Os jardins de Armênio (ficção)

Postado em: 11th outubro 2018 por Vanessa Barbara em Ficção
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Granta em Língua Portuguesa
Número 2 – Outubro de 2018

Vanessa Barbara

No caminho para o leste da ilha de Torcello, após uma estradinha que margeia um canal, vive um cachorro branco com uma orelha marrom. Ele costuma tomar sol nos degraus da igreja de Santa Fosca. Deus pode ser avistado nessa esquina, ao lado de uma pedra, geralmente mascando chicletes e catando as pulgas do canídeo.

O Altíssimo também pode ser encontrado no tempero do feijão do restaurante do Valdênio, em Fernando de Noronha, e na campainha do elevador do hotel Le Royal Méridien, em Xangai. Ele está no bolso de um passageiro da Ryan Air que, diante do guichê do check-in, abre a mala e começa a vestir o maior número possível de roupas, na esperança de reduzir o peso da bagagem e não ter de pagar taxas extras.

Deus está presente na perpétua falta de sabonete no banheiro público de Puerto Velasco Ibarra, na ilha Floreana, em Galápagos. (Ou melhor: Ele está na falta de sabão dos banheiros públicos em geral. Onde quer que não exista papel higiênico, Deus está por perto.) Ele está nas meias de lã e nos dedais de metal. E nas pessoas que perdem o equilíbrio quando espirram. Está no rastro das lesmas e nos rodinhos de pia que vêm da China em contêineres de navio.

Ele está no cheiro da massa de panqueca dentro do liquidificador e na peculiar textura úmida e elástica das patas de trás de uma tartaruga de água doce.

Também está nos ouvidos do padre Armênio, que veio do Ceará para cursar o seminário e virou titular de uma paróquia no interior de São Paulo.

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Pouco antes de completar 45 anos, o padre Armênio Oliveira de Jesus assumiu a paróquia Santo Inácio de Loiola, em Montes Baixos do Sul. Herdou do padre anterior um vasto jardim com um pé de manacá-de-cheiro, uma árvore de acerola, uma palmeira metida dentro de uma caixa d’água, um vaso de babosa, outro de erva cidreira, um pé grande de boldo para fazer xarope, roseiras, dezenas de pés de antúrio branco e vermelho, algumas fileiras de margaridas e uma trepadeira lágrimas-de-cristo.

Se soubesse disso, talvez não tivesse aceitado aquele posto. O jardim era uma referência na região, uma espécie de ponto turístico para os visitantes de cidades vizinhas, e padre Armênio não tinha mão boa para cuidar de plantas. Também lhe faltava paciência para essas questões da vida concreta. Não fosse a ajuda resignada de um paroquiano – o Carlos, da papelaria –, era certo que, em pouco tempo, o jardim da paróquia se tornaria uma reconstituição perfeita de Sodoma após a tempestade divina de fogo e enxofre. Mas Carlos ensinou algumas dicas de manutenção para o novo ocupante da casa e dava um jeito de passar de vez em quando para supervisionar o progresso das atividades, de modo que o trabalho do pároco anterior não se perdeu por completo, ainda que o espaço nunca mais recuperasse os seus tempos áureos de borboletas nem o ar noturno adocicado do manacá.

Hoje, quase dez anos depois, o padre Armênio não tinha mais tantas dificuldades com o jardim. Regava as plantas, arrancava os matos e cavoucava aqui e ali para misturar o adubo. Tomava cuidado para não amputar as minhocas nem alarmar os tatus-bola. A grama não era tão macia e as flores estavam um pouco desanimadas, mas pelo menos ele conseguia manter vivo o famoso jardim. Aos paroquianos, começou a dar a entender que levava a ocupação a sério e que inclusive pretendia plantar mais ervas para fazer chá, mas, na verdade, a dedicação à terra era só um pretexto para poder passar longas horas refletindo sem interrupção. Enquanto estivesse entretido em afofar o solo e plantar novas mudas, podia pensar sobre algumas questões que lhe afligiam.

Antes um trabalho esporádico, o cultivo das plantas tornou-se uma labuta diária, obstinada, quase desesperada, como se o padre já estivesse cumprindo uma pesada penitência por seus pensamentos desgarrados.

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Para além dos constantes cuidados com o jardim, padre Armênio também se ocupava em administrar confissões semanais aos fiéis de Montes Baixos do Sul e outras localidades da diocese. Era conhecido por ser um excelente ouvinte, bastante meticuloso na delimitação e na categorização dos pecados, e parecia apreciar as sutis hesitações dos fiéis e a descrição de infinitos pormenores.

