Histórias de perder

Postado em: 10th novembro 2014 por Vanessa Barbara em Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo

O Estado de São Paulo – Caderno 2
10 de novembro de 2014

por Vanessa Barbara

Semana passada fiquei me gabando das coisas que consegui encontrar nesta vida, numa comprovação empírica de que “vergonha na cara” não constava da lista, e falhei em informar todas as coisas que acabei perdendo.

Uma pasta de dente em miniatura sabor hortelã, durante uma viagem a Porto Alegre em 2003. Uma toalhinha de rosto azul num acampamento em 1991. Uma meia. Um comprimido de zolpidem. Uma bolinha transparente de futebol de botão. Algumas lentes de contato. As chaves de casa – mas estavam dentro da cestinha da bicicleta, o que eu só descobri depois de trocar todas as fechaduras.

Lá se vão quase dez anos e não me lembro de onde vem a frase: “Não quero morrer em Cordeirópolis”, que, por alguma razão, está anotada à margem de um caderno de francês. Com a minha letra.

Outra coisa que jamais consegui confirmar é uma história que alguém me contou sobre um casal que, a título de experimento, ocultou do filho a palavra “maçã” até que ele tivesse uns seis anos de idade.

Ou a identidade do escritor famoso que se divertia com os amigos dublando programas de tevê enfadonhos – sua única regra era que todos os personagens discorressem sobre pastéis.

Se é verdade que a timidez me dotou de inúmeras qualidades detetivescas, também foi responsável pela minha incapacidade de descer de um carro durante um congestionamento, num dia comum, e entrevistar um cidadão que, diante de semáforos quebrados, resolveu ele mesmo coordenar o trânsito. Chaves na mão, o mambembe controlador de tráfego se postou num dos cruzamentos da avenida Brasil e organizou o fluxo de automóveis como um maestro. Nunca fiquei sabendo qual era a sua história.

Também não pude apurar com esmero a saga de amor e ódio por trás de uma colisão de embarcações numas férias de janeiro em Ilha Grande; conta-se que o barco de um rapaz bateu em cheio na escuna do próprio sogro, com quem mantinha uma inimizade histórica. A fofoca alastrou-se por telefone entre os donos das pousadas e foi crescendo com o passar dos dias. Um esfaqueamento em pleno convés não estava mais fora de questão.

Também foram inúmeras as reportagens que deixei de fazer, por motivos diversos. Na mais antológica delas, propus-me a tecer uma comparação entre a Casa do Saber e a Casa das Cuecas. O trabalho se mostrou muito acima das minhas capacidades e acabei fracassando por pura falta de ambição.

Já perdi muitas partidas de vôlei, duas tartarugas, meia dúzia de sinônimos, alguns entes queridos e a vontade de andar de patins.

Agora faço questão de perder o fio da meada.

(Há algo de nobre em perder alguma coisa e simplesmente parar de buscá-la.)