ter se esquecido de ligar o aparelho. Este, por sua vez, não acionou o sistema de auto-equilíbrio e arremessou pelos ares o líder do mundo livre. Kim Jong Il, o ditador da Coréia do Norte, também é fã ardoroso do Segway. Com a doce brisa de Pyongyang acariciando-lhe os cabelos espetados, vive a flanar pelos corredores de mármore de seus palácios a bordo de um patinete. Não consta que já tenha caído.

Jota Silva confessa que já caiu três vezes. Com os Segways do estacionamento de Congonhas, até agora ninguém chegou a se machucar gravemente e não houve atropelamentos, mas a Associação Brasileira de Pedestres (sediada em São Paulo) já protestou contra os Segways usados nas calçadas pelos seguranças da Faap, a Fundação Armando Alvares Penteado. Segundo o fabricante, o produto é destinado a circular em áreas de pedestres. Nos Estados Unidos, ele está autorizado a trafegar nas calçadas de 42 estados, embora com restrições. Inglaterra, Japão e Hong Kong baniram o tráfego nas calçadas, alegando que é proibida a circulação de veículos motorizados no espaço destinado a pedestres. Cidades como São Francisco adotaram a mesma regra.

No Brasil ainda não há legislação específica sobre patinetes. Não importa. Dentro ou fora da lei, no estacionamento de Congonhas o Segway é muito popular. “A Preta Gil encheu o saco e conseguiu dar uma volta no G5”, conta Jota Silva, referindo-se ao último andar do estacionamento. A cantora já havia experimentado a Coisa nos Estados Unidos. Gostou tanto que, ao reencontrá-la no Brasil, insistiu até dobrar o segurança.

É proibido emprestar a Coisa a curiosos. Afinal, ela tem mais o que fazer: mantém-se em ronda permanente para vigiar o estacionamento, leva e traz recados entre os funcionários e acompanha clientes de olhar ansioso que vagam pelos corredores atrás de carros que não sabem onde enfiaram. O SAO Parking adotou “o mais avançado meio de locomoção da história” para achar automóveis perdidos. Toda hora aparece gente que alugou um carro e não faz a mínima idéia da cor e da marca do dito-cujo. Segundo o condutor oficial Wagner Amorim, são pelo menos dez carros perdidos por dia. “O problema é que na etiqueta da chave a locadora não especifica o modelo do carro, então fica difícil achar”, diz Jota Silva. É a proverbial agulha no palheiro: um carro afogado entre 3 350 similares. Servicinho talhado para a Coisa.

Revista Diálogos&Debates
ed. 30 – Dezembro de 2007

por Vanessa Barbara

Para os adolescentes, relógios de pulso já vão em boa hora

 

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Piauí n. 15
Dezembro de 2007

por Vanessa Barbara

Missa em latim provoca protestos de fiéis de 3 anos

In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti, diz o padre de costas, voltado para o altar. As palavras chegam miúdas na assembléia. Os fiéis têm os olhos fixos na estola verde sobre o dorso do sacerdote e no seu barrete litúrgico. Ele segue adiante: Introibo ad altare Dei, e sobe um degrau. Alguns fiéis respondem: Ad Deum qui lætificat juventutem meam [Ao Deus que alegra minha juventude], e viram a página do missal. A maioria se mantém calada, de joelhos e olhando para baixo. Outros rezam o terço ou tentam controlar suas crianças. Do altar, o padre prossegue com a oração inicial: Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto. Os fiéis replicam: Sicut erat in principio et nunc et semper et in sæcula sæculorum. Amen. É o começo da missa.

Desde o dia 16 de setembro, pode-se assistir, aos domingos, a uma missa em latim no Mosteiro de São Bento, em São Paulo. O ofício acontece às 18 horas e segue o rito tridentino, com o padre de costas para os fiéis, guardando distância. No dia do retorno à missa de são Pio V (1504-1572), ou “missa de sempre”, como é chamada pelos tradicionalistas, mais de 400 pessoas compareceram ao mosteiro.

Num domingo de outono, o número de fiéis continua grande. Até que toda a congregação possa comungar, recebendo a hóstia das mãos de dois sacerdotes, passam-se mais de dez minutos. “Voltou de suas catacumbas modernas a missa de são Gregório Magno, de são Bento, de são Pio V e de são Pio X”, rejubila-se o presidente da Associação Cultural Montfort, Orlando Fedeli, num artigo para o jornal da instituição. “Graças ao papa Bento XVI, a nau da Igreja, de novo, foi atada à coluna da hóstia”, comemora. Entre vitrais alemães e paredes de madeira entalhada, o coral gregoriano da Montfort solta o latim no cântico “Gloria in excelsis Deo”, com acompanhamento do portentoso órgão Walcker de 6 mil tubos. Lá fora faz calor, mas os homens vieram de terno. As mulheres usam véus rendados, pretos ou brancos. Laudamus te, benedicimus te, adoramus te, segue o coro, liderado por um insólito japonês.

A essa altura, as crianças já estão cansadas – a missa não chegou nem à metade – e perambulam pela nave da igreja, com seus sapatinhos lustrosos e roupas de domingo. Há uma quantidade incrível de crianças. A terceira fila é ocupada por uma constelação de menininhas: Maria Lúcia, Maria Helena, Maria Cecília, Maria Tereza e Maria Clara, todas nascidas neste século. Cada uma traz uma bolsinha para carregar o véu e o terço, como se estivessem num filme italiano da década de 50. Maria Helena, de 3 anos, muito compenetrada, lê o missal de ponta-cabeça.

Meia hora depois de iniciado o ritual, chega o momento da liturgia da palavra. O mistério se adensa, dado que as passagens bíblicas não constam do missal ordinário. Lidas em latim pelo padre, são incompreensíveis para a maioria dos fiéis. Um garotinho protesta em voz alta, mas também não é compreendido. Ao “Deo gratias” do público, e a mais um cântico do coro, segue-se a leitura do Evangelho. Maria Helena vira a página. Atenta, ouve minutos e mais minutos da vida de Cristo desfiada na língua de Sêneca, até a conclusão: Per evangelica dicta deleantur nostra delicta [Que pelas palavras do Evangelho nos sejam perdoados os pecados], quando todos se sentam. Depois da homilia – pregada em português e, o que é melhor, ao som de um microfone -, o padre convoca a congregação a dizer o creio-em-deus-pai: Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem, factorem coeli et terræ. A pequena Maria Helena embarca: “Djubidjubi dju”.

***

Foi no dia 7 de julho de 2007, às nove da manhã, fuso horário do Vaticano, que Bento XVI publicou um motu proprio [por iniciativa própria] que liberou a celebração das missas em latim. O ritual tridentino segue o missal promulgado em 1570 por Pio V, em cumprimento ao mandato que recebera do Concílio de Trento; ficou em vigência exclusiva até a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, nos anos 1960. O Mosteiro de São Bento adotou o motu proprio dois meses depois da sua publicação. Sob o crucifixo barroco de 1777 e o ícone da Virgem de Kasperovo, trazido por russos foragidos da revolução comunista de 1917, os monges passaram a promover a sua própria missa tridentina, com duração de uma hora e quarenta minutos. Nela, o sacerdote não fica “de costas”, como se costuma dizer, mas na posição ad Orientem [para o leste], em direção à Terra Santa. Sacerdote e congregação assumem a mesma posição, de frente para o altar, lugar simbólico de Cristo, versus Deum.

“Vão acabar, sim, as missas-rock, as missas com moçoilas dançantes com vestes diminutas ou transparentes, exibindo-se sensualmente ante o calvário”, prevê Fedeli, o presidente da Montfort, feliz com a resolução papal. “Essas missas com sambas e rocks, cuícas e baterias, essas missas de sacerdotes com rosto pintado como palhaços de circo. Acabou a missa de Oxum do padre Pinto. Acabou a missa com baldes de água jogados sobre os fiéis! Acabou a missa da cristoteca!”, festeja, num artigo intitulado “Christus vincit”. Adeus, padre Marcelo Rossi.