Aos sábados de manhã, gostava de tomar a confissão das crianças, que relatavam as contravenções mais inócuas em detalhes compungidos e trágicos. Por exemplo: um menino de oito anos havia convencido a irmã mais nova de que ela estava morta. Outro admitiu que gostava mais de sorvete do que de Jesus Cristo. (Padre Armênio perguntou qual sabor.) Um garoto confessou que no domingo anterior havia perdido a paciência com Deus e, depois de muito resistir, desgrudou a hóstia do céu da boca com o dedo, no que foi duramente repreendido pela mãe e pelo professor de catequese. Agora estava convicto de que merecia a danação eterna.

Uma menina de nove anos declarou estar bastante arrependida por ter se recusado a brincar de esconde-esconde com o irmão mais novo e ter cuspido o brócolis do prato quando ninguém estava olhando. Guardava também enorme angústia por causa de algo que fez na hora do recreio, no pátio da escola: não estava mais com fome e resolveu abandonar três bisnaguinhas com creme de chocolate em cima de um banco, as três bisnaguinhas caprichosamente embrulhadas num saco de papel, preparadas pela mãe. Passou dias chorando só de pensar na tristeza que a mãe sentiria, caso ficasse sabendo do abandono. E se pensasse demais nisso, podia sentir também o desamparo das próprias bisnaguinhas.

Uma pré-adolescente contou uma história confusa sobre a tentativa de começar um incêndio no quintal do vizinho com o arremesso de uma boneca-bomba, e depois reconheceu que estava inventando tudo desde que se sentou e fez o sinal da cruz. Quase imediatamente, chorou sem parar porque achava que iria para o inferno por causa dessas mentiras, e também porque a ideia de não ter pecados para contar era, em si, um pecado mortal — a soberba —, de modo que melhor seria que ela se levantasse dali e nem recitasse o ato de contrição, pois não era merecedora de qualquer perdão.

(O padre Armênio conseguiu não rir, pediu mais detalhes sobre o fato de ela achar que não tinha pecados para contar, concluiu que ela era muito caridosa por se preocupar em entreter o confessor e não o matar de tédio com pecados entediantes, e lhe prescreveu três ave-marias. Conteve a curiosidade de perguntar como se faz uma boneca-bomba.)

Um dos cinco filhos do padeiro, um menino tímido e muito sério, entrou no confessionário, ficou em silêncio por uns minutos e enfim declarou: ele só gostava de ir à missa na Quarta-Feira de Cinzas, porque era quando o padre marcava a testa dos fiéis e ele se sentia que nem o Simba.

Vez ou outra, as crianças passavam tempo demais na fila e as confissões vinham todas iguais, quase com as mesmas palavras: eu mordi os meus irmãos, desobedeci meus pais, colei na prova, furei o pneu do carro do vizinho… Até as crianças que não tinham irmãos admitiam mordê-los regularmente. A questão é que, durante a espera, cada pequeno fiel colaborava com um pecado de sua lavra, e assim todos juntavam material suficiente para deixar o padre ocupado até a hora do almoço, que era quando as freiras serviam a tradicional feijoada com pimenta. Era uma espécie de crowdsourcing de pecados, o que não deixava de ser uma atitude cristã de partilha e comunhão. Houve também uma vez em que eles disputaram para ver quem ganharia o maior número de ave-marias como penitência. Isso o padre Armênio só soube na semana seguinte, quando o vencedor confessou o pecado de superfaturar uma infração só para ganhar a aposta.

Havia também uma garota de onze anos reincidente em matéria de bruxaria. Ela admitia o hábito de cozinhar poções com o cabelo das inimigas e de acender velas pretas ungidas com óleo de olíbano quando os pais não estavam em casa. Padre Armênio perguntava quantos fios de cabelo ela usava para que proporção de fezes de galinha, quais eram as palavras mágicas, se ela chegou a ver algum resultado e por que insistia nos rituais.

Achava que havia algo de íntimo e original naqueles relatos, como se as faltas das pessoas revelassem muito de sua própria humanidade, e até de suas qualidades. A confissão era um momento de proximidade com o outro, um instante que o padre considerava ser quase tão epiclético quanto o silêncio da Consagração durante a missa. Essa sensação era ainda mais forte quando chegavam os adultos para se confessar, em geral na parte da tarde, depois da feijoada.

