Ping Zhu

Ping Zhu

The International New York Times
14 de agosto de 2015

Por Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brasil – No mês passado, um homem foi espancado até a morte por uma multidão, após ser acusado de tentar roubar um bar em São Luís do Maranhão, no Nordeste do Brasil. O homem, Cleidenilson Pereira da Silva, foi despido, amarrado a um poste, chutado, esmurrado e atingido por pedras e garrafas. Ele morreu no local.

Pelo menos vinte pessoas tomaram parte no linchamento, que não foi o único no Brasil naquele mês. Poucos dias depois do ataque, um homem na região metropolitana de Belo Horizonte foi arrastado por uma multidão e espancado até a morte com um pedaço de madeira, por supostamente furtar um celular. No mesmo dia, em um bairro próximo, outro homem morreu após ser apedrejado por uma turba. Ele era acusado de tentativa de roubo.

Há pelo menos uma tentativa de linchamento por dia no Brasil, de acordo com o sociólogo José de Souza Martins, que publicou recentemente um livro sobre o assunto. De 2011 até hoje, ele registrou 2.505 episódios de linchamento, muitos deles no estado de São Paulo. Para Martins, o linchamento se tornou um componente da realidade social brasileira. Há inclusive certo apoio público à noção de “justiça popular”.

No ano passado, uma âncora de telejornal afirmou, em cadeia nacional, que o espancamento brutal de um adolescente negro no Rio de Janeiro era “até compreensível”. Após ser acusado de furtar um pedestre, o garoto teve as roupas rasgadas e foi preso a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta. Os bombeiros tiveram que usar um maçarico para libertá-lo. “O Estado é omisso, a polícia, desmoralizada, a Justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, é claro”, declarou a âncora Rachel Sheherazade. Ela disse considerar o ataque uma espécie de “legítima defesa coletiva”.

O Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública contra o SBT, emissora onde trabalha Sheherazade, acusando-a de violar o princípio da dignidade humana e os direitos da criança e do adolescente, além de estimular a tortura e a justiça com as próprias mãos.

Mas muitos brasileiros pareceram concordar com ela e elogiaram a punição, compartilhando alegremente nas redes sociais a foto do garoto preso ao poste. Um jornal acompanhou os comentários sobre o assunto em sua página do Facebook e constatou que 71% deles apoiavam o linchamento.

A onda de justiça vigilante continuou até mesmo quando, poucos meses depois, uma mulher foi espancada e morta por causa de um boato falso no Facebook. Uma página sensacionalista local acusou uma mulher de raptar crianças para rituais de magia negra e postou um retrato falado de uma suposta suspeita. Embora a polícia local tenha negado o rumor, garantindo que não havia nenhum registro de crianças raptadas na área, a mulher, Fabiane Maria de Jesus, mãe de duas crianças, foi executada por uma turba violenta que a achou parecida com a suspeita.

Em uma entrevista para uma revista online, Martins disse que os linchamentos são uma modalidade de comportamento coletivo cuja dinâmica, em parte, é regulada pelo contágio: quanto mais visibilidade ganham, mais linchamentos ocorrem. “A transformação do crime em espetáculo da mídia e das redes sociais tem sido um provável fator de multiplicação do número de linchamentos”, afirmou. “O noticiário emocional e não raro superficial e desinformado estimula a difusão dessa prática.”

Segundo ele, durante os espancamentos, há uma certa progressão nas ações da multidão: primeiro ataca-se a vítima com pedras, garrafas e pedaços de pau, e então, mais diretamente, com socos e pontapés. Nessa escalada de violência, há casos em que olhos são extirpados, orelhas arrancadas, pessoas são castradas ou queimadas vivas. As atrocidades são piores nos casos em que as vítimas eram negras. Posteriormente os agressores tendem a justificar suas ações recorrendo a noções de justiça e controle da criminalidade, condenando a ausência de policiamento efetivo e de um sistema rigoroso de justiça criminal. As multidões não reconhecem que são motivadas por ódio e preconceito.

Mas esse senso de retidão é enganador, de muitas formas. As pessoas podem inflamar-se pelas razões mais fúteis quando fazem parte de uma multidão. No ano passado, testemunhei uma situação tensa no centro de São Paulo, quando um homem com transtorno bipolar subiu no teto de um ônibus, despiu-se e começou a provocar a multidão. Alguns pedestres ameaçaram espancá-lo com paus e vassouras, revoltados porque ele estava atrapalhando o trânsito. Felizmente a polícia chegou e o homem foi retirado sem incidentes.

Não é preciso muito para incitar uma multidão. Às vezes, um ódio difuso ou uma forte descrença no sistema judiciário é redirecionado a quem estiver disponível. Alguns casos de linchamento envolveram vítimas que apenas se pareciam com outras. Num caso emblemático que aconteceu em São Paulo no ano passado, um professor de história estava correndo na rua quando alguém o identificou erroneamente como um homem que havia acabado de roubar um bar; uma multidão o acorrentou e tentou quebrar suas pernas. Ele foi eventualmente poupado após dar uma aula de três minutos sobre a Revolução Francesa, provando ser um membro produtivo da sociedade, não um bandido.

Não raro, os membros de uma turba violenta que executam alguém de forma sumária se consideram cidadãos de bem e cumpridores da lei, em oposição aos depravados e delinquentes que merecem ser punidos. Seus lemas são: “Bandido bom é bandido morto” e “Direitos humanos são para humanos direitos”. Eles às vezes têm a percepção de que a lei protege os criminosos, e que, portanto, é inútil apelar para os canais estabelecidos quando se trata de combater o crime. (Em um detalhe paradoxal, pode-se ver claramente um policial uniformizado no vídeo do linchamento no Maranhão, apenas observando e filmando a cena com seu celular.)

Ao fingirem comandar a justiça, as multidões geralmente se colocam acima dela. Alguns dos agressores que ataram o garoto ao poste com uma trava de bicicleta foram posteriormente acusados de outros crimes como tráfico de drogas, assalto, roubo de carros e estupro.

Já basta de cidadãos de bem.


Vanessa Barbara é cronista do jornal O Estado de São Paulo, editora do site literário A Hortaliça e colunista de opinião do INYT.

Este texto foi publicado em inglês no The International New York Times do dia 14 de agosto de 2015. Tradução da autora.