Mas nem todos estão satisfeitos. Na terceira fila, a pequena Maria Lúcia decide que é hora de ir ao banheiro. É retirada às pressas. As irmãzinhas ficam excitadíssimas: “Ih, a Lúcia fez cocô”, repetem. A novidade é tão graúda que, de uma hora para outra, elas não querem mais saber do ritual eucarístico nem das preces finais pela conversão da Rússia (introduzidas na missa tridentina por Pio XI, horrorizado que estava com os bolcheviques). A balbúrdia das menininhas chama a atenção do coral, que vacila. Como forma de manifestar impaciência, as cinco comportadas Marias arrancam os véus e deixam cair as chupetas.

Dando voz à insatisfação dessa parcela da cristandade que não aprova o motu proprio do Santo Papa, um menino de 3 anos aproveita uma pausa e grita: “Cabô?”

(Para os que sonham em celebrar o advento do Senhor na língua de Cícero, frei Guilherme Pinto, O.B.S., informa que “na Vigília de Natal não haverá missa no ritual tridentino”. Ou seja: Missa do Galo, só no vérnaculo mesmo.)

Redemoinho de círculos secretos

Posted: 1st novembro 2007 by Vanessa Barbara in Ficção
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Redemoinho de círculos secretos
Alguém pode começar a morrer muito cedo, e levar dias, horas ou anos para não existir mais

por Vanessa Barbara e Emilio Fraia

Piauí n. 14
Novembro de 2007

 

Lá estão os meninos no corredor de milho onde o tiroteio começa; o Bruno escapa na dianteira com a barriga mole de tanto dar risada, atrás vem o Cabelo, que cai sempre nos mesmos buracos e abre fogo com munição colorida – posso jurar, mesmo de longe, que o bombardeio de balas de goma tomou o campinho e riscou o ar feito serpentina. Meu irmão, o Chibo, ia no banco de trás. Eu estava no do passageiro, de joelhos, com a cabeça para fora.

Pela janela avistei o Cabelo que não conseguia alcançar ninguém, ainda mais entre os pés de milho, e novamente o espião búlgaro chegaria à fronteira do país neutro sob uma chuva de masca-masca sabor banana, talvez ferido nas costas, subiria a escada de sisal da casa da árvore e gritaria mulherzinha, mulherzinha. O Cabelo diria que não valeu porquessim, porque a brincadeira já perdeu a graça e os planos de Sua Majestade estavam criptografados, ou a Bulgária não existia de todo (no que decerto teria razão). Seria acometido da mais gorda e suntuosa birra desde os tempos do prezinho, e iria bater nos meninos mais novos. No Chibo não, claro. De todos, o meu irmão era o mais velho, tinha acabado de fazer doze anos, ele era forte, sempre me defendia e – olhei pelo retrovisor. Ele estava quieto: as palavras sumiam de vista feito uma estação fora do ar. Quando o carro parou, saltei com um pé só, e o Chibo, cheio de relâmpagos, nem se mexeu. Ficou lá, distante. Tentei dizer alguma coisa, mas peguei soluço ao bater a porta do carro (e sei que todo mundo ri quando começo uma frase e sou interrompido por um soluço, entrecortado por um susto que me faz perder o equilíbrio), então me calei. Engoli a respiração e fiquei vendo o carro diminuir, diminuir cada vez mais, depois sumir pela borda do milharal.

Na plantação, o Cabelo vinha na direção do Bruno, de banda, como desgovernado. O Bruno acelerou com força (os pulsos firmes), disparou uns restos de mato por cima do ombro – a essa altura eu também corria sem saber direito por quê – e nos cruzamos no ponto médio entre a casa da árvore e a estrada. Ou melhor, quase fui atropelado: ele passou voando por mim e me girou feito uma catraca, levando uma nuvem de poeira e vento sul de mormaço. Eu tossia e soluçava em seqüências alternadas e mal conseguia abrir os olhos quando (o soluço passou) surgiu o Cabelo em alta velocidade e, plof, me derrubou. O chão estava quente, dava para fritar as mãos; aos poucos, a plantação começava a queimar e ficaria pior, mas naquele dia caiu um temporal de machucar as costas, desses que acabam em cinco minutos e deixam um rastro de civilizações e formigas submersas.

Sem parar, o Bruno olhava para o céu com a boca aberta e tentava engolir os pingos. Não percebeu que a terra já escorregava e que as chances de acontecer uma derrapagem eram tantas quanto nosso amontoado de tralhas da casa na árvore, de modo que ele patinou, patinou e perdeu um sapato. Praguejou alguma coisa que não escutei e seguiu correndo de meias. Logo atrás, o Cabelo parou, apanhou o artefato e classificou-o como prova A da Promotoria – mas nem chegou a pedir autorização do juiz para girar o tênis pelo cadarço e arremessá-lo à distância. Plof: uma artilharia de palmilha e cano alto bem na mira do espião búlgaro.

Apesar do ferimento de calibre 35/36 nas costas, o Bruno continuou correndo. Arrastava-se aos tropeços, imaginando sua consagração como herói nacional. A perseguição passaria na tevê em câmera lenta, depois o povo o aclamaria em carro aberto. Ele mostraria aos tataranetos a marca da sola durante um churrasco da família e contaria longas histórias de guerra, talvez até participasse de encontros de veteranos e coisa e tal.

O Bruno chegaria à casa na árvore, de fato, não fosse a intervenção da Grande Poça, a mãe de todas as lamas, que aconteceu de repente bem quando ele olhava para trás. O espião afundou em cheio e caiu de cara. Emergiu daquela massa de lodo um Bruno caramelado e viu que era inútil continuar fugindo. A dois passos, a silhueta do Cabelo já lembrava seu direito de permanecer calado, citava a primeira emenda de cabeça e mostrava as algemas (que sequer existiam). A 2 centímetros, um aro sujo de metal encarava o Bruno, talvez um anel. Ele deu um jeito de guardar o objeto sem que o Cabelo percebesse, em seguida foi detido pelas autoridades e preso na casa da árvore.

O Chibo também não estava quando o Bruno falou do homem morto – um corpo do lado de lá do arame, em um lugar da plantação que, contando daquele jeito, parecia muito, muito distante. Não demorou: no meio do milharal, um redemoinho vivo de círculos secretos, entradas e saídas, o Bruno propôs o jogo. Ficou de joelhos e espalhou as folhas do caderno espiral (toda sua cartografia) pelo chão de terra. Calculou distâncias e provisões, pediu para todo mundo girar em torno do próprio eixo a fim de despistar o inimigo e, finalmente, baseado em estudos preliminares sobre a geografia local e o posicionamento das nuvens, apontou o caminho mais estreito, onde as folhas pareciam manchadas de ferrugem. Por ali, disse. Suas orientações vagas e intensas (o oeste correspondia ao norte e o centro estava junto à fronteira leste) passavam ao lado de uma árvore sozinha e muito vermelha, entre uns velhos pés de caqui, por trás de uma elevação onde o corredor se bifurcava em um, dois, três outros. O Cabelo decidiu, de repente, que também tinha visto o presunto, e para provar que não estava mentindo se apressou em ir na frente sem maiores (ou menores) perguntas, abrindo caminho com o braço, colhendo amostras de mato: “Vira à direita ou segue em frente porque dá na mesma”, e protegeu o rosto com a outra mão.

Fizemos silêncio e fomos andando, peteleco aqui e ali para espantar os carunchos que grudavam nas pernas. O Cabelo parecia animado e caminhava rápido: “Agora é traçar linhas coloridas nos mapas do Bruno, fazer a volta, vinte, trinta passos e pronto”. Às vezes ele parava num estalo, olhava para trás e dava alguma ordem a esmo (a gente quase nunca entendia). Na minha frente o Bruno, que lidava bem com aquelas freadas bruscas, continuava quieto – talvez pressentisse uma dor de barriga. Eu apenas seguia, na popa.

O caminho de milho não parecia levar a parte alguma, era cada vez mais espesso e abafado. Olhei para trás e notei que também se fechava por onde a gente tinha passado, mas não disse nada. Nunca dizia. O Cabelo estava todo picado e parecia feliz, parou para coçar a perna e analisar um besouro grudado no ossinho do tornozelo. O Bruno pensou em aproveitar a ocasião e subir nas costas dele, lá no alto gritar “terra à vista”, mas acabou agindo de maneira polida e pediu escadinha. Em dois segundos foi erguido o brunoscópio; por cima do milharal, ele não achou o arame nem nada, mas viu uma clareira à distância de vinte passos a estibordo, onde poderíamos descansar da coceira e analisar os mapas.