Havia uma quantidade enorme de mulheres acometidas pelo pecado da gula. Alguns homens tinham pensamentos impuros ao cortar as unhas dos pés. Pais de família alcoólatras vinham se confessar semana após semana sem conseguir largar o vício, e cobriam o rosto todas as vezes, e prometiam que dali em diante seria diferente. Depois de ouvir seus relatos, de fazer perguntas e de compreender aquela mescla de remorso e compulsão, padre Armênio perdia a vontade de administrar penitências. Acabava distribuindo pai-nossos e mistérios do rosário de forma meio aleatória só por força das convenções. Ele acreditava que o importante era relatar as faltas com sinceridade (mesmo as inventadas) e ir construindo uma conexão autêntica com o confessor.

Perdeu a conta de quantas histórias de adultério acompanhou – algumas nem chegavam a começar, outras perdiam força com o tempo, e vez ou outra o arrependido revelava tudo ao parceiro de um só golpe, feito um pulo na água fria. Apesar de tudo, cada uma delas tinha particularidades e trazia nítidas oportunidades de transformação. O período mais agudo de crise, logo após a revelação da infidelidade, era sempre doloroso, mas mesmo nesses dias era possível descobrir pequenas brechas de clareza na voz dos envolvidos. Não raro, o padre encontrava beleza naquelas narrativas.

E havia muitos casos curiosos: um senhor idoso achava que dormir pelado era pecado, e o barbeiro da cidade nutria um grande preconceito contra pessoas que diziam “uma dó”.

Uma moça bastante participativa na comunidade chegou numa tarde dizendo que estava adorando falsos ídolos e merecia arder no fogo do inferno junto com os suicidas, os hipócritas e os semeadores de discórdias. Quando o padre pediu mais detalhes, ela contou que havia ido ao cinema e, por força do hábito, antes de entrar em sua fileira de assentos, ajoelhou e fez o sinal da cruz em direção à tela. “Como se eu estivesse louvando os trailers dublados!”, exclamou, horrorizada. Padre Armênio perguntou se o filme era bom, se havia pipoca envolvida e se ela chegou a desgrudar o quitute do céu da boca com o dedo – e riu sozinho, feliz da vida. Prescreveu uma ave-maria e um bolo para a quermesse.

Um rapaz que havia acabado de ser batizado e crismado já adulto quase parou de frequentar a igreja após sua primeira confissão, por causa de um episódio constrangedor. O garoto desfiou uma litania enorme de pecados, o padre pediu mais informações, eles passaram meia hora conversando animadamente e tudo parecia se encaminhar para um desfecho favorável. Até que, na hora da absolvição, o padre baixou teatralmente a cabeça e ergueu a mão direita, naquilo que pareceu ao rapaz um inconfundível: “Toca aqui! Teus pecados foram ótimos!”

Certo de que havia realmente arrasado, ele ameaçou responder ao cumprimento, mas por sorte percebeu a tempo que se tratava de uma bênção, e freou a mão antes que ela tocasse a do padre. O confessor não percebeu nada porque estava de olhos fechados, mas o rapaz por pouco não abandonou a igreja. Só voltaria quando fosse realmente digno de um legítimo “toca aqui” nesse momento sagrado de prestação de contas.

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Um dia, apareceu na fila da confissão uma senhora que o padre nunca tinha visto antes. Era uma professora do ensino fundamental, recém-aposentada, que morava em Limoeiros, a vinte quilômetros de Montes Baixos do Sul.

Lurdes falava no tom resoluto e claro de quem passou a vida lecionando gramática. Começou a elencar seus pecados, que incluíam perder a paciência com o marido umas oito vezes por dia, ser egoísta com doces, pronunciar Seu Santo Nome em vão e não reciclar embalagens sujas de molho. Durante todo o discurso, seus olhos azuis pareciam querer sondar os pensamentos do padre Armênio. Ele pediu mais informações sobre as embalagens sujas de molho e ela disse que pelo menos passara a usar buchas vegetais para lavar a louça. Mencionou a raiva que sentia pela vizinha, mas tudo era um tanto vago e nem ela parecia estar prestando atenção no que dizia.

Padre Armênio perguntou se havia algo mais que a perturbava. Lurdes mordeu os lábios, ajeitou a postura. Disse que tentou falar sobre isso com o pároco de Limoeiros, mas que ele cortou a conversa e despejou dez credos como penitência. Depois disso, pareceu evitá-la até na hora dos cumprimentos pós-missa.

