A arte de lamber o nariz

Postado em: 7th fevereiro 2016 por Vanessa Barbara em Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de São Paulo – Caderno 2
1 de fevereiro de 2016

por Vanessa Barbara

Quando somos crianças, é muito fácil saber o que a sociedade exige de nós enquanto seres humanos. Os atributos básicos que uma pessoa precisa ter para se destacar na vida são claros, específicos e até sensatos – por exemplo: tem aquele menino que consegue encostar a língua no nariz. Desde seu ingresso na escola, ele tem o respeito absoluto de todo o corpo discente, ao qual não se furta de fazer exibições periódicas de sua extraordinária habilidade. Seu objetivo a longo prazo é treinar até conseguir encostar a língua no olho, no que encontra o entusiástico apoio dos colegas.

Tem sempre alguém que ganha notoriedade por projetar espessas quantidades de suco salivar a grandes distâncias. O menino que cospe longe é ladeado em fama pelo menino que consegue cuspir de lado, por outro que sopra bolhinhas de saliva e por aquele que acerta praticamente todos os arremessos de amendoins na boca. Eles são temidos e reverenciados como se fossem membros de uma liga de super-heróis, verdadeiras celebridades da nossa infância que só não ganharam bustos comemorativos porque é muito difícil esculpir rostos humanos em massinha.

Uma das primeiras provações que encontramos na vida acontece ao entrar numa escola nova e ser indagado por um colega: “Você consegue erguer uma sobrancelha só? E dobrar a língua? Você consegue abanar as orelhas? Mexer o couro cabeludo? Afinal, você sabe fazer qualquer coisa de interessante?”

Eu nunca consegui. Não era capaz de mover os dedinhos de forma independente, nem de lamber o cotovelo. Conheci crianças que dobravam o indicador de forma anormal, que conseguiam inflar a barriga como se estivessem grávidas e mexiam a ponta do nariz feito coelhos. Houve uma vez um menino que soprava ar pelos olhos. (É possível que você não o tenha conhecido, mas só ouvido falar dele, como uma narrativa folclórica passada de geração em geração.)

Mas afinal, o que aconteceu com esses mitos da nossa infância? O que foi feito deles? Fico imaginando essas figuras épicas adentrando um escritório no primeiro dia de trabalho e tentando impressionar os colegas tocando “House of The Rising Sun” com as axilas. Ou respondendo a perguntas de uma entrevista de emprego com a voz do Pato Donald, só para causar boa figura.

Tive uma amiga que conseguia arrotar frases inteiras. Ela entoava versos do Hino Nacional com arrotos, e por isso foi a menina mais popular da turma até mais ou menos os 12 anos. Então as regras mudaram. Da noite para o dia, ter o cabelo liso, um moletom de marca ou, atualmente, um Samsung Galaxy S6 Edge tornou-se mais importante do que ser capaz de lamber o dedão do pé. De repente minha amiga não era mais tão popular assim. E esses nossos verdadeiros mitos da infância se perderam no vestibular, em cursos de gerenciamento financeiro e departamentos de marketing.

Nos coquetéis da firma e nas conversas de bebedouro, ninguém se lembra de que um dia foram heróis.