Era um pequeno espaço de folhas pisadas, que do alto formava um desenho alienígena (segundo o Cabelo). Sentamos sem vigiar a retaguarda ou saber se o terreno estava minado, apenas desabamos no chão e passamos a nos abanar. O Bruno juntou os joelhos e cantou baixinho. A essa altura, ele já devia ter uma explicação terrível para tudo e ficaria cada vez mais quieto – ele parou de cantar e olhou para a gente, como se fosse a vez do coral. O Cabelo abaixou a cabeça e confessou que, bem, na verdade, não tinha visto o morto, visto, assim, com os olhos, sabe?, tinha apenas ouvido uma história que – o Bruno se levantou, tomando a frente: “Minha vez de guiar”. Consultou o mapa, falou que estávamos no caminho certo e (só para impressionar) tirou do bolso um anel. “Não toquem nisto”, disse, satisfeito com o olhar de espanto dos expedicionários. “Achei na poça semana passada… É uma aliança”, e esperou uns segundos para fins dramáticos, “do cara morto.”

De cócoras, tragado por um sol imenso, o Bruno remexia as folhas secas do chão. Quando me viu, levantou rápido e fingiu estar interessadíssimo em um graveto sem nenhuma graça. Com as mãos cheias de pedras, o Cabelo apareceu. Distribuiu a artilharia e se afastou. A gente brincava de acertar pedras nas lagartixas da árvore, mas, por medo, nojo ou piedade, o Cabelo só assistia, ensaiando caretas a cada tiro. Não tardou para que um golpe dividisse ao meio uma das lagartixas. O Cabelo apertou os olhos, virou o rosto.As duas partes do bichinho despencaram tronco abaixo. Fiquei olhando para o vazio que separava a cabeça – os olhos estavam muito vivos ainda – e o rabo. Com um pauzinho, o Bruno cutucou a lagartixa: “Será que um homem demora assim para morrer?” Pensei no Chibo, em todo aquele silêncio do banco de trás, e que sim, alguém pode começar a morrer muito cedo (e levar dias, horas ou anos para não existir mais).

 

[trecho de O Verão do Chibo, Alfaguara, 2008)

Almanaque secreto da filosofia e do esporte

Posted: 3rd setembro 2007 by Vanessa Barbara in Ficção
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Revista Pesquisa/Fapesp
Ficção

Edição Impressa 139 – Setembro 2007

© Luana Geiger


Por Marcos Barbará

parte um: Filósofos-não-tão-filósofos

Polículo era um cidadão fidalgo e refinado, mesmo nos dias de chuva. Foi o primeiro antigo a amarrar as sandálias nas pernas, ainda que tenha amarrado as sandálias umas nas outras e pisado nos cadarços.

O grande momento da vida de Flatão (319-265 a.C.) foi quando o grande legislador Sólon, constipado, chamou Platão de Flatão, alçando este último à fama repentina e criando a efêmera escola Flatônica.

Brotágoras de Mileto acreditava que era sofista e, mesmo tendo nascido em 1981, fazia questão de pegar todos os dias o coletivo 701-U Jaçanã–Butantã/USP vestido como um ateniense orgulhoso, proclamando em voz alta: “A experiência ensina que para triunfar no mundo não é mister justiça e retidão, mas prudência e habilidade”, ao mesmo tempo que murmurava palavras incompreensíveis, alternadas com  “Sócrates” e “maldito barbudo”.

Monógoras descobriu que a matéria era formada de pequenas partes, que por sua vez eram formadas por partes menores ainda, e assim por diante. A menor de todas as partes ele chamou de “minhoca”. Decidiu apresentar sua descoberta na feira de ciências de sua escola ptolomaica, mas perdeu o prêmio máximo para Demócrito, que copiou totalmente seu trabalho, mas mudou o nome das pequenas partes para “átomos” e distribuiu balinhas de coco aos visitantes.

Hermeto era, provavelmente, a pessoa mais sábia de toda Tebas. Porém, sua tremenda dificuldade em ficar mais do que trinta segundos em uma sauna causou grande isolamento social, especialmente porque ele nunca conseguia ouvir uma piada de Xerxes até o final.

Penóprates (447-398 a.C.) era orador, mas seu sonho era ser técnico em informática.

Érmio de Platéia foi grande atleta em seu tempo, sobretudo nas provas de soletrar, as que mais agradavam os deuses na época. O célebre embate entre Érmio e Eustáquio de Átila foi interrompido por falta de segurança após Érmio soletrar “Mãe Edite, sua calvície molestou o otomano!”, em vez de “Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano!”, e em seguida alegar falha no sistema de som, causando tumulto de grandes proporções.

parte dois: Atletas não-tão-atletas

Jogos Olímpicos, 76 a.C.

“Os corredores já partiram! A torcida entra em delírio! Mas que competição, patrícios e patrícias! Aquiles, o favorito, tomou a dianteira, mas… espere um segundo! Ele parece demorar uma infinidade de tempo a correr o primeiro metro, como se o movimento fosse de algum modo impossível!”
Na tribuna da plebe, Zenão divaga: “Não acredito que comprei bilhete para isto”.

Estocolmo, 1912

Sob um frio de -5°ßC, o húngaro Fèrènc Çzabosz enfrenta o dinamarquês Zork Zjork pela disputa do ouro no joquempô, categoria freestyle.

No primeiro lançamento, Zjork, apoiado pela torcida dinamarquesa em maior número, escolhe “pedra”, ante o atônito húngaro, que nada pode fazer com sua “tesoura”. Çzabosz, visivelmente nervoso, é agredido pelo treinador, enquanto Zjork leva as mãos em concha à orelha, como que pedindo para a massa gritar seu nome. Isso faz com que a torcida local dispare uma série de apupos contra o atleta dinamarquês, colocando-se ao lado do húngaro.
O fato animou Fèrènc, que, no segundo arremesso, desferiu a “tesoura”, minando os planos de Zjork com seu “papel”.

Empatados em um, foram para o set derradeiro com enorme tensão. E nenhum torcedor, por mais doente que fosse, poderia imaginar o que viria a seguir: uma fuinha decidiria o ouro. Ao sinal do árbitro, os dois oponentes se preparavam para o lançamento final, quando uma fuinha atravessou o gramado*. Desnorteado, o dinamarquês escolheu “pedra”, sendo alvejado pelo “papel” do húngaro, que, em êxtase, começou a correr em volta de seu cotovelo. Zork Zjork, em vão, tentou invalidar o lance alegando invasão de gramado, porém seu recurso não foi aceito, iniciando uma confusão que não acabaria antes de Antuérpia, 1920.

*Até 1952, o joquempô olímpico era disputado na grama.

Amsterdã, 1928

A competição de Tiro ao Pato era o momento mais aguardado das olimpíadas, devido ao esperado embate entre dois monstros sagrados do esporte. De um lado, o paquistanês Mahutah Singh, único atleta da história a vencer um mundial de Tiro ao Pato atirando-se ao pato (ver “Mundial de Tiro ao Pato, Glasgow 1926”). Do outro, o não menos popular Mohutah Singh, da Índia, que certa vez matou um alvo-pato apenas olhando para ele e fazendo tremenda força.

Como esperado, os oponentes não erraram nenhum alvo na fase eliminatória, levando ao delírio os mais de 162 mil espectadores que superlotavam o estádio olímpico, com capacidade para 25 mil pessoas. Ainda no primeiro lance, Mahutah atingiu os dez alvos-patos enquanto discutia com seu agente as confusas cláusulas de seu contrato; Mohutah, por sua vez, acertou os dez patos com um único tiro, disparado no breve intervalo entre um cochilo e outro.