O problema de Lurdes vinha de muitas décadas, mas só recentemente, após se aposentar, é que ela tinha percebido toda a extensão daquela angústia. Sua implicância estava logo no Gênesis, quando Adão e Eva comem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal e são enxotados pelo Altíssimo. Pois Lurdes passara a vida tentando convencer os alunos de que a busca pelo saber era importante. Ela dizia que é sempre melhor conhecer as coisas para poder chegar à verdade, ainda que essa sabedoria fosse dolorosa de se ter. Estimulava as crianças a perguntar quando tivessem dúvidas e a questionar o teor das ordens recebidas. O relato do Gênesis ia contra tudo o que ela vinha pregando desde sempre, e Lurdes agora cogitava que talvez o Deus da Bíblia não fosse o mocinho da história – o discurso da serpente lhe parecia mais sensato. Era isso. Eva comeu a maçã proibida e seus olhos se abriram. Ofereceu o quitute ao parceiro, que também adquiriu o discernimento.

E o que fez Iahweh, diante de tudo isso? Ele perguntou: “Quem te fez saber que estavas nu?”, feito um padrasto autoritário que esbraveja: “Quem te deu permissão?”. E saiu cuspindo fogo pelas ventas porque aqueles dois pirralhos O desobedeceram.

Lurdes ergueu a voz e protestou, indignada: Deus exigia de suas criaturas uma demonstração inequívoca de temor, a completa submissão dos vassalos, e o emprego obrigatório de pronomes com letras maiúsculas. Que espécie de Criador era esse?

Padre Armênio já estava debruçado, escutando Lurdes com atenção. Ela seguiu elogiando a coragem da serpente, que só podia ser a verdadeira heroína da história, pois convencera os seres humanos a se libertar de um poder opressor que desejava mantê-los cegos e subservientes. Por causa dessa insubordinação, o bem-intencionado ofídio também fora amaldiçoado por Deus: “Ela [a mulher] esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”, disse o Pai Eterno. Só por despeito, o Altíssimo também condenou o homem a um trabalho assalariado em uma agência bancária e criou contrações uterinas para a mulher, além do castigo extra da violência de gênero que nem todo o feminismo do mundo foi capaz de reverter.

Aquela confissão demorou mais de uma hora. Enquanto as pessoas da fila iam desistindo, padre Armênio pedia mais detalhes a Lurdes: então a serpente é que era o verdadeiro Deus? Mas que importava saber se estavam ou não pelados? E por que seria tão proveitoso saber distinguir o bem do mal? Acaso o homem achava que seria um juiz melhor do que o próprio Criador?

A fila inteira já tinha ido embora e eles continuavam conversando. Seria a serpente um Deus feminino? Ela continuara zelando pelos homens ao longo da Bíblia? Lurdes já ouvira falar de Epifânio de Salamina? E dos ofitas?

Ela procurava defender sua tese da melhor forma possível. Parecia verdadeiramente feliz de poder argumentar com alguém que não a julgasse de antemão nem fugisse correndo de suas ideias, ainda que ambos ali soubessem que estavam debatendo heresias. E nem era o caso de que Lurdes acreditasse, por exemplo, que Cristo fora crucificado com três pregos em vez de quatro, e que o soldado romano o trespassara com uma lança no lado esquerdo, e não no direito. “Isso tudo é bobagem”, ela declarou, assumindo que o lance dela era questionar dogmas mais densos. “Por exemplo: acho improvável que Deus, serpente ou não serpente, mandasse o próprio filho para passar por todo aquele sufoco”, afirmou, ao que o sacerdote arregalou os olhos. “Acho que Jesus nunca foi humano, padre! Aquilo tudo era só uma projeção. Um holograma. Jesus Cristo era um holograma!”, concluiu, vitoriosa.

Olhando para o relógio, padre Armênio achou melhor encerrar a confissão por ali. Deu a Lurdes como penitência ler o salmo 38 e rezar oito pai-nossos. Também pediu que ela voltasse na semana seguinte. Havia muito o que conversar.