Depois de 174 rodadas e nenhum erro por parte dos gênios do esporte, a organização informou que todos os patos do continente europeu estavam extintos, restando apenas um. Decidiu-se por fazer os competidores atirarem simultaneamente, e aquele que atingisse primeiro o pato seria o campeão. Segundos antes do lançamento da ave, o público inclinou-se para a frente de modo a não perder nenhum detalhe da História sendo escrita. Porém, o mundo não esperava que o torcedor curvo Rítias, possuidor de escoliose, estivesse inclinado exatamente na linha de tiro, fato que impossibilitou o disparo dos atletas e permitiu ao pato seguir seu caminho rumo à liberdade.

Mahutah Singh e Mohutah Singh começaram a atirar a esmo em qualquer coisa que parecesse remotamente com um pato, alvejando e matando o arquiduque Francisco Ferdinando Filho; o incidente gerou um conflito bélico entre Índia e Paquistão que persiste até os dias atuais.

Helsinki, 1952

Faltando dezoito metros para o final da maratona, exatos 174 atletas estavam empatados em primeiro lugar, todos espremidos ombro a ombro. Eis que surge o ruivo Crítias e, em uma arrancada digna de um herói mitológico, ultrapassa cada um dos competidores e vence. Mas sua glória é efêmera, pois os árbitros anunciam que o ruivo Crítias está eliminado por ter participado da prova somente nos últimos vinte metros e por estar totalmente nu.

Corrida do Queijo de Gloucester, 1964

A célebre contenda de 1964 é, até hoje, motivo de discussões acaloradas e regadas a destilados. Há aqueles que se solidarizam com Harry Truman, não só por ele ser homônimo do presidente americano, mas também por ele não ter largado do queijo mesmo seis dias após a Corrida. Do outro lado, estão os partidários de Zenk Skifalver, o Austríaco, que demonstrou força física e de espírito incompatíveis para seu 1,41m.

Mesmo os dois tendo rolado 33 metros com o queijo entre eles, cada qual se agarrando ao lactoso à sua maneira, a rainha declarou como vencedor um simpático coelhinho, gerando uma batalha campal entre o público e a família real.


Marcos Barbará tem 27 anos e é autor de Anão vestido de palhaço mata 8 (Editora Rocco).
http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=4165&bd=2&pg=1

Horóscopo – Chantecler

Posted: 1st agosto 2007 by Vanessa Barbara in Ficção
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Convém fingir que se tem pressa
por Chantecler
[Marcos e Vanessa Barbara]

Piauí n. 11
Agosto de 2007

Para agosto, mês de cachorro louco, Chantecler prenuncia o juízo final, cataclismos climáticos e, de quebra, problemas digestivos de toda sorte. Segundo o profeta, Deus voltará, e o segredo é parecer ocupado, ou fingir que tem pressa. Se lhe perguntarem alguma coisa (“Crê em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra?”), diga que você é inocente até que se prove o contrário e está atrasado para um compromisso.

ÁRIES [21.03_20.04]
No mês de agosto, Júpiter ingressará em Plutão e colidirá com o planeta-anão, provocando uma calamidade de proporções astrofísicas. O ariano deve tomar cuidado nos dias 14 e 15, quando os pedaços maiores entrarão em rota de colisão com a Terra. Não faça planos para o futuro. No mais, o mês será propício para comer biscoitos e trocar de meias.

TOURO [21.04_20.05]
A segunda quinzena será marcada por um grande vazio existencial, principalmente para os terráqueos. A Fome, a Peste e a Guerra abrirão o sétimo selo – e ele não vale um centavo. Mas o nativo de Touro não deve se preocupar com o fim do mundo iminente. Apenas arrume as malas com antecedência, pois lá não se vendem pasta de dente nem calcinhas. Pedra: sabão. Filósofo: Ataxerxes. Tradutor: Remy Gorga, filho.

GÊMEOS [21.05_20.06]
A configuração astral favorece o geminiano, embora sua chance de morrer aumente para 96,4%. Empregos como tocha humana e homem-placa devem ser evitados, mas não recusados liminarmente – nunca se sabe. No campo financeiro, devem-se comprar ações de empresas que rimem com “herege”, como Telerj. Valem rimas forçadas, como Casas da Banha-RJ (mas se aplicar no Banerj, vai se dar mal). Temperamento: bilioso. Programa de televisão: Leilão de muares, canal 35. Animal: arminho-das-pradarias.

CÂNCER [21.06_22.07]
Agosto será um mês de grande ressonância cósmica para você, nativo de Câncer. Os planetas regentes entrarão numa órbita favorável no ordenamento do céu, mas você não enxergará porque é meio míope. O Sol em Touro mexerá na sua digestão. Seu intestino se tornará preguiçoso e correrá o risco de gerar maus pensamentos, azedar o caráter, transtornar o espírito e criar vocação para o delito. A solução é comer ameixas. Super-herói: Besouro Azul. Celebridade: Ronnie Von.

LEÃO [23.07_22.08]
É época de o leonino resolver os problemas de ordem espiritual e hidráulica, de preferência ao mesmo tempo. A partir do dia 20, aumentarão as chances de encontrar fantasmas, duendes, vizinhos, elfos, ex-cônjuges, Affonso Aroma de Santana e caroços desagradáveis. Compre um telefone com identificador de chamadas, mas não planeje uma viagem a Poços de Caldas. No campo da saúde, atenção à gengiva e aos pêlos púbicos. Elemento: Urânio 237. Big Brother favorito: Dhomini (BBB 1). Curiosidade: o astro Dudley Moore (19 de abril) é de Áries.

VIRGEM [23.08_22.09]
Cuidado, virginiano: você está propenso a pecar por excesso de imaginação. Ao preparar uma torta de maçãs, esqueça os vidros de páprica, alfavaca, coentro e tomilho. No campo sentimental, a mesma coisa. Nada de paquerar gente baixinha. A época é boa para fazer novos amigos e desovar os antigos em terreno baldio. Guru: Roberto Justus. Cor: cova.

LIBRA [23.09_22.10]
O libriano esconde suas emoções e freqüentemente esquece onde deixou. Atentar-se ao metabolismo basal e à osmose. Famoso, o libriano Citrus, que, conforme a literatura, “depois de doze dias preso e amordaçado foi solto, para então comer 112 latas de ervilhas em conserva, vindo a óbito em 25 de abril de 1674”. Personagem mitológico: Batman. Escola filosófica: pós-simbolismo. Especiaria: cominho.

ESCORPIÃO [23.10_21.11]
Você possui o temperamento cético, não-influenciável e racional. É um indivíduo ponderado que não tem medo de nada, exceto do anão Rumpelstiltskin e de palhaços que dançam. A partir do segundo domingo do mês, dedique atenção especial aos móveis da sala e aos rins. Formas: quadradas e cúbicas. Elemento: pedra-pomes. Dupla dinâmica: Tonto e Zorro (o Cavaleiro Solitário, e não outro, o que só se veste de preto).

SAGITÁRIO [22.11_21.12]
Sagitarianos são sujeitos pacatos, serenos, normalmente confundidos com capricornianos ou balões meteorológicos. Adoram azul e polpas. Neste período, não devem pilotar um zepelim, sob pena de não encontrarem vaga no estacionamento. Recomendável limitarem-se às funções vitais e bombear o sangue, que já está de bom tamanho. Planeta: Hercólubus. Sensação: torpor. Profissão: pedicuro.

CAPRICÓRNIO [22.12_20.01]
O capricorniano é impaciente, desonesto, pecaminoso e cabeçudo. Alguns possuem orelhas grandes e problemas na vesícula. À parte isso, terão um mês repleto de transformações financeiras, metafísicas, zodiacais e fiduciárias, sobretudo após o dia 15, quando a Terra sofrerá um pequeno revés e se tornará uma bola de felpo. Boa notícia para os nativos de Capricórnio, que adoram dias agitados. Ditador sanguinário: Kim Jong II. Elemento: surpresa. Supervilão: Sr. Mxyzptlk.

AQUÁRIO [21.01_19.02]
Os aquarianos de nome Adalberto e/ou Edegar devem preocupar-se com contaminação por plutônio ou fruta-pão, decorrente da implosão planetária. No campo afetivo, lamber o cotovelo pode atrair seres de outras espécies. Em hipótese alguma deve-se falar “Pelezinho”, sob pena de arcar com as conseqüências cabíveis. Traje: escafandro. Cor: pinho. Regente: Júlio Medaglia.

PEIXES [20.02_20.03]
O nativo de Peixes possui a sensualidade à flor da pele, automaticamente anulada caso ele tenha micose. Um rápido passeio pelos Bálcãs pode reavivar o espírito e a tuberculose. Durante o mês de julho, o pisciano deve evitar ler livros grandes ou sair sem chapéu. Vestir pulôver com bermudas pode ser instrutivo, embora isso nada tenha a ver com o horóscopo. Data comemorativa: Dia do aço galvanizado. Legume: escarola. Cor: cunda.

Eterno retorno

Posted: 1st junho 2007 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 9
Junho de 2007

por Vanessa Barbara

O Campeonato Brasileiro de Ioiô reúne aspirina, salsicha, chapolim, cogumelo e prenuncia a gloriosa volta à moda do pião

O atleta entra em campo com uma blusa de moletom e a bermuda até os joelhos, mascando chicletes. A torcida prende a respiração. Ele tem espinhas no rosto e um piercing no queixo. Pendurado na gola da camiseta, um par de fones de ouvido. O esportista respira fundo, estala os dedos e se concentra. Jurados prontos? Competidor pronto? Soam os primeiros acordes de um hip hop da banda Fort Minor. Os juízes se inclinam para frente. O atleta efetua o equivalente a um mortal triplo carpado, mas com uma corda de ioiô, e leva a torcida ao delírio.

Maestria, irritação e acidentes aéreos marcaram a sexta edição do Campeonato Brasileiro de Ioiô, num fim de semana de maio, num cinema no Conjunto Nacional, em São Paulo. O certame contou com mais de 50 competidores, todos de boné. (Dois usavam chapéus e o campeão jogou de capuz.) Nenhum dos favoritos tinha mais de 21 anos, e vários não tinham idade sequer para se esponsabilizar judicialmente pelas manobras mais arriscadas. No corredor, um menino de 4 anos arrastava os destroços de um ioiô quebrado, lançando dúvidas sobre a pacatice desse esporte universal – que no idioma tagalo1 quer dizer “volte aqui”.

No Brasil, a febre surgiu em três etapas. Primeiro em 1982, depois em 1995 e finalmente em 2000, com a popularização do ioiô da Coca-Cola, fabricado pela Russell. Os integrantes da nova geração são unânimes em atribuir seu início de carreira à marca de refrigerantes, que no passado distribuiu ioiôs e imprimiu nas tampinhas diversas instruções de manobras.

Mas o ioiô existe antes disso. “Ele foi inventado no império chinês”, afirma Pedro Rosa, de 13 anos, “e era de pedra.” Na verdade, ninguém sabe onde e quando ele foi criado, embora seja considerado o brinquedo mais antigo do mundo, depois da boneca. Sua invenção é atribuída ora aos chineses, ora aos gregos. No Museu de Atenas pode-se apreciar uma cerâmica de 2 500 anos que mostra um jovem brincando com um ioiô. No século xvi, soldados filipinos chegaram a usá-lo como arma.

Hoje, os melhores jogadores são os japoneses, seguidos pelos americanos. Outras potências são a Alemanha e Cingapura. Com cerca de 2 mil filiados à Associação Brasileira de Ioiô, a abi, o Brasil vem ganhando notoriedade. Uma das estrelas nacionais é Rafael Matsunaga, que foi campeão mundial em 2004. Ele é programador de computadores, mora em São Paulo e atende pelo codinome de Red. Matsunaga é um dos únicos onze mestres mundiais de ioiô.

Quase todos os que participaram do Campeonato Brasileiro se conhecem e freqüentam o fórum online da abi. Eles aprenderam suas manobras baixando vídeos na rede, onde há toneladas de clips com as melhores performances. Só o site da Associação Brasileira hospeda 50 gb de material. “Yoyo is a small world”, concorda o americano Paul Yath, de 24 anos, o atual campeão mundial, que se apresentou pouco antes da premiação.

As duas principais categorias do concurso nacional, que valeram uma vaga para o mundial, foram a 1a e a Open. O esporte possui cinco variações, que consistem em intrincados truques com a corda, que quase terminam em um grande nó. A divisão 2a é a mais clássica, praticada com dois ioiôs e manobras de loops (voltas e voltas). A triple A exige dois ioiôs e manobras de cordas – ou seja, é uma mistura das duas primeiras. A quarta variante é conhecida como offstring, pois é praticada sem prender o ioiô à cordinha. A quinta é executada sem prender o ioiô ao dedo, colocando-se um contrapeso no lugar. No Brasil, a categoria Open foi criada para englobar todas as outras, menos a 1a.

O Brasil tem se destacado na 1a e 5a. Nas demais, a prática é ainda incipiente e perigosa. Durante o aquecimento, um ioiô desgovernado (de tamanho grande) atingiu a repórter de piauí. O agressor, Ricardo Tatebe, aka Yuki, de 21 anos, pediu desculpas e negou que praticasse um estilo ofensivo. O fato de vitimar uma assistente leiga não pesou na opinião dos jurados, que conferiram a Yuki o quinto lugar na categoria Open.

Para a trilha sonora das apresentações freestyle, cada atleta trouxe um CD – em geral, gravado por eles mesmos, a partir de músicas em formato mp3. A grande maioria das canções tocadas não saiu do universo rap/ hip hop/ música eletrônica, e poucas eram do gênero hardcore, emocore e rock (em japonês). Um dos competidores usou o tema da Pantera cor-de-rosa, o outro, da série Os Simpsons, e um terceiro, do jogo de videogame Super Mario. Apenas quatro músicas eram nacionais: duas do Planet Hemp, uma dos Raimundos e outra do Castelo Rá-Tim-Bum.

***

Durante o torneio, o americano Paul Yath aproveitou para vender dezenas de unidades de seu ioiô Milk. “It’s a funny yoyo”, justifica o fabricante. O artefato vem em uma embalagem de leite e custa 50 dólares, mas “não é uma fonte recomendável de vitaminas e minerais”, segundo o rótulo. Já o veterano Mark McBride levou seu ioiô de magnésio no valor de 400 dólares, desenvolvido pela Duncan com partes de um carro de Fórmula-1. No Brasil, o único ioiô de alumínio é fabricado artesanalmente pela Yoyojoca, e sai por 139 reais. O mais barato do mercado, feito de plástico resistente e rolamento blindado, é da marca Vulto. Custa 20 reais.

Antes de se apresentar, os atletas escolhem um ioiô e enfileiram uns dez outros na beirada do palco. Na fase preliminar, o jogador tem apenas um minuto para efetuar as manobras que quiser. Dez concorrentes se classificam para a final, com três minutos de freestyle por atleta. Entre os juízes, além de Matsunaga, presidente da abi, e o campeão Paul Yath, estavam o grafiteiro Titifreak e o veterano Hitokiri. Debaixo da mesa, eles manipulavam dois marcadores, um em cada mão, conforme o competidor acumulava pontos e penalidades. Para a comissão julgadora, o maior pecado é enrolar a corda com a mão ou largar o artefato no ar, em um zupt mortífero. Dois competidores quebraram o ioiô e arrebentaram a cordinha em plena apresentação. “Sempre rola de puxar muito forte e voltar na cara”, confessa José Lucas Dechen, de 16 anos, que veio de Santa Bárbara d’Oeste, no interior de São Paulo.

Dechen é um dos jogadores que unem a experiência do ioiô à prática do pião, atualmente apelidado de spin top. A novidade é a junção das manobras do ioiô com o equilíbrio de um pião de rolamento – semelhante ao velho pião de madeira, mas cuja ponta não gira, só o topo. Os praticantes sustentam o pião sobre a palma da mão, enrolam a corda nos braços e fazem o objeto correr. As manobras de ioiô inevitavelmente geram novas técnicas de spin top, e os ioiozeiros passam a se dedicar a ambas as modalidades, como se o pião pertencesse a uma suposta categoria 6a. Mais uma vez, centenas de moleques de 16 anos – que jogam Second Life e baixam filmes pela internet – resgatam um velho brinquedo, mais antiquado impossível. São atletas que têm apelidos como Aspirina, Salsicha, Olívia Palito, Chapolim e “Cogumelo” (“seu fungo ordinário!”, gritou alguém da platéia quando ele se apresentou). O mais respeitado deles é o “Marechal”, carioca de 26 anos apontado como favorito, mas que amargou o vice-campeonato da categoria 1a. O veterano Luiz Ricardo do Nascimento acabou errando uma manobra nos últimos segundos da apresentação e atirou o ioiô na platéia, irritado. Ficou a apenas quatro pontos do primeiro colocado.