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Alguns lírios cor de laranja precisavam ser transplantados de um vaso para o jardim, e era necessário espalhar mais adubo no recanto das marias-sem-vergonha. Tudo isso era urgente. O padre não via a hora de ter uma tarde livre para se dedicar a essas atividades, mas naquele sábado ainda teria de administrar a comunhão na casa de um doente e rezar a missa das seis. O domingo estava igualmente preenchido: uma missa bem cedo e outra no fim da tarde, apitar o jogo de futebol das crianças após a celebração da manhã, reunião com os catequistas, ensaio do coral, telefonar aos comerciantes pedindo doações para consertar parte do telhado da igreja, organizar a planilha de reservas do salão paroquial para o próximo mês, dar aconselhamento a um casal da vizinhança que estava tendo problemas de relacionamento.

Ainda assim, ele precisava muito pensar. As heresias de Lurdes lhe abriram uma espécie de trilha nova, um caminho desobstruído a golpes de facão que ele gostaria tanto de percorrer. E rezar: ele precisava rezar e implorar por clareza. Mas com aquela agenda lotada, seria impossível cuidar das plantas.

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Bastava lembrar do pobre Menocchio. Doidinho de pedra, é verdade, mas um camarada interessantíssimo e esperto, e que também morava em um vilarejo remoto com uma população minúscula. Padre Armênio queria muito ter tido a oportunidade de tomar uma confissão do moleiro italiano, que viveu no século XVI e foi condenado à fogueira pela Inquisição. Em Montereale, onde o moleiro vivia, seus principais interlocutores eram um camponês simplório, um marceneiro analfabeto, um pintor de casas e um primo da esposa com quem conversava sobre a imortalidade das almas.

Menocchio acreditava que o universo tinha se formado do caos, “ou seja, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes e esses foram os anjos”. Pois esse sujeito defendeu sua extravagante cosmogonia durante décadas, perante inúmeros inquisidores, completamente embevecido por seu intelecto e originalidade. Para ele, a humanidade era composta por dois espíritos, sete almas e um corpo. Deus era o ar, o universo era um queijo e os anjos eram os vermes. Ele misturava materialismo, pluralismo e panteísmo no mesmo balaio, com a ajuda de uma imaginação sem limites. Era um homem simples, de poucas leituras, mas, do pouco que leu, extraía conclusões inusitadas e estabelecia correlações das mais improváveis, distorcendo conteúdos e reescrevendo tudo em sua gramática peculiar. Orgulhava-se da independência de seu julgamento e se achava no direito de ter uma posição autônoma. (No que tinha toda razão, pensava padre Armênio, e imediatamente se punha a rezar implorando maior clareza.)

É de Menocchio a seguinte afirmação: “Não é verdade que Cristo tenha sido crucificado, mas sim Simão da Cirenaica.”

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Por sorte, quando ele se despediu de Lurdes já não havia mais uma viva alma na igreja, o que era ótimo, pois isso o dispensava de ter de jogar conversa fora com outros paroquianos e de aparentar normalidade depois de uma confissão tão perturbadora. Foi pedalando muito devagar para a casa de Humberto, um senhor idoso que se recuperava de um ataque cardíaco recente, e no caminho deixou as ideias se atropelarem. Ao perceber que concentrava toda a tensão do corpo nas duas mãos fechadas que agarravam o guidão da bicicleta, o que deixava sua pedalada mais errática, ele deslocou toda a força para a extensão dos braços e assim conseguiu organizar melhor um certo pensamento: será que havia algum sentido em uma religião que deixava os fiéis tão aterrorizados ante a fúria divina, a tal ponto de não ousarem expressar suas angústias em voz alta? Muitas vezes, o simples ato de pensar em algo provocava tamanho desespero que a pessoa se julgava imediatamente condenada às labaredas da danação eterna. Tudo isso só porque um pensamento proibido passara correndo ao fundo de uma enumeração mental da lista de supermercado. Não precisava ser assim. O que fazer para que não fosse mais assim?

Humberto o recebeu com café e biscoitos amanteigados, e disse que estava se sentindo melhor. Conversaram sobre um supermercado novo que iria abrir na cidade vizinha, sobre os gols da última rodada do campeonato paulista e sobre o medo da morte. Humberto não tinha mais tanta certeza sobre o que havia depois da morte. No momento, depositava suas esperanças na hipótese de que falecer fosse como pegar no sono, sonhar com cavalos e não acordar nunca mais. Padre Armênio leu algumas passagens da Bíblia e falou um pouco de esperança e fé. Ambos comeram biscoitos demais. Humberto confessou que tinha discutido de novo com a filha, que morava na capital, mas que iria telefonar no dia seguinte para pedir desculpas.