A despeito da quantidade e da diversidade dos competidores, o vencedor de ambas as categorias foi o mesmo: Danilo Packer, jundiaiense de 19 anos, que no ano passado também levou o troféu das modalidades 1a e Open. Alto e ligeiro, adepto de correntes e calças largas, Packer estuda design gráfico e pratica ioiô há seis anos. Na modalidade Open, ele abriu quase trinta pontos de vantagem sobre o segundo colocado, mesmo depois de se apresentar com capuz e ouvir da platéia que aquilo não era boxe. Packer não precisou competir com luvas de lã e nem com um ioiô de ouro 24 quilates, ao contrário do que se viu nos bastidores do evento. Segundo ele, “o bom jogador é que faz o ioiô”.

1 Ioiô é cultura: tagalo é língua malaia, falada nas Filipinas.

Sistema de currículos Lattes

Posted: 2nd abril 2007 by Vanessa Barbara in Ficção
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Revista Pesquisa/Fapesp
ed. 134 – Abril de 2007

por Vanessa Barbara

Aos oito anos, Bruno inventou um protótipo de torradeira movida a cuspe que não funcionava. Sua irmã, Teresa, passou a usar o objeto para alisar o cabelo, mas sem a anuência do inventor. Bruno também é conhecido como o detentor das patentes do forno de madeira e do dedal de pão. Na feira de ciências da escola, testemunhas alegam que ele incendiou um batalhão de 58 soldadinhos de plástico — que derreteram lentamente enquanto as meninas da classe gritavam — e, ao ser escoltado à diretoria, garantiu que a ciência ainda descobriria a utilidade prática daquele experimento. Bruno era o campeão em combustões espontâneas e possuía uma coleção de quinze tipos de coleópteros, que ele vinha treinando para estrelar um musical de horror em stop-motion chamado “Besouros!”.

Daí se pode concluir, portanto, que Bruno nasceu para a ciência. No dia em que concluiu seu minucioso trabalho de coleta da gripe (espirrou durante meses nos potes de maionese e rotulou-os de um a vinte) e deu início à fase empírica do trabalho, Teresa foi a primeira voluntária a ser levada ao laboratório. Algum tempo se passou sem que a diretora soubesse exatamente o que tinha acontecido com a menina. Quando, na sexta-feira, a mãe de Bruno ligou para a escola justificando a ausência da filha, contaminada por um rotavírus, Bruno anotou “pneumococo!” no caderno e foi escoltado para a diretoria, provavelmente dedurado pelo bedel surdo do corredor. Além disso, a melhor amiga de Teresa apareceu na escola com piolho, mas não há indícios de envolvimento do garoto na epidemia.

Bruno gostava de fazer incursões por todos os ramos conhecidos da ciência. Aos doze anos, criou cogumelos no tapete da sala. Aos quinze, imantou a máquina de lavar e arrastou-a por três metros, até que ela caísse da escada e quebrasse o chão do quintal. No mesmo ano, construiu um pára-raios e assassinou a tartaruga, após quebrar um termômetro e misturar mercúrio à comida do animal. Seus métodos eram cada vez mais discutíveis. A classe se dividia entre apoiá-lo e dedurá-lo ao bedel, que continuava surdo, a despeito de todas as tentativas de Bruno. (É verdade que certa vez ele fez nascer um pêlo branco na orelha do bedel, mas infelizmente o pêlo não restaurou sua audição e foi arrancado para biópsia.)

Finalmente, Bruno se formou com média seis ponto dois e entrou para a faculdade de biociências. Logo no primeiro ano, seu trabalho de iniciação científica destacou-se por um inédito achado estatístico: o encontro de freqüentes casamentos entre mulheres com artrite reumatóide e homens com úlcera péptica, o que caracterizaria uma ligação neurótica entre mulheres agressivas e controladoras e homens passivos e dependentes. (Embora o tema original do trabalho fossem as abelhas.) Foi nesse ano que Bruno explodiu a porta do Instituto de Física e matou mais uma tartaruga, durante uma pesquisa com amianto. Graças à alta rotatividade de seus animais de estimação, ganhou uma pedra para cuidar quando completou 21 anos.

A trajetória acadêmica do garoto passou de boa para questionável; professores se recusavam a orientá-lo em projetos francamente anormais e rejeitavam sua inscrição nas disciplinas. Ao ser destacado como monitor das aulas de genética, convenceu um de seus pupilos a implantar duas orelhas em um besouro (ou dois besouros em uma orelha) e obteve sucesso em ambas as experiências, ao que telefonou imediatamente para o bedel surdo. Como o sujeito estava cada vez mais surdo, foi difícil transmitir a emoção que lhe traria uma nova orelha na nuca. Da longa resposta, Bruno só conseguiu entender que o pêlo branco nascera de novo e crescia todos os dias, à razão de dez centímetros por semana. E o pior: estava captando as ondas de uma rádio comunitária. Bruno desistiu da implantação auricular e prometeu passar na casa do bedel com um contador Geiger.

No último ano da faculdade, Bruno decidiu que começaria a usar um chapéu, informação que pode ou não adquirir importância no decorrer da história. Afora isso, a vida se arrastava numa mesmice: Teresa resistindo para não virar cobaia, e o bedel surdo se alarmando com as emissões de ondas infra-sônicas que escutava todas as manhãs. Um dia, porém, na aula de Zoologia de Vertebrados ii, aconteceu o improvável: ele se apaixonou pela garota da primeira fila. Bruno percebeu que a moça não dava bola para ninguém, mas que prestaria atenção (ah, se prestaria) caso ele ejetasse a si próprio da carteira e fosse audaciosamente rumo aonde nenhum acadêmico jamais esteve. Primeiro, esboçou o protótipo da almofada ejetora, que grudaria ventosas na superfície e impulsionaria o cientista para o alto, a uma distância de muitos metros em direção às nuvens. Isso tudo teoricamente, porque na prática a almofada sugou Bruno para baixo com toda força e quebrou o chão do quintal, mais uma vez. Como ele usava apenas um capacete, acabou fraturando a bacia.

Bruno se formou na universidade com média seis ponto dois, ficou três meses em repouso e acabou desistindo de cortejar a garota, que no entanto continuou sendo a musa de suas criações posteriores. Em seu período mais produtivo, aos trinta, ele confeccionou um despertador não intrusivo (que apenas acenava para o dorminhoco, sem disparar alarmes), uma maçã com gosto de mandioca e uma nova linha de post-its sabor morango, que vendeu para a Pfizer.

Aos quarenta anos, veio uma fase mais abstrata, voltada a descobrir coisas já descobertas: primeiro a Birmânia — antiga Mianmar —, depois o fogo e, em seguida, o ovo frito. Bruno já não sentia todo o potencial criativo da juventude e pensou em se aposentar. Foi um período de muitas dúvidas, em que ele chegou ao cúmulo de subestimar a real utilidade de sua pesquisa sobre pneumococos. Mesmo assim, a coleção de coleópteros do cientista alcançou a marca do milhar, com a ajuda de alguns sapos.

Mas Bruno não havia esquecido seu grande projeto de vida, a portentosa obra-prima da engenharia que agora tomaria forma: na noite em que completou cinqüenta anos, afinal, aposentou-se e retirou-se para o campo, a fim de testar a almofada ejetora, o sonho de toda uma vida. Meses se passaram.  Nunca mais se ouviu qualquer notícia do rapaz, e nem sua irmã sabe o que aconteceu durante a comprovação empírica. Anos depois, um cientista acabou lendo a obra completa de Bruno (em volumes de pano) e anunciou a cura do diabetes após estudar o episódio dos soldadinhos incinerados.

Mais tarde, um astrônomo amador descobriu que o pêlo branco conseguia captar rádios comunitárias de outros planetas.


Vanessa Barbara tem 24 anos, é jornalista e escritora, repórter da revista piauí. Desde 2002, edita o sítio A Hortaliça (www.hortifruti.org). Link para o artigo original: http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/10/11/sistema-de-curr%C3%ADculos-lattes/

Phaic Tan, terra para intestinos fortes

Posted: 1st abril 2007 by Vanessa Barbara in Traduções
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Phaic Tan, terra para intestinos fortes
O país-fetiche do turista descolado, que não se importa com movimentos peristálticos bruscos

Vanessa Barbara

Piauí n. 7
Abril de 2007

HISTÓRIA
Durante muito tempo, o nome Phaic Tan esteve associado a atrocidades, miséria e massacres, que, combinados com a péssima qualidade das freeshops, limitavam consideravelmente o número de turistas, e fez com que, na prática, o país fosse visitado apenas por funcionários de organizações humanitárias e especialistas em negociação com seqüestradores. Depois de anos de batalhas sangrentas, no entanto, Phaic Tan pode ser enfim considerada uma nação em paz. Os conflitos armados se restringem somente às províncias do norte e ao Cassino Bumpattabumpah. Por toda a ilha, cidadãos que antes militavam em células guerrilheiras clandestinas finalmente pararam de lutar entre si, e agora recebem os visitantes de braços abertos e gritos de “mãos ao alto!”.

TERRA DE CONTRASTES
O perfil dos turistas em Phaic Tan varia muito – do onipresente mochileiro, atraído pelas praias tropicais desertas e pelo serviço 24 horas de massagem nos pés, ao viajante sofisticado e exigente, que busca o conforto nos mais exclusivos resorts litorâneos do mundo, refúgios cinco estrelas tão suntuosos que os funcionários são renovados diariamente só para garantir frescor da paisagem humana.

UM OLHAR SOBRE O PASSADO
Segundo os arqueólogos, Phaic Tan foi uma parada importante na rota do homem de Neanderthal da África para a Ásia. Enquanto os membros mais desenvolvidos do clã seguiram em frente, os espécimes mais lerdos e de cérebro menor se estabeleceram em Phaic Tan e se reproduziram. Como viviam em árvores, só quando as florestas começaram a rarear eles foram obrigados a evoluir. Desceram então de seus galhos e se espalharam pelas planícies. Um grupinho dissidente tentou viver debaixo d’água e logo se extinguiu. Datadas de 4000 a.C., evidências do cultivo do arroz foram encontradas no nordeste do país, quando arqueólogos desenterraram ferramentas agrícolas primitivas e um recipiente extremamente arcaico de molho de soja.

No final do segundo milênio antes de Cristo, amostras de bronze, latão, estanho e jade foram trazidas à região por imigrantes chineses. O povo de Phaic Tan logo percebeu o potencial dos novos metais, e inaugurou o que foi provavelmente a primeira loja de quinquilharias e souvenires da Ásia.

A civilização não se instaurou em Phaic Tan até pelo menos 2000 anos atrás, quando hordas de habitantes do centro e do sul da Ásia migraram para lá, atraídos pela abundância de comida e de creches. Foi nessa época que a roda apareceu no país. Em pouco tempo, os nativos começaram a usar os números e, pouco depois, inventaram a roleta.

Por volta do século VII, mercadores e missionários começaram a chegar da Índia. Os mercadores trouxeram do Ocidente novos valores sociais e políticos, bem como estilos artísticos e arquitetônicos. Os missionários trouxeram o bingo. Nesse período, os Tubom, uma seita de budistas castrados de Burma, invadiu o país e forçou os habitantes de Phaic Tan a se tornarem pacifistas.

MIOPIARAPTOR
Restos fósseis deste dinossauro foram encontrados a leste de Nham Pong. Depois de passar mil anos trombando com árvores, a criatura, de visão limitadíssima, desenvolveu um crânio de 60 centímetros de espessura.

O POVO

Nunca encontrei um povo tão briguento e belicoso, dado a explosões de raiva diante da menor provocação.

(Jules Grenouille, antropólogo, em 1712, pouco antes de ser apunhalado até a morte por um monge noviço, que se irritou com o barulho da caneta de Grenouille ao escrever.)

Não há dúvidas de que os phaic-taneses têm um longo histórico de massacres e de violência. Há anos, tentando reprimir a propensão belicosa da população, o governo experimentou adicionar estrógeno à água potável. A iniciativa resultou num leve declínio das taxas de criminalidade, e num aumento generalizado de clubes de leitura. A experiência teve que ser abandonada quando um bombeiro de 37 anos, de Pattaponga, ganhou o primeiro lugar num concurso de beleza e foi eleito Miss Phaic Tan.

POPULAÇÃO
Phaic Tan é um verdadeiro caldeirão de etnias. Durante séculos, o povo absorveu uma quantidade enorme de influências. Nos últimos tempos, a população também absorveu, como resultado da mineração irregular, uma formidável quantidade de metais pesados. Esses fatores contribuíram para a formação de uma identidade nacional singular.

É difícil saber exatamente quantas pessoas vivem em Phaic Tan, já que, sendo um país budista, ao fornecer informações ao Censo, muitos cidadãos registram tanto a pessoa do presente quanto suas encarnações anteriores. Além disso, mais de 300 funcionários destacados para a coleta de dados demográficos continuam desaparecidos, tornando as estatísticas ainda mais imprecisas.

A superpopulação nos grandes centros continua sendo um problema, a despeito das iniciativas das autoridades locais. Em 1980, o limite de velocidade nas estradas foi aumentado para 340 km/h e a colocação de grades ao redor das piscinas foi considerada ilegal, medida que logrou êxito imediato. Os índices demográficos diminuíram ainda mais em 1992, com a reintrodução no país da gasolina com alto teor de chumbo.

Apesar das mudanças trazidas pelo turismo e pelo comércio, os phaic-taneses continuam apegados às tradições, e a distinção entre sexos é bastante rigorosa: as mulheres podem criar gado, cultivar as plantações, estocar provisões, cortar lenha, fazer artesanato e cuidar das crianças; os homens devem preparar sacrifícios aos deuses e pôr o lixo pra fora.

ETIQUETA
Os turistas ocidentais devem sempre lembrar que Phaic Tan é um país conservador, onde as mulheres andam de moto sentadas de lado. Para muitas, o casamento é consumado de maneira similar. Demonstrações de carinho ostensivas, como andar de mãos dadas, acariciar ou bolinar devem ser evitadas em público, sobretudo se você estiver sozinho.

COMO SE VESTIR
Use roupas simples e evite qualquer tipo de traje que possa ser inapropriado ou ofensivo, como tops escandalosos ou roupas de safári. Seja ainda mais prudente ao visitar mesquitas e templos. Para as mulheres, minissaias indecorosas e umbigos de fora estão proibidos. Para os homens, minissaias indecorosas e umbigos de fora são encrenca na certa.

SAPATOS
Uma dica de etiqueta importante: sempre tire os sapatos antes de entrar em uma casa. A atitude demonstra respeito aos anfitriões e também protege o carpete, em geral de péssima qualidade.

Deve-se também tirar os sapatos antes de entrar num templo, embora seja cada vez maior a incidência de roubo de calçados nas grandes cidades. Os turistas são freqüentemente convocados a comparecer a delegacias para identificar seus sapatos roubados, processo feito pelo olfato.

Na sociedade de Phaic Tan, a cabeça é considerada a parte mais sagrada do corpo, e os pés vêm por último. Portanto, não toque sem querer a cabeça de ninguém e não se sente de maneira relaxada, com os seus pés apontando para outra pessoa. Em hipótese alguma você deve tocar a cabeça com os pés.