Uma das coisas que mais o preocupavam após o ataque cardíaco era a possibilidade de morrer muito de repente, sem antes poder falar com o padre. Humberto tinha medo de bater as botas sem se confessar uma última vez, ou mesmo de conseguir se confessar e de estar deitado em paz em seu leito de morte, pronto para entregar a alma ao Senhor, mas aí pensar sem querer em algo bem profano, tipo um diabinho pelado mostrando o dedo do meio e rebolando ao som de Iron Maiden. E plof, chegava a morte. Junto com a nítida imagem de um ente blasfemo gritando versos satânicos.

O que Deus faria às portas do Paraíso quando olhasse na prancheta e enxergasse os últimos pensamentos de Humberto?

Padre Armênio passou um tempo analisando as possibilidades desse cenário improvável, mas já estava ficando tarde e ele sentia uma incômoda dor de barriga por ter comido tantos biscoitos. Prometeu pensar melhor nos questionamentos de Humberto, administrou a eucaristia e voltou pedalando para a paróquia, bem a tempo dos preparativos para a missa das seis.

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No caminho, foi esboçando na cabeça o sermão daquela noite, que seria mesmo memorável. A leitura principal era do Evangelho de São Lucas, “Dois ditos sobre a lâmpada”. Mas ele tinha outros planos, e passou mais de vinte minutos desfiando a uma dúzia de espantados paroquianos uma ladainha de seus próprios pecados: a preguiça, a soberba, a insistência em evitar uma determinada beata que falava baixo demais, aquela vez em que disse estar gripado só para faltar a uma reunião da Legião de Maria, a mania de ficar testando a paciência do pessoal da Pastoral da Perseverança, a gula, a maledicência, os gastos excessivos com vinho chileno, o tédio, as dúvidas, a falta de fé. Confessou que só cuidava do jardim para poder se isolar das pessoas e pensar com tranquilidade, e que tinha pensamentos homicidas envolvendo o ancinho sempre que algum fiel se aproximava enquanto ele estava cavoucando a terra. Ele não se importava muito com as flores e às vezes plantava e replantava as mesmas mudas só para fingir que estava ocupado. Para ser sincero, adoraria poder passar mais tempo perto do adubo e longe do trabalho eclesiástico. E por falar nisso, alguém ali também tinha sérias dúvidas sobre a vida após a morte e a verdadeira natureza de Deus? Ele estava pensando em formar um grupo de debates. Encomendaria os salgadinhos, naturalmente. Só não achava prudente comprar biscoitos amanteigados, porque o salão paroquial só contava com dois banheiros.

Quando terminou o sermão, os paroquianos se entreolhavam.

“Creio em Deus Pai Todo-Poderoso”, ele puxou, paradoxalmente. Todos se levantaram e prosseguiram: “… criador do Céu e da Terra…”

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Padre Armênio achava que Deus estava efetivamente presente nas coisas que criou. Mas não em todas; só em algumas.

Não era fácil distinguir quais eram essas coisas consagradas com a substância de Deus, mas digamos que seria como olhar para o céu e saber diferenciar estrelas de planetas. Apenas uma questão de treino. Padre Armênio se postava diante de algo e já sabia se aquilo cintilava ou não, se era Marte ou Antares, se era Vênus ou Sirius. (Muitas vezes, era só a luz mortiça de uma antena distante, para além de Limoeiros.) Deus estava em Menocchio, nas brigas entre irmãos, nas dúvidas de Humberto, nos manuais de bruxaria, no heavy metal melódico, nos paroquianos que faziam o sinal da cruz no cinema, na indigestão amarga dos biscoitos amanteigados.

Fazia alguns anos que ele enxergava Deus nos pecados dos paroquianos, mas nunca tinha se dado conta disso com tanta clareza. Segundo esse neo-panenteísta de Montes Baixos do Sul, em cada blasfêmia, heresia e adultério, Ele se fazia presente em toda a Sua Glória. Por isso pouco lhe interessavam as penitências e a contrição dos fiéis: Deus já se manifestava naqueles relatos. Nada mais era necessário, apenas ouvir aqueles pequenos milagres e partilhar de suas minúcias. E pensar neles enquanto cuidava das plantas.

Só que essa não era uma posição exatamente aceitável dentro da doutrina católica, e só de alimentar essas ideias o padre incorria em pecado.

Considerando que Deus estava no pecado, nada disso chegava a incomodá-lo.