IDIOMA
O phaic-tanês oral é uma das línguas mais rápidas do mundo – em média, 192 sílabas por minuto. Um verdadeiro pesadelo para a tradução simultânea, o falante nativo de Phaic Tan costuma cantar o hino nacional inteiro em menos de dez segundos. Para piorar, o idioma phaic-tanês é tonal, e uma palavra pode ter diferentes significados dependendo da entonação usada: “ha”, por exemplo, pode significar “cavalo”, “árvore”, “nuvem”, “paz”, “tarde” ou “você está pisando no meu pé”, dependendo da inflexão da voz e da força com que é berrada.

Devido a essas dificuldades, muitos ocidentais relutam em aprender o phaic-tanês. É uma pena, pois os nativos provavelmente apreciariam qualquer tentativa de dominar o idioma, já que em geral eles não têm muito do que rir.

QUESTÕES DE GÊNERO
Uma das maiores dificuldades para os falantes não-nativos é que as palavras não são determinadas pelo gênero do interlocutor, mas pelo gênero do falante e pela direção do seu olhar. Ainda por cima, as sentenças podem terminar com diferentes sufixos (kar, lo, phar etc.), dependendo da hora do dia. Para complicar, o idioma phaic-tanês emprega três níveis distintos, que indicam a casta ou o status do ouvinte, variando do “Alto phaic-tanês”, um estilo formal cheio de frases elaboradas e floreios retóricos, até o “Baixo” ou “Comum”, que basicamente envolve cuspir.

CULINÁRIA
Para os que não conhecem a culinária phaic-tanesa, é só imaginar os melhores ingredientes da cozinha chinesa e a sofisticação dos temperos indianos, apresentados com a elegância dos melhores restaurantes franceses. A palavra-chave é “imaginar”, já que a cozinha em Phaic Tan sofreu muito com a pobreza dos anos de guerra e com a baderna econômica. Recentemente, no entanto, a culinária phaic-tanesa tem passado por uma espécie de renascimento, e alguns ótimos prazeres aguardam os viajantes aventureiros, inconseqüentes e estomacalmente intrépidos.

QUENTE E APIMENTADA
Os phaic-taneses preferem pratos apimentados, com a presença de chillis por toda parte: nos curries e nas frituras, bem como nos cereais matinais e nos sorvetes. A versão phaic-tanesa para o “bom apetite” (mihn laum) pode ser traduzida literalmente por “Que gotas de suor escorram pela sua testa!”. Mas o afluxo de turistas contribuiu para amenizar os hábitos locais, e vão longe os dias em que, se um freguês pedisse “alguma coisa menos apimentada”, o chef irromperia da cozinha armado com um cutelo de carne e questionaria a sua masculinidade.

Além do chilli, outros ingredientes essenciais para a cozinha phaic-tanesa são os frutos do mar, frutas, vegetais, broto de feijão, broto de bambu, capim-limão (ou, nas regiões mais pobres, limão no capim), manjericão, menta e rato.

Os turistas não demorarão muito para conhecer o molho Sambal, uma mistura inflamável de cebolas, cebolinhas, cúrcuma, gengibre, alho e pimenta vermelha, usada largamente em restaurantes e residências, onde é oferecida a bebês que sofrem de cólica. Outro condimento bastante popular é o praherk, uma pasta de peixe de aroma fortíssimo, usada para disfarçar o cheiro de certas comidas. Infelizmente, nada consegue disfarçar o cheiro do praherk, e é melhor evitá-lo. O prato mais comum ao norte de Phaic Tan é o phoar, um caldo ou sopa para ser comido com palitinhos, o que pode explicar a alta incidência de desnutrição na região.

O SABOR DE PHAIC THAN…
Dica de etiqueta: nos restaurantes e residências de Phaic Tan é de bom tom deixar alguma comida no prato. Não apenas para demonstrar boas maneiras, mas também para dar algo com que trabalhar ao toxicólogo forense que, possivelmente, investigará sua morte.

Os chillis de Phaic Tan são considerados os mais picantes do mundo, tanto que, depois de comê-los, é ilegal arrotar sem a autorização dos bombeiros.

O nergak é um molho de peixe apimentado que acompanha inúmeros pratos em Phaic Tan. Ele é feito de uma planta processada em Pattaponga, uma das maiores fábricas da Ásia, provavelmente a única construção humana que pode ser cheirada da Lua.

O pu wiph é uma fruta tuberosa que dizem combinar o cheiro do queijo gorgonzola com a textura de uma esteira de palha. Quanto ao sabor, ninguém foi corajoso o suficiente para provar.

Para conhecer a comida phaic-tanesa autêntica, vá a uma tradicional barraca de feira, ou sahlmonellah.

COMPRAS
As lojas de Phaic Tan oferecem uma grande variedade de tecidos, roupas, sapatos, jóias e artesanatos. O único problema é que, em geral, esses produtos são de péssima qualidade e foram feitos em Taiwan.

Naturalmente, para obter o máximo em terapia de consumo você não pode deixar de ir a um dos novos supershoppings centers, como o de King Tralanhng, em Bumpattabumpah. Um edifício gigante – tão grande que tem três fusos horários -, o Tralanhng ostenta o maior ventilador de teto do mundo, feito das hélices de um Black Hawk aposentado.

MERCADO NEGRO
Não existe nenhuma dúvida de que Phaic Tam é um dos centros mundiais de produtos pirateados de todos os tipos. A pirataria é tão bem-sucedida por lá que já existe um mercado bem estabelecido de piratas de piratarias.

FÁBRICAS
A seda de Phaic Tan é considerada uma das mais finas do mundo, apesar de sua trama grosseira e da tendência de rasgar quando dobrada. É muito usada no país em todo tipo de roupas, dos tradicionais vestidos de noiva aos guardanapos descartáveis e vendas de pano para o fuzilamento no paredão.

MASSAGEM
A massagem tradicional, ou Sem-Saka-Ngem, costuma ser associada à indústria do sexo, mas na verdade as técnicas phaic-tanesas têm pouco a ver com o prazer sensual. A forma mais comum de terapia tátil é o que se chama de massagem “tradicional”, e não é parecida a nada do que já se experimentou antes, a menos que você tenha recentemente tropeçado numa cerca elétrica. Começa com o seu corpo sendo coberto de óleo de coco da cabeça aos pés. O mais estranho do procedimento é que você continua inteiramente vestido. A massoterapeuta, então, começa a trabalhar vigorosamente em diversos pontos de “ativação”, que têm esse nome pois, quando apertados, ativam uma enorme onda de dor. Ao contrário da massagem sueca, que procura relaxar o corpo através de movimentos suaves com as mãos e dedos, os terapeutas phaic-taneses empreendem um ataque de diversas frentes usando as mãos, os polegares, dedos, cotovelos, antebraços, joelhos e, em alguns casos, uma pistola de pregos. A massagem costuma durar meia hora, ou até o cliente desmaiar.

Atenção: Se uma massagista phaic-tanesa prometer um “final feliz”, isso significa que você sairá do local sem ter sua carteira roubada.

Dica fotográfica: Cuidado ao mandar revelar suas fotos nos bairros de vida noturna intensa, pois neles se presume que você quer ter seu rosto coberto por uma tarja preta.

COMO CHEGAR
A maioria dos turistas chega a Phaic Tan de avião, desembarcando no aeroporto de Phlat Chat. Infelizmente, as grandes companhias aéreas não voam até Phlat Chat, inconformadas com a recusa das autoridades do aeroporto em expulsar os camelôs que montaram barracas em torno da pista de aterrissagem.

A melhor maneira de conseguir um vôo é a bordo da transportadora nacional Royal Fok Tok Airlines. Batizada com esse nome em homenagem a uma ave não-voadora, a Fok Tok tem como uma de suas marcas o procedimento de aterrissagem espontâneo, no qual os pilotos desligam os motores dez minutos antes do pouso, para economizar combustível.

A Fok Tok não apenas permite fumar a bordo, como inclusive encoraja a prática, especialmente à noite, quando uma grande quantidade de cigarros acesos compensa a falta de iluminação na cabine.

Se você prefere optar por outro tipo de transporte, há uma ferrovia expressa ligando Phaic Tan a países vizinhos. A linha mais popular é a do Trem-Bala, que funciona duas vezes por semana, e tem esse nome pois é freqüentemente atingida por tiros de rajadas ao cruzar a fronteira.